Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
506/15.7T8RGR.L1-8
Relator: MARIA ALEXANDRINA BRANQUINHO
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA E DO VALOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O n.º 2 do art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, ao atribuir à instância central competência para as ações que seriam da competência das seções de comércio, se tivessem sido instaladas, remetendo para o disposto no seu n.º 1, deve ser interpretado no sentido de atribuir à instância central a competência para todas as ações a que se reporta o art.º 128.º da mesma lei, que tenham “valor superior a € 50.000,00”.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO.

           
Tarcísio ...e Isabel ...vieram interpor recurso de decisão da 1.ª instância proferida no processo em que requereram a sua insolvência.

Porque a questão tratada na decisão apelada e, a tratar no presente recurso, tem vindo a ser discutida nos nossos tribunais e obtido soluções diversas, optamos por transcrever o entendimento seguido na 1.ª instância, do qual divergimos mas, que contribuirá, seguramente, para o enriquecimento do debate.

Eis, pois, o teor da decisão apelada: «O presente despacho expressa o entendimento unânime dos três Juízes desta 1ª secção cível e criminal da instância central de Ponta Delgada.

Não desconhecemos, todavia, as decisões que têm vindo a ser proferidas em sede de conflitos negativos de competência e que têm vindo a confirmar a posição sufragada pelos Colegas da secção cível da instância local (de Ponta Delgada e da Ribeira Grande) e espelhada no despacho que antecede.

Mas o nosso entendimento tem vindo a ser confirmado em sede recursiva, embora não de forma unânime mas já com um considerável e relevante assento jurisprudencial, tanto mais porque emana de diferentes secções cíveis do Tribunal da Relação de Lisboa: Ac. TRL de 19.03.2015 (processo nº 1016/14.5T8PDL, relatado pela Ex.ma Senhora Juiz Desembargadora Maria Manuela B. Santos G. Gomes); Ac. TRL de 28.04.2015 (processo nº 658/15.6T8PDL, relatado pela Ex.ma Senhora Juiz Desembargadora Maria Adelaide Domingos); Ac. TRL de 19.05.2015 (processo nº 425/15.7T8PDL, relatado pela Ex.ma Senhora Juiz Desembargadora Maria da Conceição Saavedra) e Ac. TRL de 31.08.2015 (processo nº 1798/15.7T8PDL, relatado pela Ex.ma Senhora Juiz Desembargadora Ondina Carmo Alves) que, bem assim, faz uma referência doutrinária (defendendo esta posição) a António A. Vieira Cura, Curso de Organização Judiciária, 2ª Ed., p. 213 e 222. Todos os referidos e outros se pronunciaram pela competência da instância local cível em razão da matéria e independentemente do valor da causa - para o conhecimento de quaisquer processos de insolvência, indo ao encontro, portanto, da solução por nós preconizada e cujos fundamentos infra mantêm toda a atualidade.

Cremos que a questão só ficará definitivamente resolvida mediante uma clara e escorreita intervenção do legislador ou do nosso mais alto Tribunal em sede de uniformização de jurisprudência.

O presente processo de insolvência foi distribuído a esta instância central porque – à semelhança do que tem vindo a suceder noutros processos de insolvência – o nosso Colega da instância local cível da Ribeira Grande entendeu não ser competente para dele conhecer – face ao valor da causa – em razão do nº. 2 do art.º 117º da Lei 62/2013, de 26 de agosto (em diante LOSJ), atribuindo tal competência a esta instância central (por se tratar de processo de valor superior a €50.000,00).

Conforme anunciámos, não podemos concordar com este entendimento.

Eis o quadro legal que, a nosso ver, importa para o caso:

Da Lei 62/2013, de 26 de agosto (em diante LOSJ):
Art.º 37º, n.º1 - Na ordem jurídica interna a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.

Art.º 38º, n.º1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei; n.º 2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.

Art.º 39º-Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal ou secção competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

Art.º 40º, n.º1-Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional; n.º 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas  que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.

Art.º 41º-A presente lei determina a competência, em razão do valor, entre as instâncias dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem às secções cíveis das instâncias centrais e às secções de competência genérica das instâncias locais, nas ações declarativas cíveis de processo comum.

Art.º 79º-Os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca e designam-se pelo nome da circunscrição em que se encontram instalados.

Art.º 80º, n.º1-Compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais;
n.º 2-Os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada.

Art.º 81º, nº.1 - Os tribunais de comarca desdobram-se em:
a)Instâncias centrais que integram secções de competência especializada;
b)Instâncias locais que integram secções de competência genérica e secções de proximidade;

n.º2-Nas instâncias centrais podem ser criadas as seguintes secções de competência especializada:
a) Cível;
b) Criminal;
c) Instrução criminal;
d) Família e menores;
e) Trabalho;
f) Comércio;
g) Execução;

n.º3-Nas instâncias locais, as secções de competência genérica podem ainda desdobrar-se em secções cíveis, em secções criminais e em secções de pequena criminalidade, quando o volume ou a complexidade do serviço o justifiquem;

n.º4-Sempre que o volume processual o justifique podem ser criadas nas instâncias centrais, por decreto-lei, secções de competência especializada mista; n.º 5 - Podem ser alteradas, por decreto-lei, a estrutura e a organização dos tribunais de comarca definidos na presente lei e que importem a criação ou a extinção de secções;

Art.º 117º, n.º1-Compete à secção cível da instância central:
a)A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00;
b)Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a €50.000,00, as competências previstas no Código de Processo Civil (CPC), em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal;
c)Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d)Exercer as demais competências conferidas por lei;
n.º2-Nas comarcas onde não haja secção de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a essas secções;
n.º3-São remetidos à secção cível da instância central os processos pendentes nas secções da instância local em que se verifique alteração do valor suscetível de determinar a sua competência.

Art.º123º,n.º4-A prática de atos urgentes é assegurada pelas secções de competência genérica de instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município.

Art.º124º,n.º5-Fora das áreas abrangidas pela jurisdição das secções de família e menores, cabe às secções de competência especializada criminal conhecer dos processos tutelares educativos e às secções de competência especializada cível conhecer dos processos de promoção e proteção;

n.º6-A prática de atos urgentes é assegurada pelas secções de competência genérica da instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município.

Art.º128º,n.º1-Compete às secções de comércio preparar e julgar:
a)Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b)As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c)As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d)As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e)As ações de liquidação judicial de sociedades;
f)As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g)As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h)As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i)As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras;
n.º2-Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais;
n.º3-A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

Do DL 49/2014, de 27 de março (em diante RLOSJ):

Art.º64º-São criados os seguintes tribunais de comarca:
a)Tribunal Judicial da Comarca dos Açores;
b)Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro; c) Tribunal Judicial da Comarca de Beja; d) Tribunal Judicial da Comarca de Braga; e)Tribunal Judicial da Comarca de Bragança;
f)Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco;
g)Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra;
h)Tribunal Judicial da Comarca de Évora;
i)Tribunal Judicial da Comarca de Faro;
j)Tribunal Judicial da Comarca da Guarda;
k)Tribunal Judicial da Comarca de Leiria;
l)Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa;
m)Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte;
n)Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste;
o)Tribunal Judicial da Comarca da Madeira;
p)Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre;
q)Tribunal Judicial da Comarca do Porto;
r)Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este;
s)Tribunal Judicial da Comarca de Santarém;
t)Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal;
u)Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo;
v)Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real;
w)Tribunal Judicial da Comarca de Viseu.

Art.º 66º, n.º1-O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores integra as seguintes secções de instância central:
a)1.ª Secção cível, com sede em Ponta Delgada;
b)1.ª Secção criminal, com sede em Ponta Delgada;
c)2.ª Secção cível, com sede em Angra do Heroísmo;
d)2.ª Secção criminal, com sede em Angra do Heroísmo;
e)Secção de instrução criminal, com sede em Ponta Delgada;
f)Secção de família e menores, com sede em Ponta Delgada;
g)Secção do trabalho, com sede em Ponta Delgada;

nº.2-O Tribunal Judicial da Comarca dos Açores integra ainda as seguintes secções de instância local:
a)Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Angra do Heroísmo;
b)Secção de competência genérica, com sede na Horta;
c)Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Ponta Delgada;
d)Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Praia da Vitória;
e)Secção de competência genérica, desdobrada em matéria cível e criminal, com sede em Ribeira Grande;
f)Secção de competência genérica, com sede em Santa Cruz da Graciosa;
g)Secção de competência genérica, com sede em Santa Cruz das Flores;
h)Secção de competência genérica, com sede em São Roque do Pico;
i)Secção de competência genérica, com sede em Velas;
j)Secção de competência genérica, com sede em Vila do Porto;
k)Secção de competência genérica, com sede em Vila Franca do Campo;
l)Secção de proximidade, com sede em Nordeste; m) Secção de proximidade, com sede em Povoação.

Art.º104º,n.º1-Os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local;
2-Os processos pendentes nas atuais varas cíveis, varas com competência mista cível e criminal e juízos de grande instância cível das comarcas piloto, independentemente do valor, transitam igualmente para as secções de competência especializada das instâncias centrais referidas no número anterior;
n.º3-Transitam para os tribunais de competência territorial alargada, à data da instalação dos novos tribunais, os processos pendentes nos atuais tribunais de competência especializada que lhes correspondam;
n.º4-Os processos pendentes nos atuais tribunais e juízos de competência especializada das comarcas piloto, não incluídos no número anterior, transitam, dentro do mesmo município, à data da instalação dos novos tribunais, para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as regras de competência material;
n.º5-Os processos pendentes nas atuais comarcas, não abrangidos pelas regras previstas nos números anteriores, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para as respetivas instâncias locais;
n.º6-Os processos objeto de interposição de recurso jurisdicional que se encontrem pendentes nas instâncias superiores, à data da instalação dos novos tribunais, transitam, após decisão, para as secções ou tribunais competentes, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, sem prejuízo do previsto no n.º 2;

n.º7-Os processos em que o Ministério Público é titular, pendentes nos atuais tribunais, departamentos de investigação e ação penal ou serviços do Ministério Público, transitam, à data da instalação dos novos tribunais, para os departamentos ou serviços do Ministério Público que lhes correspondam.

Percorrido o quadro legal que enquadra a questão aqui em apreço, nota-se (sendo até primário afirmá-lo) que a realidade de hoje, no que toca à organização judiciária – artºs.79º a 81º da LOSJ -, é muito distinta da que vigorava antes de 01.09.2014.

Hoje, circunscrevendo a questão à Região Autónoma dos Açores, a miríade de comarcas de antes está aglutinada numa única comarca – art.º 66º da RLOSJ.

Nota-se, também, que a tão propalada (pelo poder político) especialização dos tribunais não chegou de forma igual a todas as comarcas do país. É certo que essa possibilidade está contemplada na lei – art.º 81º da LOSJ – mas, no que toca à comarca dos Açores, não foi implementada de forma integral por se ter excluído da especialização da instância central as secções de comércio e execução – als. f) e g) do nº.2 do artº.81º da LOSJ – como claramente o revela o art.º 66º, n.º 1 da RLOSJ que as não criou…e é daqui que surge a questão que se analisa e que o legislador resolveu mas de forma “menos óbvia”, digamos assim, circunstância que, como nos revela a história das reformas anteriores, é aproveitada por muitos operadores para confundirem o desiderato reformista.

Como se referiu, se tivesse sido criada a secção de comércio nesta instância central todos saberíamos que a competência para o conhecimento destes autos lhe caberia, como bem o aponta o art.º 128º, n. º1, al. a) da LOSJ…assim como lhe caberia o conhecimento de todos os demais autos que se mostram elencados em tal norma, o que equivale a dizer que a competência é-lhe atribuída em razão exclusiva da matéria com clara irrelevância para o valor da causa.

Resulta da lei – artºs. 37º, 38º, 39º, 40º e 41º, todos da LOSJ – que a competência dos tribunais judiciais, para o que aqui importa, se reparte entre si segundo a matéria e o valor; que (a competência) se fixa no momento da propositura da ação mas com a possibilidade de se alterar de acordo com as imposições legais e também quando ocorrer extinção do órgão a que a causa estava afeta ou lhe seja atribuída a competência que antes lhe faltava; só nos casos previstos na lei é que uma causa se pode deslocar para outro tribunal; que os tribunais judiciais têm competência residual e que, no que toca às ações declarativas cíveis de processo comum, a competência entres as secções cíveis da instância central e as secções de competência genérica das instâncias locais se faz em razão do valor.

Aqui chegados, notamos que a reforma extinguiu tribunais que integravam juízos de competência genérica com competência para o conhecimento (já não para o julgamento) de toda a matéria cível e comercial e criou um tribunal com instâncias centrais, locais e de proximidade, incorporando, para o que aqui importa, a primeira duas secções de competência cível e criminal e as segundas várias secções cíveis, criminais ou genéricas, estando a competência de cada uma dessas secções (central e local) fixada, no que respeita à matéria cível e para o que aqui interessa, em razão da matéria e do valor.

No que toca às secções cíveis da instância central a competência está fixada e limitada nos termos do artº. 117º da LOSJ e podemos, para o que aqui interessa, circunscrevê-la à preparação e julgamento das ações cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00 – nº.1, al. a) da norma referida.

Cabe aqui e agora assinalar a primeira e fundamental diferença quanto aos critérios de atribuição da competência às secções cíveis e secções de comércio das instâncias centrais…às primeiras é feita pelo binómio matéria (preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum; exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível as competências previstas no CPC, em circunscrições não abrangidas pela competência de outra secção ou tribunal; preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência; e exercer as demais competências conferidas por lei) e valor da causa (desde que superior a €50.000,00) ao passo que às segundas é feita apenas pela matéria (toda a elencada no art.º128º da LOSJ).

Em jeito de resumo…às secções de comércio cabe conhecer de todos os processos e ações que incorporem matéria comercial independentemente do valor que esteja em causa…, ao passo que às secções cíveis a sua competência é limitada às ações declarativas cíveis de processo comum com valor superior a €50.000,00; às ações executivas também de valor superior ao apontado e às providências cautelares a que correspondam as ações declarativas em primeiro lugar referidas.

O legislador poderia ter feito outra opção…mas não o fez!

E certamente não o fez por razões ponderosas relacionadas com a racional distribuição do serviço e, também, com a desnecessidade de intervenção de juiz mais experiente no julgamento de causas que não aquelas que especificou – art.º 183º, nº.1 da LOSJ.

Como sabemos, estão arquitetadas no CPC uma miríade de ações – especiais – que versam matéria cível e que assumem, em muitas ocasiões, valores muito acima dos €50.000,00 e, mesmo assim, o legislador entendeu subtrair o seu conhecimento à instância central, entregando tal tarefa à instância local. Limitou, pois, a competência da instância central em razão da matéria…uma vez que o valor, neste particular, não assume relevância. Nota clara desta opção está no art.º 41º da LOSJ, onde, sem se bulir com a competência material das secções cíveis da instância central, se reparte entre elas e as secções cíveis da instância local, com competência material concorrencial, a responsabilidade pelo conhecimento das ações declarativas cíveis de processo comum destinando às primeiras apenas as que tenham um valor superior a €50.000,00.

Já não preconizou o legislador solução igual para as secções de comércio das instâncias centrais…uma vez que a estas cabe, independentemente do valor, conhecer de todos os processos e ações que versem matéria comercial – artº.128º da LOSJ.

Se assim é, cabe agora interpretar o que o legislador pretendeu ao fixar a regra a que alude o nº.2 do art.º 117º da LOSJ.

Para tanto, há que chamar à colação o que decorre do artº.9º do Código Civil:
n.º1-A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada;
n.º2-Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; nº.3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Ora, pegando na letra da lei – n.º 2 do art.º 117º da LOSJ –, vemos claramente que o legislador (podendo usar qualquer vocábulo, na verdade) exprimiu o seu pensamento em termos adequados ao que visava pela expressão ações…e não procedimentos, processos
ou qualquer outra que pudesse contrariar a estreiteza da via que abriu na direção da secção cível da instância central fixada no n.º 1 do mesmo preceito.

O legislador sabia muito bem…porque o escreveu…que as secções de comércio das instâncias centrais tinham competência para conhecer mais do que as ações declarativas de processo comum que por lá pululam…tinham competência para conhecer tudo e sem qualquer limite de valor (competência fixada exclusivamente em razão da matéria).

Legitimamente cabe agora perguntar se (com o n.º 2 do artº 117º da LOSJ) o legislador quis entregar às secções cíveis das instâncias centrais onde não haja secção de comércio a competência que caberia a estas últimas na sua totalidade (nomeadamente a material) ou só relativamente às ações da sua competência (ações declarativas cíveis de processo comum com valor superior a €50.000,00; às ações executivas também de valor superior ao apontado e às providências cautelares a que correspondam as ações declarativas em primeiro lugar referidas)?

A resposta parece não oferecer dúvidas e para tanto basta olharmos de forma mais cuidada para a lei…lendo-a de forma integrada e devidamente contextualizada. O n.º 2 do artº 117º da LOSJ preconiza sem qualquer dúvida um alargamento da competência das secções cíveis da instância central onde não haja secção de comércio…mas na atribuição dessa competência não abandona o critério que fixou e que se concretiza no binómio matéria e valor (artºs. 40º, n.º 2 e 41º da LOSJ)…e por isso faz referência expressa ao n.º 1 do mesmo preceito.

A lei – n.º 2 do artº 117º da LOSJ – não refere que a competência das secções do comércio da instância central – fixadas no artº 128º da LOSJ – passa, toda, para as secções cíveis da mesma instância desde que o valor da causa, independentemente da sua forma processual, seja superior a €50.000,00…o que seria fácil de dizer se essa fosse a solução preconizada…o que se diz, com todas as letras, é que a competência das secções cíveis da instância central fixada nos termos do n.º 1 é alargada no sentido de nela se incluírem, em razão da matéria, as ações declarativas de processo comum de valor superior a €50.000,00; as execuções…de valor superior a €50.000,00; às providências cautelares a que correspondam as ações antes mencionadas e às demais competências conferidas por lei que se inscrevam na competência das secções de comércio em falta na comarca…é isto que se diz.

A interpretação feita sem se contextualizar o teor do n.º 2 face ao que se afirma no n.º 1 do artº117º da LOSJ seria derrogar a barreira da competência em razão da matéria fixada para as secções das instâncias centrais que se limita às hipóteses, constituídas em numerus clausus, identificadas no n.º 1 do artº 117º da LOSJ….é que inquestionavelmente as insolvências e PER não são, em termos dogmáticos, ações declarativas de processo comum mas sim processos especiais e assim mesmo foram designados expressamente pelo legislador que no artº 128º, n.º 1, al. a) da LOSJ assim os apelida.

Não se trata de qualquer ingenuidade do legislador mas antes de opção clara e rigorosa em termos dogmáticos…e é isto que sai claro da letra da lei…às secções cíveis das instâncias centrais, na falta das secções do comércio na mesma instância, cabe conhecer, em razão da matéria e do valor, o que, do que se elenca no n.º 1 do artº 117º da LOSJ, caberia conhecer àquelas em razão de um critério estrito de competência material…a título de exemplo estarão em causa as ações previstas nas als. b), e), g) e i) do artº 128º da LOSJ desde que o valor da causa seja superior a €50.000,00 (mas não também, como se referiu, os processos especiais referidos na al. a) do mesmo artigo).

A interpretação feita no sentido de caber na competência das secções cíveis da instância central, quando nela não exista secção do comércio, todas as causas mencionadas no artº 128º da LOSJ desde que com valor superior a €50.000,00, seria deixar entrar pela janela ao que se vedou entrada à porta e com isso fazer tábua rasa do binómio matéria e valor que determina a sua competência…não existe na letra da lei a mínima referência a tal hipótese, razão pela qual não pode qualquer intérprete, por esta via, chegar a qualquer pensamento legislativo nesse sentido - artº 9º, n.º 2 do CC.

Na linha da solução que aqui se defende, e que vai no sentido da competência das secções cíveis da instância central estar circunscrita (estritamente) nos termos apertados do artº 117º, n.º 1 da LOSJ, excecionalmente ampliada em razão da matéria para conhecimento daquele acervo restrito que caberia à secção do comércio da mesma instância central, encontramos na lei – LOSJ e RLOSJ – indicações preciosas, ainda que apenas sirvam como argumento adjuvante que a suportam. Como já acima referimos, os atuais tribunais de comarca estão desdobrados em instâncias e estas em secções…podendo cada uma destas unidades estar sedeada em local diferente da área geográfica sobre que tem jurisdição. Nada impede que as várias secções da instância central estejam espalhadas pela área da comarca…a secção de trabalho na localidade a), a secção de família e menores em b), a secção cível em c), a secção criminal em d), a secção de comércio em e) e assim sucessivamente. Assim como nada impede que a secção cível da instância central possa estar instalada em localidade que, concomitantemente, acolhe uma secção genérica da instância local, para tal bastando a vontade política.

Tendo em conta essas circunstâncias, a verdade é que, conforme resulta do artº 123º, n.º 4 e 124º, n.º 6 da LOSJ - a prática de atos urgentes relativos a menores e filhos maiores e em matéria tutelar educativa e de proteção é assegurada pelas secções de competência genérica de instância local, ainda que a respetiva comarca seja servida por secção de família e menores, nos casos em que esta se encontre sediada em diferente município e ainda que, acrescentamos nós, ali se encontra instalada secção cível da instância central. Isto para dizer que, mesmo perante matéria que está entregue a secção da instância central, para os atos urgentes não é escolhida outra secção da instância central, a cível, que eventualmente tivesse instalação na mesma localidade onde se encontra a instância local secção genérica…tendo-se optado claramente por esta. Fica desta forma vincada a opção do legislador no que toca aos limites apertados que definiu para a competência das secções cíveis da instância local.

Outra indicação precisa e com acolhimento no texto da lei é a que encontramos no nº.1 do artº104º da RLOSJ onde se diz: os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial, com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local. Deste preceito podemos extrair, para o que aqui importa, auxiliados pela interpretação recomendada pelo CSM na sua deliberação de 27.05.2014, no que toca ao primeiro segmento (os processos que em cada uma das áreas se encontrem pendentes nos atuais tribunais de comarca, à data da instalação dos novos tribunais, transitam para as secções de competência especializada das instâncias centrais, de acordo com as novas regras de competência material e territorial)…que passam a ser da competência das secções cíveis da instância central apenas os processos que pendiam nos tribunais de comarca extintos e que lhe caibam em razão da competência material fixada pelas novas regras…quais sejam…os do artº 117º da LOSJ…o que não é nada de extraordinário para o que aqui nos interessa…mas que reforça a estreiteza fixada no que toca à competência das secções cíveis da instância central.

Essa estreiteza é vincada no segmento seguinte da norma mencionada (com exceção dos processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções da instância local) de onde se retira que não seguem aquela regra os processos que pendessem nos juízos de competência específica cível (correspondendo estes aos que conhecem de matérias determinadas pela espécie de ação ou forma de processo aplicável como se extrai do Ac. do TRP de 02.07.2012 proferido no conflito de competência n.º 636/12.7TJPRT-.P1, integralmente disponível em www.trp.pt) relativos às matérias da competência da secção de comércio, os quais transitam (todos independentemente do valor) para as correspondentes secções da instância local…realidade que não se entenderia se o n.º 2 do artº 117º da LOSJ entregasse às secções cíveis da instância central, na falta da secção de comércio, todas as causas da sua competência material apenas mitigadas pelo valor da ação. Se a interpretação do n.º 2 do artº.117º da LOSJ fosse no sentido de (na falta da secção de comércio da instância central) caberem às secções cíveis da mesma instância todas as causas que estão identificadas no artº 128º da LOSJ delas apenas excecionando as de valor inferior a €50.000,00…não seria necessária a regra que encontramos no segundo segmento do artº 104º da RLOSJ.

Ainda em matéria de transição de processos, sublinha-se que o Meritíssimo Juiz Presidente da Comarca dos Açores, no espectro das suas competências legais (despacho datado de 08.07.2014, intitulado como “DESPACHO ORIENTADOR DAS OPERAÇÕES DE MARCAÇÃO PARA A TRANSIÇÃO DE PROCESSOS: ATRIBUIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO”, com enquadramento normativo no art. 104º da RLOSJ, e no sentido das duas deliberações do CSM a este respeito de 09.04.2014 e de 25.06.2014), determinou a remessa de todos os processos de insolvência pendentes a 31.08.2014 (portanto, ainda que de valor superior a € 50.000,00) para as secções da instância local cível, nos moldes que aqui se transcrevem: “(…) tal disposição não diz (podendo tê-lo feito) que todas as ações de valor superior a 50 000€» que coubessem à secção de comércio, se a houvesse, são da competência da secção cível da instância central. O que expressamente refere é que «o disposto no número anterior é extensivo» às ações que coubessem à secção de comércio, se a houvesse - que é coisa diversa. Na verdade as insolvências e os PER não são «ações declarativas cíveis de processo comum» (artigo 117.º, n.º 1, al. a) nem cabem em qualquer das restantes alíneas desse mesmo número (conceptualmente, a insolvência é uma execução universal, ainda que não integre a tipologia legal das execuções). Para além desse argumento, firmado no elemento literal, também o elemento histórico aponta no mesmo sentido, já que as atuais varas cíveis (de certa forma antecessoras das secções cíveis da instância central) já não preparavam e julgavam (pacificamente) tais processos, como se alcança do art.º 97.º, n.º 2 da Lei 3/99, nada apontando para que o legislador tenha neste aspeto querido infletir o rumo. Por outro lado, também não se pode afirmar que esta interpretação esvazie o conteúdo do n.º 2 do art.º 117.º, uma vez que no elenco do art.º 128.º, n.º 1 contam-se outras ações, que são ações declarativas cíveis de processo comum (p. ex. as previstas na alínea b), e), g) e i). Assim, não parece que a competência das secções cíveis da instância central se estenda aos processos de insolvência e PER, previstos na alínea a) do n.º 1 do art.º 128.º. De sorte que tais processos, ainda que de valor superior a 50 000€ deverão ser remetidas (de acordo com a competência territorial respetiva) para as secções da instância local cível ou para as demais instâncias locais (genéricas) (…)”.

Por último, mais se considera que os critérios subjacentes à definição do quadro de juízes a que se refere o Mapa III anexo à RLOSJ, designadamente no que respeita a esta comarca dos açores, tiveram em conta todo o descrito enquadramento legal. Note-se que os então cinco juízos de competência genérica do tribunal de comarca deram lugar a seis unidades orgânicas na instância local de Ponta Delgada: quatro secções cíveis e (apenas) duas secções criminais. É evidente, pois, que este novo quadro orgânico da instância local cível foi dimensionado de forma a abarcar, na sua totalidade, o volume de serviço correspondente aos processos especiais de revitalização e de insolvência. O mesmo se diga quanto ao dimensionamento das correspondentes Secções.

A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, de conhecimento oficioso, e implica o indeferimento do pedido de declaração de insolvência em despacho liminar e respetiva publicação – arts. 65º, 96º al. a), 97º nº 1 e 99º nº 1, todos do CPC, e 27º nº 1 al. a) e 2 do CIRE.

Em face do exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e, assim, declino a competência material deste tribunal para o conhecimento dos presentes autos, e, concomitantemente, indefiro definitiva e liminarmente o pedido de declaração de insolvência».
***

Os apelantes apresentaram as seguintes conclusões de recurso:

I.Vem o presente recurso interposto da sentença com a referência 41974082, proferida nestes autos em 28JAN2016.
II.Entende o tribunal «a quo» que apenas compete às secções da instância civil central o conhecimento das acções declarativas cíveis de processo comum com um valor superior a 50.000€00 (bem como acções executivas também de valor superior ao apontado e às providências cautelares que correspondam às acções declarativas cíveis de processo comum com um valor superior a 50.000€00), escudando-se no artigo 117º da Lei nº 62/2013 de 26AGOST (LOSJ). Por outro lado;
III.Infere-se, inequivocamente, da decisão recorrida, o entendimento por ela professado de que são da competência da instância local todos os restantes processos enumerados no artigo 128º da LOSJ. Porém sem razão, porquanto;
IV.Compete à instância central, na ausência da Secção do comércio (como é o caso dos Açores), conhecer e julgar as acções de insolvência conforme decorre da interpretação conjugada dos artigos 117, nº1 e 2, 128º e 129º da LOSJ, de que o tribunal recorrido fez errada interpretação e violou.

V.Como se escreve no Acórdão dessa relação de 30JUN2015, tirado por unanimidade no processo nº 431/15.1T8PDL.L.1-7 cujo sumário, pela clareza, correcção jurídica e linearidade com que expõe as suas conclusões passamos a citar e permitimos fazer nosso a ele aderindo integralmente:
«1. A interpretação do n.º 2, do art.º 117.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, no sentido de atribuir à secção cível da instância central a competência para as acções declarativas cíveis de processo comum, de valor superior a € 50.000,00, lançando na competência da instância local todos os restantes processos enumerados no art.º 128.º da mesma Lei, inutiliza esse preceito, tornando-o dispensável, na medida em que conduz ao mesmo resultado interpretativo que já resultava do disposto nos art.ºs 117.º, n.º 1, al. a) e 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da lei n.º 62/2013. 2. Tendo em atenção os dois comandos imperativos do n.º 3, do art.º 9.º do C. Civil – soluções mais acertadas e pensamento expresso em termos adequados – essa interpretação tem de ser liminarmente rejeitada, devendo o intérprete procurar uma outra que confira conteúdo útil à norma a interpretar. 3. Atenta a diferença de critérios adoptados na delimitação da competência pelo art.º 117.º (secções cíveis) e pelo art.º 128.º (secções de comércio) - a al. a), do n.º 1, do art.º 117.º delimita a competência das secções cíveis pela forma/tipo de processo – acções declarativas cíveis de processo comum – e pelo seu valor – superior a € 50.000 – e o art.º 128.º delimita a competência das secções de comércio pela matéria (comércio) e pelas formas processuais que lhes correspondem, independentemente do valor - e a necessidade de harmonização do disposto nos três preceitos, a saber, o n.º 2 do art.º 117.º, o art.º 128.º e o n.º 1, do art.º 117.º, o denominador comum a todos eles pressupõe o abandono da forma de processo, constante do n.º 1, do art.º 117.º, mas não constante do art.º 128.º, e a aceitação do critério do valor, consagrado no n.º 1, do art.º 117.º e transversal a todos os processos identificados no art.º 128.º. 4. Assim, o desiderato prosseguido pelo legislador com o n.º 2, do art.º 117.º, da lei n.º 62/2013, não foi dizer o mesmo que já diria sem ele, mas dizer algo diferente, devendo o mesmo ser interpretado no sentido de que a secção cível da instância central, na ausência de criação da secção de comércio, tem competência para todas as acções do art.º 128.º, sejam acções comuns ou processos especiais, quando o seu valor seja superior a € 50.000,00» EM SUMA:

VI.Para conhecer do presente processo de insolvência é competente a Secção Cível da Instância Central do Tribunal de Ponta Delgada.
VII.Assim não o entendendo violou o tribunal recorrido o estatuído no nº 2 do artigo 117º e artigo 128º do ambos do CIRE.

Nestes termos e no que mais doutamente se suprirá deve o presente recurso proceder revogando–se a sentença recorrida e declarando o tribunal a quo competente para conhecer e decidir deste processo de apresentação à insolvência de pessoa singular, como é de direito e de JUSTIÇA.
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Os factos a ter em conta na decisão desta apelação são os que se extraem da decisão apelada.
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Assim:
Como logo de início se adiantou, seguiremos, aqui, posição diversa da adoptada na decisão recorrida, sublinhando, no entanto, a afirmação da 1.ª instância de que «(…) a questão só ficará definitivamente resolvida mediante uma clara e escorreita intervenção do legislador ou do nosso mais alto Tribunal em sede de uniformização de jurisprudência».

Todavia, em acórdão de 26.03.2015 deste Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no proc.º n.º 702/14.4T8PDL.L1-8 (www.dgsi.pt) de que a ora relatora foi 1.ª adjunta, reflectimos sobre a questão que agora nos é colocada e entendemos que a competência cabia à Instância Central da Comarca do Açores.

Para o efeito, ponderou-se: «A única questão do recurso impõe a determinação da competência material dos Tribunais: ou seja, questão de se determinar se a Instância Central da Comarca dos Açores – Ponta Delgada – possui  materialmente competência para acções especiais de declaração de insolvência. Ou antes, se tal competência pertence às Instâncias Locais Cíveis da Comarca dos Açores – Ponta Delgada – como decidido pelo Tribunal.

Os autos deram entrada em 28 de Outubro de 2014. A Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) foi, posteriormente, regulamentada pelo DL nº 49/2014, de 27 de Março. O Tribunal Judicial de Comarca organiza-se em “Instâncias Centrais”, preferencialmente localizadas nas denominadas “capitais de circunscrições socialmente adquiridas” (cf. Preâmbulo do citado DL nº49/2012) e de “Instâncias Locais”. As “Instâncias Centrais” integram, em princípio, sete Secções de Competência especializada – Cível, Crime, Instrução Criminal, Família e Menores, Trabalho, Comércio e Execução – e as Instâncias Locais integram Secções de competência genérica – Cível, Criminal e de Pequena Criminalidade – e Secções de proximidade, todas com competências legalmente definidas, conforme artigos 117º e seguintes da LOSJ.

Dispõe o art. 117, n.º 1 da LOSJ (LOSJ – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), que compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00€ ; b)…; c)…;d) Exercer as demais competências exercidas por lei; e o n.º 2, do mencionado artigo determina que nas comarcas onde não haja secções de comércio (como é o caso da dos Açores), o disposto no número anterior (ou seja, a competência da secção cível da instância central) é extensível às acções que caibam a essas secções.

Estatui o art.128, n.º1, al. a) da citada lei, que compete às secções de comércio preparar e julgar os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b)As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c)As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d)As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e)As acções de liquidação judicial de sociedades;
f)As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g)As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h)As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i)As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2–Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3–A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.

E o artigo 130º, integrado na secção VII - atinente à Instância Local – enuncia ser da competência das secções de competência genérica daquelas, no que ora interessa, “Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada (nº 1, al. a)).

A RLOSJ, introduzida pelo DL 49/2014, de 27 de Março, criou o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (art. 64º), não tendo criado, nenhuma secção de comércio (nem na Instância Central, nem na Local) – vide art. 66º, n.º 1, do citado diploma.

No seu curto prazo de vigência, há decisões com a atribuição de competência às instâncias centrais e locais. Assim, há quem entenda que a competência em razão da matéria se fixa pelo valor mas exige que simultaneamente se reporte a acções declarativas cíveis de processo comum, exigindo que os dois requisitos se cumulem, para se extrair a conclusão de que tais acções são da competência dos tribunais de instância local.

Não oferece dúvidas, que o processo de insolvência é um processo especial. Mas como estatuem os art. 546, 548 e 549/1, os processos especiais regem-se pelas regras próprias e pelas disposições gerais e comuns, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que está estabelecido para processo comum. O legislador previu para as secções de comércio das instâncias centrais uma vez que a elas cabe, independentemente do valor, conhecer de todos os processos e acções que versem matéria comercial – art.º 128º da LOSJ. Se assim é, importa interpretar o que o legislador pretendeu ao fixar a regra que temos no n.º 2 do art.º117º da LOSJ.

Como decorre do art.º 9 do Código Civil: nº.1 – A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; n.º2–Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso;
n.º3–Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

No art.º 128, ao enumerar os processos e acções que são da competência das sessões de comércio pelo seu objecto, prescindindo da forma de processo, não faz diferenciação das que seguem a forma de processo comum ou especial.

Nos termos da al. d) do n.º 1 do art.º 117º da LOSJ e no n.º 2, desse mesmo normativo, outra não poderá ser a conclusão de que foi intenção do legislador, atenta a interpretação literal da conjugação das duas normas em apreço, atribuir competência às secções cíveis da instância central para as acções que sendo das secções de comércio, nas comarcas onde não existam tais secções especializadas».

Não alterámos a nossa posição que, entretanto, foi desenvolvida e reforçada no Acórdão desta Relação de  30.06.2015 (www.dgsi.pt) para cuja fundamentação remetemos.

Face ao exposto acordam os juízes da secção cível em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar a decisão apelada, declarando-se a Instância Central Cível de Ponta Delgada a competente para a preparação e julgamento deste processo de insolvência.
Sem custas. 



Lisboa, 28 de abril de 2016.



Maria Alexandrina Branquinho
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins