Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
502/13.9S4LSB.L2-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
AMEAÇA
HOMICÍDIO
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
FRIEZA DE ÂNIMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: -O reconhecimento presencial, previsto no n.º 2 do artigo 147.º, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal.
-O reconhecimento deve considerar-se realizado com observância do formalismo imposto pelo artigo 147º do C.P.P., sempre que seja precedido da indicação dos traços característicos do indivíduo que viu no local e, embora esta indicação tenha sido prévia a qualquer reconhecimento, se no auto de reconhecimento onde consta que foram colocados dois indivíduos de características similares às do arguido, juntamente com este e a testemunha não teve quaisquer dúvidas em afirmar que o indivíduo por si reconhecido era o indivíduo que agarrou no local.
-Apesar de não ter sido mostrada qualquer arma pelo arguido, o fato de impositivamente ordenar que o largasse porque tinha uma pistola consigo e se não o largasse, faria uso dela, causou à vítima temor e amedrontamento característicos da grave ameaça, sendo tal acto susceptível de criar um sentimento de insegurança, no ofendido, que levou o mesmo, de imediato, a libertar o arguido, sendo certo que o arguido sabia que ao dizer ao visado que tinha uma arma e que se este não o largasse atentaria contra a vida do mesmo, tal circunstância era de molde a que o mesmo receasse que o propósito anunciado pudesse ser concretizado, fazendo-lhe crer que estava disposto a atentar contra a sua vida, o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de prejudicar a liberdade de determinação, criando um sentimento de insegurança, no ameaçado, tendo o mesmo, de imediato, libertado o arguido.
-Estes factos integram o crime previsto e punido pelos artigos 154º, nº1, e 155º, nº1, alínea a), do C.P., por referência ao artigo 131º do Código Penal.
-A frieza de ânimo está evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto. A firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada reveladora da forte intensidade da vontade criminosa é também denunciada e denuncia a frieza de ânimo do procedimento do arguido quando cessa as agressões, no momento em que se apercebe que a vítima já não reage e ao abandonar o local, justifica a sua conduta para com o indivíduo com o qual se cruzou.
-O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui o denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no artº133º do Código Penal – compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral –, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.
-Tendo o arguido, durante as agressões, mantido o discernimento e a capacidade de reflectir, tendo a sua conduta cessado apenas quando sentiu que a vítima deixou de reagir, tendo-se partido a lâmina da faca e nem essa circunstância fez o arguido perder a vontade e de seguida não perdeu a sua capacidade de tomar decisões, afastando-se do corpo da vítima, “justificando” perante terceiros, a conduta adoptada, e dirigindo-se ao seu veículo, acabando por abandonar o local, conduzindo esse veículo e se, também a postura que antecedeu as agressões evidencia a capacidade reflexiva do arguido, ao ter-se mantido no local cerca de duas horas, cortado os pneus do veículo da vítima impedindo-a de, no imediato, se ausentar do local, não tendo durante esse período abandonado o seu intento, persistindo no envio de mensagens para MCS, com vista a conseguir o encontro com esta, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo e tendo o acto sido perpetrado a sangue frio, sem qualquer discussão ou acto da ofendida que o desencadeasse, com eliminação da possibilidade desta abandonar o local, não se pode dizer que o arguido tenha por algum momento perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam, em Conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


-Relatório:


1.-No processo comum colectivo nº502/13.9S4LSB da 1.ª Secção Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa, Juiz 21, por acórdão de 27-01-2015, foi decidido:
a)condenar o arguido M.S., pela prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, n.º 2, alíneas b), e j), do Código Penal, na pena de 20 (vinte) anos  de prisão;
b)condenar o arguido M.S., pela prática, como autor material, de um crime de coacção, previsto e punido pelos artigos 154º, nº 1, e 155º, nº1 alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c)em cúmulo das penas parcelares, condenar o arguido M.S.,  na pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão;
d)condenar o arguido M.S. a pagar a título de indemnização pela perda do direito à vida de MCS, a quantia de €80.000,00 (oitenta mil euros);
e)condenar o arguido M.S. a pagar a título de indemnização pela dor, angústia, medo e terror, vivenciados pela vítima MCS, nos momentos que antecederam a sua morte, a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros);
f)condenar o arguido M.S. a pagar a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo menor MMLS, representado pelos assistentes JL e NL;
g)absolver o arguido M.S. do pedido de indemnização, no montante de €40.000,00 (quarenta mil euros), deduzido pelo assistente JL;
h)absolver o arguido M.S. do pedido de indemnização, no montante de €40.000,00 (quarenta mil euros), deduzido pela assistente NL.
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O arguido interpôs recurso do acórdão, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

1.Na verdade e sempre com o devido respeito, não se pode conformar o ora recorrente quer da matéria de facto dada como provada, quer da pena aplicada decorrente da primeira.
2.Desde logo, o arguido recorre porque não concorda com as penas que lhe foram aplicadas, pois com o devido respeito, as condenações que lhe foram impostas e que ora se impugna são, salvo melhor opinião e saber, desadequadas, excessivas e desproporcionais para as circunstâncias do caso. E pugnará pela reposição da verdade até ao fim, tendo a prova produzida em audiência sido apreciada de forma errada aquando da motivação da decisão sobre a matéria de facto.
3.Daí que se discorde, do direito aplicado e da desajustada dosimetria da pena, bem sustentada sim numa equívoca apreciação da prova produzida em Julgamento, como adiante se detalhará.
4.O arguido ora recorrente não prestou declarações nos presentes autos.
5.Tendo-o feito, apenas em sede de primeiro interrogatório judicial, já na vigência do atual código processo penal é certo.
6.Devendo por isso, e desde logo, usufruir e beneficiar do princípio da presunção de inocência, o que, salvo melhor opinião e saber, assim não sucedeu.
7.Na precisa lição de Germano Marques da Silva o princípio da presunção de inocência consagrado no Art.° 32°, n.° 2 da CRP integra uma norma diretamente vinculativa e constitui um dos direitos fundamentais do cidadão. (Art.° 18°, n° 1 da CRP).
8.Quanto ao livre convencimento do juiz, este traduz-se como uma autêntica limitação ao livre convencimento ou persuasão racional, porquanto a livre convicção do juiz, não pode ir ao ponto de desfavorecer o arguido (Art.°, 61°, nº 1, alínea c) conjugado com o Art.° 343°, n°1, ambos do CPP).
9.No caso Sub Júdice, o acórdão recorrido, ao formar como formou o livre convencimento do juiz, traduziu-se como uma autêntica limitação ao livre convencimento ou persuasão racional, porquanto a livre convicção do juiz, não pode ir ao ponto de desfavorecer o arguido (Art.°, 61°, n°1, alínea c) conjugado com o Art.° 343°, n°1, ambos do CPP), ferindo o princípio do in dúbio pro reu.
10.Pelo que, também por isso a sentença que ora se recorre deve ser declarada nula.
11.Sendo inconstitucional quando interpretados no seguinte sentido: "Ao formar o livre convencimento, o juiz, não se encontra limitado ao livre convencimento ou persuasão racional, porquanto a livre convicção do juiz, pode ir ao ponto de desfavorecer o arguido (Art.°, 61°, n°l, alínea c) conjugado com o Art.° 343°, n°1, ambos do CPP), ferindo o princípio do in dúbio pro reu."
12.Tal interpretação viola ainda o art.° 6° da Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais com as modificações introduzidas pelo Protocolo n° 11 acompanhada do Protocolo adicional e dos Protocolos nos 4, 6, 7 e 13, e os artigos 32°, n.° 2 e 18.°, n.° 1, ambos da C.R.P.
13. Inconstitucionalidade que desde já igualmente se argui.

14.-O Tribunal "a quo" condenou o arguido:
a)Pela prática, como autor material, de um crime de homício qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.° e 132.°, n.°2, alíneas b) e j) do Código Penal (doravante designado de CPP), na pena de 20 (vinte) anos de prisão;
b)Pela prática, como autor material, de um crime de coacção, previsto e punido pelos artigos 154.°, n.°1 e 155.°, n.°1, alínea a), do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
c)Um cúmulo das penas parcelares, condenar o arguido na pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão;

15.-Surgem confirmados como provados no douto Acórdão, factos que, efectivamente, não correspondem à realidade e cuja prova deveria ter sido feita em audiência de discussão e julgamento de forma mais rigorosa e exactidão, nos termos do artigo 410.° do CPP.
16.-Em consequência da matéria de facto erroneamente fixada ou apreciada, também o enquadramento jurídico dos factos se mostra inteiramente desprovido de rigor.
17.-Sendo certo, que várias das provas produzidas em audiência apontavam em sentido divergente ou contraditório.
18.-Não teve, o tribunal "a quo" o cuidado e o rigor de analisar toda a prova produzida e cuja valoração era legalmente passível e exigível.
19.-Nomeadamente, os relatórios periciais e o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência e julgamento.
20.-O dever de fundamentar as decisões judiciais decorre diretamente da Constituição: "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prescrita na lei" — artigo 205.°, n.° 1 da Constituição da República portuguesa.

21.-Tendo o presente recurso como objecto a reapreciação da matéria de facto, nos termos do artigo 412.°, n.° 3 do CPP, o recorrente deve especificar:
a)os pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)as provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)as provas que devem ser renovadas;

22.-Cumprindo o disposto no referido normativo, os pontos que foram incorretamente julgados foram os pontos 27 a 34; 62 e 70 da matéria assente, que aqui se dão por integralmente reproduzidos em termos textuais, para todos os efeitos legais.
23.-A verdade é que a convicção do tribunal "a quo" deveria ser adquirida através de um processo racional e ponderado, na análise crítica dos diversos dados e contributos carreados pelas provas produzidas.
24.-Não se percebe o percurso lógico e coerente efectuado pelo tribunal "a quo", para decidir da maneira que decidiu.
25.-Ao não fundamentar a sua decisão, deverá ser considerada inconstitucional a norma do artigo 374.°, n.°2 do CPP, por violação do artigo 205.° da CRP, quando interpretada no sentido de que "O juiz não está obrigado a proceder ao exame crítico das provas podendo limitar-se a efectuar meros juízos conclusivos", inconstitucionalidade essa que desde já se argui.
26.-Analisando criticamente a prova efectivamente produzida em audiência, não pode o tribunal dar como provado que o arguido é imputável.
27.-Violou assim o tribunal "a quo" o disposto no artigo 127.° do CPP.
28.-Entende o arguido que o reconhecimento pessoal efectuado nos autos em sede de inquérito, deverá ser nulo.
29.-Conforme resulta do depoimento da testemunha EV, gravado no sistema aúdio do tribunal no dia 28/01/2014, afere-se que antes de ser efectuado o reconhecimento pessoal, foi mostrado à testemunha uma única fotografia do arguido nos autos, o que só por si, invalida e inquina o reconhecimento pessoal que lhe seguiu.
30.-Pelo exposto, é de concluir, que o reconhecimento pessoal efectuado de seguida, se encontra inquinado, pois a mesma foi com grande grau de probabilidade influenciado pelo reconhecimento fotográfico que não obedeceu ao disposto no n.°5 do artigo 147.° do CPP, logo nulo, nulidade essa que se argui nos termos do n.° 7 do artigo 147.° do CPP e que o tribunal "a quo" deveria ter conhecido oficiosamente.
31.-Vem o arguido condenado na pena de 2 (anos) pela prática de um crime de coacção, punido e previsto pelos artigos 154.°, n.°1 e 155.°, n.°1, alínea a) do CP.
32.-Salvo melhor entendimento, não pode concordar o arguido com tal condenação.
33.-Ora, nos termos do n.°1 do artigo 154.° do CP, "quem por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar a uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (...)".
34.-A coacção é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.
35.-Sendo que, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.
36.-Ora, não se consegue perceber o preencimento objectivo e subjectivo de tal crime.
37.-Porquanto, não foi mostrada nenhuma pistola pelo arguido de forma a prejudicar a liberdade de determinação no ofendido.
38.-Muito menos, um sentimento de insegurança no ofendido, porquanto após ter largado o arguido, o mesmo foi atrás do recorrente dizendo-lhe que ia tomar nota da matrícula e dar conhecimento às autoridades policiais quando chegassem ao local.
39.-Quer com isto dizer, que as simples palavras proferidas pelo arguido, sem haver qualquer contacto físico ou um meio idóneo (neste caso, a apresentação da pistola no acto), não constituem um molde capaz de ser concretizado.
40.-Mais relevante, não constitui sequer uma ameaça de forma a prejudicar a liberdade de determinação e um sentimento de insegurança no ofendido, porque o mesmo não teve nenhum receio de continuar a seguir o arguido e de informá-lo de iria denunciá-lo às autoridades, facultando a matrícula do veículo do recorrente.
41.-O arguido deveria, assim, ser absolvido pelo crime de coacção p. e p. pelo art. 154, n.°1 e 155.°, n.°1 alínea a), ambos do C.P., pelo que foi violada pelo Acórdão recorrido tal disposição legal.
42.-Os factos que constituem o objecto do presente processo não se mostram, de todo, susceptíveis de integrar a previsão típica dos arts. 131.° e 132.°, n.o 1 e 2, als. b) e j), do Código Penal.
43.-É errado interpretar as circunstâncias em que a morte de MCS foi causada como reveladoras, por parte do arguido, de uma atitude de profundo desrespeito e desprezo pelo bem jurídico vida, e de especial distanciamento em relação a uma determinação normal do comportamento de acordo com determinados padrões e valores de ordem social.
44.-Não se negando, evidentemente, a manifesta gravidade do acto cometido, e das circunstâncias que o envolveram, o certo é que o caso concreto não evidencia a existência de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente apta a qualificar a sua conduta nos termos do n.° 1 do art. 132.°, do CP.
45.-No caso concreto, está-se perante um estado de afecto que tanto pode ser explicado por uma ruptura da estrutura cognitiva e emocional do arguido, como por um processo de cumulação da sua incapacidade de resolução de conflitos numa situação de extrema vulnerabilidade passional.
46.-Por tudo isto, o arguido tem de ver a sua culpa atenuada não apenas em função da situação objectiva que viveu, mas principalmente em função do real estado emocional em que se encontrava.
47.-O crime perpetrado pelo arguido foi-o, efectivamente, no âmbito de emoção violenta compreensível que, mais do que isso, e à luz de tudo o que deixou exposto, atenua sensivelmente a sua culpa.
48.-E, no caso em concreto, de forma alguma poderia o tribunal "a quo" ter-se recusado a admitir a verificação de uma dúvida razoável sobre a existência de um estado de afecto que diminua sensivelmente a culpa, bem como a imputabilidade diminuída do arguido devidamente demostrado nos autos e a exigibilidade que sobre si impedia de se conformar com um comportamento fiel ao direito.
49.-As cláusulas de culpa diminuída são materialmente incompatíveis com a culpabilidade exigida implicitamente pelo art. 131.° e, positivamente, pelo art. 132.°, n.° 1, ambos do CP.
50.-Uma vez, que o princípio do "in dúbio pró reo", enquanto corolário fundamental do princípio da presunção de inocência, encontra-se intrinsecamente ligado ao princípio da culpa.
51.-A existência, pelo menos, de uma dúvida quando a essse respeito é inegável, porquanto nele, efectivamente, se mostram verificados, pelo menos, fortíssimos indícios dos requisitos do artigo 133.° do CP.
52.-Tais indícios devem, evidentemente, beneficiar da aplicação do princípio "in dubio pro reo", quanto mais não seja porque, subsistindo uma dúvida sobre a verificação das circunstâncias do artigo 133.° do CP, assente em indícios materiais,
53.-E materialmente impossível fundamentar-se a convicção necessária para aplicar o caso concreto aos artigos 131.° e 132.°, ambos do CP.
54.-O princípio "in dubio pro reo", quando aplicado a normas favoráveis, faz com que as dúvidas sobre a sua verificação conduzam a que as respectivas cláusulas favoráveis produzam o seu efeito tal como se tivesse logrado produzir sobre elas uma prova completa.
55.-Pelo que, mostra-se mais que suficiente para afastar a aplicação do Homicídio qualificado, do qual o arguido foi condenado.
56.-E ainda que não se entenda a aplicação do regime previsto no artigo 133.° do CP,
57.-A verdade é que nunca o tribunal "a quo" poderia ter condenado o arguido pelos termos previstos no n.° 1 do artigo 132.° do CP.
58.-Pois demonstrada a imputabilidade diminuída do arguido, sempre se afastará a censurabilidade e a preversidade do crime.
59.-Há, por tudo, que proceder-se a uma alteração da qualificação jurídica atribuída aos factos em discussão, subsumindo-os à previsão do artigo 133.° do Código Penal e, nesse sentido, condenando-se o arguido não num crime de homicídio qualificado, mas num crime de homicídio privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.
60.-Pelo que, violou o tribunal "a quo" os artigos 20.°, 131.°, 132.° e 133.°, todos do CP.
61.-A determinação da medida concreta das penas aplicada ao arguido ora recorrente e da respectiva pena aplicada, não se encontra devidamente fundamentada pela sentença recorrida nos critérios definidos nos artigos 40° e 71° do CP e.
62.-Discorda-se, pois, da medida concreta da pena, porquanto esta extravasa largamente a medida da culpa do ora recorrente, bem como as particulares exigências de prevenção especial e, mesmo, geral - violando, por isso, o disposto nos arts. 40.° n.° 1 e 2 e 70.° n.° 1, ambos do CP.
63.-Com efeito, não só o arguido agiu num estado de exigibilidade diminuída, como actuou num quadro de uma solicitação de uma situação exterior que diminuiu gravemente a culpa, pelo que a pena de vinte e um anos, mais a mais num arguido primário neste, ou em qualquer outro, tipo de crimes, se afigura como manifestamente exagerada.
64.-Incumbia ao tribunal recorrido não se limitar a ignorar a ausência de antecedentes criminais e as características humanas supra elencadas, mas antes a valorá-las positivamente, encontrando, na determinação da pena unitária a aplicar ao recorrente um ponto de equilíbrio entre as exigências de prevenção, a gravidade dos factos e a personalidade do agente.
65.-Pelo que, a pena em concreto é desajustada à culpa.
66.-Entende pois a defesa, terem sido também violados os artigos 70.° e seguintes do C. Penal.
67.-Relativamente ao pedido de indemnização civil em que o arguido/demandado foi consenado, face a toda a argumentação supra expendida, sempre o mesmo se encontra desenquadrado da culpa do agente, ou seja, deverá efetivamente ser analisadas as indemnizações em que o demandado foi condenado, de acordo com a sua culpa e apenas esta, o que se requer.
Nestes termos e nos demais de Direito que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra consentânea com o ora alegado, assim fazendo a já costumada JUSTIÇA!
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Admitido o recurso e efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o Mº Pº considerando que o recurso deve improceder, mantendo-se o acórdão recorrido nos seus precisos termos.
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Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso.
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Proferido o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.
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Cumpre agora apreciar e decidir.
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2.–O tribunal colectivo deu como assente o quadro factual que passamos a transcrever, bem como a motivação da respectiva convicção, enquadramento jurídico-legal, medida concreta da pena e pedido cível:


II-Matéria de Facto.

II.1-Realizada a audiência de julgamento, dos factos com interesse para a decisão, constantes da Pronúncia, Pedido de Indemnização Civil e Contestação, deliberou o Colectivo julgar provados os seguintes factos:
1–O arguido e MCS casaram em 26 de Junho de 2003.
2–Dessa relação nasceu, em 11 de Agosto de 2005, o menor MMLS.
3–A separação de facto entre o arguido e MCS ocorreu entre finais do mês de Junho/Julho de 2013, momento a partir do qual esta passou a residir numa das casas do casal, sita em São João da Talha.
4–O arguido desconfiava que a vítima tinha um reIacionamento extra-conjugal.
5–Desde a data em que ocorreu a separação, pelo menos, o arguido estava convicto que MCS tinha um relacionamento extra-conjugal.
6–No dia 13 de Agosto de 2013, o arguido saiu de casa.
7–No dia 14 de Agosto de 2013, o arguido decidiu ir procurar a vítima para a matar e levou consigo uma faca de cozinha com cabo em plástico de cor verde.
8–Na execução de tal plano, foi até à Rua Engenheiro Cunha Leal, em Lisboa, local onde sabia residir o então namorado de MCS, verificando que o veículo da marca Citroen, modelo Picasso com a matrícula …74, propriedade da vítima, estava estacionado em frente do prédio sito na Rua …, nº 18, em Lisboa.
9–O arguido estacionou a sua viatura ali perto, rasgou dois pneus da viatura de MCS, e munido com a referida faca, ficou a aguardar que a mesma saísse da referida residência.
10–Como MCS não saía, o arguido enviou-lhe uma mensagem dizendo que o filho tinha caído, seguindo-se o envio de mais de dez mensagens, insistindo para que a mesma fosse em auxílio do menor.
11–A vítima saiu do prédio, cerca das 10 horas, e foi abordada pelo arguido que a tentou agarrar.
12–MCS começou a deslocar-se em direcção à sua viatura.
13–O arguido seguiu atrás de MCS, conseguiu agarrá-la e, no passeio frente à viatura, atirou-a ao chão e na tentativa de espetar-lhe, no peito, a faca que trazia, cortou o braço à vítima por esta o ter colocado à frente.
14–Por diversas vezes, o arguido tentou espetar a faca no peito de MCS, atingindo-a nos braços, tendo conseguido espetar-lhe a faca no peito. Quando tentava infligir um golpe, a ponta da faca partiu-se e já com a lâmina partida e de forma a consumar o seu intento, atingiu o pescoço, provocando lesões corto-perfurantes nesta região.
15–O arguido desferiu-lhe 19 facadas em diferentes regiões corporais: no pescoço, atingindo as regiões larígea-média, infra-larígea e a região carotiana, na região torácica, na região epigástrica, na região deltoidiana, na mão direita, dorso e punho e na mão esquerda no dorso. Seguro que a vítima já não reagia, o arguido fugiu do local e dirigiu-se à sua viatura.
16–Alertado por gritos e vendo a vítima com sangue no chão, EV caminhou na direcção do arguido que se virou para aquele e lhe disse "era a minha mulher que me andava a trair há três anos e eu tinha que a matar".
17–Após, o arguido fugiu e EV correu atrás daquele e consegui agarrá-lo, tendo aquele virado-se para o EV e lhe dito "larga-me porque eu tenho uma pistola comigo e se não me largares eu faço uso dela ".
18–Com medo, EV largou o arguido.
19–De seguida o arguido entrou na sua viatura, de marca Fiat Punto, matrícula …XH, e dirigiu-se à Mata do Paraíso, em Vialonga, onde esteve escondido alguns dias.
20–O arguido na sequência das perseguições movidas pelas autoridades policiais viu-se cercado e após ter procurado familiares, foi por estes entregue às autoridades, no dia 17 de Agosto de 2013.
21–A actuação do arguido provocou, na vítima MCS, as seguintes lesões:
a)no hábito externo: múltiplos edemas e escoriações ao nível da cabeça e pescoço;
b)no tórax: cinco lesões referenciadas como soluções de continuidade de bordos infiltrados, rectos e nítidos, entre os 15 e os 19 milímetros de comprimentos, seguidas de trajecto penetrante na cavidade torácica,.
c)nos membros superiores: diversas escoriações, múltiplas soluções de continuidade de bordos infiltrados, rectos e nítidos de comprimentos díspares e ferimentos incisoperfurantes, identificáveis como lesões de defesa da vítima relativamente ao arguido e surgidas na decorrência da posição assumida no intuito de se proteger da acção infligida;
d)lesões do pescoço e dos membros superiores que não afectaram, de forma grave, órgão vitais (vasos);
e)lesões traumáticas torácicas, grande parte das mesmas penetrando na cavidade torácica e duas das quais condicionaram uma afectação grave de órgão vital, o coração (em concreto, a artéria pulmonar intrapericárdica), adequadas e necessárias para produzir o resultado morte;
f)lesões traumáticas, ao nível torácico e abdominal, denunciando um trajecto do instrumento do crime no corpo, de diante para trás, de cima para baixo e da esquerda para a direita;
g)as lesões traumáticas torácicas supra descritas, perpetradas por instrumento de natureza corto-perfurante, foram a causa adequada da morte de MCS.
22–Ao agir da forma supra descrita, desferindo todos aqueles golpes com a faca de que previamente se munira, o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de tirar a vida a MCS, o que quis e conseguiu.
23–Ao actuar da forma descrita, o arguido, movido por ciúmes, pretendeu tirar a vida a MCS, com a qual havia contraído matrimónio, utilizando para o efeito meio idóneo à produção de tal resultado - utilização de uma faca - e quis atingi-la no toráx e pescoço, zonas do corpo que o arguido sabia que ao serem atingidas com uma faca, provocariam necessariamente a morte de MCS, o que quis e conseguiu.
24–O arguido tomou a deliberação de matar e firmou a sua vontade, surgiu no local onde ocorreram os factos munido de uma faca, esperou duas horas à porta do prédio onde sabia estar a vítima, cortou-lhe os pneus para impedir qualquer hipótese de fuga na viatura e, ainda, simulou que o filho menor do casal estava doente para obrigar a vítima a encontrar-se com ele.
25–O arguido agrediu MCS, ainda na vigência do matrimónio, mãe do seu filho menor, após a faca se ter partido, provocando-lhe as lesões acima descritas na região corporal do pescoço.
26–O arguido sabia que ao dizer ao EV que tinha uma arma e que se este não o largasse atentaria contra a vida do mesmo, era de molde a que o mesmo receasse que o propósito anunciado pudesse ser concretizado, fazendo-lhe crer que estava disposto a atentar contra a sua vida, o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de prejudicar a liberdade de determinação, criando um sentimento de insegurança, no ofendido, tendo o mesmo, de imediato, libertado o arguido.
27–O arguido apresenta imaturidade psicoafectiva, sensitividade, defensividade, dificuldades na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções, no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, baixa auto-estima e auto-confiança, bem como desejabilidade social, afectos ansiosos e depressivos.
28–O arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio da personalidade.
29–O rendimento intelectual do arguido situa-se na média inferior para a sua faixa etária mas ainda dentro  de os valores considerados normais – “topo inferior da zona normal -, não evidenciando indícios de deterioração mental. Apresenta fraco investimento sociocultural e escolar, fraca capacidade reflexiva e propensão para agir.
30–À data da prática dos factos, o arguido apresentava quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica que não interferiu com a capacidade do mesmo em avaliar a ilicitude dos factos supra descritos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
31–À data da prática dos factos, tal perturbação não diminuiu a capacidade do arguido de avaliar a ilicitude de tais factos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
32–Não apresenta sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicópticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas.
33–À data dos factos, o arguido não padecia de doença mental e possuía capacidade para avaliar o carácter proibido dos seus actos ou para se determinar de acordo com essa avaliação, capacidade que mantém no presente.
34–O arguido agiu de forma voluntária, livre conscientemente, bem sabendo ser-lhe proibida e punida por lei penal a sua conduta.
35–MCS nasceu em 1 de Março de 1980 e faleceu às 11 horas e 36 minutos do dia 14 de Agosto.
36–MMLS é filho do arguido e de MCS, nasceu em 11 de Agosto de 2005 e mantinha, à data dos factos, relações de muito afecto e apoio com ambos os progenitores, sendo diário o convívio entre si e estes.
37–A vítima era auxiliar de acção médica no Hospital Pulido Valente, SA, auferindo retribuição mensal de valor não superior a € 550,00.
38–Perspectivava frequentar um curso de enfermagem com o propósito de exercer actividade com essa categoria profissional.
39–MCS era mãe e filha extremosa, afectuosa e responsável, tendo o respeito das pessoas com as quais convivia.
40–MCS, no dia 11 de Agosto de 2013, pelo menos, foi perseguida pelo arguido.
41–MCS já tinha sido vítima de agressões em dois momentos distintos, pelo menos, sendo o primeiro prévio à separação de facto.
42–No dia 14 de Agosto de 2013, o arguido desferiu as agressões acima referidas durante alguns minutos.
43–As agressões acima descritas, sofridas por MCS, no dia 14 de Agosto de 2013, causaram-lhe dor, agonia, terror e angústia perante a percepção de que a sua vida estava em perigo e pela incerteza do futuro do seu filho.

44–Após os factos praticados pelo arguido, no dia 14 de Agosto de 2103 e que foram causa da morte de MCS, o menor MMLS foi entregue a uma Instituição de Acolhimento, aos cuidados de pessoas que lhe eram desconhecidas porque:
1.-os avós maternos, perante a notícia da morte de MCS, filha única, não estavam em condições de o acolher;
2.-se fosse entregue aos cuidados dos avós paternos, ficaria acessível ao arguido cujo paradeiro era então desconhecido, existindo o receio de que este pudesse causar a morte do menor;
3.-o menor MMLS foi informado por um psicólogo da lnstituição de acolhimento que o pai havia morto a sua mãe;
4.-desde os factos, o menor MMLS não deixou de ser acompanhado em consultas de psicologia;
5.-no mesmo dia, o MMLS deixou de ter mãe e o pai foi preso e deixou de poder assistir ao seu filho, rejeitando este qualquer contacto com aquele ao aperceber-se da conduta do pai e das consequências dessa conduta;
45–Os pais de MCS foram confrontados com a perda da sua filha, única, MCS e, consequentemente, dos afectos desta, apoio e assistência, o que lhes causa grande angústia e sofrimento.
46–Foram ainda confrontados com a descrição dos actos a que a filha de ambos foi sujeita e às lesões que tais actos provocaram, tudo lhes trazendo muita angústia, ansiedade e sofrimento.
47–Tais movimentos foram revividos no julgamento.
48–MMLS encontra-se privado da companhia, carinho, educação, bem estar e conforto que era expectável a sua mãe lhe vir a proporcionar durante a vida.
49–MCS e LJ têm a guarda do menor MMLS que lhes foi atribuída provisoriamente, no processo do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures (1 º Juízo de Família e Menores, processo n.º 7490/13.0TCLRS).
50–Nada consta do certificado de resto criminal referente ao arguido.
51–O processo de socialização do arguido MS desenvolveu-se no seio de uma família cuja  dinâmica relacional foi perturbada pela presença de um pai alcoólico e uma figura materna com fraca capacidade interventiva na sua educação e acompanhamento. Os pais eram ambos operários fabris e preocupados sobretudo com a subsistência familiar, no desempenho do respectivo papel educativo junto dos filhos oscilaram entre uma postura demissionária ou punitiva.
52–A mãe também adquiriu hábitos de consumo excessivo de álcool durante a infância do arguido, facto que contribuiu para que este desenvolvesse precocemente o sentido de auto-suficiência e capacidades de trabalho para ultrapassar as necessidades pessoais e familiares. Contou para o efeito com o apoio dos avós paternos que residiam próximo junto dos quais se habituou a cuidar dos animais, executar tarefas domésticas e cuidar da irmã mais nova.
53–Completou o 9º ano de escolaridade aos 17 anos, não tendo prosseguido os estudos por imposição dos pais, encontrando-se a mãe, à data, desempregada e o agregado possuía fracas condições de subsistência económica.
54–Conseguiu trabalho num armazém industrial de frio, onde permaneceu cerca de 2 anos, até ser provocado para o serviço militar. Nesse período tinha um amplo círculo de amizades e convivia habitualmente, quer com familiares próximos como amigos, revelando, então, alguma tendência para o consumo excessivo de álcool em ocasiões festivas, não existindo notícia de problemas conflituais ou condutas desajustadas por referência a essa época.
55–Após cumprir o serviço militar permaneceu como voluntário nas forças armadas durante cerca de 5 anos, com expectativa de entrar para os respectivos quadros. Como não conseguiu concretizar esse projecto voltou à vida civil e empregou-se na empresa "Covína", como técnico de máquinas, onde progrediu profissionalmente para cargos de chefia, ao longo dos 12 anos em que permaneceu na referida empresa e até à mesma encerrar, em 2013.
56–Meses antes do encerramento da empresa "Covína", o arguido cumulava as funções nessa empresa com o trabalho prestado numa loja da Telepizza, a tempo parcial. Encerrada essa empresa, passou a exercer funções, a tempo inteiro, na Telepizza, onde era considerado uma pessoa responsável, empenhada e com bom relacionamento interpessoal com chefes e colegas, tendo estabelecido várias relações de amizade em contexto laboral. Ao rendimento obtido com esse trabalho, acrescia o subsídio de desemprego.
57–A nível afectivo, iniciou a relação de namoro com a vítima, aos 22 anos, data em que deixou a casa dos pais para viver junto dos avós, constituindo os problemas de alcoolismo parentais um dos motivos para essa mudança, para além do facto de ser impedido por estes de sair à noite.
58–Contraiu matrimónio com a vítima aos 25 anos de idade e adquiriu uma casa na zona de Alverca, onde passou a viver com o cônjuge e o filho nascido dessa relação.
59–O tempo dedicado à família constituída contribuiu para algum afastamento relativamente aos demais familiares e pessoas com que habitualmente convivia, sendo o seu tempo livre e esforço investidos em trabalhos complementares para obter melhores condições de vida para a família.
60–À data dos factos, o arguido encontrava-se a viver sozinho, tendo o filho na sua companhia durante os períodos em que a guarda do mesmo lhe estava atribuída, e mantinha-se a trabalhar na Telepizza.
61–O arguido e vítima encontravam-se separados, sendo partilhada por ambos a guarda do filho.
62–O arguido apresenta dificuldade na gestão dos afectos e  impulsividade e fraca capacidade de lidar com a frustração.
63–Em data posterior aos factos, foi regulado o poder paternal do menor tendo este ficado aos cuidados dos avós matemos.
64–Enquanto o arguido esteve preso preventivamente, o menor visitou-o uma vez, não existindo, desde então, qualquer contacto entre ambos.
65–No estabelecimento prisional, o arguido solicitou aos pais o certificado de habilitações literárias com o intuito de prosseguir os estudos, tendo como objectivo completar o 12º ano e prosseguir os estudos universitários na área de medicina do desporto. No presente, encontra-se a desempenhar actividade no refeitório correspondente à Ala onde se encontra demonstrando um bom desempenho.
66–Restituído à liberdade, o arguido iniciou actividade laboral, na empresa “J. Gomes Lda.” cujo contrato tem o seu termo previsto para 14 de Março de 2016. Aufere mensalmente €560. 
67–Vive com os pais e continua a beneficiar do apoio dos pais, da irmã e de alguns amigos e colegas de trabalho.
68–Sente angústia face ao afastamento do filho.
69–Mostra capacidade de reagir e planear o seu futuro imediato, estando a reorganizar-se no sentido de, no Estabelecimento Prisional, manter uma ocupação laboral e vir a ser integrado na escola, para prosseguir os estudos. 
70–O rendimento intelectual geral situa-se no ponto inferior da zona normal (normal fraco/baixa), sem discrepâncias relevantes entre o nível verbal e o de execução.
71–A vítima cultivava a amizade com os colegas, gozava de boa reputação no meio social onde estava inserida e tinha projectos de obter formação que lhe permitisse ascender em termos profissionais.
72–A vítima era uma mãe muito cuidadosa e tinha uma forte ligação afectiva com os seus pais, tendo para com estes um comportamento correcto, evitando angustiá-los ou provocar-lhes desgostos.
73–A morte de MCS causou, nos pais, um profundo desgosto.
74–O menor MMLS, nesta situação de dupla perda - da mãe, por ter falecido, e do pai, por estar em prisão preventiva, à ordem destes autos – foi colocado à guarda dos avós maternos que o têm acompanhado e prestado todos os cuidados e que lhe têm permitido manter-se uma criança com excelentes níveis de funcionamento a nível social, afectivo e de aprendizagem.  
75–O MMLS é uma criança com um nível intelectual superior à média esperada para a sua idade, apresenta um bom desenvolvimento perceptivo e grafo-motor.
76–É uma criança com uma boa capacidade de identificar e reconhecer os sentimentos mas, na sequência da perda da mãe e das circunstâncias em que tal facto ocorreu, encontra-se com muitas dificuldades em compreender e expressar os seus próprios sentimentos e com extrema dificuldade em compreender o que lhe aconteceu, utilizando mecanismos de defesa contra os sentimentos de angústia, saudade, de tristeza e de perda que andam a par com a dificuldade em compreender e aceitar que o seu pai, antes sentido como bom, protector, amigo e companheiro de brincadeiras, tenha sido capaz de por termo à vida da mãe.
77–A sua principal figura de referência, no momento, é a avó materna, sendo esta que, em conjunto com o avô, lhe tem transmitido a segurança e o apoio necessários à adaptação à nova estrutura familiar. 
78–No momento, o menor encontra-se numa fase de rejeição do pai, tendo sido por si questionado, num primeiro momento, pormenores sobre a morte da mãe.
79–No presente, já se refere espontaneamente à mãe, relativamente a determinadas situações e momentos do quotidiano anteriormente vividos. 
80–A notícia da morte de MCS foi recebida pelo menor com grande tristeza.
81–Desde Novembro de 2013 que o menor tem acompanhamento psicológico na consulta do núcleo de psicologia da ACES, encaminhamento efectuado pela psicóloga da instituição que o acolheu durante cerca de mês e meio, na sequência da morte da mãe.
82–Os avós têm proporcionado, ao menor, o contacto com a família paterna, nomeadamente  contactos com a tia paterna e com o primo que possui idade aproximada.
*

II.2-Factos não provados.

Dos factos com interesse para a decisão, constantes da Acusação e considerados reproduzidos na Pronúncia, do Pedido deduzido pelos assistentes, não se provou qualquer outro para além dos acima descritos, bem como os que se encontram em contradição com aqueles, designadamente que:
a)no mês de Julho, o arguido tivesse esperado que a vítima saísse do trabalho e seguido a mesma, vendo-a entrar com um indivíduo no primeiro prédio da Rua … nº 18, em Marvila, Lisboa;
b)o arguido tenha começado a pensar matar MCS, desde Julho de 2013;
c)MCS tivesse enganado o arguido com outro homem;
d)no dia 11 de Agosto de 2013, o arguido tenha ido à Rua … e ali permanecido cerca de duas horas, vigiando a vítima;
e)o arguido tenha saído de casa, no dia 13 de Agosto de 2013, para procurar a vítima;
f)na mensagem enviada a MCS, o arguido tenha dito que o filho tinha um hematoma na cabeça;
g)quando saiu do prédio, MCS tenha começado a correr ;
h)MCS tenha-se descalçado, quando abordada pelo arguido;
i)o arguido trouxesse a faca à cintura, atrás das costas;
j)O arguido tenha-se entregue às autoridades;
l)a vítima, à data dos factos, estivesse a frequentar um curso de enfermagem;
m)nos dias anteriores à data dos factos, o demandado tenha levantado € 7.000,00 (sete mil euros), da conta comum do casal, sem autorização da vítima;
n)o arguido, já em prisão preventiva, tenha mandatado a sua irmã para esta dirigir-se ao banco onde está a conta titulada pelo menor MMLS, a fim de proceder ao levantamento das quantias que ali estivessem depositadas e que não tenha logrado obter sucesso por os funcionários, conhecedores dos factos, não terem permitido que o levantamento fosse feito.
Sobre o demais conteúdo da Pronúncia, Pedido de indemnização e Contestação, o tribunal não se pronunciou por não se tratar de matéria de facto mas de conclusões, conceitos ou matéria de direito.
(…)

IIIFundamentação Jurídica.

III.1-Enquadramento jurídico-legal.

Por Despacho de Pronúncia foi imputado ao arguido M.S. a prática, em autoria material e em concurso real, de:
a)um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, n.º 2, alíneas b) e j), do Código Penal;
b)um crime de coacção, previsto e punido pelos artigos 154º, n.º 1, e 155º, nº1, alínea a), do Código Penal.

Do crime de coacção.
Comete o crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº1, do Código Penal que “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (…) ”.

A coacção constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção, protegendo todas as possíveis e legítimas manifestações da liberdade pessoal.

O tipo objectivo do ilícito em causa consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento, a saber: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção. Os meios de coacção são: a violência ou a ameaça com mal importante, pelo que trata-se de um crime de execução vinculada ou de processo típico. A violência pode dirigir-se contra a pessoa do coagido como contra a pessoa de terceiros.

O crime de coacção exige a verificação do resultado para a sua consumação, ou seja, exige que a pessoa objecto da acção de coacção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua vontade.

Bastando-se, no entanto, este tipo legal de crime com o simples início da execução da conduta coagida, sendo suficiente para a consumação, se o objecto da coacção for a prática de uma acção, que o coagido inicie esta acção.

Ao nível do elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso (cfr. art.º 13° do código penal), pressupondo o conhecimento dos elementos objectivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo), não obstante, não exigir o tipo um dolo específico, bastando que o agente, sejam quais forem as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme (art.º 14° do código penal).

Constitui circunstância qualificativa quando os factos previstos no artigo 154º, nº1, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos.

Considerando a factualidade provada, encontra-se preenchida a tipicidade objectiva e subjectiva deste ilícito porquanto, EV correu atrás do arguido, agarrou-o, e este virou para o primeiro e disse-lhe "larga-me porque eu tenho uma pistola comigo e se não me largares eu faço uso dela ". Em sequência e com medo, EV largou o arguido.

Decorre ainda da matéria de facto provada que o arguido sabia que ao dizer a EV que tinha uma arma e que se este não o largasse atentaria contra a vida do mesmo, era de molde a que o mesmo receasse que o propósito anunciado pudesse ser concretizado, fazendo-lhe crer que estava disposto a atentar contra a sua vida, o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de prejudicar a liberdade de determinação, criando um sentimento de insegurança, no ofendido, tendo o mesmo, de imediato, libertado o arguido. Agiu de forma voluntária, livre conscientemente, bem sabendo ser-lhe proibida e punida por lei penal a sua conduta.

Inexistindo causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, com a conduta descrita o arguido praticou, em autoria, um crime de coacção.

A ameaça que recaiu sobre EV foi contra sua vida, tendo sido essa ameaça contra a sua vida, mediante a utilização de uma arma que justificadamente o fez recear.

Encontram-se, assim, preenchidos os elementos do tipo, objectivo e subjectivo, do ilícito previsto e punido pelos artigos 154º, nº1, e 155º, nº1, alínea a), do C.P., por referência ao artigo 131º do Código Penal.
*

Do crime de homicídio qualificado.

Estabelece o artigo 131º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
Dispõe o artigo 132.º do Código Penal que “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos”, estipulando o nº 2 que “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
b)Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;
j)Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas…”.

Provado ficou que a vítima saiu do prédio, cerca das 10 horas, e foi logo abordada pelo primeiro que a tentou agarrar. O arguido seguiu MCS e conseguiu agarrá-la. No passeio frente à viatura, atirou a vítima ao chão. O arguido tentou, por diversas vezes, espetar a faca no peito de MCS, tendo-a atingido nos braços, até que conseguiu espetar-lhe a faca no peito, desferindo-lhe 19 facadas em diferentes regiões corporais, nomeadamente na região torácica. A actuação do arguido provocou lesões na ofendida algumas das quais afectaram, de forma grave, órgão vitais (vasos). Maior parte das lesões traumáticas torácicas penetraram na cavidade torácica, tendo sido identificas duas lesões que e condicionaram uma afectação grave de órgão vital, o coração (em concreto, a artéria pulmonar intrapericárdica), lesões adequadas e necessárias para produzir o resultado morte.

Ao agir da forma supra descrita, desferindo todos aqueles golpes com a faca de que previamente se munira, o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a MCS, o que quis, bem sabendo que as agressões nas regiões corporais atingidas eram aptas a atingir o resultado morte.

Ficou ainda provado que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo ser proibida e punida por lei tal conduta.

Atenta a factualidade provada, encontra-se preenchida a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de homicídio, sendo o dolo directo (artigo 14º, nº1, do C.P.).

Não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, com a conduta descrita o arguido praticou, em autoria, um crime de homicídio.

Importa, porém, aferir se no caso em apreço estão preenchidas as circunstâncias qualificativas do nº 2, do artigo 132º, do C. P., acima elencadas e se a conduta do arguido revela especial censurabilidade ou perversidade, sendo ambas - a especial censurabilidade ou perversidade do agente - a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido.

O “homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada do homicídio simples previsto no artigo 131º do C.P. (…). O especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da censurabilidade ou perversidade do agente” – Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, págs. 25 a 29).

O método legislativo utilizado neste preceito é o dos “exemplos padrão“, ou seja, a enumeração constante do nº 2 não é fechada mas, meros exemplos, razão pela qual não está vedado o recurso à analogia.

E as circunstâncias qualificativas do normativo mencionado não são elementos do tipo mas sim da culpa e, por isso, não são de funcionamento automático, “ou seja, a simples verificação de quaisquer circunstâncias referidas sugerem – não afirmam – tão só a especial censurabilidade ou perversidade do agente e daí a exclusão de automaticidade (Acórdão do TRL de 14/7/2004, processo nº 4007/2004-3, in www.dgsi.pt; no mesmo sentido, cfr. ainda Ac. do STJ, de 30/11/00, Proc.º nº 2188/00, 5ª Secção; Ac. do STJ, de 10/01/01, Proc. nº 3221/00, 3ª Secção e Ac. do STJ, de 15/12/05, Proc. nº 05P2978, in www. dgsi.pt).

O juiz pode considerar como homicídio qualificado a conduta do agente desacompanhada de tais circunstâncias - o chamado homicídio atípico - mas, de outras, como pode deixar de operar a qualificação apesar da existência de uma ou mais delas, enquanto subtipos orientadores, circunstâncias de culpa agravada”.

Sobre o homicídio qualificado pode ler-se, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/5/2010:
Esta posição não pode perder de vista o facto, de se mostrar ultrapassada uma concepção do crime ancorada num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou, pois, de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão decerto bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.
Ou seja, no desvalor da acção passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstracto, resultante do modo como o crime foi cometido.
Para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor (cf. v.g. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal ” vol. I, pág. 323). Só a partir destes dados poderá, a nosso ver, ser abordada a construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do artº 132º do C P.
É que, caso as circunstâncias enunciadas no seu nº 2 fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do nº 2 do art. 132º do C P, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da acção).
Ora, como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu nº 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no nº 1, difícil se torna, a nosso ver, aceitar a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. Como se viu, o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do nº 2 do artº 132º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida.
Permitimo-nos aqui citar, mais uma vez, Teresa Serra (ob. referida, págs. 63 a 65). «Como se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.°, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores...Com a referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor, Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente...Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete».

Importa, então, analisar a imagem global do facto, de modo a detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

Alínea b) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
Dispõe o artigo 132º, nº2, alínea b), do C.P. que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau”.

Esta é precisamente a situação configurada nos autos. O arguido agiu convicto que MCS, com quem havia contraído matrimónio, havia estabelecido uma relação extraconjugal em momento prévio à separação de facto ocorrida entre o casal.

Pese embora a situação de separação de facto entre o arguido e a vítima, mantinha-se o dever de respeito da relação matrimonial que foi violado de forma violenta, na via pública. A factualidade provada permite concluir que o arguido tomou a resolução de matar MCS, seu cônjuge, e preparou a execução do crime. Tinha o arguido a expectativa da manutenção da relação matrimonial, construída desde há alguns anos, na sequência de um compromisso que a vítima também assumiu. Independentemente de pessoalmente se poder reagir de uma ou outra maneira, consoante a mundividência de cada um, tem de se aceitar que a vítima não estava impedida de querer iniciar uma nova relação. Matar uma pessoa só porque o seu comportamento não corresponde às expetativas criadas é um comportamento muito censurável. Para além de o modo de execução do ilícito que espelha uma forte vontade criminosa pelo número de golpes desferidos há que considerar a vertente das consequências da conduta do arguido, pouco relevância tendo assumido para este o facto de o filho menor ficar privado da mãe.

É, assim, elevada a culpa do arguido, reveladora de especial censurabilidade e perversidade, pelo que se encontra preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea b) do nº2 do artigo 132º do Código Penal.
*

Alínea j) - agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”.
A premeditação revela a atitude de elaboração mental e a reflexão no propósito criminoso do agente que merecem uma censurabilidade acrescida da conduta. São indícios dessa atitude, a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (neste sentido, Paulo Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, Univ. Católica Editora, pág. 353).

Sobre esta circunstância escreve Maia Gonçalves “agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”- “como uma das mais fortemente indiciadoras da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio voluntário, fundamento e condição sine qua non da agravação” (“Código Penal Anotado”, 18ªedição, 2007, pág. 515): tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, “a mora  habens”, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos, transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução, pratica o respectivo crime sem hesitação, mero déclencher da decisão tomada prévia e longinquamente”.

A propósito desta qualificativa, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 27/5/2010 (acessível na base de dados da dgsj, documento 517/08.9JACBR.C1.S1):
“A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na execução (ac.STJ de 30/9/99, proc. 36/99-3ª sec.SASTJ, nº33, pg 94.
Como refere o Prof Eduardo Correia em “Direito Criminal, II, 1965, pg 301, “É que, diz-se, tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal maneira intensa que o agente, largo tempo depois de tomar a resolução, pratica o respectivo crime sem hesitação como mero déclancher da decisão tomada prévia e longinquamente. Certo que o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra-motivos, só pode ser fixado por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela existência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves”.

Não estando em causa no caso concreto, atenta a factualidade provada, situação que corporize persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas (da factualidade provada decorre que o arguido, no dia 14 de Agosto, dirigiu-se à vítima com o propósito de lhe tirar a vida), cabe indagar da integração do caso numa das outras formas ou manifestações de premeditação, mais propriamente, no conceito “frieza de ânimo”.

Relativamente à citada alínea j) do nº2 do artigo 132.º – agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24horas –, é circunstância que efectivamente se verifica atento todo o circunstancialismo criado à roda da prática do crime, pelo arguido e que o colocou numa posição de superioridade e, sobretudo, reduzindo de modo importante as possibilidades de defesa e resistência da vítima.

O acto foi perpetrado a sangue frio, sem qualquer discussão ou acto da ofendida que o desencadeasse e todo o circunstancialismo que envolveu as agressões à vítima e que as precederam, acompanhadas da eliminação da possibilidade desta abandonar o local. A violência das agressões está espelhada no número de golpes e nas regiões corporais escolhidas para efectivar as agressões. As lesões que a vítima apresenta nos membros superiores demonstram bem a posição de subordinação em que se encontrava, sem possibilidade de recorrer a qualquer outro meio para se defender que não os próprios braços. O número de mensagens insistentemente enviadas nas duas horas que antecederam as agressões demonstram a firmeza da resolução do arguido. O teor das mensagens, aludindo ao filho menor de ambos e criando a aparência de uma situação de necessidade daquele sabendo que o afecto da vítima por este acabaria por levar esta a sair da residência e permitir concretizar os seus intentos. Impressiona a energia criminosa que transparece da execução do ilícito assumindo perante a mesma insignificância a afectividade que manifesta ter para com o filho pois, não se coibiu de utilizar como engodo o carinho e afecto da vítima para com o menor, nem as consequências do seu acto relativamente ao filho menor do casal - desgosto provocado ao menor e privação do mesmo de um elemento de protecção - foram realidades suficientes para o demover do seu desígnio, mormente no hiato temporal que decorreu entre a primeira mensagem enviada e o início das agressões.

Em suma, a frieza de ânimo está evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto. A firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada reveladora da forte intensidade da vontade criminosa é também denunciada e denuncia a frieza de ânimo o procedimento do arguido quando cessa as agressões, no momento em que se apercebe que a vítima já não reage. Ao abandonar o local, justifica a sua conduta para com o indivíduo com o qual se cruzou.
Inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, com a conduta descrita o arguido incorreu em responsabilidade criminal pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº2, alíneas b) e j), do Código Penal.

Importa referir, por último, que verificando-se duas circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, a qualificação do ilícito operará por efeito de uma – a prevista na alínea b) do nº2 do artigo 132º - e a circunstâncias que não serviu para a qualificação do ilícito será considerada na graduação da pena.
*

Na Contestação, pelo arguido foi suscitada a questão da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica. Com base nas conclusões constantes do relatório pericial, defende estar demonstrada a existência de imputabilidade sensivelmente diminuída, nos termos do artigo 20.°, nº2, do Código Penal, discordando com esse fundamento, da qualificação jurídica dos factos imputados por, no seu entender, a factualidade consubstanciar a prática de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 133.° do Código Penal.

Num segundo momento, colocou em causa o teor do relatório pericial e requereu a elaboração de novo relatório pericial, o que foi indeferido.

Vejamos então a primeira questão: a situação dos autos seja configurada não como homicídio qualificado mas privilegiado. 

É notória a alteração sofrida, na sociedade, quanto à forma como se encaram as relações entre os cônjuges, acentuando-se a igualdade entre os dois cônjuges e, sobretudo, o reconhecimento do direito inalienável a cada indivíduo, independentemente do sexo, de escolher o seu caminho livremente, de modelar a sua vida de acordo com o seu sentimento de felicidade, de fazer cessar uma relação quando esta deixa de o satisfazer.

Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 26/9/2013 (acessível na base de dados da dgsj 641/11.0JDLSB.L1S1): “Não se pode forçar ninguém a coabitar connosco e, muito menos, a amar-nos. De contrário, é o nosso sentimento que se arvora numa vontade de império e de domínio totalitário. Mas se não se é capaz de ter esta compreensão das coisas, ao menos a dignidade humana inerente a cada pessoa, que é um princípio basilar da nossa ordem de valores constitucional, com todas as consequências que implica, deve ser bastante para afastar qualquer um de uma interferência tão invasiva e destruidora na esfera de decisão e acção do outro”.

No mesmo sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 3/7/2014, proferido no processo nº 417/12.8TAPTL.S1 (acessível na base de dados da dgsj):
O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui o denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas – compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral – todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.
No mesmo caso concreto não pode concorrer uma especial censurabilidade ou perversidade do agente com uma diminuição sensível da culpa (podendo apenas dar-se o concurso entre os elementos objectivos de uma e outra hipótese), o que deve determinar-se é se, na imagem global do facto, prevalecem as razões da agravação ou da atenuação da culpa e conforme prevaleçam umas ou outras assim o homicídio será punido como qualificado ou como privilegiado.
A vida em comum do arguido com a vítima, enquanto casal, foi marcada pela violência que o arguido exercia sobre a vítima, o que a levou a queixar-se às autoridades e a pedir medidas de protecção, por várias vezes, e que o recorrente demonstrou sempre a sua inconformação com o facto de lhe serem impostos limites à sua convivência com a vítima (não respeitando proibições de contactos com a vitima, proibições de se aproximar da casa da mesma). Essa reacção do recorrente não é senão a manifestação das suas dificuldades, demonstradas ao longo dos anos, em aceitar e respeitar a dignidade de pessoa da vítima e em lhe reconhecer o direito de determinar a sua vida em plena autonomia da dele. Não resulta da factualidade provada qualquer estado de descontrolo emocional do recorrente que tivesse interferido na sua decisão para o facto, afastando-se a subsunção do homicídio ao tipo privilegiado do art. 133.º ou ao tipo simples do art. 131.º do CP”.

Sobre o crime de homicídio privilegiado, pode ainda ler-se no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo nº 417/12.8TAPTS.S1 (acessível na base de dados da dgsj):
Como destaca Figueiredo Dias, “Do que se trata, em definitivo, é da verificação no agente de um hoje dogmaticamente chamado, em geral, estado de afecto” que pode naturalmente ligar-se a uma diminuição da imputabilidade ou da consciência do ilícito, “mas que, independentemente de uma tal ligação, opera sobre a culpa ao nível da exigibilidade”.
Tal como sucede sempre com a ideia da exigibilidade como componente da culpa jurídico-penal, o efeito diminuidor da culpa ficará a dever-se ao reconhecimento de que naquela situação (endógena e exógena) também o agente normalmente “fiel ao direito” teria sido sensível ao “conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão no sentido de lhe ser estorvado o normal cumprimento das suas intenções.
A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional que deve corresponder a uma reacção que o homem médio, colocado na situação concreta do agente poderia ter ou, dito de outro modo, necessário é que o homem médio possa rever-se no modo como o agente lidou com a situação.
A chamada imputabilidade diminuída pressupõe e exige a existência de uma anomalia ou alteração psíquica (substrato bio-psicológico) que afecte o sujeito e interfira na sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída (efeito psicológico ou normativo).
Os pressupostos biológicos da imputabilidade diminuída são os mesmos que o artigo 20.º do CP prevê para a inimputabilidade. A diferença reside no efeito psicológico ou normativo: a capacidade de compreensão da acção não resulta excluída em consequência da perturbação psíquica mas, antes, notavelmente diminuída.
Se a imputabilidade diminuída significa uma diminuição da capacidade de o agente avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação, ela há-de, em princípio, reflectir um menor grau de culpa (uma culpa diminuída)”.

Voltando ao caso concreto, conforme resulta do já exposto, entende este tribunal que a conduta do arguido é insubsumível ao crime de homicídio estatuído no artigo 133º do Código Penal. A matéria de facto provada não alicerça, de forma alguma, o homicídio privilegiado definido neste artigo. O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui o denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas – compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral –, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.

Nos autos, não se provou que o arguido tivesse actuado dominado pelo pânico, fosse levado a matar por motivação que pudesse consubstanciar a cláusula de compreensível emoção violenta, que o desespero fosse a causa do seu comportamento, que se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, ou que o receio de concretização de alguma ameaça tivesse por efeito diminuir de forma sensível a culpa. Em suma que o seu estado de espírito estivesse de tal modo alterado ou obnubilado que se pudesse entender que naquelas condições seria plausível e aceitável, agir do modo como agiu, não se podendo então medir a exigibilidade de outro comportamento tendo em conta padrões de normalidade, mas num plano menor, de exigibilidade diminuída.

Da factualidade provada não decorre que o arguido se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, não só para o próprio como para o “agente normalmente fiel ao direito” (Acórdão do STJ, proferido no processo nº 08P1309, de 29.10.2008, acessível na base de dados da dgsi), que tenha, por algum momento, perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação.

Durante as agressões, a lâmina da faca partiu-se e nem essa circunstância fez o arguido perder a vontade. Manteve o discernimento e a capacidade de reflectir. A sua conduta cessa quando sente que a vítima deixou de reagir. Chegado esse momento, não perdeu a sua capacidade de tomar decisões. Afastou-se do corpo da vítima, “justificou” perante terceiros, a conduta adoptada, e dirigiu-se ao seu veículo, acabando por abandonar o local, conduzindo esse veículo.

A postura que antecedeu as agressões evidencia a capacidade reflexiva do arguido. Manteve-se no local cerca de duas horas. Cortou pneus do veículo da vítima impedindo-a de, no imediato, se ausentar do local. Durante esse período, não abandonou o seu intento. A factualidade prova demonstra, precisamente, que esse hiato temporal não teve o efeito de desmotivar o arguido na concretização do propósito que o levara até ali. Tanto mais que durante esse período, persistiu o envio de mensagens para MCS, com vista a conseguir o encontro com esta, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo.

De toda a sequência de factos, não está provado que o arguido tenha por algum momento perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação. Diferentemente, o que resulta da matéria de facto provada é que o arguido prosseguiu as agressões, sem perder o discernimento, a vontade, nem o poder de reflectir. Também não perdeu a sua capacidade de fazer opções, nem de tomar decisões, o que é evidenciado pela sua postura ao abandonar o local.

Em suma, a matéria de facto provada não alicerça, de forma alguma, o homicídio privilegiado definido neste artigo, não podendo sustentar-se que o mesmo se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, não só para o próprio como, para o “agente normalmente fiel ao direito”  (Acórdão do STJ, processo nº 08P1309, de 29.10.2008 in www.dgsi.pt).

Resta-nos apurar se o arguido deve beneficiar da atenuação especial da pena, adiantando, desde já que entendemos também que não.

Dispõe o artº 72º do Código Penal que:
“1.-O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.

2.-Para o efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a)Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b)Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c)Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d)Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta:
3.-Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”

Do transcrito artigo resulta, assim, haver uma atenuação especial da pena nos casos expressamente previstos e além desses, em geral, sempre que as circunstâncias diminuem por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. A alternativa ou a necessidade da pena veio esclarecer que o princípio basilar que regula a atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente mas, também, da necessidade da pena e, consequentemente, das exigências de prevenção.

As necessidades de prevenção geral são muitíssimo elevadas estando em causa o valor absoluto da vida, derivado da essencial dignidade da pessoa humana.

Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, vol. I, pags. 446/447, “O direito à vida é um direito prioritário, pois que é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.
O que se exige para a atenuação especial da pena é que exista uma certa proporção entre o acto que motiva o crime e o crime praticado, o que no nosso caso concreto se revela completamente inexistente, não se vislumbrando poder estabelecer qualquer relação de proporcionalidade da conduta do arguido com a verificação da morte de MCS. É incontroverso que o arguido não actuou sob influência de ameaça grave, nem a sua reacção foi determinada por provocação injusta ou ofensa imerecida.

Vejamos a resenha doutrinal e jurisprudencial, presente no Ac. STJ de 28.11.2007, processo nº 07P3981, in www.dgsi.pt.

A atenuação especial da pena só pode ter ligar em casos extraordinários ou excepcionais, isto é, quando é de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura geral abstracta escolhida pelo legislador para o tipo respectivo. Fora destes casos, é dentro da moldura normal que aquela adequação pode e deve ser procurada – (Ac. STJ de 10.11.1999, proc. 823/99, 3ª, SASTJ, nº 35.74).

O artº 72º do Código Penal, ao prever a atenuação especial da pena, criou uma válvula de segurança para situações particulares em que se verificam circunstâncias que relativamente aos casos previstos pelo legislador quando fixou os limites da moldura penal respectiva, diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, por traduzirem uma imagem global especialmente atenuada que conduz à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa – (Ac. STJ de 18.10.2001, procº. nº 2137/01-5ª, SASTJ, nº 54.122).

A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo respectivo. Por isso tem plena razão a nossa jurisprudência – e a doutrina que a segue – quando insiste em que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar; para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 192, 302, 306 e Ac. STJ de 06.06.2007, proc. 1899/07).

Como também refere Maia Gonçalves, in Código Penal anotado e comentado, 15º edição, pg. 252, nota 5: “Com penas que correspondem a uma visão hodierna e um amplo quadro de substitutivos das penas de prisão quando esta não é exigida pela ressocialização, reprovação e prevenção do crime, impõe-se agora um uso moderado da atenuação especial da pena, com particular atenção para o estreito condicionalismo exigido pelo nº 1 do artº 72º.” 

Enfim, a motivação da conduta do arguido não encerra em si circunstâncias que revelem uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, ou ainda uma acentuada diminuição da necessidade da pena.

Concluímos que o arguido não pode beneficiar da atenuação especial da pena.
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Da imputabilidade do arguido.

Importa, por último, fazer uma breve referência à questão da imputabilidade do arguido em razão de anomalia psíquica.
Dispõe o art.º 20.º do Código Penal que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.

Consta da factualidade provada que o arguido não apresenta sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicópticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas. À data dos factos, não padecia de doença mental e possuía capacidade para avaliar o carácter proibido dos seus actos ou para se determinar de acordo com essa avaliação, capacidade que mantém no presente.

Não olvida o tribunal que o rendimento intelectual do arguido situa-se na média inferior para a sua faixa etária, No entanto, conforme resulta da factualidade provada, o seu rendimento integra-se  ainda dentro  de os valores considerados normais – “topo inferior da zona normal -, não evidenciando indícios de deterioração mental, dispondo de capacidade para avaliar ilicitude de determinada conduta e de se determinar segundo essa avaliação.
*

III.2-Da medida concreta da pena.

Feito o enquadramento jurídico da conduta do arguido, importa determinar, dentro da medida abstracta da pena estabelecida, a pena concreta correspondente a cada crime praticado, com recurso aos critérios do artigo 71º do C.P., sendo a pena concreta função do binómio culpa do agente – exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Dispõe o art.º 40º, nº 1, do C.P. que "A aplicação das penas (...) visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade", acrescentando o seu nº 2 que "Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa".

Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial: a pena concreta é delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa; dentro deste limite máximo é a sanção apurada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração cujo limite superior é dado pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. Dentro desta moldura (abstracta) de prevenção geral de integração, a medida da pena irá ser encontrada em função de existências de prevenção especial, em regra positiva ou de ressocialização excepcionalmente negativa, de intimação ou segurança individuais, devendo ter sempre um sentido pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com o objectivo primeiro de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada e, em última instância, na eficácia do próprio sistema jurídico-legal.

Em conclusão, a pena serve primacialmente, por um lado, para a responsabilização do arguido, atenta a sua culpa e a intensidade do bem jurídico violado, contribuindo ainda, por outro lado e ao mesmo nível, para a sua reinserção, procurando não prejudicar a sua situação social mais do que o estritamente necessário.

Na determinação da pena o tribunal deve considerar principalmente que meios são necessários para que o réu leve de novo uma vida ordenada e conforme a lei - "Mitt IKV Neue Folge", t. 3, pg. 7, citado por H. Jescheck, in "Tratado de Derecho Penal", vol. II, pg. 1195.

A determinação da medida concreta da pena é efectuada de acordo com os critérios  gerais estabelecidos  no nº 1 do  Artigo  71º do C.P. conjugado  com o artigo 40º do mesmo diploma  – os parâmetros a que deve obedecer toda e qualquer fixação da pena , em atenção às finalidades que lhe são legalmente assinaladas – e os especiais constantes do nº 2 – designadamente, grau de ilicitude,  modo de execução, gravidade das consequências, intensidade do dolo, fins ou motivos , condições pessoais do agente, conduta anterior e posterior ao facto.

O crime de coacção, previsto e punido pelos artigos 154º, nº 1, e 155º, nº1, alínea a), do Código Penal, tem como moldura abstracta a pena de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão.

O crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs1 e 2, alínea b), do Código Penal – sendo a outra circunstância qualificativa ponderada em termos de medida da pena, não podendo a circunstância que serviu para a qualificação do crime de homicídio ser novamente considerada na graduação da pena -  tem como moldura abstracta a pena de 12 anos, no limite máximo, e de 25 anos, o limite máximo.

Importa salientar o seguinte. De acordo com o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, na determinação concreta da pena, não devem ser tomadas em consideração as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime.

De acordo com Figueiredo Dias, “As Consequência Jurídicas do Crime”, § 314, pág. 234, “não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo de ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena”.

Assim, os factos que consubstanciam um crime de homicídio qualificado não podem ser novamente valorados na quantificação da culpa para efeitos da medida da pena e verificando-se duas circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, há que ter em conta o princípio da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que a circunstância utilizada para qualificar não seja utilizada como factor de ponderação da medida de pena uma vez que já foi considerada na própria qualificação do crime.

No caso concreto, o crime de homicídio é qualificado pela circunstância prevista na alínea b) do nº2 do artigo 132º do C.P., pelo que será valorada na medida da pena a circunstância prevista na alínea j) do nº2 da mesma norma.

As exigências de prevenção geral são bastante acentuadas. O crime de homicídio atenta directamente contra o bem vida, uniformemente, considerado como valor nuclear da vida em sociedade e o respeito pelo mesmo uma condição essencial da relação entre cidadãos. Se a finalidade do Direito Penal é a protecção de bens jurídicos, a Vida é o primeiro dos valores a ser tutelado e protegido. A prática do homicídio cresce, exponencialmente, em todo o país, denotando a banalização do respeito pela vida humana, tornando a necessidade de pena, actualizada e adequada ao valor supremo bem jurídico protegido suprimido, irrepetível, e o mais valioso na pirâmide dos direitos fundamentais. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando as restantes finalidades da punição.

Para além da acentuada necessidade de prevenção geral e de harmonia com o disposto no art.º 71 º do Código Penal, há a salientar:
a)a elevada ilicitude da conduta, atento o modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente: o arguido desferiu sucessivamente 19 facadas em diversas regiões corporais, nomeadamente nos membros superiores com os com os quais a vítima se pretendia proteger, golpes que provocaram múltiplas lesões; a escolha do tórax (cinco lesões referenciadas como soluções de continuidade de bordos infiltrados, rectos e nítidos, entre os 15 e os 19 milímetros de comprimentos, seguidas de trajecto penetrante na cavidade torácica) como uma das zonas corporais escolhidas para objecto da agressão. A intensidade das agressões e a sucessão das mesmas revelam uma gravidade de grau elevadíssimo. De acentuar também a crueldade ínsita na utilização de uma faca como instrumento do crime, mesmo após partida a lâmina, provocando necessariamente intenso sofrimento na vítima. A manifesta superioridade de meios com que agiu em relação à vítima, sem hipótese de defesa. As consequências que da conduta advieram, mormente os efeitos colaterais e que se prendem com a privação de o filho, menor de idade, da sua mãe e ver coarctada a possibilidade de beneficiar da protecção dos progenitores. A ilicitude é, pois, muito intensa.
c)a intensidade do  dolo,  directo (artigo 14º,nº3, do C.P.);
c)o comportamento anterior e posterior aos factos, salientando-se a inexistência de antecedentes criminais, sendo esta circunstância de escasso valor atenuativo por corresponder à situação de normalidade das pessoas fiéis ao direito;
c)as condições pessoais do arguido, suas habilitações literárias  e  situação económica.

Das condições sócio-económicas do arguido.

O processo de socialização do arguido MS desenvolveu-se num contexto sócio familiar mal estruturado e marcado pelo alcoolismo dos progenitores, contexto que contribuiu para o desenvolvimento precoce de capacidades de trabalho e de auto-suficiência.

Evidencia hábitos consolidados de trabalho, tendo no seu percurso de vida investido sobretudo no trabalho e, no presente, demonstra interesse obter melhor formação com vista a potenciar melhores condições de vida quando obtiver a liberdade.

No presente, o arguido mostra capacidade de reagir e planear o seu futuro imediato. Restituído à liberdade, está a reorganizar a sua vida. Vive com os pais e beneficia do apoio familiar. Está inserido laboralmente.

Apresenta fragilidades internas (deficit de competências relacionais, impulsividade, fraca capacidade de lidar com a frustração.

Conforme já se explicitou, são bastante acentuadas as exigências de prevenção geral. 

Do ponto de vista da prevenção especial, não existe notícia do arguido ter praticado quaisquer ilícitos, sendo esta, é certo, a normalidade. O arguido tem 37 anos de idade. Avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana - evidenciada na violência da sua conduta, bem como no comportamento adoptado perante terceiros, no momento em que abandona o local, logo após a prática dos factos -, bem como pelos efeitos colaterais da sua conduta, o que induz especiais exigências em sede de prevenção especial. Acresce a tudo isto as dificuldades que o arguido apresenta na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções e no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo para concretizar os seus intentos.

Ponderando todas estes factores, os parâmetros acima assinalados, o grau de ilicitude dos actos e, principalmente, o juízo de censura jurídico-penal incidente sobre os mesmos, entende o tribunal proporcional e adequado condenar o arguido:
- pela prática do crime de homicídio, na  pena de 20 (vinte) anos  de prisão;
-pela prática do crime de coacção, na pena de 2 (dois) anos de prisão.
*

Do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas.

Nos termos dos artigos 30º, nº1,  e 77º, ambos do Código Penal, haverá que aplicar uma pena única ao arguido.
Na determinação da medida da pena única, deve o tribunal ter em consideração a globalidade dos factos e a personalidade do arguido, bem como as finalidades da punição (prevenção geral e especial).
Importa efectuar uma avaliação da gravidade da ilicitude global, a existência, ou não, de ligações, conexões, ou pontos de contacto, entre as diversas actuações, e, na afirmativa, o tipo de ligação, conexão, ou contacto, que se verifique entre os factos em concurso, quer pela proximidade temporal, quer na identidade ou proximidade de bens jurídicos violados, quer no objectivo pretendido.

Assim, atendendo ao circunstancialismo fáctico acima descrito e à personalidade do arguido, salientando-se :
-a gravidade da  sua conduta, muito elevada, como se explicou;
-a circunstância do arguido estar inserido social e familiarmente e revelar hábitos de trabalho;
-os ilícitos pelos quais o arguido se encontra acusado foram praticados no mesmo espaço temporal e dentro do mesmo contexto:
-o arguido encontra-se inserido social e familiarmente, beneficiando do apoio dos familiares.

No caso, é evidente a conexão e ligação estreita entre os dois crimes cometidos pelo arguido, um cometido a seguir ao outro, no mesmo espaço temporal.

Não se encontra demonstrado que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo a um acto isolado de vida, expressão de uma ocasionalidade procurada pelo arguido.

Ponderando a globalidade dos factos e a personalidade do arguido e considerando a moldura abstracta - limite mínimo de 20 (vinte) anos de prisão e limite máximo de 22 (vinte e dois) anos de prisão (artigo 77º,  nº 2, do Código Penal), entende-se adequada a pena unitária de 21 (vinte e um) anos de prisão.
*

IV.-Do Pedido Civil.

Pelos assistentes LJ e NL, pais de MCS,, e também na qualidade de representantes do menor MMLS , foi deduzido pedido de indemnização com vista ao ressarcimento dos danos que quantificam:
i) em quantia não inferior a € 120.000,00 (cento e vinte mil euros), a título de indemnização pela perda do direito à vida de MCS, quantia que, no seu entender, representa uma adequada compensação, aferida segundo critérios de equidade;
ii)em quantia não inferior a € 30.000,00 (trinta mil euros), a título de indemnização pela dor, angústia, medo e terror vivenciados pela vítima nos momentos que antecederam a morte da mesma;
iii)em quantia não inferior a €50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização por danos morais, devida ao filho da vítima, MMLS, privado da companhia, carinho, educação, bem estar e conforto que a sua mãe lhe viria a proporcionar durante a vida, bem como pelo trauma do conhecimento das circunstâncias da morte da  mãe e do sofrimento que a mesma suportara;
iv)iem quantia não inferior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pela angústia e sofrimento motivados a NL,  mãe da vítima, privada dos  afectos, apoio e assistência desta;
v)em quantia não inferior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de indemnização pela angústia e sofrimento motivados a JL,  pai da vítima, privado dos  afectos, apoio e assistência desta.
Dispõe o artigo 483º do Código Civil que aquele que com dolo ou mera culpa, violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Decorre da norma legal citada que são pressupostos da responsabilidade civil subjectiva:
a)o facto;
b)a ilicitude;
c)a imputação do facto ao lesante (a título de culpa);
d)o dano;
e)o nexo de causalidade entre o facto e o dano (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”,  3ª ed. vol. 1, pág. 444).

O facto ilícito é, aqui, o próprio crime.

No juízo de censura susceptível de formular sobre o agente traduz-se o nexo de imputação subjectiva.

O  dano corresponde aos prejuízos para terceiros resultantes do facto ilícito.

Por fim, o nexo de imputação objectiva consiste na ligação entre este e aqueles.

Preceitua o artigo 496º do Código Civil, no seu nº 1, que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, determinando o nº 2 do mesmo normativo legal que “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.”

Por fim, estatui o nº 3 do mesmo dispositivo legal que o montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

Entre essas circunstâncias está necessariamente a gravidade da lesão; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima como os sofridos pelas pessoas com direito à indemnização nos termos do número anterior.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 562º a 564º e 496º, todos do Código Civil, a obrigação de indemnização deve reconstituir a situação do lesado anterior à lesão, compreendendo, para além dos prejuízos directamente causados pelo facto ilícito (danos emergentes) e dos benefícios que o lesado deixou de ganhar em consequência do mesmo (lucros cessantes), todos os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Escreve Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, I, fls. 486, que o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da boa prudência, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. A indemnização por danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pela angústia, dores físicas, doença ou abalo psico-emocional sofridos, visando também sancionar a conduta do lesante.

Sobre os titulares do direito à indemnização, determina o artigo 496.º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o seu montante fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias do art.º 494.º do mesmo diploma legal. Nos casos de morte podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização, nos termos do n.º 2 deste artigo.

Pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 3 de Dezembro de 2009, proferido no processo nº 8/05.0SQLSB.L1-9 (acessível na base de dados da dgsj), sobre a determinação dos titulares do direito à indemnização:
O artigo 496.º, n.º 2, do CC prescreve a distribuição por três grupos com direito à indemnização, rectius, compensação: o cônjuge e os seus descendentes; na falta deles, os pais ou outros ascendentes; por fim, os irmãos, os sobrinhos com direito de representação. A Lei estabelece uma ordem de precedência. Só na falta do primeiro grupo têm direito à compensação o 2.º grupo e só na falta dos dois anteriores têm direito os que se integrarem no terceiro grupo. No caso dos autos, a assistente integra-se no segundo grupo, uma vez que está assente que é a mãe da vítima. O direito de indemnização, previsto no n.º 2 do art.º 496.º do CC, não cabe simultaneamente a todas as pessoas nele referidas, mas a grupos hierarquizados de pessoas, outorgando-se tal direito sucessivamente a cada um desses grupos e por ordem decrescente de proximidade comunitária e afectiva”.

Voltando ao caso, Importa, então, apreciar o pedido cível deduzido pelos assistentes.

Conforme se deixou exposto, a conduta do arguido preenche a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de homicídio qualificado pelo que, para além de passível de responsabilidade criminal, integra os pressupostos da responsabilidade civil.

Citando o acórdão do STJ de 29.10.08, proc. nº 08P3380 www.dgsi.pt “o dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros”, sendo que “na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, no que respeita à vítima, a sua vontade e alegria de viver, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica.” – Neste sentido também, entre outros, os acórdãos do STJ de 12.10.06, proc. nº 06B2520 e de 18.12.07, proc. nº 07B3715A, ambos em www.dgsi.pt.

Em face da factualidade provada, merecem tutela os danos não patrimoniais invocados, mormente o dano morte; as dores sofridas pela vítima durante o hiato temporal em que foram cometidas as agressões até à verificação do seu óbito; o desgosto pela privação infligida ao menor.

Da medida da indemnização.

Nos termos do artigo 562º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, a qual, de acordo com o disposto no artigo 566º é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível.

Decorre do disposto no artigo 496º do Código Civil que são indemnizáveis os danos não patrimoniais, que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo o montante da indemnização ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que se justifiquem em cada caso.

Constituem parâmetros de quantificação da indemnização a atribuir pelos  danos acima mencionados:
a)a fixação equitativa, tendo em conta o grau de culpa dos agentes, a situação económica destes e do lesado e as demais circunstâncias que se justifiquem no caso concreto (art. 496º do CC);
b)a culpa concorrente do lesado, da qual pode resultar a redução ou mesmo a exclusão da indemnização (art. 570º do CC).

Aplicando estes parâmetros ao caso concreto, temos que :
1)o lesante – o arguido – , à data dos factos, o arguido trabalhava na Telepizza; no presente, aufere €560;
2)a vítima exercia actividade como auxiliar de enfermagem, auferindo vencimento não superior a €550,00 mensais. Perspectivava ingressar num curso de enfermagem por forma a progredir na carreira.

Considerando todas estas circunstâncias, os parâmetros e critérios-referidos, particularmente a situação económica do lesante e da vítima e de acordo com os critérios a que se reporta o artigo 496º, n.º 1, do C.C., bem como  as circunstâncias referidas no nº 3 do citado artigo, entende-se por adequado fixar a indemnização nas seguintes quantias:
Ponderando globalmente todos os factores mencionados entendemos que o montante de €80.000,00 (oitenta mil euros) se apresenta justo e adequado, respeitando os actuais padrões da jurisprudência para ressarcir o dano morte (artigo 566º, nº2, do C.Civil) (a título de exemplo, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/6/2010, proferido no Processo nº 562/08.4GBMTS.P1.S1; o Acórdão de 19/4/2012, proferido no Processo nº569/10.1TBVNG.P1.S1; e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/5/2012, proferido no Processo nº 1145/07.1TVLSB.L1.S1).

II)-Danos não patrimoniais sofridos pela vítima.

Os demandantes peticionaram a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) a título de indemnização do dano sofrido pela vítima. Como é consabido este dano corresponde à dor que a vítima terá sofrido antes de falecer, isto é, no período compreendido entre o facto que provocou o dano e o seu decesso. Tal dano tem de ser valorado sopesando o grau de sofrimento, a duração, o maior ou menor grau de consciência da vítima sobre o seu estado e a previsão da sua morte.

Não pode deixar de ser ponderada a natureza das lesões sofridas pela vítima – intensidade das agressões, ditada pelo número e regiões corporais atingidas, e as lesões nos membros superiores decorrentes da tentativa de defesa -, e a dor motivada pelas sucessivas lesões; a culpa, de grau elevado atenta a violência da conduta do arguido; e o tempo que mediou entre o início das agressões  - alguns minutos - e o óbito verificado às 11 horas e 36 minutos do dia 14 de Agosto. Atenta a factualidade provada é legítimo concluir que a mesma teve a percepção de que se encontrava gravemente ferida e de que iria certamente morrer. Ainda que possa não ter sido longo o período de tempo deste sofrimento, quer físico, quer psicológico, ele foi intenso.

As agressões sofridas por MCS, no dia 14 de Agosto de 2013, causaram-lhe dor, agonia, terror e angústia perante a percepção de que a sua vida estava em perigo e pela incerteza do futuro do seu filho.

Entende-se como equitativo, tomando em atenção as condições do artº 494º do Código Civil, o montante de € 20.000,00 (vinte mil euros) para compensar tal sofrimento.

Danos não patrimoniais sofridos pelo menor.

Relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo menor, titular do direito à indemnização prevista no nº 2 do artº 496º do Código Civil, são eles também indemnizáveis, sendo o montante respectivo fixado também de acordo com a equidade e tendo em atenção as circunstâncias enunciadas no artº 494º daquele diploma legal.

MMLS nasceu em 11 de Agosto de 2005 e mantinha, à data dos factos, relações de muito afecto e apoio com ambos os progenitores, sendo diário o convívio entre si e estes. MCS era mãe e filha extremosa, afectuosa e responsável.

Após os factos praticados pelo arguido, no dia 14 de Agosto de 2103 e que foram causa da morte de MCS, o menor MMLS foi entregue a uma Instituição de Acolhimento, aos cuidados de pessoas que lhe eram desconhecidas porque os avós maternos, perante a notícia da morte de MCS, filha única, não estavam em condições de o acolher e, caso fosse entregue aos cuidados dos avós paternos, ficaria acessível ao arguido cujo paradeiro era então desconhecido, existindo o receio de que este pudesse causar a morte do menor. O menor MMLS foi informado por um psicólogo da lnstituição de acolhimento que o pai havia morto a sua mãe e desde os factos, não deixou de ser acompanhado em consultas de psicologia. O menor MMLS encontra-se privado da companhia, carinho, educação, bem estar e conforto que era expectável a sua mãe lhe vir a proporcionar durante a vida. Cumulativamente, o menor MMLS viu o pai ser privado da liberdade e de lhe poder assistir, rejeitando aquele qualquer contacto com o mesmo.

O menor MMLS é uma criança com um nível intelectual superior à média esperada para a sua idade. Na sequência da perda da mãe e das circunstâncias em que tal ocorreu, encontra-se com muitas dificuldades em compreender e expressar os seus próprios sentimentos e com extrema dificuldade em compreender o que lhe aconteceu, utilizando mecanismos de defesa contra os sentimentos de angústia, saudade, de tristeza e de perda que andam a par com a dificuldade em compreender e aceitar que o seu pai, antes sentido como bom, protector, amigo e companheiro de brincadeiras, tenha sido capaz de por termo à vida da mãe.

Desde Novembro de 2013 que o menor tem acompanhamento psicológico na consulta do núcleo de psicologia da ACES, encaminhamento efectuado pela psicóloga da instituição que o acolheu durante cerca de mês e meio, na sequência da morte da mãe.

Face ao circunstancialismo fáctico apurado, designadamente tendo em conta o sofrimento do menor com a morte súbita e inusitada da sua mãe, sem esquecer os valores fixados pela jurisprudência, entendemos como justo e equilibrado arbitrar o montante global de €50.000,00 (cinquenta mil euros).

Do direito à indemnização pelos assistentes.

Atento o disposto no nº2 do artigo 496.º do Código Civil, o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais encontra-se atribuído ao primeiro grupo, ou seja, ao descendente MMLS, não cabendo, em simultâneo, aos assistentes que integram o segundo grupo. Nesta medida, improcede o pedido deduzido pelos assistentes NL e JL .

Da perda de bens.

Prevê o artigo 109º, nº 1, do Código Penal que “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem risco sério de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

Por seu turno, estabelece o artº 186º, nº 1, do Código de Processo Penal que “logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito” e são-no após o trânsito em julgado da sentença, conforme estatui o nº 2 do citado preceito.

Ao abrigo do disposto no citado artigo 109º do Código Penal, o tribunal declara perdida a favor do Estado a faca apreendida nos autos, bem como as peças de vestuário do arguido, apreendidas nos autos, e determina que, oportunamente, se restitua a roupa da vítima aos seus pais, assistentes nos autos.
*

3.–Como é sabido o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações.
Face às conclusões do recurso do arguido, são as seguintes as questões a analisar:
a)Impugnação da matéria de facto, por resultar contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida, quanto a decisão recorrida dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade e quando insiste em afirmar que o arguido não estava alcoolizado.
b)Nulidade da sentença, por violação do disposto no art.° 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, em virtude de não proceder ao exame crítico das provas, quando dá como provado que o arguido é imputável, violando, assim, o disposto no artigo 127.° do CPP.
c)Violação do princípio da presunção de inocência consagrado no Art.° 32°, n.° 2 da CRP.
d)Nulidade do Reconhecimento Pessoal efectuado pela testemunha EV. Entende o arguido que o reconhecimento pessoal efectuado nos autos em sede de inquérito, deverá ser nulo ao abrigo do disposto no artigo 147.°, n.°7 do CPP.

e)Impugnação da matéria de direito por entender o recorrente que:
-deveria, ser absolvido pelo crime de coacção p. e p. pelo art. 154, n.°1 e 155.°, n.°1 alínea a), ambos do C.P, por falta de preenchimento objectivo e subjectivo de tal crime;
-deveria proceder-se a diversa qualificação jurídica do Crime de Homicídio Qualificado, entendendo o recorrente que, face à imputabilidade diminuída do arguido, impõe-se uma qualificação diversa dos factos praticados subsumindo-os à previsão do artigo 133.° do Código Penal  — Homícidio Privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.

f)Medida da pena, entendendo o recorrente que deverá ser reconhecia a imputabilidade diminuída do arguido e que o mesmo deverá ser condenado por um crime de Homicídio Privilegiado, nos termos do artigo 133.° do CP, numa pena próxima dos seus limites mínimos.
g)Pedido de indemnização civil – pretende o recorrente que deverão ser analisadas as indemnizações em que o demandado foi condenado, de acordo com a sua culpa e apenas esta.

Assim, e em essência, são estas as questões a apreciar e decidir no presente recurso.
Avancemos na apreciação das questões suscitadas, a começar pelas de ordem processual, na medida em que a procedência de alguma delas prejudica o conhecimento das restantes.

4.–A questão de natureza processual a apreciar, diz respeito à invocada nulidade do Reconhecimento Pessoal.

Entende o arguido que o reconhecimento pessoal efectuado nos autos em sede de inquérito, deverá ser nulo ao abrigo do disposto no artigo 147.°, n.°7 do CPP, porque, conforme resulta do depoimento da testemunha EV, gravado no sistema aúdio do tribunal no dia 28/01/2014, afere-se que antes de ser efectuado o reconhecimento pessoal, foi mostrado à testemunha uma única fotografia do arguido nos autos, o que só por si, invalida e inquina o reconhecimento pessoal que lhe seguiu. Quer isto dizer que a testemunha, confrontada com a fotografia do arguido, não o reconheceu de imediato como sendo um dos co-autores do crime de que tinha sido vítima, mas que as autoridades policiais se encarregaram de transmitir-lhe a ideia de que não tinham dúvidas ou de que, como testemunhou mais adiante no decurso da audiência, «era muito provável ser este senhor». Defende, assim, o recorrente, merecer censura este tipo de actuação, pois sendo a prova por reconhecimento muito delicada, é necessário garantir e preservar a neutralidade psíquica da pessoa que deve proceder à identificação, evitando-se resultados influenciados e pré-constituídos. Se os agentes policiais que orientam o reconhecimento fotográfico predispõem a testemunha para a convicção de que uma determinada pessoa cuja fotografia lhe é exibida é, com certeza ou com alta probabilidade, a autora de determinados factos, não ficará o reconhecimento presencial subsequente, da pessoa em causa, altamente condicionado na sua genuinidade? O retrato mnemónico retido na memória da testemunha identificante não estará afectado pela convicção que lhe foi indevidamente transmitida pelos agentes policiais? " justifica-se que se formulem sérias dúvidas sobre a fidedignidade do reconhecimento efectuado na fase de inquérito, quer pela actuação prévia das autoridades policiais em sede de reconhecimento fotográfico, quer pelas desconformidades e dúvidas que se suscitam por via do depoimento da testemunha em audiência de julgamento." É de concluir que a única fotografia mostrada teve influência no reconhecimento pessoal efectuado, aliás como a própria testemunha evidência em sede de audiência e julgamento, pelo que o reconhecimento pessoal efectuado de seguida, se encontra inquinado, pois a mesma foi com grande grau de probabilidade influenciado pelo reconhecimento fotográfico que não obedeceu ao disposto no n.°5 do artigo 147.° do CPP, logo nulo.

Vejamos:

O reconhecimento de pessoas é um dos meios de prova previstos no C.P.P cuja finalidade é apurar o responsável pelo crime, ou seja, identificar a pessoa que foi vista a praticar o facto criminoso, ou que tenha sido vista antes ou depois do facto, em circunstâncias fortemente indiciadoras de ter sido o seu autor.

Como ensina Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, 4.ª ed., 2008, p. 211), o reconhecimento consiste na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao acto.

Prescreve o artigo 147.º do C.P. Penal:

«1-Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação.
2-Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual.
3-Se houver razão para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento e este não tiver lugar em audiência, deve o mesmo efectuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista pelo identificando.
4-As pessoas que intervierem no processo de reconhecimento previsto no n.º 2 são, se nisso consentirem, fotografadas, sendo as fotografias juntas ao auto.
5-O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2.
6-As fotografias, filmes ou gravações que se refiram apenas a pessoas que não tiverem sido reconhecidas podem ser juntas ao auto, mediante o respectivo consentimento.
7-O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.»

No reconhecimento podemos distinguir três modalidades:
a)-o reconhecimento por descrição,
b)-o reconhecimento presencial e
c)-o reconhecimento com resguardo.

O reconhecimento por descrição, previsto no n.º 1 daquele artigo, consiste em solicitar à pessoa que deve fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com toda a pormenorização de que se recorda, sendo-lhe depois perguntado se já a tinha visto e em que condições e sendo, finalmente, questionada sobre outros factores que possam influir na credibilidade da identificação.

Em regra, esta modalidade de reconhecimento funciona como acto preliminar dos demais, e nele não existe qualquer contacto visual entre os intervenientes ou seja, entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.

O reconhecimento presencial, previsto no n.º 2 do artigo 147.º, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal, obedecendo aos seguintes passos:
-Na ausência da pessoa que deve efectuar a identificação, são escolhidos, pelo menos, dois cidadãos, que apresentem as maiores semelhanças possíveis – físicas, fisionómicas, etárias, bem como, de vestuário – com o cidadão a identificar;
-Depois, este é colocado ao lado daqueles outros cidadãos e, se possível, apresentando-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que deve proceder ao reconhecimento [tal só não será possível no caso de uma alteração fisionómica irreversível];
-É então chamada a pessoa que deve efectuar a identificação que, depois de ficar diante do grupo onde se encontra o cidadão a identificar e, portanto, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo perguntas e respostas – estas e qualquer outra que porventura, tenha sido efectuada, registada no auto respectivo.

O reconhecimento com resguardo, previsto no n.º 3 do artigo 147.º, tem lugar quando existam razões para crer que a pessoa que deve efectuar a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efectivação do reconhecimento. Trata-se, pois, de uma forma de protecção da testemunha.

Esta modalidade de reconhecimento obedece à sequência descrita para o reconhecimento presencial, mas agora a pessoa que vai efectuar a identificação deve poder ver e ouvir o cidadão a identificar, mas não deve por este ser vista.

Normalmente, o que sucede é que a pessoa que deve efectuar a identificação é colocada numa divisão distinta daquela onde se encontra o grupo que inclui o cidadão a identificar, separados por um vidro polarizado que permite que aquela aviste, sem ser vista, o grupo [esta modalidade de reconhecimento não vale para a audiência].

Quanto à utilização nas fases posteriores, como prova válida – e irrepetível -do reconhecimento feito nas fases preliminares, constituindo um meio autónomo de prova que se não confunde com declarações e depoimentos, veja-se o Acórdão da Relação de Coimbra, de 5 de Maio de 2010 (Processo 486/07.2GAMLD.C1), onde se diz: «(…) o reconhecimento realizado em inquérito é uma “prova autónoma pré-constituída” a ser examinada em audiência de julgamento nos termos dos artigos 355.º, n.º1, in fine, n.º 2 e artigo 356.º, nº 1, b) do Código de Processo Penal.

No caso em apreço, a testemunha EV, quando prestou declarações nas instalações da Polícia, confrontada com a fotografia do arguido, identificou-o de imediato, como sendo a pessoa que tinha visto no local. A exibição da fotografia precedeu o reconhecimento pessoal. Porém, em audiência, a testemunha esclareceu que no momento do reconhecimento (onde foram colocados três indivíduos de características similares ás do arguido), não teve quaisquer dúvidas que o indivíduo por si reconhecido era o indivíduo que agarrou no local. Questionada se, na eventualidade de não lhe ter sido exibida a fotografia teria dificuldades em identificar o indivíduo que tinha observado no local dos factos, tendo respondido negativamente, acrescentando que “os factos tinham ocorrido há pouco tempo”. E, na verdade, a testemunha não só observou o arguido no local, como ainda o agarrou, esteve na sua frente e trocou palavras com o arguido, situação que ocorreu quando este lhe disse, sem qualquer dúvida, que havia morto a mulher.

Conclui-se, assim, que o reconhecimento foi realizado com observância do formalismo imposto pelo artigo 147º do C.P.P., porquanto foi precedido da indicação dos traços característicos do indivíduo que viu no local e, embora esta indicação tenha sido prévia a qualquer reconhecimento, o certo é que no auto de reconhecimento onde consta que foram colocados dois indivíduos de características similares às do arguido, juntamente com este, a testemunha não teve quaisquer dúvidas em afirmar que o indivíduo por si reconhecido era o indivíduo que agarrou no local.
Estas considerações permitem-nos ajuizar que, no quadro da livre apreciação da prova, que é sempre uma valoração que apela à lógica e às regras de experiência, a valoração probatória do referido auto de reconhecimento, conjugada com a prova pessoal produzida em audiência de julgamento e reapreciada, consente que a decisão de facto se possa manter quanto ao recorrente, por nenhuma dúvida subsistir de que o arguido cometeu o crime de coacção p. e p. pelos art.°s 154° n.° 1 e 155° n.° 1 alínea a), ambos do CPenal, não tendo sido violadas quaisquer formalidades prescritas na lei quanto à realização de reconhecimento presencial.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.
*
 
5–Quanto à impugnação da matéria de facto.

Entende o recorrente que o tribunal a quo, na convicção quanto aos factos provados referentes ao estado alcoolizado do arguido e à personalidade e capacidade de avaliar e de se determinar de acordo com essa avaliação, se baseou na aplicação crítica daquelas provas sem, contudo, explicar a sua concreta valoração e em que medida as mesmas contribuíram para que esses factos fossem dados como assentes, sendo certo, que várias das provas produzidas em audiência apontavam em sentido divergente ou contraditório, resultando dos próprios factos provados, contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida que põe em causa a decisão de condenar o recorrente.
Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação dos recorrentes.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.

Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, a consultar em www. dgsi.pt).

Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:
 «3.-Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).

Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão N.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

No caso em apreço, o recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, por resultar da mesma contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida, quanto a decisão recorrida dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade e quando insiste em afirmar que o arguido não estava alcoolizado, invocando segmentos da prova que concretiza e pretende sejam reapreciados que apontavam em sentido divergente ou contraditório.

Alega, para tanto, que o tribunal "a quo" dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade. Contudo, o mesmo dá como provado, que o arguido, à data da prática dos factos, apresentava um quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica. Mais, assenta o tribunal "a quo' que " (...) tal perturbação não diminuiu a capacidade do arguido de avaliar a ilicitude de tais factos (...)" No entanto, dá como provado que o arguido apresenta dificuldade na gestão dos afectos e impulsividade e fraca capacidade de lidar com a frustração, pelo que não podia o tribunal "a quo" deixar de perceber que estes factos são contraditórios e que o mesmo leva a reconhecer, pelo menos, uma imputabilidade diminuída do arguido.

Alega, ainda, que maior relevância tem a análise do relatório pericial de fls. 778 e o relatório social de fls. 1099 e seguintes junto aos autos, porquanto, quando questionado, se o arguido corria o risco de praticar novo crime? A resposta do relatório pericial de fls. 778, foi "Não." Contrariamente entendeu o relatório social para determinação da sanção, de fls. 1099, concluindo que "O arguido apresenta fragilidades internas (difícil de competências relacionais, impulsividade, fraca capacidade de lidar com a frustração), e cujo risco de ocorrência de novos comportamentos impulsivos/agressivos poderá eventualmente ocorrer caso se afigurem situações similares a nível afectivo, pelo que beneficiaria com apoio psicológico no sentido de adquirir as competências necessárias que lhe permitam resolver as sensações emocionais com que ainda se debate."

Já no que respeita ao estado alcoolizado do arguido, a fundamentação do tribunal "a quo" e a própria prova valorada carece de vício, porquanto, o tribunal "a quo” insiste em afirmar que o arguido não estava alcoolizado, justificando-se pelo depoimento das testemunhas e pelo período temporal entre o termo da hora de festejo do aniversário de AFe a hora em que os factos ocorreram. Para o recorrente, porém, o tribunal "a quo" não tomou em conta o depoimento de uma testemunha essencial que teve contacto directo com o arguido após o decorrer dos factos para a descoberta da verdade material, designadamente o depoimento da testemunha EV, que declarou que o arguido se encontrava perturbado e alcoolizado. Por outro lado, o tribunal fundamentou a sua convicção num período temporal de quatro horas mais que suficiente para permitir a suavização, senão a eliminação do estado alegre que o arguido apresentava. Existe contradição flagrante na respetiva fundamentação, porquanto, o tribunal começa por dizer que "No que concerne ao período entre as 6 horas e as 8 horas, nada resulta da prova produzida" e depois afinal já considera essas duas horas para efeitos de eliminação de prova do facto de o arguido se encontrar alcoolizado. Afinal, quem garante ou que prova foi produzida que prove que o arguido não bebeu whisky nessas duas horas? Ou mesmo que não tenha sido whisky, que o mesmo tenha continuado a beber, de forma a ficar profundamente alcoolizado?

Para o recorrente, os pontos incorretamente julgados foram os pontos 27 a 34 e 62 e 70, pois tribunal a quo, na formação da sua convicção, não teve o cuidado e o rigor na análise individual de toda a prova pericial e documental existente nos autos com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento.

O arguido recorrente, coloca, assim, em causa o princípio da livre apreciação da prova, patente no art.° 127.° do Código de Processo Penal porque, na fundamentação da sua convicção, o Tribunal a quo não foi lógico e congruente, consistente e suficiente, não explicando, a partir da prova produzida, as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia dado como provado e, consequentemente, o acórdão recorrido também se encontra ferido do vício de contradição entre a fundamentação e a decisão, sendo patente o erro na apreciação na prova atrás aludido.
*

O que se mostra essencialmente em causa neste particular, é a discordância entre o recorrido e o tribunal a quo relativamente aos meios de prova considerados e valorizados a propósito dos factos referentes ao estado alcoolizado do arguido e à personalidade e capacidade de avaliar e de se determinar de acordo com essa avaliação.

Assim, no que respeita à sua imputabilidade, enquanto que na versão do tribunal recorrido os factos provados em apreço resultaram de todo o circunstancialismo no qual veio a suceder a morte da vítima, demonstrativa da capacidade de reflexão do arguido – nomeadamente no estratagema arquitectado pelo arguido para provocar a saída da vítima da residência, ao invocar um problema relacionado com o menor, bem sabendo que a vítima iria sair de casa para o socorrer, bem com as palavras proferidas pelo arguido logo após a prática dos factos, ao cruzar-se com terceiros, nomeadamente a testemunha EV que evidenciam a consciência que tinha sobre conduta, procurando justificar a sua conduta e, ao mesmo tempo, criar em terceiros, o receio, por forma a garantir que não corria o risco de perder a sua liberdade –  bem como do relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663 e o relatório de exame médico-legal, de fls. 778 e seguintes, dos quais resulta que o arguido apresenta imaturidade psicoafectiva, sensitividade, defensividade, dificuldades na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções, no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, baixa auto-estima e auto-confiança, bem como desejabilidade social, afectos ansiosos e depressivos e não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio da personalidade, o recorrente contrapõe a  contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida, quanto a decisão recorrida dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade mas, contudo, dá como provado, que o arguido, à data da prática dos factos, apresentava um quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica, mais alegando que o tribunal a quo assenta que " (...) tal perturbação não diminuiu a capacidade do arguido de avaliar a ilicitude de tais factos (...)" e, no entanto, dá como provado que o arguido apresenta dificuldade na gestão dos afectos e impulsividade e fraca capacidade de lidar com a frustração, concluindo, assim, que não podia o tribunal a quo deixar de perceber que estes factos são contraditórios e que o mesmo leva a reconhecer, pelo menos, uma imputabilidade diminuída do arguido.
No que respeita ao estado alcoolizado do arguido, enquanto o tribunal a quo sustenta que o arguido não estava alcoolizado, justificando-se pelo depoimento das testemunhas AF e MB que acompanharam o arguido e não consideraram que o mesmo estivesse ou aparentasse estar embriagado, o recorrente contrapõe que o tribunal a quo não tomou em conta o depoimento da testemunha EV, que teve contacto directo com o arguido após o decorrer dos factos e que declarou que o arguido se encontrava perturbado e alcoolizado, existindo, ainda, contradição flagrante na fundamentação, porquanto, o tribunal começa por dizer que "No que concerne ao período entre as 6 horas e as 8 horas, nada resulta da prova produzida" e depois afinal já considera essas duas horas para efeitos de eliminação de prova do facto de o arguido se encontrar alcoolizado.
*

Mas, quanto a esta impugnação da matéria de facto, sempre se dirá que, pelo conjunto crítico e conjugado da prova, à luz das regras da experiência comum, nada se vislumbra nos factos dados como provados e não provados que importe a existência de um errado juízo na matéria de facto.
 
Ora, a leitura que o recorrente faz não abala a consistência e coerência da fundamentação da matéria de facto, onde o exame crítico da prova produzida revela o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os aludidos meios de prova, não resultando, da sua análise crítica e conjugada, razão válida para que se altere o juízo valorativo expressamente formulado na decisão recorrida, não havendo nos autos outras provas que imponham decisão diversa da recorrida.

Importa ainda deixar claro que o juízo sobre a prova é necessariamente um juízo global, no sentido de a convicção do tribunal se formar do escrutínio rigoroso e cuidado de cada uma das provas individualmente consideradas, mas também de todas elas no seu conjunto, directas e/ou indirectas A convicção formar-se-á, sempre e apenas, a final, ou seja, avaliada cada prova e toda a prova.

E, o tribunal a quo, ao contrário do que alega o recorrente, fundamentou devidamente a decisão no que respeita à sua imputabilidade, sendo determinante o relatório de fls. 605 a 609, datado de 3 de Fevereiro de 201; o relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663, do qual resulta que o rendimento intelectual cognitivo total situa-se na média inferior para a sua faixa etária não evidenciando indícios de deterioração mental; e o relatório de exame médico-legal, de fls. 778 e seguintes, do qual resulta que o arguido não apresenta sintomatologia psicóptica – depressão major; esquizofrénica ou outras perturbações psicóticas; perturbação bipolar ou perturbações de personalidade estruturadas. Não se verifica, como pretende o recorrente, qualquer contradição no juízo sobre a imputabilidade do arguido face às conclusões destes relatórios, tanto mais que  o Senhor Professor RX concluiu que o arguido “possuía capacidade para avaliar o carácter proibitivo desses actos” tendo respondido ao quesito 7 que “o arguido é imputável, ainda que alguma atenuação da pena possa ser considerada tendo em atenção as limitações dos traços da sua personalidade e das suas capacidades cognitivas como se explana no relatório”, sendo certo que dos relatórios de exame pericial constantes dos autos, resulta que o arguido apresenta imaturidade psicoafectiva, sensitividade, defensividade, dificuldades na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções, no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, baixa auto-estima e auto-confiança, bem como desejabilidade social, afectos ansiosos e depressivos, não sofrendo, contudo, de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio da personalidade. E, embora o rendimento intelectual do arguido se situe na média inferior para a sua faixa etária mas ainda dentro de os valores considerados normais – “topo inferior da zona normal” -, não evidencia indícios de deterioração mental. Apresenta fraco investimento sociocultural e escolar, fraca capacidade reflexiva e propensão para agir, constando do relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663 que o rendimento intelectual cognitivo total situa-se na média inferior para a sua faixa etária, evidenciando capacidades no plano lógico-abstracto, nomeadamente ao nível da generalização e pensamento categorial.~

É certo que consta ainda dos relatórios de exame pericial, que à data da prática dos factos, o arguido apresentava quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica, porém, tal quadro clínico, não interferiu com a capacidade do mesmo em avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação, não apresentando sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicópticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas.

O que, de certo modo, vem a ser evidenciado em todo o circunstancialismo no qual veio a suceder a morte. O estratagema arquitectado pelo arguido para provocar a saída da vítima da residência – o número de mensagens insistentemente enviadas nas duas horas que antecederam as agressões; o teor das mensagens, aludindo ao filho menor de ambos e criando a aparência de uma situação de necessidade daquele sabendo que o afecto da vítima por este acabaria por levar esta a sair da residência e permitir concretizar os seus intentos – demonstra a capacidade de reflexão do arguido. O arguido tinha conhecimento da afectividade da vítima para com o menor.

Demonstrativo da capacidade de reflexão do arguido é também a frieza de ânimo evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto. Como bem salienta a decisão recorrida, “ Da factualidade provada não decorre que o arguido se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, não só para o próprio como para o “agente normalmente fiel ao direito” (Acórdão do STJ, proferido no processo nº 08P1309, de 29.10.2008, acessível na base de dados da dgsi), que tenha, por algum momento, perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação.

Durante as agressões, a lâmina da faca partiu-se e nem essa circunstância fez o arguido perder a vontade. Manteve o discernimento e a capacidade de reflectir. A sua conduta cessa quando sente que a vítima deixou de reagir. Chegado esse momento, não perdeu a sua capacidade de tomar decisões. Afastou-se do corpo da vítima, “justificou” perante terceiros, a conduta adoptada, e dirigiu-se ao seu veículo, acabando por abandonar o local, conduzindo esse veículo.

A postura que antecedeu as agressões evidencia a capacidade reflexiva do arguido. Manteve-se no local cerca de duas horas. Cortou pneus do veículo da vítima impedindo-a de, no imediato, se ausentar do local. Durante esse período, não abandonou o seu intento. A factualidade provada demonstra, precisamente, que esse hiato temporal não teve o efeito de desmotivar o arguido na concretização do propósito que o levara até ali. Tanto mais que durante esse período, persistiu o envio de mensagens para MCS, com vista a conseguir o encontro com esta, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo.

De toda a sequência de factos, não está provado que o arguido tenha por algum momento perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação. Diferentemente, o que resulta da matéria de facto provada é que o arguido prosseguiu as agressões, sem perder o discernimento, a vontade, nem o poder de reflectir. Também não perdeu a sua capacidade de fazer opções, nem de tomar decisões, o que é evidenciado pela sua postura ao abandonar o local”.

Verifica-se que o tribunal a quo fez correcta ponderação das circunstâncias provadas e não provadas de que resultou a condenação do arguido, designadamente no que respeita à sua imputabilidade, impondo-se concluir que existe prova suficiente para se considerarem provados os factos 27 a 34 da matéria de facto, por resultarem essencialmente, da conjugação do teor dos relatórios relatório de fls. 605 a 609, datado de 3 de Fevereiro de 201; o relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663, conclusão do Senhor Professor RX e da conduta do arguido evidenciada em todo o circunstancialismo no qual veio a suceder a morte da ofendida, que demonstram a capacidade de reflexão do arguido, traduzida na frieza de ânimo evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto, pelo que não se verifica contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida, quanto a decisão recorrida dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade, como pretende o recorrente.

No que respeita ao estado alcoolizado do arguido, alega o recorrente que a fundamentação do tribunal a quo e a própria prova valorada carece de vício, porquanto, o tribunal a quo insiste em afirmar que o arguido não estava alcoolizado, justificando-se pelo depoimento das testemunhas e pelo período temporal entre o termo da hora de festejo do aniversário de AF e a hora em que os factos ocorreram, não tomando, porém, em conta o depoimento de uma testemunha essencial que teve contacto directo com o arguido após o decorrer dos factos para a descoberta da verdade material, designadamente o depoimento da testemunha EV que declarou que o arguido se encontrava perturbado e alcoolizado. Alega, ainda, por outro lado, que o tribunal fundamentou a sua convicção num período temporal de quatro horas mais que suficiente para permitir a suavização, senão a eliminação do estado alegre que o arguido apresentava, existindo contradição flagrante na respetiva fundamentação, porquanto, o tribunal começa por dizer que "No que concerne ao período entre as 6 horas e as 8 horas, nada resulta da prova produzida" e depois afinal já considera essas duas horas para efeitos de eliminação de prova do facto de o arguido se encontrar alcoolizado, não havendo prova de que o arguido não bebeu whisky nessas duas horas, ou mesmo que não tenha sido whisky, que o mesmo tenha continuado a beber, de forma a ficar profundamente alcoolizado.

Quanto a esta matéria, teve em consideração o tribunal a quo, para a formação da sua convicção, as declarações prestadas pela testemunha AF e MB, que estiveram como o arguido na noite do dia 13 para o dia 14 de Agosto.

A testemunha AF foi colega de trabalho do arguido, de Janeiro a Setembro de 2012, numa das lojas da Telepizza e festejou o seu aniversário no dia 14 de Agosto de 2013, que teve início na noite do dia 13 de Agosto, com a presença de o arguido. No dia 13 de Agosto de 2013, dirigiu-se à loja sita em Campo de Ourique, ao encontro de MB e do arguido, ou seja, encontrou-se com o arguido, na loja, ainda no dia 13 de Agosto, quarta-feira, correspondendo o seu dia de aniversário a quinta-feira, esclarecendo que chegou a hora tardia uma vez foi na loja que, cerca da meia-noite, lhe cantaram os parabéns. Dirigiram-se até ao Bairro Alto e, depois, deslocaram-se até Santos e cerca das 5horas/5 horas e 30 minutos do dia 14 de Agosto, o arguido deixou de acompanhar o grupo, esclarecendo a testemunha que acompanhou aquele e a testemunha MB até ao veículo deste que se encontrava estacionado no Bairro Alto, ao pé do Quartel dos Bombeiros. Inquirida sobre o estado do arguido e se o mesmo aparentava estar embriagado, a testemunha declarou que o arguido bebeu apenas imperiais e não mais do que quatro/cinco imperiais, estava “alegre, simplesmente”, esclarecendo que este, no seu dia-a-dia, é uma pessoa reservada e que, naquele dia, apresentava-se alegre e comunicativo com todos os elementos do grupo, o que justificou por ser o ambiente de festa então vivido e por estar na companhia de pessoas que conhecia.

A testemunha MB, colega de trabalho do arguido, também acompanhou o arguido e a testemunha AF, na noite de 13 de Agosto e madrugada de 14 de Agosto. Narrou ao tribunal o que sucedeu na noite de 13 para 14 de Agosto, em tudo conforme ao depoimento da testemunha AF. Relatou ao tribunal que cessado o seu trabalho cerca das 23 horas, deslocou-se com o arguido até à loja da Telepizza na qual se encontrava AF. Partiu dessa loja na companhia do arguido, de AF e de outros indivíduos e permaneceu na companhia do arguido até cerca das 4horas/5horas da madrugada, esclarecendo que quando se separaram, aquele encontrava-se embriagado “um pouco, talvez”, acrescentando “bêbado, não estava”. Nessa madrugada, cerca das 4horas/5horas, transportou o arguido até à Loja da Tellepizza, na zona da Expo onde este tinha o seu veículo estacionado, e observou o arguido a afastar-se do local, conduzindo o veículo, qualificando como “normal” a condução então efectuada pelo mesmo, não tendo constatado que este não apresentasse capacidade ou condições para conduzir.

O recorrente, para abalar a convicção do tribunal, contrapõe que o tribunal não levou em consideração o depoimento de uma testemunha essencial que teve contacto directo com o arguido após o decorrer dos factos para a descoberta da verdade material, designadamente o depoimento da testemunha EV, que declarou que o arguido se encontrava perturbado e alcoolizado.

Porém, a passagem enunciada, não corresponde exactamente ao depoimento desta testemunha. Na verdade, no espaço de tempo durante o qual a testemunha EV teve o arguido ao seu alcance, permitiu-lhe constatar que este lhe pareceu “perturbado” e alcoolizado.  Não declarou, como alega o recorrente, que o arguido se encontrava alcoolizado.

Ao contrário do que alega o recorrente, o tribunal a quo fundamentou devidamente a decisão sobre esta matéria, porquanto dos depoimentos atrás referidos é clara a prova produzida quanto ao estado do arguido, no momento em que cessou a festa. Nenhuma das testemunhas inquiridas que acompanharam o arguido consideraram que o mesmo estivesse ou aparentasse estar embriagado. Nenhuma das testemunhas inquiridas que conviveu com o arguido na noite de 13 de Agosto ate à madrugada do dia 14 de Agosto constatou qualquer comportamento anómalo ou que indiciasse estar perturbado, assumindo o depoimento da testemunha MB particular relevância quanto ao estado do arguido, uma vez que foi quem o transportou até à zona da Expo, local onde o mesmo tinha o seu veículo estacionado, esclarecendo a testemunha que observou o arguido a afastar-se do local, conduzindo o veículo, qualificando como “normal” a condução então efectuada pelo mesmo, não tendo constatado que este não apresentasse capacidade ou condições para conduzir.

Dá nota o tribunal que, embora em sede de primeiro interrogatório, o arguido tenha mencionado que estava “alucinado”, consequência da ingestão de whisky, nenhuma das testemunhas o viu ingerir qualquer outra bebida para além de cerveja/imperial e que entre a hora do termo do festejo do aniversário de AF (no máximo, 6 horas do dia 14 de Agosto, no máximo) e a hora dos factos decorreram cerca de quatro horas, tempo, mais que suficiente para permitir a suavização, senão a eliminação, do “estado alegre” que apresentava.

Daqui não decorre qualquer contradição quando o tribunal considera que "No que concerne ao período entre as 6 horas e as 8 horas, nada resulta da prova produzida".

É um facto da experiência comum que quatro horas se considera o tempo mais que suficiente para permitir a suavização, senão a eliminação, do “estado alegre” que o arguido apresentava, independentemente do que resultou, ou não provado, no período de entre as 6 horas e as 8 horas, sendo certo, isso sim, que não ficou provado, que o arguido bebeu whisky nessas duas horas, ou tenha continuado a beber de forma a ficar profundamente alcoolizado.

Além disso, e como bem salienta a decisão recorrida, caso estivesse alcoolizado, no estado “alucinado” como pretendeu fazer crer em audiência de julgamento, como teria discernimento para procurar a faca no interior do seu veículo, atenta a desarrumação do mesmo (tudo segundo a versão por si apresentada)?!.
                                        
Impõe-se concluir que existe prova suficiente para se considerarem provados os factos 62 e 70 da matéria de facto, por resultarem essencialmente, da conjugação do teor das declarações prestadas pelas testemunhas AF e MB, conforme, aliás, se alcança do acórdão recorrido, na fundamentação da matéria de facto quanto à formação da convicção do Tribunal.
Improcede o recurso nesta parte.  
*

6.-Quanto à violação do princípio da presunção de inocência consagrado no Art.° 32°, n.° 2 da CRP.

Entende o recorrente que, pelo facto de não ter prestado declarações em audiência, deve beneficiar do princípio de presunção de inocência.

Ora, a lei não atribui qualquer benefício ao arguido que se remete ao silêncio, apenas refere que tal circunstância não o pode prejudicar – arts 61º, 1, d), 141º, 4), a) e 5, 144º, 343º e 345º, C. P. Penal – o que redunda em conclusão substancialmente diversa da alegada. Na verdade, constatamos que o acórdão recorrido em nenhum momento alude ao silêncio do recorrente para o desfavorecer aquando da apreciação da prova, não bulindo tal silêncio quer com a aquisição da convicção probatória, quer com a decisão sobre a mesma, como acima ficou bem patente.

Daí não se mostrar violado o princípio da presunção de inocência, nem enxergamos qualquer nulidade do acórdão, até porque, consabidamente, as nulidades das decisões judiciais encontram-se taxativamente indicadas na lei processual e nela não logramos integrar o alegado pelo recorrente.

Também ultrapassa a nossa compreensão a alusão a uma pretensa inconstitucionalidade no que respeita à livre convicção do juiz, quando interpretada no sentido de: "Ao formar o livre convencimento, o juiz, não se encontra limitado ao livre convencimento ou persuasão racional, porquanto a livre convicção do juiz, pode ir ao ponto de desfavorecer o arguido (Art.°, 61°, n°l, alínea c) conjugado com o Art.° 343°, n°1, ambos do CPP), ferindo o princípio do in dúbio pro réu”, por tal interpretação, segundo o recorrente, violar ainda o art.° 6° da Convenção para a proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais com as modificações introduzidas pelo Protocolo n° 11 acompanhada do Protocolo adicional e dos Protocolos nos 4, 6, 7 e 13, e os artigos 32°, n.° 2 e 18.°, n.° 1, ambos da C.R.P, posto que aquela interpretação nada têm a ver com a formação, fundamentação e crítica da convicção do tribunal, sendo neste aspecto mais curial que o recorrente invocasse a violação dos arts. 127º ou 374º, C. P. Penal, o que não faz, nesta sede.

Relativamente à pretensa violação do princípio in dubio pro reo:
Para que o tribunal lance mão do princípio in dubio pro reo, ou seja, faça prevalecer, nesta vertente, o princípio da inocência do arguido – art. 32º, 2, C.R.P.  – torna-se necessário que o julgador se encontre em face de dúvidas irremovíveis, razoáveis, na apreciação e valoração das provas e na determinação dos factos provados, favorecendo o arguido, no sentido de não ter como provados os factos que lhe são imputados na acusação e que, a provarem-se, seriam fundamento para a aplicação de uma pena – cfr. Acs. RL, de 3-5-05, Proc. nº 6600/2004-5; de 15-2-09, Proc. nº 2777/2008-9; de 25-11-08, Proc. nº 8904/2008-5; e do STJ, de 25-3-09, Proc. nº 09P0486; de 30-4-08, Proc. nº 07P3331; e de 17-4-08, Proc. nº 08P823, in www.dgsi.pt.

Perante dúvidas manifestadas e não resolvidas, impõe-se decidir favoravelmente ao arguido. Não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.

Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).

Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto – neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), www.dgsi.pt/jstj
(…)
A concatenação de todos estes elementos permitiu concluir ao tribunal a quo, sem qualquer dúvida, que o arguido saiu com colegas e amigos, na noite de 13 de Agosto de 2013, tendo a festa terminado na madrugada do dia 14 de Agosto, cerca das 6 horas, momento a partir do qual deixou de estar acompanhado e, na manhã desse dia 14 de Agosto, foi procurar MCS, tendo levado consigo uma faca de cozinha (a faca utilizada para agredir MCS e deixada junto ao corpo, após desferidos os golpes). Para o efeito deslocou-se até à Rua …, local onde foi visualizado por testemunhas, durante as agressões e em momento posterior às agressões, por EV, e o intuito do arguido, nesse dia, de matar MCS decorre claramente do sucedido nos momentos que antecederam a saída desta da residência, em que o arguido cortou os pneus do veículo por forma a eliminar qualquer possibilidade da vítima sair daquele local e das mensagens insistentemente enviadas, criando a aparência de uma realidade, inexistente, de necessidade de cuidados médicos pelo filho menor de idade, sabendo que o afecto de MCS pelo filho iria determinar que a mesma fosse em auxílio deste e está bem evidenciado no número de agressões e das regiões corporais que procurou atingir; do circunstancialismo que rodeou a execução das agressões, nomeadamente na utilização da faca para prosseguir as agressões, mesmo após partida a lâmina e nas lesões provocadas nos membros superiores que espelham as tentativas de defesa de MCS, conforme dá nota a Senhora Perita no Relatório de Exame Pericial. Ainda revelador desse intuito é a circunstância de o arguido já ter na sua posse a faca de cozinha enquanto aguardava que MCS saísse do interior da residência de V.I..

E, como bem salienta a decisão recorrida, na fundamentação da matéria de facto, ainda que se aceitasse como plausível – o que não ocorre – que o arguido tinha a faca no interior do seu veículo desde as férias de Verão, qual a razão para, ao sair do veículo, no dia 14 de Agosto, vir munido dessa faca, tanto mais que pelo arguido foi referido que “o seu carro é uma desarrumação”, como forma de justificar a faca ter ficado “perdida” no interior do veículo, entre todos os demais objectos? E se assim fosse,  se não existisse o propósito de matar MCS, qual a razão, à luz das regras da experiência comum, para naquele momento, ir procurar a faca, na desarrumação em que se encontrava o veículo? Concluindo, por isso, não subsistirem dúvidas de que o arguido, ao deslocar-se até à residência de V.I., na procura de MCS, tinha como intuito matá-la. Nesse sentido, é esclarecedor o relatório de autópsia médico-legal, de fls. 510 e seguintes, onde consta que duas das lesões traumáticas torácicas condicionaram uma afectação grave do coração, considerando-se estas indiscutivelmente adequadas e necessárias para produzir o resultado morte.  

Como resulta da decisão recorrida, o tribunal não teve quaisquer dúvidas quanto à decisão sobre a matéria de facto e expôs, de forma cristalina e perfeitamente perceptível para quem a leia, as razões da sua firme convicção.

Nada há a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação dessa convicção.

O recorrente parece confundir aquilo que não deve ser confundido: a questão da convicção (e o grau exigível para ser tomada uma determinada decisão) e a suficiência da fundamentação dessa convicção.

Neste caso, foi sólida a convicção do tribunal, não o assaltou a dúvida quanto à actuação do recorrente que, ao desferir 19 facadas em diferentes regiões corporais, nomeadamente na região torácica, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida a MCS, o que quis, bem sabendo que as agressões nas regiões corporais atingidas eram aptas a atingir o resultado morte e bem sabendo ser proibida e punida por lei tal conduta.

7.-Quanto à invocada nulidade da sentença, por violação do disposto no art.° 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, em virtude de não proceder ao exame crítico das provas, como provado que o arguido é imputável, violando, assim, o disposto no artigo 127.° do CPP.

Alega o requerente que a fundamentação do decisão recorrida não foi suficiente para se perceber o percurso lógico e coerente que o tribunal efetuou, ou seja, qual a razão de ciência, pela qual valorou mais uns depoimentos, em detrimento de outros, que nem sequer menciona, como é do caso das testemunhas de defesa do arguido aqui requerente, verificando-se, assim, a nulidade, por violação do disposto no art.° 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, em virtude de não proceder ao exame crítico das provas, limitando-se o Tribunal a quo a efetuar meros juízos conclusivos e que apenas foram valoradas na medida e no interesse do tribunal a quo, considerando ser inconstitucional a norma do art.° 374.°, n.° 2, do CPP, por violação do art.° 205.° da CRP, quando interpretada no sentido de que "O Juiz não está obrigado a proceder ao exame crítico das provas podendo limitar-se a efetuar meros juízos conclusivos", e isto tudo porque, analisando criticamente a prova efetivamente produzida em audiência, não pode o tribunal dar como provado que o arguido é imputável. Para o recorrente, dos factos provados, resulta, pelo menos, uma inimputabilidade sensivelmente diminuída em razão de anomalia psíquica, uma vez que a imputabilidade diminuída prevista no n.° 2 do artigo 20.° do Código Penal tem como consequência, pela diminuição da culpa, uma atenuação da medida da pena.

Invoca o recorrente que o tribunal a quo não explica a concreta valoração das provas e em que medida as mesmas contribuíram para a prova dos factos, no sentido de que o arguido é imputável porque, para o recorrente, dos factos provados, resulta, pelo menos, uma inimputabilidade sensivelmente diminuída em razão de anomalia psíquica.

Mais uma vez, o recorrente não tem razão. Efectivamente, o tribunal recorrido, a propósito da motivação da matéria de facto, no que respeita à imputabilidade do recorrente, teve o cuidado de fundamentar a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, sendo determinante o relatório de fls. 605 a 609, datado de 3 de Fevereiro de 201; o relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663, do qual resulta que o rendimento intelectual cognitivo total situa-se na média inferior para a sua faixa etária não evidenciando indícios de deterioração mental; e o relatório de exame médico-legal, de fls. 778 e seguintes, do qual resulta que o arguido não apresenta sintomatologia psicóptica – depressão major; esquizofrénica ou outras perturbações psicóticas; perturbação bipolar ou perturbações de personalidade estruturadas.

Dispõem os arts. 374º, 2 e 379º, 1, a), C. P. P., que a sentença deve conter, sob pena de nulidade, uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal…. A fundamentação ou motivação deve ser tal que intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais a ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso (…). E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade… - Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pgs. 229, 230.

É necessário ainda que se expresse o modo como se alcançou essa convicção, descrevendo o processo racional seguido e objectivando a análise e ponderação criticamente comparativa das diversas provas produzidas, para que se siga e conheça a motivação que fundamentou a opção por um certo meio de prova em detrimento de outro, ou sobre o qual o peso que determinados meios tiveram no processo decisório”. E, mais adiante, “Essa é uma das funções da motivação: a explanação do percurso lógico do tribunal até chegar à decisão fáctica, para permitir ao conjunto dos cidadãos um controle externo e democrático sobre o exercício da justiça.
Atente-se ainda a este propósito no que se refere no Ac. STJ nº 83/03.1TALLE.E1.S1, de 7-4-2010, in www.dgsi.pt, “Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto e, também sobre a matéria de direito. Estamos assim perante a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão-de fundamentar a decisão. A mesma fundamentação implica um exame crítico da prova, no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido”.

Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.(…) A fundamentação ou motivação deve ser tal que intraprocessualmente permita aos sujeitos processuais a ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso (…). E extraprocessualmente a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade… - Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pgs. 229, 230.

Assim, o dever de exame crítico das provas traduz-se na indicação das razões que levaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num dado sentido, repelindo um e adoptando outro, porque é que certas provas são mais credíveis que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão – cfr. Acs. STJ, de 25-5-05, proc. nº 902/05-5ª, SASTJ, nº 91, pg. 52; de 12-7-05, proc. nº 2315/05-5ª, SASTJ, nº 93, pg. 116; e de 7-12-05, SASTJ, nº 96, pg. 67 -.

O exame crítico deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizado na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada – Ac. da Relação de Lisboa, de 18.01.2011, proc. n.º 1670/07.4TAFUN-A.L1-5.

Como se explicita no Ac. STJ de 27-04-2011, Proc. nº 7266/08.6TBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt., “o exame crítico das provas tem como finalidade impor que o julgador esclareça ”quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, para que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão  e não outra.
Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.
Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.
A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.
A discordância do recorrente no modo de valoração das provas, e no juízo resultante dessa mesma valoração, não traduz omissão de pronúncia ao não coincidir com a perspectiva do recorrente sobre o modo e consequência da valoração dessas mesmas provas, efectuada pelo tribunal competente para apreciá-las, pelo que não integra qualquer nulidade, desde que o tribunal se oriente na valoração das provas de harmonia com os critérios legais”.
Doutro modo, refere o Ac. STJ de 23-02-2011, Proc. nº 241/08.2 GAMTR.P1.S2, in www.dgsi.pt, “ a motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor. É evidente que o dever de fundamentação começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados”.

Assim, toda a prova produzida deve ser apreciada e ponderada, vg., entre as declarações do arguido, depoimentos das testemunhas, prova documental e pericial, tudo se impõe ser criticamente analisado e fundamentado, de forma racional, perceptível, coerente, conjugada, com recurso às regras da experiência. Não se exigindo, porém, do tribunal a apreciação individual de cada facto, mas sim uma motivação clara quanto aos meios de prova em que se fundou, quais afastou, o porquê, qual o seu raciocínio lógico.

Ora, volvendo ao caso em apreço, constatamos, tal como se consignou já no ponto 5 deste acórdão (ao tratar da impugnação da matéria de facto), que o tribunal a quo fez correcta ponderação das circunstâncias provadas e não provadas de que resultou a condenação do arguido, fundamentando devidamente a decisão no que respeita à sua imputabilidade, ao consignar que:
“Sobre a personalidade e capacidade de avaliar a ilicitude dos actos e de se determinar segundo essa avaliação, foi determinante o relatório de fls. 605 a 609, datado de 3 de Fevereiro de 201; o relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663, do qual resulta que o rendimento intelectual cognitivo total situa-se na média inferior para a sua faixa etária não evidenciando indícios de deterioração mental; e o relatório de exame médico-legal, de fls. 778 e seguintes, do qual resulta que o arguido não apresenta sintomatologia psicóptica – depressão major; esquizofrénica ou outras perturbações psicóticas; perturbação bipolar ou perturbações de personalidade estruturadas.
Concluiu o Senhor Professor RX que o arguido “possuía capacidade para avaliar o carácter proibitivo desses actos” e ao quesito 7, respondeu “o arguido é imputável, ainda que alguma atenuação da pena possa ser considerada tendo em atenção as limitações dos traços da sua personalidade e das suas capacidades cognitivas como se explana no relatório”.
Dos relatórios de exame pericial constantes dos autos resulta que o arguido apresenta imaturidade psicoafectiva, sensitividade, defensividade, dificuldades na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções, no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, baixa auto-estima e auto-confiança, bem como desejabilidade social, afectos ansiosos e depressivos.
Não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio da personalidade. 
O rendimento intelectual do arguido situa-se na média inferior para a sua faixa etária mas ainda dentro de os valores considerados normais – “topo inferior da zona normal” -, não evidenciando indícios de deterioração mental. Apresenta fraco investimento sociocultural e escolar, fraca capacidade reflexiva e propensão para agir, constando do relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663 que o rendimento intelectual cognitivo total situa-se na média inferior para a sua faixa etária, evidenciando capacidades no plano lógico-abstracto, nomeadamente ao nível da generalização e pensamento categorial.
Consta ainda dos relatórios de exame pericial que à data da prática dos factos, o arguido apresentava quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica que não interferiu com a capacidade do mesmo em avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação. Não apresenta sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicópticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas.
Não pode o tribunal deixar de analisar todo o circunstancialismo no qual veio a suceder a morte. O estratagema arquitectado pelo arguido para provocar a saída da vítima da residência – contactos sucessivos, através de telemóvel e o assunto focado nesses contactos – demonstra a capacidade de reflexão do arguido. O arguido tinha conhecimento da afectividade da vítima para com o menor MMLS. Sabia que ao invocar um problema relacionado com o menor, a vítima iria sair de casa para o socorrer. Esse foi o motivo invocado nos contactos por telemóvel.
A capacidade reflexiva do arguido permitiu ainda eliminar as hipóteses de a vítima sair do seu alcance. Assim, não se limitou a provocar a saída da vítima da sua residência. Eliminou a possibilidade da vítima de utilizar o seu veículo.
Demonstrativo da capacidade de reflexão do arguido é também a circunstância de o arguido já estar munido do instrumento cortante enquanto aguarda que a vítima surja no exterior.
Demonstrativo da capacidade de reflexão da vítima são as palavras proferidas pelo arguido logo após a prática dos factos, ao cruzar-se com terceiros e que evidenciam a consciência que tinha sobre a  conduta. Tanto assim é que procurou justificar a sua conduta e, ao mesmo tempo, criar em terceiros, o receio, por forma a garantir que não corria o risco de perder a sua liberdade.
Todo este circunstancialismo evidencia a capacidade de reflexão do arguido e que contraria o estado alegado pelo mesmo, em sede de Contestação.
Uma breve referência às cartas juntas aos autos. Embora pelo Ilustre Mandatário do arguido tivesse sido posta em causa a autoria das cartas juntas aos autos e dirigidas ao menor MMLS, decorre do depoimento da testemunha SS – irmã do arguido - que aquele enviava para a sua residência as cartas que redigia destinadas ao menor, sendo a testemunha que, em momento posterior, as fazia chegar a este. Esclareceu que algumas dessas cartas ainda estão em seu poder. Da análise do conteúdo dessas cartas, não se pode extrair qualquer diminuição na capacidade de reflexão, de avaliação ou de determinação de harmonia com a avaliação efectuada. Pelo contrário, do teor das cartas, resulta, de forma evidente, a capacidade reflexiva do arguido, a consciência dos efeitos colaterais do seu acto e o esforço que está disposto a desenvolver para recuperar o afecto do menor”.

Conclui-se, assim, que o exame crítico das provas realizado pelo tribunal a quo, observou os critérios de razoabilidade e suficiência, claramente aferíveis, permitindo uma avaliação cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, pelo que não se enxerga a nulidade em apreço.
Não se observa, pois a nulidade dos arts. 374º2 e 379º, 1, a), C. P. P.
Deve, assim, o presente recurso improceder, também nesta parte.

8.-Impugnação da matéria de direito

Impugna o recorrente a matéria de Direito por entender que:
-deveria, ser absolvido pelo crime de coacção p. e p. pelo art. 154, n.°1 e 155.°, n.°1 alínea a), ambos do C.P, por falta de preenchimento objectivo e subjectivo de tal crime;
-deveria proceder-se a diversa qualificação jurídica do Crime de Homicídio Qualificado, entendendo o recorrente que, face à imputabilidade diminuída do arguido, impõe-se uma qualificação diversa dos factos praticados subsumindo-os à previsão do artigo 133.° do Código Penal  — Homícidio Privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.
*

Quanto ao crime de coacção, alega o recorrente que o tribunal a quo fundamenta a sua decisão no facto de "EV correu atrás do arguido, agarrou-o, e este virou para o primeiro e disse-lhe "larga-me que eu tenho uma pistola comigo e se não me largares eu faço uso dela". Em consequência e com medo, EV largou o arguido. Ora, nos termos do n.°1 do artigo 154.° do CP, "quem por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar a uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (...)". A coacção é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade, consubstanciando-se, como diz a lei, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim, sendo que, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação e a violência constitui o acto de força, físico ou psíquico, que leva alguém a actuar de determinada maneira. 

Para o recorrente, não se consegue perceber o preencimento objectivo e subjectivo de tal crime, porquanto, não foi mostrada nenhuma pistola pelo arguido de forma a prejudicar a liberdade de determinação no ofendido, muito menos, um sentimento de insegurança no ofendido, porque, após ter largado o arguido, o mesmo foi atrás do recorrente dizendo-lhe que ia tomar nota da matrícula e dar conhecimento às autoridades policiais quando chegassem ao local, querendo com isto dizer, que as simples palavras proferidas pelo arguido, sem haver qualquer contacto físico ou um meio idóneo (neste caso, a apresentação da pistola no acto), não constituem um molde capaz de ser concretizado. E, não constitui sequer uma ameaça de forma a prejudicar a liberdade de determinação e um sentimento de insegurança no ofendido, porque o mesmo não teve nenhum receio de continuar a seguir o arguido e de informá-lo de que iria denunciá-lo às autoridades, facultando a matrícula do veículo do recorrente. Conclui, assim, que o arguido deveria ser absolvido pelo crime de coacção p. e p. pelo art. 154, n.°1 e 155.°, n.°1 alínea a), ambos do C.P..

Vejamos:

Comete o crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154º, nº1, do Código Penal que “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (…) ”.

Da leitura de tal preceito, logo se alcança que o que se pretende proteger com tal normativo é o direito individual de liberdade de acção, de resto constitucionalmente consagrado.

Veja-se o Acórdão RE, de 96.01.30, CJ (A.P.C.), 1996, I, pág. 285, onde se lê que «I - No crime de coacção o interesse protegido é a livre determinação da vontade e da livre expressão da mesma, por parte do ofendido, sendo que a violência em que se consubstancia tanto pode ser física como moral (ou intimidação). II - A inidoneidade do meio ou a carência de objecto (salvo quando manifestas) não constituem obstáculo à incriminação

Veja-se, ainda, o Acórdão do S.T.J., de 17-4-1990 (p. 41 610), B.M.J., 396, 222, onde se lê que «I - Pressuposto do crime de coacção simples ou agravada (artigos 156º e 157º do Código Penal) é a perda da liberdade de determinação, o constrangimento em consequência de violências ilegítimas físicas ou morais levando o sujeito a praticar um acto que não deseja ou a não fazer algo que se deseja fazer, ou a ter de suportar, contra vontade uma actividade alheia afectando a livre determinação do indivíduo, protegida constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um - artigo 24º, nº 1 da Constituição da República. II - O crime de coacção consuma-se no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer relevando a permanência do constrangimento não para a consumação mas para a determinação do ilícito.»

A coacção é, pois, a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade.

Consubstancia-se, como diz a lei, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim.

Sendo que, constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação.

E a violência constitui o acto de força, físico ou psíquico, que leva alguém a actuar de determinada maneira.

No entanto, como aferir se o acto é ou não susceptível de desencadear o efeito pretendido no ameaçado?

Refere Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricence do Código Penal, parte especial, tomo I, pag.358 que “o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (...) do ameaçado(...)”.
O mesmo autor, refere igualmente (pag.359) que “a consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida. Se o objecto da coacção foi a prática de uma acção, a coacção consuma-se quando o coagido iniciar esta acção. Se o objecto da coacção for a omissão ou a tolerância de uma determinada acção, a coacção consuma-se no momento em que o coagido é, por causa da violência ou da ameaça, impedido de agir ou reagir”.

Constitui circunstância qualificativa quando os factos previstos no artigo 154º, nº1, forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos.

Da factualidade dada como provada resultam preenchidos todos os elementos constitutivos do crime previsto e punido pelos artigos 154º, nº1, e 155º, nº1, alínea a), do C.P., por referência ao artigo 131º do Código Penal, descritos na decisão recorrida, porquanto, EV correu atrás do arguido, agarrou-o, e este virou para o primeiro e disse-lhe "larga-me porque eu tenho uma pistola comigo e se não me largares eu faço uso dela ". Em sequência e com medo, EV largou o arguido.

Alega o recorrente que não se encontra preenchido o elemento objectivo de tal crime, porquanto, não foi mostrada nenhuma pistola pelo arguido de forma a prejudicar a liberdade de determinação no ofendido, muito menos, um sentimento de insegurança no ofendido, porque, após ter largado o arguido, o mesmo foi atrás do recorrente dizendo-lhe que ia tomar nota da matrícula e dar conhecimento às autoridades policiais quando chegassem ao local, querendo com isto dizer, que as simples palavras proferidas pelo arguido, sem haver qualquer contacto físico ou um meio idóneo (neste caso, a apresentação da pistola no acto), não constituem um molde capaz de ser concretizado.

Porém, apesar de não ter sido mostrada qualquer arma pelo arguido, o fato de impositivamente ordenar que o largasse porque tinha uma pistola consigo e se não o largasse, faria uso dela, causou à vítima temor e amedrontamento característicos da grave ameaça, sendo tal acto susceptível de criar um sentimento de insegurança, no ofendido, que levou o mesmo, de imediato, a libertar o arguido, sendo certo que o arguido sabia que ao dizer ao EV que tinha uma arma e que se este não o largasse atentaria contra a vida do mesmo, tal circunstância era de molde a que o mesmo receasse que o propósito anunciado pudesse ser concretizado, fazendo-lhe crer que estava disposto a atentar contra a sua vida,  o que foi levado a cabo com o intuito de causar medo e de prejudicar a liberdade de determinação, criando um sentimento de insegurança, no ofendido, tendo o mesmo, de imediato, libertado o arguido.

A ameaça que recaiu sobre EV foi contra sua vida, tendo sido essa ameaça contra a sua vida, mediante a utilização de uma arma, que justificadamente o fez recear.

Encontram-se, assim, preenchidos os elementos do tipo, objectivo e subjectivo, do ilícito previsto e punido pelos artigos 154º, nº1, e 155º, nº1, alínea a), do C.P., por referência ao artigo 131º do Código Penal, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
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Quanto à diversa qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado, para o crime de homicídio privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.

O recorrente não concorda com a condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado, porquanto, o estado do arguido configura, pelo menos, uma imputabilidade diminuída prevista no n.° 2 do artigo 20.° do CP. O tribunal a quo conclui que o arguido é penalmente imputável, contudo, dá como provado os seguintes factos:
-O arguido apresenta imaturidade psicoafectiva, sensitividade, defensividade, dificuldades na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções, no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, baixa auto-estima e auto-confiança, bem como desejabilidade social, afectos ansiosos e depressivos;
-O rendimento intelectual do arguido situa-se na média inferior para a sua faixa etária mas ainda dentro de os valores considerados normais –  "topo inferior da zona normal -, não evidenciando indícios de deteriorição mental. Apresenta fraco investimento sociocultural e escolar, fraca capacidade reflexiva e propensão para agir;
-À data da prática dos factos, o arguido apresentava quadro clínico compatível com o diagnóstico nosológico de perturbação distímica que não interferiu com a capacidade do mesmo em avaliar a ilicitude dos factos supra descritos e de se determinar de acordo com essa avaliação;
-O arguido apresenta dificuldade na gestão dos afectos e impulsividade e fraca capacidade de lidar com a frustração;
-O rendimento intelectual geral situa-se no ponto inferior da zona normal (normal fraco/baixa), sem discrepâncias relevantes entre o nível verbal e o de execução".

Ora, para o recorrente, tais factos configuram, pelo menos, uma imputabilidade diminuída, o que, só por si, impõe uma qualificação diversa dos factos praticados pelo arguido, nomeadamente o disposto no artigo 133.° do CP — Homícidio Privilegiado e, o próprio tribunal a quo refere que o arguido agiu movido por ciúmes e que o mesmo desconfiava que a vítima tinha uma relação extra-conjugal, resultando amplamente demonstrado nos presentes autos que o arguido se encontrava, no momento da consumação do facto num estado psicológico que não corresponde ao seu estado normal e que afectou a sua vontade, a sua inteligência e diminuiu as suas resistências éticas e a sua capacidade para se conformar com o direito. Nestes termos, a emoção de traição e ciúme sentido pelo arguido e que o levou para a consumação do acto criminoso é naturalmente uma emoção violenta para efeitos no artigo 133.° do CP. E, além de violenta, a emoção tem, pois, de ser compreensível. Para tanto, alega o recorrente que o arguido encontrava-se no seio de um quadro de imensos conflitos emocionais, vivendo na incerteza de traição da vítima, tudo exponenciado pela chocante certeza naquela manhã que MCS mantinha uma relação extra-conjugal, uma vez que esta saira da residência do actual companheiro, sendo o sentimento de perda e todas as dificuldades de gerir estes estados de afecto, que provocou ao arguido uma verdadeira explosão emocional que lhe roubou por completo o discernimento e o auto-domínio sob si próprio. Por tudo isto, pretende o recorrente que a sua culpa seja atenuada, não apenas em função da situação objectiva que viveu, mas principalmente em função do real estado emocional em que se encontrava.

Para o recorrente, o crime perpetrado pelo arguido foi-o, efectivamente, no âmbito de emoção violenta compreensível que atenua sensivelmente a sua culpa. E, no caso em concreto, de forma alguma poderia o tribunal a quo ter-se recusado a admitir a verificação de uma dúvida razoável sobre a existência de um estado de afecto que diminua sensivelmente a culpa, bem como a imputabilidade diminuída do arguido devidamente demostrado nos autos e a exigibilidade que sobre si impedia de se conformar com um comportamento fiel ao direito. Para o recorrente, a existência, pelo menos, de uma dúvida quando a esse respeito é inegável, porquanto nele, efectivamente, se mostram verificados, pelo menos, fortíssimos indícios dos requisitos do artigo 133.° do CP, devendo, assim, beneficiar da aplicação do princípio "in dúbio pró reo", mostrando-se mais que suficiente para afastar a aplicação do homicídio qualificado, do qual o arguido foi condenado. E ainda que não se entenda a aplicação do regime previsto no artigo 133.° do CP, nunca o tribunal a quo poderia ter condenado o arguido pelos termos previstos no n.° 1 do artigo 132.° do CP pois, demonstrada a imputabilidade diminuída do arguido, sempre se afastará a censurabilidade e a perversidade do crime.

Conclui, assim, que deverá proceder-se a uma alteração da qualificação jurídica atribuída aos factos em discussão, subsumindo-os à previsão do artigo 133.° do Código Penal e, nesse sentido, condenando-se o arguido não num crime de homicídio qualificado, mas num crime de homicídio privilegiado ou, no limite, num crime de homicídio simples.
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Quanto à pretendida imputabilidade diminuída, como acima se consignou (paginas 82 a 86, do ponto 5 deste acórdão, ao tratar da impugnação da matéria de facto), o tribunal a quo, fez correcta ponderação das circunstâncias provadas e não provadas de que resultou a condenação do arguido, designadamente no que respeita à sua imputabilidade, ao concluir que existe prova suficiente para se considerarem provados os factos 27 a 34 da matéria de facto, por resultarem essencialmente, da conjugação do teor dos relatórios relatório de fls. 605 a 609, datado de 3 de Fevereiro de 201; o relatório médico de avaliação psicológica de fls. 660 a 663, conclusão do Senhor Professor RXe da conduta do arguido evidenciada em todo o circunstancialismo no qual veio a suceder a morte da ofendida, que demonstram a capacidade de reflexão do arguido, traduzida na frieza de ânimo evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto, não se verificando, assim, qualquer contradição insanável e erro notório na valoração da prova produzida, quanto a decisão recorrida dá como provado que o arguido não sofre de qualquer anomalia psíquica ou distúrbio de personalidade, como pretende o recorrente, encontrando-se a decisão devidamente fundamentada no que respeita à sua imputabilidade do arguido, conforme se demonstra a paginas 101 a 103 do presente acórdão, no ponto 7. da parte referente à invocada nulidade da sentença, por violação do disposto no art.° 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal.

Consta da factualidade provada que o arguido não apresenta sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicópticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas e, à data dos factos, não padecia de doença mental e possuía capacidade para avaliar o carácter proibido dos seus actos ou para se determinar de acordo com essa avaliação, capacidade que mantém no presente, sendo certo que o rendimento intelectual do arguido se situa na média inferior para a sua faixa etária. No entanto, e conforme resultou da factualidade provada – assente no relatório de exame  pericial -, o seu rendimento integra-se ainda dentro de os valores considerados normais – “topo inferior da zona normal – ,não evidenciando indícios de deterioração mental, dispondo de capacidade para avaliar ilicitude de determinada conduta e de se determinar segundo essa avaliação.

Assim sendo, decai desde logo a pretensão do recorrente quando alega que, configurando os factos, pelo menos, uma imputabilidade diminuída, só por si, impõe uma qualificação diversa dos factos, nomeadamente o disposto no artigo 133.° do CP — Homícidio Privilegiado.

Mais defende o recorrente, que a conduta do arguido, ainda assim será subsumível ao crime de homicídio privilegiado, estatuído no artigo 133º do Código Penal, porque o crime perpetrado pelo arguido o foi, efectivamente, no âmbito de emoção violenta compreensível que atenua sensivelmente a sua culpa.

Porém, a conduta do arguido é insubsumível ao crime de homicídio estatuído no artigo 133º do Código Penal, porquanto, a matéria de facto provada não alicerça, de forma alguma, o homicídio privilegiado definido neste artigo. O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui o denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no artº133º do Código Penal – compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral –, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente.

Como bem entendeu a decisão recorrida, nos autos, não se provou que o arguido tivesse actuado dominado pelo pânico, fosse levado a matar por motivação que pudesse consubstanciar a cláusula de compreensível emoção violenta, que o desespero fosse a causa do seu comportamento, que se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, ou que o receio de concretização de alguma ameaça tivesse por efeito diminuir de forma sensível a culpa. Em suma que o seu estado de espírito estivesse de tal modo alterado ou obnubilado que se pudesse entender que naquelas condições seria plausível e aceitável, agir do modo como agiu, não se podendo então medir a exigibilidade de outro comportamento tendo em conta padrões de normalidade, mas num plano menor, de exigibilidade diminuída.

Da factualidade provada não decorre que o arguido se encontrasse numa situação absolutamente intolerável, não só para o próprio como para o “agente normalmente fiel ao direito” (Acórdão do STJ, proferido no processo nº 08P1309, de 29.10.2008, acessível na base de dados da dgsi), que tenha, por algum momento, perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse  afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação.

Durante as agressões, a lâmina da faca partiu-se e nem essa circunstância fez o arguido perder a vontade. Manteve o discernimento e a capacidade de reflectir. A sua conduta cessa quando sente que a vítima deixou de reagir. Chegado esse momento, não perdeu a sua capacidade de tomar decisões. Afastou-se do corpo da vítima, “justificou” perante terceiros, a conduta adoptada, e dirigiu-se ao seu veículo, acabando por abandonar o local, conduzindo esse veículo.

A postura que antecedeu as agressões evidencia a capacidade reflexiva do arguido. Manteve-se no local cerca de duas horas. Cortou pneus do veículo da vítima impedindo-a de, no imediato, se ausentar do local. Durante esse período, não abandonou o seu intento. A factualidade provada demonstra, precisamente, que esse hiato temporal não teve o efeito de desmotivar o arguido na concretização do propósito que o levara até ali. Tanto mais que durante esse período, persistiu o envio de mensagens para MCS, com vista a conseguir o encontro com esta, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo.

De toda a sequência de factos, não está provado que o arguido tenha por algum momento perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afectado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus actos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação. Diferentemente, o que resulta da matéria de facto provada é que o arguido prosseguiu as agressões, sem perder o discernimento, a vontade, nem o poder de reflectir. Também não perdeu a sua capacidade de fazer opções, nem de tomar decisões, o que é evidenciado pela sua postura ao abandonar o local.

Por outro lado, e tal como é salientado na decisão recorrida, o acto foi perpetrado a sangue frio, sem qualquer discussão ou acto da ofendida que o desencadeasse, com eliminação da possibilidade desta abandonar o local. A violência das agressões está espelhada no número de golpes e nas regiões corporais escolhidas para efectivar as agressões. As lesões que a vítima apresenta nos membros superiores demonstram bem a posição de subordinação em que se encontrava, sem possibilidade de recorrer a qualquer outro meio para se defender que não os próprios braços. A frieza de ânimo está evidenciada no método empregue, no procedimento utilizado, na irrelevância das consequências derivadas do seu acto. A firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada reveladora da forte intensidade da vontade criminosa é também denunciada e denuncia a frieza de ânimo do procedimento do arguido quando cessa as agressões, no momento em que se apercebe que a vítima já não reage. Ao abandonar o local, justifica a sua conduta para com o indivíduo com o qual se cruzou.

Nesta conformidade, concluímos que a matéria de facto provada não alicerça, de forma alguma, o homicídio privilegiado definido no artigo 133º do Código Penal, e nenhuma dúvida subsiste sobre a verificação das circunstâncias do art.° 132° do CPenal, sendo certo, ainda, que a motivação da conduta do arguido não encerra em si, circunstâncias que revelem uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, ou ainda uma acentuada diminuição da necessidade da pena.
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9.-Quanto à medida da pena.

Discorda o recorrente da medida concreta da pena, por esta extravasar largamente a medida da culpa, bem como as particulares exigências de prevenção especial e, mesmo, geral – violando, por isso, o disposto nos arts. 40.° n.° 1 e 2 e 70. ° n.° 1, ambos do CP. – porquanto, não só o arguido agiu num estado de exigibilidade diminuída, como actuou num quadro de uma solicitação de uma situação exterior que diminuiu gravemente a culpa, pelo que a pena de vinte e um anos, mais a mais num arguido primário neste, ou em qualquer outro, tipo de crimes, se afigura como manifestamente exagerada. A conduta do arguido anterior e posterior à prática dos factos é imaculada, assim como o foi também a sua conduta processual, cumprindo pontual e escrupulosamente os seus deveres, incumbindo ao tribunal recorrido não se limitar a ignorar a ausência de antecedentes criminais e as características humanas supra elencadas, mas antes a valorá-las positivamente, encontrando, na determinação da pena unitária a aplicar ao recorrente um ponto de equilíbrio entre as exigências de prevenção, a gravidade dos factos e a personalidade do agente.

No que se refere a esta matéria, remetemos, antes de mais, para o que acima se referiu quanto a não se verificar a imputabilidade diminuída do arguido e o que se afirmou relativamente à motivação da conduta do arguido que não demonstra qualquer circunstância que revele uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, ou ainda uma acentuada diminuição da necessidade da pena.

No que tange à dosimetria concreta da pena nos termos do art.º 71º, n.ºs 1 e 2 do C. Penal, posta em causa pelo recorrente, importa referir que a respectiva medida concreta deve ser determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerada a finalidade das penas indicada no art.º 40º, n.º 1 do C. Penal e atendendo, ainda, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a favor do arguido ou contra ele, designadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita (cfr. Art.º 71º, n.ºs 1 e 2 do predito diploma de direito substantivo penal).

No entanto, a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, sendo certo que a sua individualização pressupõe uma proporcionalidade entre a pena e a culpabilidade.

Por isso, não esquecendo as exigências de prevenção e reprovação do crime, a execução da pena deve manter-se num sentido pedagógico e ressocializador, não podendo a mesma, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (cfr. Art.º 40º, n.º 2 do C. Penal).

É, pois, a culpabilidade que irá não só fundamentar como limitar a pena.

Esta, na verdade, será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade, não podendo, igualmente, excedê-la.

Mas, para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas, de protecção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade.

A pena deverá, assim, desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem dedicar-se à prática delituosa, por uma parte e, ressocializar o delinquente, por outra.

Ora, nesta conformidade, revela-se inequívoco que o acórdão recorrido teve em devida conta o que acaba de se enunciar.

Atendeu-se ao grau elevado de ilicitude dos factos, traduzido no modo de execução e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente: o arguido desferiu sucessivamente 19 facadas em diversas regiões corporais, nomeadamente nos membros superiores com os com os quais a vítima se pretendia proteger, golpes que provocaram múltiplas lesões; a escolha do tórax (cinco lesões referenciadas como soluções de continuidade de bordos infiltrados, rectos e nítidos, entre os 15 e os 19 milímetros de comprimentos, seguidas de trajecto penetrante na cavidade torácica) como uma das zonas corporais escolhidas para objecto da agressão.

A intensidade das agressões e a sucessão das mesmas revelam uma gravidade de grau elevadíssimo, sendo de acentuar também a crueldade ínsita na utilização de uma faca como instrumento do crime, mesmo após partida a lâmina, provocando necessariamente intenso sofrimento na vítima; a manifesta superioridade de meios com que agiu em relação à vítima, sem hipótese de defesa; as consequências que da conduta advieram, mormente os efeitos colaterais e que se prendem com a privação de o filho, menor de idade, da sua mãe e ver coarctada a possibilidade de beneficiar da protecção dos progenitores. O que não pode deixar de patentear uma especial censurabilidade.

Além do mais, inexistem dúvidas de que o dolo foi directo e adequado à dinâmica delituosa.

Impõe-se, também, considerar as prementes necessidades de prevenção geral, uma vez que a prática de crime de homicídio atenta directamente contra o bem vida, uniformemente, considerado como valor nuclear da vida em sociedade e o respeito pelo mesmo uma condição essencial da relação entre cidadãos. Se a finalidade do Direito Penal é a protecção de bens jurídicos, a Vida é o primeiro dos valores a ser tutelado e protegido.
 
Nesta perspectiva, torna-se forçoso, desde já, salientar os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma desrespeitada, pela frequência e intensidade com que estão a ser conhecidas violações dos bens jurídicos em causa, crescendo exponencialmente a prática do homicídio em todo o país, denotando a banalização do respeito pela vida humana, tornando a necessidade de pena, actualizada e adequada ao valor supremo bem jurídico protegido suprimido, irrepetível, e o mais valioso na pirâmide dos direitos fundamentais. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando as restantes finalidades da punição.

Por último, quanto às necessidades de prevenção especial não existe notícia do arguido ter praticado quaisquer ilícitos, sendo esta, é certo, a normalidade. O arguido tem 37 anos de idade. Avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana - evidenciada na violência da sua conduta, bem como no comportamento adoptado perante terceiros, no momento em que abandona o local, logo após a prática dos factos -, bem como pelos efeitos colaterais da sua conduta, o que induz especiais exigências em sede de prevenção especial. Acresce a tudo isto as dificuldades que o arguido apresenta na elaboração, gestão, expressão dos actos e emoções e no controlo dos impulsos, nas relações interpessoais e socialização, não se abstendo de utilizar o próprio filho como engodo para concretizar os seus intentos.

Assim, perante o que acaba de se expender, a total improcedência do recurso é mais do que evidente, já que as penas parcelares e unitária aplicadas ao recorrente pelo tribunal a quo, determinadas em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, em estrita obediência ao preceituado no art.º 71º do C.Penal, se mostram justas e equilibradas.  
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10.-Quanto ao pedido de indemnização civil.

Relativamente ao pedido de indemnização civil em que o arguido/demandado foi condenado, alega o recorrente que o mesmo se encontra desenquadrado da culpa do agente, pretendendo que sejam analisadas as indemnizações em que o demandado foi condenado, de acordo com a sua culpa e apenas esta.

Atenta a matéria de facto dada como provada, encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil prevista no CC, designadamente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela ofendida.

Consagra o art. 496°, n° 1 do C. Civil a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

O legislador deixa ao tribunal a tarefa de, por um lado, aferir o que é a gravidade merecedora da tutela jurídica e, por outro, em caso de verificação desse merecimento, determinar o valor adequado a ressarcir o dano, valor que será necessariamente influenciado pela extensão da respectiva gravidade.

A medição da gravidade do dano há-de ser feita com a ponderação das circunstâncias do caso concreto, à luz de critérios objectivos e não com base em padrões subjectivos e será apreciada em função da tutela do direito - isto é, o dano deve revelar tal gravidade que justifique a atribuição de uma satisfação de natureza pecuniária ao lesado - Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral, 8ª edição, vol. I, pág. 617.

Para afixação do montante indemnizatório, manda a lei (n° 3 do art.º 496º C. Civil) que se usem juízos de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494 °, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre aí quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, não devendo esquecer-se ainda, para evitar soluções demasiadamente marcadas pelo subjectivismo, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, ou as flutuações do valor da moeda (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Maio de 1993, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, 1993, torno II, págs. 130 e segs. e cfr. também os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Outubro de 1979, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 113, pag. 91 e de 18 de Março de 1997, na Colectânea de Jurisprudência, ano V, tomo I, 1997,pag. 163 e segts. e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª edição, pag. 629.

Deverá ter-se ainda presente, como vem afirmando a nossa jurisprudência, de forma constante, que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica, devendo antes ser de montante que viabilize o fim a que se destina – atenuar a dor sofrida pelo lesado. Na verdade, a jurisprudência do Supremo Tribunal em matéria de danos não patrimoniais tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. Como se decidiu no Supremo Tribunal de Justiça, a compensação por danos não patrimoniais, para responder actualizadamente ao comando do artigo 496º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura a suportar - cfr. acórdão de 28 de Maio de 1998, revista n.º 337/98.

Resulta do exposto que o juiz, para a decisão a proferir no que respeita a valoração pecuniária dos danos não patrimoniais, em cumprimento da prescrição legal que o manda julgar de harmonia com a equidade, deverá atender aos factores expressamente referidos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que emergem da factualidade provada. Tudo com o objectivo de, após a adequada ponderação, poder concluir a respeito do valor pecuniário que considere justo para, no caso concreto, compensar o lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu.

Assim se compreende que a actividade do juiz no domínio do julgamento à luz da equidade, não obstante se veja enformada por uma importante componente subjectiva, não se reconduza ao puro arbítrio.

Em face da factualidade provada, merecem tutela os danos não patrimoniais invocados, mormente o dano morte; as dores sofridas pela vítima durante o hiato temporal em que foram cometidas as agressões até à verificação do seu óbito; o desgosto pela privação infligida ao menor.

Tendo presente o quadro fáctico descrito, considerando os parâmetros e critérios-referidos, particularmente a situação económica do lesante e da vítima e de acordo com os critérios a que se reporta o artigo 496º,  n.º 1, do C.C., bem como as circunstâncias referidas no nº 3 do citado artigo, tudo aponta para que se tenha como adequado o valor da quantia de €80.000,00 (oitenta mil euros) para ressarcir o dano morte (artigo 566º, nº2, do C. Civil), o montante de € 20.000,00 (vinte mil euros) para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela vítima e o montante global de €50.000,00 (cinquenta mil euros) relativamente aos danos não patrimoniais sofridos pelo menor, titular do direito à indemnização prevista no nº 2 do artº 496º do Código Civil.
Improcede, também nesta parte, a pretensão do recorrente.

11.Em face do exposto, acordam os Juízes da ...ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UCs.


                                                                                                         
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2017



Cid Geraldo
Ana Sebastião

Decisão Texto Integral: