Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
130/08.0TYLSB.L2-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL
APRESENTAÇÃO
CONTAS DAS SOCIEDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O inquérito judicial à sociedade previsto nos artigos 1048ºe seguintes do CPC (correspondente aos antigos artigos 1479º e seguintes) é um processo especial que tem natureza de jurisdição voluntária e, tendo como fundamento a não apresentação de contas pela sociedade, dá prioridade às diligências destinadas à apresentação de contas no âmbito dos autos, antes de ser ordenada a medida mais grave e invasiva de inquérito judicial.
- Neste contexto, o não cumprimento de prazo fixado pelo tribunal para a apresentação das contas, com dois pedidos de prorrogação em curto espaço de tempo e com a apresentação das contas no fim da segunda prorrogação, não faz precludir a oportunidade de apresentação das contas pela sociedade, tendo em atenção que o prazo inicialmente fixado procurou atender às circunstâncias concretas do caso e já previa a eventual necessidade de ser prorrogado, não merecendo, assim, censura a decisão que julgou prestadas as contas e não ordenou o inquérito judicial.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO.
M… intentou contra L…, Lda inquérito judicial nos termos do artigo 1479º do CPC (a que corresponde actualmente o artigo 1048º), alegando, em síntese, que a requerida, de quem a requerente é sócia e co-gerente, não apresentou as contas e relatório de gestão referentes ao exercício de 2006, encontrando-se a requerente, por acção das restantes gerentes, impossibilitada de exercer a gerência e de aceder à sede social, tudo com violação dos artigos 65º nº5, 246º nº1 e) e 263º nº1 do CSC.
Concluiu pedindo a realização de inquérito judicial à sociedade, ao abrigo do artigo 67º do CSC, com a citação da requerida e das outras duas gerentes.
A requerida sociedade contestou, dando conhecimento de que estão pendentes vários litígios entre a requerente e a sociedade requerida, tendo a requerente intentado contra a sociedade acção de anulação de deliberações sociais relativamente às contas de 2005 e outra acção de inquérito social com fundamento em violação do seu direito à informação e tendo a sociedade intentado contra a requerente acção de destituição de gerente, devendo a acção de inquérito já pendente ser apensa aos presentes autos.
Alegou ainda que é certo que ainda não foi convocada e realizada assembleia-geral para aprovação das contas referentes a 2006, mas este facto é imputável às sucessivas acções intentadas pela requerente, que, aliás, também nunca convocou ou solicitou uma reunião de gerência, sendo certo, porém, que foram sempre observadas pela requerida as obrigações declarativas relativas aos vários exercícios junto das Finanças e nunca foi a requerente impedida de exercer a gerência ou de obter informação, tendo sido esta, pelo contrário que se desinteressou e afastou da gerência deixando de prestar qualquer colaboração.
Concluiu pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
A autora respondeu opondo-se à apensação de acções.
A apensação de acções foi indeferida e, não tendo a requerida apresentado contas na sequência de despacho que ordenou a sua notificação para o efeito, foi dado conhecimento do óbito de uma das gerentes e prestadas declarações pela outra gerente, após o que foi proferido despacho, em 11 de Dezembro de 2015, que fixou 90 dias para a gerência da requerida apresentar contas relativas ao ano de 2006.
Em 11 de Março de 2015, em requerimento dirigido por lapso a outro processo, a requerida pediu a prorrogação do prazo, tendo em atenção já se encontrar marcada a assembleia geral, para 30 de Março e para 6 de Abril, respectivamente primeira e segunda convocatória.
A requerente opôs-se à prorrogação, tendo esta sido deferida.
Em 15 de Abril de 2015, a requerida apresentou requerimento, alegando que a convocatória preparada para 30 de Março não foi enviada a tempo, pelo que foi enviada e recebida nova convocatória, encontrando-se agendada a assembleia para 25 de Abril ou, em segunda convocatória, para o dia 8 de Maio, pelo que pediu nova prorrogação de prazo.
A requerente opôs-se à prorrogação e pediu que fosse ordenado o inquérito pedido nos autos.
Por requerimento de 26 de Abril, a requerida juntou aos autos a acta da assembleia-geral de 25 de Abril, com a presença de dois sócios representantes de 90% do capital e sem a presença da sócia ora requerente, que enviou uma carta comunicando que considerava a convocatória ilícita por incumprimento do determinando judicialmente, tendo nessa assembleia sido aprovados, por unanimidade dos votos presentes, o relatório de gestão e as contas referentes ao exercício de 2006.
Notificada a requerente, veio esta alegar que a assembleia geral realizada é irregular porque incumpriu o prazo legal fixado pelo Tribunal, o que foi comunicado pela requerente à requerida, comunicação esta que não foi colocada à apreciação da assembleia, que foi considerada regularmente constituída, acrescendo que as contas e os seus anexos não se encontram devidamente assinados pelo TOC nas mesmas identificado, pelo que deve ser ordenada a realização de inquérito à sociedade ré.
Foi então proferida sentença que considerou estarem aprovadas as contas referentes ao exercício de 2006 em assembleia-geral extraordinária de 25 de Abril de 2016 e julgou extinta a lide.

Inconformada, a autora interpôs recurso e alegou, formulando conclusões onde levanta as seguintes questões:
- A ora recorrente pelo menos desde 27 de Setembro de 2005 se vê impossibilitada do exercício de gerência e desde 19 de Dezembro de 2006 se encontra impedida de aceder fisicamente à sede social e a todos os elementos de informação relativos à recorrida.
- O artigo 263º nº1 do CSC prevê que o relatório de gestão e os documentos de prestação de contas devam estar acessíveis aos sócios na sede da sociedade e durante as horas de expediente a partir do dia em que seja expedida a convocação para a assembleia destinada a apreciá-lo e, nos termos do artigo 65º nº5, a apresentação das contas do exercício deve ter lugar no prazo de 3 meses a contar do encerramento de cada exercício anual, pelo que no presente caso deveria ter sido até ao final de Março de 2007, o que não aconteceu.
- A apelante não teve outra alternativa senão requerer inquérito judicial à sociedade ao abrigo do artigo 67º nº1 do CSC e, face ao incumprimento da sociedade, deveria o mesmo ser ordenado, o que não aconteceu, tendo a decisão recorrida entendido que a reiterada violação da lei por parte da sociedade não era suficiente para decretar a realização do inquérito.
- A 11 de Dezembro de 2015 foi inquirida a sócia EB… gerente, que informou do falecimento da outra sócia gerente e, atentas as declarações, o Tribunal fixou o prazo de 90 dias para a realização da assembleia-geral, o qual terminava em 11 de Março de 2016, ou em 1 de Abril de 2016, consoante se entenda tratar-se de prazo substantivo ou de prazo processual.
- Só em 17 de Março de 2016 a ré informou que estava agendada a assembleia-geral de apresentação de contas para 30 de Março em 1ª convocatória e para 6 de Abril em 2ª convocatória, já fora de prazo e requerendo a prorrogação do mesmo, o que foi deferido pelo Tribunal.
- Mas a ré não juntou comprovativo de envio de convocatória, nem a requerente a recebeu, tendo a prorrogação do prazo assentado em informação falsa, o que veio a ser confirmado pela requerida, que em 15 de Abril informou aos autos não ter enviado a convocatória, confessando a consumação da segunda violação do prazo concedido pelo Tribunal para apresentação das contas até 6 de Abril, tal como foi alertado pela requerente, no seu requerimento de 20 de Abril.
- A assembleia acabou por realizar-se no dia 25 de Abril de 2016 sem que o respectivo prazo tivesse sido prorrogado ou sequer sido solicitada a prorrogação tempestiva e fundamentada.
- Assim, o requerimento de prorrogação do prazo de 15 de Abril não pode ser atendido, por ser extemporâneo e inválido, constituindo acto proibido por lei, ficando prejudicada a realização da assembleia geral em virtude da anulação de todo o processado com a consequente determinação ao tribunal recorrido para ordenar a realização de inquérito judicial.
- Este comportamento da ré visou evitar o inquérito judicial, que poria a descoberto a sua situação, sustentada sem capital social e sem rumo financeiro estratégico.
- Já em sentença de Maio de 2016, no âmbito de um processo de anulação de deliberações sociais, foram declaradas nulas deliberações da ré aprovadas em assembleia de 2005, não sendo igualmente aceitáveis as deliberações tomadas na assembleia de 25 de Abril de 2016 ora em apreço, para além dos outros vícios apontados.
- Em consequência, deve ser revogada a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que decrete o inquérito judicial, nomeando-se gerente judicial para o efeito.

A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação com subida nos autos e efeito devolutivo.
A questão a decidir é a de saber se deve ser anulada a assembleia-geral de 25 de Abril de 2016 e se deve ser ordenado inquérito judicial à sociedade ré.

FACTOS.
Os factos a atender são os que resultam do relatório do presente acórdão e ainda que:
No primeiro despacho em que o tribunal ordenou a notificação da requerida para apresentar contas não foi fixado qualquer prazo.
O despacho de 11 de Dezembro de 2015, proferido após a prestação de declarações pela sócia gerente, tem a seguinte redacção: “Atenta as explicações prestadas pela sócia gerente EB… relativamente à não apresentação das contas concernentes ao exercício do ano de 2006, e sendo assegurada a possibilidade de a gerência proceder à apresentação das contas aos sócios em reunião de assembleia-geral extraordinária a convocar, logo que cumpridos os formalismos legais tendentes à representação da herança jacente aberta pelo óbito de ZB…, determino, ao abrigo do disposto no nº2, do artº 67º, do Código das Sociedades Comerciais, que a gerência proceda à apresentação de contas relativas ao exercício de 2006, no prazo de noventa dias, sem prejuízo de eventual prorrogação caso o seja requerido devidamente justificado”.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
Os artigos 1048º a 1052º do CPC – que correspondem aos artigos 1479º a 1483º da redacção anterior à Lei 41/2013 de 26/6 – regulam o processo especial de inquérito judicial à sociedade, estabelecendo o nº3 do artigo 1048º que “quando o inquérito tiver como fundamento a não apresentação pontual do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais” e o artigo 1049º nº1 que “Haja ou não resposta dos requeridos, o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito, podendo determinar logo que a informação pretendida pelo requerente seja prestada, ou fixa prazo para apresentação das contas da sociedade” e, no seu nº2, que “Se for ordenada a realização do inquérito à sociedade, o juiz fixa os pontos que a diligência e deve abranger, nomeando o perito ou peritos que devam realizar a investigação, aplicando-se o disposto quanto à prova pericial”.
No presente caso, a autora, sócia e uma das gerente da sociedade requerida, veio pedir o inquérito com fundamento na não apresentação do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos da prestação de contas relativos a 2006, já tendo decorrido o prazo legal previsto no artigo 65º nº5, ou seja, três meses a contar da data de encerramento do exercício do ano em questão.
Tal como veio a ser reconhecido pela sociedade requerida, o relatório de gestão, contas e demais documentos relativos a 2006 não foram efectivamente apresentados, estatuindo então o artigo 67º do CSC, para o qual remete o artigo 1048º nº3 do mesmo código, que:
Nº1- “Se o relatório de gestão, as contas e os demais documentos de prestação de contas não forem apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo do prazo fixado no artigo 65º nº5, pode qualquer sócio requerer ao tribunal que se proceda a inquérito” .
Nº2- “O juiz, ouvidos os gerentes ou administradores e considerando procedentes as razões invocadas por estes para a falta de apresentação das contas, fixa um prazo adequado, segundo as circunstâncias, para que eles as apresentem, nomeando, no caso contrário, um gerente ou administrador exclusivamente encarregado de, no prazo que lhe for fixado, elaborar o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas previstos na lei e de os submeter ao órgão competente da sociedade, podendo a pessoa judicialmente nomeada convocar a assembleia geral, se este for o órgão em causa”.
Nº3- “ Se as contas do exercício e os demais documentos elaborados pelo gerente ou administrador nomeado pelo tribunal não forem aprovados pelo órgão competente da sociedade, pode aquele, ainda nos autos de inquérito, submeter a divergência ao juiz, para decisão final”.
Nº4- “Quando, sem culpa dos gerentes ou administradores, nada tenha sido deliberado, no prazo referido no nº1, sobre as contas e os demais documentos por eles apresentados, pode um deles ou qualquer sócio requerer ao tribunal a convocação da assembleia geral para aquele efeito”.
Nº5- “Se na assembleia convocada judicialmente as contas não forem aprovadas ou rejeitadas pelos sócios, pode qualquer interessado requerer que sejam examinadas por um revisor oficial de contas independente; o juiz, não havendo motivos para indeferir o requerimento, nomeará esse revisor e, em face do relatório deste, do mais que dos autos constar e das diligências que ordenar, aprovará as contas ou recusará a aprovação”.
Nos presentes autos, o tribunal começou por notificar a requerida para apresentar contas, o que esta não fez, mas sem que tivesse sido fixado qualquer prazo.
Depois, ao abrigo do nº2 do artigo 67º, em 11 de Dezembro de 2015, o tribunal ouviu uma das sócias gerentes em declarações e, face ao seu conteúdo e à informação de que outra sócia havia falecido, fixou um prazo de noventa dias para a sociedade apresentar as contas, que entendeu adequado às circunstâncias, nomeadamente à necessidade de resolver a representação da herança jacente e sem prejuízo de o prazo vir a ser prorrogado.
Este prazo não veio a ser cumprido, por terem sido agendadas duas datas para a assembleia geral, respectivamente para 30 de Março e para 6 de Abril, deferindo o tribunal o pedido de prorrogação do prazo, para a realização da assembleia nestas datas, mas não tendo as convocatórias sido enviadas a tempo, mais uma vez não sendo cumprido o prazo e sendo requerida nova prorrogação, que não chegou a ser apreciada e decidida, porque entretanto a assembleia foi realizada no dia 25 de Abril, com apresentação do relatório de gestão e das contas em falta, que foram aprovadas por unanimidade dos presentes.
Perante a apresentação das contas, o tribunal, com a oposição da requerente ora apelante, julgou-as prestadas e julgou extinta a lide.
A apelante não se conforma, defendendo que o não cumprimento dos prazos por parte da sociedade deveria levar à decisão de ordenar o inquérito judicial.
Ora, se é certo que a sociedade não justificou a razão que a levou a não cumprir os prazos fixados pelo tribunal, a verdade é que, da conjugação das normas acima transcritas, verifica-se que a lei, antes de prever a realização do inquérito regulada no nº2 e seguintes do artigo 1049º, contém, no artigo 67º do CSC, vários mecanismos para encorajar a prestação de contas, mandando fixar prazos para o efeito adequados às circunstâncias, o que pressupõe possibilidade de prorrogação, permitindo a nomeação de gerente especialmente encarregado da apresentação de contas, a convocação judicial de assembleia no caso de haver dificuldades de ser tomada deliberação e a nomeação de um revisor oficial de contas se as contas não forem aprovadas ou rejeitadas na assembleia convocada judicialmente.
Destes mecanismos se retira que o objectivo da lei é o de dar prioridade à prestação de contas, antes de avançar para a medida mais grave e invasiva do inquérito judicial.
Neste contexto e tendo ainda em atenção que o processo de inquérito judicial faz parte do conjunto de processos especiais de jurisdição voluntária previstos nos artigos 986º e seguintes do CPC, em que, nos termos do artigo 987º, nas providências a tomar o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, não se pode considerar que os prazos não cumpridos pela sociedade são peremptórios e que precludiu a oportunidade de apresentar as contas.
A eventual necessidade de prorrogar prazo já foi prevista no despacho de Dezembro que fixou o prazo de 90 dias e as prorrogações requeridas, apesar de não serem expressamente justificadas, foram curtas e não puseram em causa o espírito do mencionado despacho, que pretendeu adaptar o prazo às circunstâncias do caso.
Conclui-se assim que não merece censura o despacho que julgou as contas prestadas e entendeu não dar relevância a estes atrasos como motivo suficiente para ordenar o inquérito judicial.
Por outro lado, o inquérito judicial pedido pela apelante fundamentou-se na não apresentação das contas respeitantes ao exercício de 2006, sendo o mais alegado, quanto à falta de disponibilização dos documentos relativos às contas, factos que integravam tal fundamento, deixando assim de existir objectivo para a lide e sendo as restantes irregularidades agora invocadas relativas às deliberações da assembleia de 25 de Abril impugnáveis pelos meios e em sede próprios.
Improcedem, pois, as alegações de recurso.

DECISÃO.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

2017-06-22

Maria Teresa Pardal

Carlos Marinho

Anabela Calafate

Decisão Texto Integral: