Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1209/10.4TJLSB.L1-2
Relator: JORGE VILAÇA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DECLARAÇÃO AMIGÁVEL DE ACIDENTE AUTOMÓVEL
CONVENÇÃO IDS
INDEMNIZAÇÃO DIRECTA AO SEGURADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I-Na consequência de acidente de viação em que tenha sido assinada declaração amigável entre os vários intervenientes e sendo accionada a convenção IDS (indemnização directa ao segurado), a falta de acordo entre o lesado e a sua seguradora faz cessar a intervenção desta ao abrigo daquela convenção.

II-Na sequência da cessação da intervenção da seguradora do lesado, este apenas poderá pedir o ressarcimento dos danos sofridos e ainda não indemnizados junto da seguradora do lesante ao abrigo do seguro da responsabilidade civil.

III-A falta de reparação por parte da seguradora do lesado não inverte a responsabilidade civil das seguradoras intervenientes, ou seja, a seguradora do lesado não se torna responsável pelos danos causados, na medida em que a sua intervenção é tão só para agilizar o pagamento da indemnização devida e não mais que isso.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


ALBERTO DA CONCEIÇÃO ...  ...
Instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum sumário contra:
... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.

Alegando, em síntese, o seguinte:

-Celebrou com a ré um contrato de seguro;
-O seu veículo foi interveniente num acidente de viação do qual resultaram danos na viatura;
-Conforme instruções da ré deixou a mesma numa oficina para reparação, mas que esta – depois de efectuada – não eliminou todos os danos decorrentes do acidente, do que o autor reclamou e ficou a aguardar a completa reparação, o que não veio a acontecer, permanecendo privado da sua viatura e decorrendo de tal privação danos.

Concluiu pedindo a condenação da ré a:
a) Proceder à reparação do veículo do A. e que o mesmo seja entregue como se encontrava antes do sinistro;
b) Pagar, ao A., uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais num valor nunca inferior a € 15.000,00 (quinze mil euros).

Citada regularmente, a ré contestou, alegando que o contrato de seguro que celebrou com o autor apenas cobria danos causados a terceiro e não danos próprios e, como tal, não tem qualquer responsabilidade no que diz respeito à reparação da viatura do autor; que a sua intervenção pressupunha que o sinistro fosse regularizado ao abrigo da Convenção IDS em vigor entre várias seguradoras, mas – considerando que o seu segurado discordou da peritagem e consequentemente da indemnização - a sua intervenção cessou, tendo o autor que reclamar os danos que sofreu junto da Companhia de Seguros do lesante.

Na resposta à contestação, o autor pugnou pela improcedência da excepção deduzida.

Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade da ré, e não foi organizada a condensação.

Foi ...izada audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença, julgando a acção improcedente.

Não se conformando com aquela sentença, dela interpuseram recurso o autor, que nas suas alegações de formulou as seguintes “CONCLUSÕES”:

Termos em que se requer a V. Exas a reapreciação da prova gravada de acordo com o supra alegado, devendo, em consequência, virem a ser modificadas/alteradas as respostas dadas aos artigos nºs 12, e 16 todos dos factos dados como provados da douta sentença, como se conclui:
a)-O artigo 12.º da matéria de facto dado como não provado devia, antes, ter sido dada como -

"PROVADO" - de modo a constar:
"Nessa mesma data, a Castelimo solicitou nova peritagem que tanto quanto o A. Sabe se encontra condicional desde então. »
b)-O artigo 16.º da matéria de facto dado como não provado devia, antes, ter sido dado como -

"PROVADO" - de modo a constar:
«O A. tem tido, desde o dia do acidente (20 de Junho de 2008), até à presente data prejuízos associados à privação de uso do seu próprio veículo prejuízos nomeadamente despesas de deslocação que não suportaria caso pudesse fazer uso do seu veículo automóvel».

-De outro tanto, refere a douta sentença do tribunal «a quo» :
A aplicação da Convenção (que, no fundo é um acordo celebrado entre seguradoras, como prevê o mencionado art.45º) depende da existência de acordo quanto ao montante da indemnização, o que inclui obviamente o acordo sobre os danos resultantes do acidente.
Parece claro que esse acordo não existiu, na medida em que o autor não concordou que a reparação do veículo excluísse a reparação dos danos sofridos ao nível do eixo da viatura, que aquela não contemplou.
Havendo discordância do segurado quanto ao montante indemnizatório o processo é remetido à seguradora responsável pelo sinistro, que responderá pelos pagamentos em falta» .

-Com o devido respeito pela douta sentença, no caso em análise não estamos perante um discordância do segurado quanto ao montante indemnizatório, mas sim perante uma situação objectiva de cumprimento defeituoso e em última análise, perante uma situação de incumprimento definitivo, por parte da Ré, ora requerida.

Assim,

-Não existiu qualquer tentativa de acordo relativamente aos danos sofridos pela viatura segurada.
-A Ré nunca informou a apelante de qualquer relatório de peritagem, nem informou quais os danos que tinham sido contemplados por tal peritagem.
-A ora requerida assumiu cumprimento da obrigação de reparar os danos sofridos pela viatura do ora apelante.
-Ficou provado na douta sentença proferia pelo tribunal «a quo», que a viatura segurada sofreu danos a nível da direcção, nomeadamente eixos, pára-choques dianteiro, porta do lado do condutor, guarda lamas.
-Do depoimento das testemunhas resulta como provado que o principal dano verificou-se ao nível de direcção do veículo, impossibilitando que o veículo pudesse circular em segurança.

-É por demais evidente, aos olhos de um observador médio e segundo as regras da experiência comum que:
-Ou a peritagem não incidiu sobre a parte mecânica do automóvel, mas somente ao nível da chapa e pintura;
-Ou a peritagem a ter incidido sobre a parte mecânica, foi ...izada de forma defeituosa não contemplando os danos verificados ao nível dos eixos e direcção, que impossibilitam a circulação da viatura.

10ª-Nos termos do artigo 767.º do Código Civil, “a prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação”. Naturalmente, essa substituição não o pode prejudicar, como determina o nº 2 do mesmo normativo.

11ª-Por outro lado, dispõe o n.º1 do art. Artigo 406º do Código Civil :
«O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei». Consagra o princípio da pontualidade, o que significa a exigência de uma correspondência integral em todos os aspectos entre a prestação efectivamente ...izada e aquela em que o devedor se encontra vinculado, sem que o que se verificará uma situação de incumprimento ou pelo menos de cumprimento defeituoso.

12ª-Dispõe o Artigo 762º do Código Civil:
1.O devedor cumpre a obrigação quando ...iza a prestação a que está vinculado.
2.No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.

13ª-Por sua vez refere o artigo 763º do Código Civil:
1.A prestação deve ser ...izada integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos.
2.O credor tem, porém, a faculdade de exigir uma parte da prestação; a exigência dessa parte não priva o devedor da possibilidade de oferecer a prestação por inteiro.

14ª-Face ao Direito vigente, a Ré, ora requerida, entrou em situação de incumprimento da obrigação a que está vinculada.
15ª-Sendo este incumprimento ilícito e culposo, pelo que se torna responsável pelos prejuízos causado ao ora apelante, nos termos dos art. 798.º , e 799.º do Código Civil.
16ª-Pelo que nos termos do disposto no art. 562.º do Código Civi:« Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação».
17ª-Pelo que deverá a Ré, ora requerida, ser condenada a proceder à reparação do Veículo do apelante, e que o mesmo seja entregue conforme se encontrava antes do sinistro.
18ª-De outro tanto, o incumprimento ilícito e culposo da obrigação de reparação da viatura do apelante, fez surgir na esfera do lesado o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos pela privação do uso do veículo segurado.
A requerida deverá indemnizar a apelante pelos danos emergentes como os lucros cessantes, conforme o estipulado no artigo 564.º n.º1 do Código Civil.
19ª-Do depoimento das testemunhas analisados anteriormente, resultou de forma clara que o Autor ficou privado do uso da viatura desde a data do acidente , 20 de Junho de 2008 até ao presente.
20ª-Deve ter-se como provado que em virtude da privação de uso da viatura, o Autor teve de recorrer a uma carro de substituição, com as inerentes despesas de pagamento do aluguer do veículo à rent-a-car.
21ª-Ficou também provado pelo depoimento das testemunha, que o Autor viu-se na contigência de ter de adquirir um veículo usado, despesa que não teria ...izado se a viatura sinistrada tivesse sido reparada pela Ré, como era obrigação daquela.
22ª-No âmbito do dano da privação do uso, é possível a reconstituição natural das utilidades (de conteúdo patrimonial) que o veículo paralisado pode proporcionar, mediante a colocação à disposição do lesado, durante o período da paralisação, de um veículo de substituição com características semelhantes.
23ª-Porém, no caso, a Ré ora requerida, não o fez. Não sendo possível a restauração natural tem o lesado direito ao seu equivalente em dinheiro.
24ª-A Ré, ora requerida, assumiu a responsabilidade pelo acidente, o que implica a reparação integral de todos os danos que por ele sejam directa e adequadamente causados.
25ª-No caso, a privação do uso durante o período em que o veículo esteve impossibilitado de circular, em concreto desde a data do acidente (20/06/2008) até à actualidade, é um dano consequência directa do acidente e, como tal, não deve impender sobre o lesado a obrigação de o suportar sem reparação.
26ª-O Apelante , não provou o prejuízo efectivo que lhe adveio da privação do uso do seu veículo, mas mesmo assim, sempre é possível determinar, com o recurso à equidade, o valor dos danos da paralisação (Ac. STJ de 09/06/96: BMJ, 457.º-325), e para a avaliação desse dano, pode tomar-se em conta como ponto de referência, num juízo equitativo e de razoabilidade, o valor locativo médio de veículo semelhante (Ac. RP de 05/02/04: CJ, 2004, T1, 178).
27ª-Em consequência, entende o apelante que que deva julga-se procedente o pedido de indemnização do dano autónomo pela privação do uso, decorrente da paralisação forçada e efectiva do veículo segurado, por causa dos danos do acidente, desde a data do acidente e da consequente paralisação (20-06-2008) até à actualidade.
28ª-Pelo que pelos danos resultantes da desvalorização e de privação do veículo se mostra adequada e proporcional uma indemnização nunca inferior a 15 000,00 € (euros).

Deste modo

Decidindo como decidiu a douta sentença recorrida, por deficiente e ou errónea aplicação, violou as seguintes normas legais:
-Arts 406.º, 483º, 562.º, 564.º, 762º, 763º, 767.º, 768.º, 798.º, 799.ºe 1305.º, todos do Código Civil.
-Art.º 45º, n.3 do DL 291/2007 de 21.08.

Nas contra-alegações foi defendida a confirmação da sentença recorrida.

II-Factos.
         
Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
1)O A. é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Audi, modelo A4, com a matrícula 66-87-..., conforme fotocópias do título de registo de propriedade e livrete.
2)Foi, na qualidade de proprietário, desse referido veículo automóvel, que celebrou um contrato de seguro titulado pela apólice 90 523270 com a ... SEGUROS, S. A.
3)Por contrato de fusão a ... Companhia de Seguros foi incorporada pela ... – Companhia de Seguros S.A., entidade incorporante de todo o património da primeira.
4)Na presente data, nos ficheiros da Ré (... – Companhia de Seguros, S. A.), constam como n.º de apólice 2696723 e processo 39625/2008
5)No dia 20 de Junho de 2008, cerca das 11:25 H, quando circulava pela direita na Av. Infante D. Henrique com a Av. Marechal António Spínola, em Lisboa, um outro veículo embateu no veículo propriedade do A. e por este conduzido, tendo desse facto resultado danos vários na referida viatura, conforme auto de Participação de Acidente que consta de fls.23 e seguintes.
6)Devido ao acidente a viatura sofreu danos a nível da direcção, nomeadamente eixos, pára-choques dianteiro, porta do lado do condutor, guarda-lamas.
7)O segurado (ora A.) dirigiu-se à ... Seguros tendo esta dado indicações de que a Companhia de Seguros iria proceder à reparação dos danos na viatura do A. na modalidade de apoio ao segurado directo, pelo que foi atribuído o número de processo de sinistro 90/320572 AP 90/523270.
8)Cumprindo instruções da ... Seguros o A. dirigiu-se no dia 21 de Junho de 2008 à “Castelimo” na Rua Cintura do Porto, Armazém 24, Matinha, 1950-323 Lisboa, onde procedeu à entrega da viatura para que fosse feita a peritagem pelo perito designado pela Companhia de Seguros e o respectivo arranjo.
9)Quando o A. foi contactado pela “Castelimo” para ir levantar o seu veículo constatou que apenas tinham sido efectuadas reparações a nível de bate chapas, pintura e alinhamento da direcção e que o problema fulcral da viatura, a nível dos eixos, persistia.
10)Por isso não procedeu ao levantamento da viatura.
11)O A. viu-se privado do uso do seu veículo automóvel para desenvolver as suas actividades tanto pessoais como profissionais (artigo 13º da p.i.);
12)Em 1 de Junho de 2009 o A. dirigiu uma carta que consta de fl.28 à ... Seguros no sentido de apurar as razões porque quase um ano depois do acidente a sua viatura não ter sido arranjada e entregue (artigo 14º da p.i.);
13)A viatura encontra-se, até à presente data, nas instalações da “Castelimo”, sitas na Rua Cintura do Porto, Armz. 24, 1950-323 Lisboa, vetada ao completo abandono e a degradar-se (artigo 15º da p.i.);
14)Durante 8 meses utilizou um veículo da empresa Turiscar Rent-a-car (artigo 17º da p.i.);
15)O contrato de seguro celebrado entre as partes é o que consta de fls.43 e 44 e pelas Condições Gerais que constam de fls.74 dos autos.
16)O contrato celebrado pelas partes garantia apenas a responsabilidade civil por danos causados a terceiro pela viatura do A;
17)O Autor não concordou com a peritagem que foi feita ao seu veículo, reclamando a reparação de danos que nesta não foram considerados.

Não provado:
(artigos da p.i.)

11.º
Posteriormente foi informado pelo já referido Sr. Faustino que a direcção da viatura se encontrava danificada.
12.º
Nessa mesma data, a Castelimo solicitou nova peritagem que tanto quanto o A. Sabe se encontra condicional desde então.
Que a carta de fls.28 foi recebida pela ré e que até hoje não mereceu qualquer resposta da sua parte.
16.º
O A. tem tido, desde o dia do acidente (20 de Junho de 2008), até à presente data prejuízos associados à privação de uso do seu próprio veículo nomeadamente despesas de deslocação que não suportaria caso pudesse fazer uso do seu veículo automóvel.

III-Fundamentação.

Cumpre apreciar e decidir.

O objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação do recorrente, pelo que as questões fundamentais a conhecer no âmbito do presente recurso de apelação são a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a de se determinar se a ré é civilmente responsável por danos causados ao autor pela privação do uso do seu veículo na sequência de acidente de viação.

1.Impugnação da matéria de facto.

O apelante pretende a alteração da decisão sobre a matéria de facto com vista a que sejam considerados como provados os factos dados como não provados na sentença e que correspondentes aos artigos 12º e 16º da petição inicial, com fundamento no depoimento das testemunhas ouvidas nos autos.

Nos termos do artigo 640º do novo Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele ...izada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2—No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa -se o seguinte:
a)Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes".

Os autos contêm todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente contém a gravação dos depoimentos prestados em audiência.

O recorrente indica os factos que considera incorretamente julgados, os respectivos meios de prova que justificam a sua posição e a resposta que deveria ter sido dada aos factos em questão.

Consideram-se, assim, verificados, no essencial, os pressupostos processuais legais para a reapreciação da prova e eventual alteração da decisão sobre a matéria de facto.

A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é efectuada com fundamento no depoimento de testemunhas.

Nos termos do artigo 607º, n.º 5, do CPC, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

Tal preceito consagra o princípio da prova livre, o que significa que a prova produzida em audiência (seja a prova testemunhal ou outra) é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, tendo em consideração a sua vivência da vida e do mundo que o rodeia.

De acordo com Alberto dos Reis prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (Código de Processo Civil, Anotado, vol. IV, pág. 570).

Também temos de ter em linha de conta que o julgador deve “tomar em consideração todas as provas produzidas” (art.º 413º do Código de Processo Civil), ou seja, a prova deve ser apreciada na sua globalidade.

“A prova testemunhal, atenta a sua falibilidade, impõe cuidados acrescidos na sua avaliação afim de poder ser devidamente valorada.
Ponderando este princípio da prova livre deve o julgador motivar os fundamentos da sua convicção, por forma a permitir o controlo externo das suas decisões.” (Acórdão da Relação do Porto no processo 5592/04, 5ª secção – Relator: Desembargador Sousa Lameira).

A partir destes princípios passaremos a analisar a situação concreta.

Os factos que o apelante presente sejam considerados provados são os seguintes, por referência à petição inicial:
12º
Nessa mesma data, a Castelimo solicitou nova peritagem que tanto quanto o A. sabe se encontra condicional desde então.
16.º
O A. tem tido, desde o dia do acidente (20 de Junho de 2008), até à presente data prejuízos associados à privação de uso do seu próprio veículo nomeadamente despesas de deslocação que não suportaria caso pudesse fazer uso do seu veículo automóvel.

A decisão sobre a matéria de facto foi no seguinte de considerar tais factos como não provados.

A testemunha José M... B... ..., mediador de seguros da ré e de quem o autor é cliente, declarou que, depois da assinatura da declaração amigável, informaram o autor das decisões das companhias de seguros dos veículos intervenientes no acidente; que informaram a oficina que o cliente não estava satisfeito por a viatura não estar reparada; que o autor disse que o veículo não estava em condições de circular da forma em que tinha sido autorizada a reparação; que o veículo apresentava danos em dois locais distintos e o cliente reclamava que não tinha sido autorizada a reparação de uma das partes porque a oficina não terá contemplado esses danos aquando da reclamação à companhia de seguros, por isso se terá tentado uma 2ª intervenção da companhia para contemplar esses danos; que, pelo que se lembra, a direcção do veículo não estava em condições de circular normalmente; que o depoente solicitou à própria oficina uma 2ª peritagem; que essa segunda peritagem nunca chegou a ser feita e o veículo ficou por reparar; que o cliente quando foi levantar o veículo é que se apercebeu do que faltava; que os clientes não recebem os relatórios da peritagem e que só têm conhecimento aquando da reparação ou do levantamento do veículo; que a viatura terá  ficado na oficina e, segundo lhe disseram, ainda lá permanece; que é a oficina que tem de pedir a nova peritagem; que sempre que existe uma divergência entre a oficina e o segurado normalmente a oficina contacta o perito para verificar.

A testemunha Luís M... S... ..., funcionário da ré, que conhece os factos através dos documentos existentes na ré, declarou que houve declaração amigável; que a convenção IDS pressupõe acordo do segurado e as companhias aceitam o acordo IDS; que primeiro um perito faz a peritagem; que depois é iniciada a reparação; que se o cliente não concorda com a reparação comunica à sua seguradora; que então a seguradora manda-o reclamar junto da seguradora responsável pelo acidente; que não tem conhecimento de qualquer comunicação à companhia ré ou de qualquer reclamação a esta; que a Z..., seguradora responsável, desembolsou a ré; que a ré pagou o aluguer de veículo de substituição referente ao período previsto para a reparação.

Estes depoimentos permitem concluir precisamente o contrário do alegado no artigo 12º da p.i., na medida em que segundo, pelo menos Luís ..., nunca foi pedida qualquer nova peritagem pela oficina e que, segundo José ..., o mediador pediu à oficina uma segunda peritagem que nunca foi ...izada.
No que respeita ao facto alegado no artigo 16º da p.i. não se pode extrair dos depoimentos que o autor tenha tido prejuízos por privação de uso de veículo, na medida em que aquilo que se apurou foi tão só que a viatura se encontra ainda na oficina, e esse facto já consta como assente em II - 13).

Assim, só nos resta confirmar a decisão quanto à matéria de facto, improcedendo, por isso, esta primeira questão colocada no recurso.


2.Responsabilidade civil da ré.

O apelante vem defender a existência de responsabilidade civil por parte da ré, com fundamento em prejuízos sofridos pela privação do uso do seu veículo imputável à ré.

Vejamos então os requisitos da responsabilidade civil extracontratual enquanto fonte da obrigação de indemnização.

Como se sabe, no âmbito da responsabilidade civil, é “necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente (não um mero facto natural causador de danos), pois só o homem, como destinatário dos comandos emanados da lei, é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições legais. Em 2º lugar, é preciso que o facto do agente seja ilícito (…violar ilicitamente…). Em 3° lugar, importa que haja um nexo de imputação do facto ao lesante («Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar…). Em seguida, é indispensável que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano, pois sem dano não chega a pôr-se qualquer problema de responsabilidade civil (ao contrário do que sucede muitas vezes, quanto aos chamados crimes formais, no direito criminal). Por último, exige a lei que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima, de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.” (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 7ª edição – 1991; art.º 483º, n.º 1, do Código Civil).

Não podemos esquecer que o “facto voluntário do agente pode revestir duas formas: a acção (art. 483.°) e a omissão (art. 486°). Tratando-se de uma acção, a imputação da conduta ao agente apresenta-se como simples. Já no caso da omissão essa imputação ao agente exige algo mais: a sua oneração com um dever específico de praticar o acto omitido.” Mas, “existe um dever genérico de não lesar os direitos alheios (neminem laedere)” (cfr. Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, 4ª edição – 2005, pág. 272).

O eventual prejuízo sofrido pelo autor, não concretamente apurado, decorrente da privação de uso de veículo pela falta de reparação integral do veículo na sequência de acidente de viação, pelo qual as partes reconhecem ser responsável a seguradora do outro veículo interveniente, não pode ser assado à ré.

Os factos não permitem concluir que a falta de reparação integral do veículo do autor e subsequente paralização e privação do uso do veículo se deva a qualquer acção ou omissão legal por parte da ré.

Não se apurou sequer que a ré tivesse tido conhecimento por parte da oficina encarregue da reparação que a avaliação dos danos teria de ser corrigida ou que essa avaliação tenha sido impugnada ou reclamada pelo autor.

Cabe chamar a atenção para o facto de que a partir do momento em que a reparação tenha sido efectuada em conformidade com a peritagem apresentada à ré e não tenha sido reclamado perante esta erro de peritagem e de avalização dos danos sofridos em consequência do acidente, a responsabilidade da ré pela reparação cessou, cabendo ao autor reclamar junto da seguradora responsável dos danos nos termos gerais da responsabilidade civil, por força do regime do seguro obrigatório.

Não se apurando o primeiro pressuposto da responsabilidade civil nos termos enunciados, não existe dever de indemnizar por parte da seguradora ré nos termos pedidos.

Referimos, ainda, que a intervenção da ré no que respeita ao acidente em causa se fez ao abrigo da chamada Convenção IDS (indemnização directa ao segurado), convenção existente entre seguradoras para agilizar o ressarcimento dos danos sofridos em consequência de acidente de viação quando haja acordo entre os vários intervenientes quanto à ocorrência do acidente, e por via da qual o lesado é indemnizado directamente pela sua própria seguradora.

Com efeito, "É que tal Convenção não passa de um instrumento negocial que apenas envolve as seguradoras que a subscreveram, funcionando assim como uma autêntica res inter alios acta relativamente aos sinistrados. Decorre claramente do teor de tal Convenção que a mesma visa operacionalizar (rectius “simplificar”, nos seus dizeres) em primeira linha os interesses das seguradoras (e reflexamente, é certo, os dos sinistrados), surgindo a seguradora do lesado (ali designada como Credora) como uma mera facilitadora ou intermediária no processo indemnizatório de que são partes únicas e verdadeiras o lesado e a seguradora do veículo mediante o qual se provocaram os danos (ali designada como Devedora). Segue-se daqui à evidência que as consequências jurídicas do sinistro se repercutem sempre e apenas na pessoa da seguradora dita Devedora." (cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 07-07-2011, publicado em http://www.dgsi.pt - processo n.º 2843/09.0TBVCT.G1 - relator o então desembargador Manso Raínho, actual conselheiro).

Na falta de acordo entre o lesado e a sua seguradora quanto ao âmbito da reparação dos danos e havendo apenas seguro obrigatório de responsabilidade civil, aquele deverá accionar directamente a seguradora do lesante.

A falta de reparação por parte da seguradora do lesado não inverte a responsabilidade civil das seguradoras intervenientes, ou seja, a seguradora do lesado não se torna responsável pelos danos causados, na medida em que a sua intervenção é tão só para agilizar o pagamento da indemnização devida e não mais que isso.

O apelante confunde a intervenção da sua seguradora em mera representação da segurador do responsável pelo acidente com as obrigações decorrentes do contrato de seguro de responsabilidade civil, que no caso é apenas de responsabilidade por danos causados a terceiros e sem abranger danos próprios.

Daí que tenhamos analisado a questão ao abrigo da responsabilidade civil extracontratual e não da responsabilidade contratual, tanto mais que a causa de pedir alegada é a de um acto ilícito praticado pela ré e cuja produção não se apurou.

Por isso, todos os considerandos feitos pelo apelante ao abrigo da responsabilidade contratual carecem de qualquer sentido e fundamento.

Não sendo assim aplicáveis ao caso as disposições invocadas dos artºs 767º, 406º, 762º e 763º do Código Civil.

Não sendo imputável à ré qualquer responsabilidade pelos danos sofridos em consequência do acidente e não se tendo apurado outra qualquer responsabilidade, bem andou a sentença recorrida ao julgar improcedente a acção.

Assim, improcede mais esta questão do recurso, o que implica a improcedência total da apelação.

IV–Decisão.

Em face de todo o exposto, acorda-se se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.


Lisboa, 16 de Novembro de 2016


Jorge Vilaça
Vaz Gomes
Jorge Leitão Leal
Decisão Texto Integral: