Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1342/22.0T8CSC.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. A cumulação de pedidos não é admissível se a cada pedido corresponder forma de processo diferente, a não ser que a respetiva tramitação não seja manifestamente incompatível, caso em que o juiz poderá autorizar a cumulação sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. Nesse caso caberá ao juiz adaptar o processado à cumulação autorizada.
II. É admissível que os comproprietários discutam na ação de divisão de coisa comum os créditos que para eles emerjam do pagamento além da respetiva quota parte de despesas como a liquidação de empréstimos contraídos para aquisição da coisa comum, em especial se um dos comproprietários pretender compensar o seu alegado crédito com o crédito de tornas que advenha ao outro ou outros comproprietários em virtude da adjudicação do bem comum ao credor ativo.
III. Do acima exposto resulta que deve ser admitida, em ação de divisão de coisa comum, a cumulação do pedido de cessação da indivisão de bem imóvel titulado em compropriedade com o pedido de reconhecimento de crédito alegadamente emergente da liquidação do empréstimo contraído para a aquisição do imóvel a fim de esse crédito ser compensado com o crédito de tornas que da divisão advenha para o outro comproprietário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 18.4.2022 CA instaurou no Juízo Local Cível de Cascais ação especial de divisão de coisa comum contra JO.
A A. alegou, em síntese, que ela e o R. são comproprietários de uma fração autónoma para habitação situada num edifício localizado em Cascais, que identificou. A quota parte da A. chegou à sua titularidade por herança da mãe da A., que havia adquirido o imóvel na pendência do seu casamento com o R., pai da A., de quem a mãe da A. se havia divorciado, sem que os ex-cônjuges tivessem feito partilhas. A A. pretende pôr termo à indivisão, sendo certo que o prédio não é divisível. O prédio foi adquirido com recurso a um empréstimo bancário cujos encargos foram integralmente suportados pela mãe da ora A. e, depois, pela avó da A. em representação desta, sendo certo que a avó da A. também já faleceu. Tais factos geram na esfera jurídica da A. um direito a ser ressarcida em ½ das aludidas despesas.
A A. terminou pedindo que a ação fosse julgada procedente por provada, sendo decretada a divisão de coisa comum, fixando-se as quotas de cada uma das partes e adjudicando-se o imóvel à A.. Mais requereu que os créditos pagos pela mãe da requerente após o divórcio e, posteriormente, pela avó da A. em sua representação, fossem compensados nas tornas a que houvesse lugar.
2. Em 20.4.2022 foi proferida a seguinte decisão:
Despacho liminar:
A Autora instaurou ação especial de divisão de coisa comum, com vista à divisão de compropriedade sobre fração autónoma, alegando a sua indivisibilidade em substância e peticionando que se proceda à sua adjudicação a uma partes ou venda.
Mais alegou ainda que a mãe, anterior titular da quota, suportou exclusivamente encargos com a amortização do contrato de mútuo celebrado para aquisição da fração, pretendendo exercer o direito a receber montante dos montantes pagos por aquela, invocando que “as tornas devidas sejam calculadas após a compensação dos créditos que se invocam”.
Cumpre apreciar e decidir:
No caso vertente, temos um pedido correspondente a uma forma de ação especial, a divisão da compropriedade de um imóvel e um pedido correspondente a uma forma de ação comum, com reconhecimento de crédito e subsequente condenação, formas de processo que são diferentes.
O art. 37.º, n.º 2 do CPC, dispõe que é admissível a cumulação de pedidos quando as formas de processo ainda que diferentes, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível e o interesse invocado seja relevante, ou essencial a apreciação conjunta das pretensões para a justa composição do litígio.
A ação de divisão de coisa comum, comporta uma fase declarativa à qual é aplicável o processo comum, caso não se mostre possível decidir incidentalmente das questões suscitadas pelo pedido de divisão (art. 926.º, n.º 2 CPC), pelo que apesar das distintas formas de processo, a tramitação não é, à partida, manifestamente incompatível.
Porém, nem todas as questões suscitadas podem ser apreciadas e cumuladas na ação especial de divisão de coisa comum, tendo existido duas correntes jurisprudenciais diversas a esse propósito.
De uma forma muito sucinta, poderemos dizer que para uma primeira corrente, a ação de divisão de coisa comum seria a ação adequada para fazer cessar a comunhão da propriedade entre os titulares desse direito, como também para fazer cessar todas as outras relação jurídicas existentes entre as partes, nomeadamente, direitos de crédito relacionados com a aquisição ou amortização dos empréstimos bancários, com vista à aquisição da coisa, mas já não créditos pecuniários não relacionados, ou relações jurídicas alheias à natureza real, como por exemplo, o crédito de alimentos ou emergentes do divórcio.
Para uma segunda corrente, a ação de divisão de coisa comum será adequada para fazer cessar a comunicação da propriedade entre os titulares desse direito, bem como outras relações jurídicas existentes entre as partes, mas apenas no caso em que tais relações tenham interferência na fixação da quota do direito real dos interessados, por interferirem no valor material da coisa, como seja por exemplo, o caso das as benfeitorias, ou estarem ligados ao uso e fruição da coisa, como por exemplo as quotas de condomínio ou os impostos sobre o património.
Nesta divergência interpretativa, e salvo o devido respeito por melhor e mais fundamentada opinião, somos por aderir à segunda corrente, por duas ordens de razões:
A primeira porque apenas no caso de benfeitorias ou despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum, a lei consagra expressamente a possibilidade de os proprietários se ressarcirem posteriormente, por compensação (art. 1411.º do Cód.Civil).
A segunda porque na definição do valor das quotas parcelares do direito real de propriedade, apenas são intervenientes elementos materiais ligados à própria coisa, sendo que os direitos de crédito, ainda que reconhecidos ou derivados da aquisição do imóvel, não interferem na fixação do valor da quota do direito real, sendo compensáveis posteriormente, mas não na proporção das quotas. Nessa medida, o reconhecimento da existência de um direito de crédito de uma parte sobre a outra, não irá interferir na formação da quota de cada uma das partes no direito real emergente da compropriedade, pelo que, salvo o devido respeito por melhor e mais fundamentada opinião, não se mostra adequada a cumulação de pedidos de reembolso de metade do valor despendido na amortização de créditos, o qual não vem sequer precisamente alegado.
A terceira razão porque a cumulação de enxertos declarativos na ação especial de divisão de coisa comum para discussão de questões não relacionadas com a fixação do direito real vem alterar de forma velada a competência do tribunal em função do valor, na medida em que atribui ao Juízo Local Cível competência para pedidos que na maioria dos casos, em função do valor deveriam correr no Juízo Central Cível, embora no caso vertente, não se afigure que seja esse o caso.
Pelo supra exposto, indefiro parcial e liminarmente o requerimento inicial quando ao pedido de condenação do Requerido nos créditos a apurar, emergente da amortização do contrato de mútuo para aquisição do imóvel e determino a citação do Requerido, apenas para querendo, contestar nos prazos legais, o pedido de divisão do imóvel.
Custas pela Requerente, pelo mínimo legal.
Registe e notifique.”
3. A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I – O pedido de compensação de créditos relativo a pagamentos efetuados de encargos e despesas tidas por conta do empréstimo bancário contraído para aquisição do fração autónoma identificada na petição inicial cuja divisão foi peticionada no âmbito de ação especial de divisão de coisa, é legalmente admissível e absolutamente essencial à composição do litígio, pelo que, não poderia ter sido objeto de indeferimento liminar pelo tribunal a quo porquanto compromete a justa composição do litígio, inviabilizando a compensação de créditos entre a recorrente e o recorrido/Réu nos autos de divisão de coisa comum no momento da adjudicação do bem.
II - Efetivamente, não é justo nem coerente ver-se a recorrente obrigada a instaurar outra ação contra o Réu/recorrido para reclamar valores pagos relativamente ao imóvel cuja divisão foi peticionada, quando o apuramento do seu crédito, depende de simples soma ou cálculo aritmético cujo montante pode ser compensada na ação.
III – Por outro lado, por força do princípio geral previsto no artigo 2.º, n.º 2, do Código do Processo Civil (CPC) relativo à garantia de acesso aos tribunais, no âmbito de uma ação especial de divisão de coisa comum, haverá sempre todo o interesse em procurar discutir e decidir as questões que, para além da divisão, envolvam o prédio dividendo.
IV – Deste modo, ao indeferir liminarmente o pedido de compensação de créditos o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 6.°, n.°1,°, 547.° e 926.° e seguintes, todos do C.P.C.;
V - Com efeito, o n.°3 desse art.° 926.° estipula que «Se, porém, o juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, conforme o preceituado no número anterior, manda seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum»;
VI – No caso sub judice, o pedido formulado pela recorrente corresponde, respetivamente, a forma de processo especial e a forma declarativa comum;
VII – Acresce que, é indispensável para a justa composição do litígio, ou seja para uma consciente decisão dos interessados em conferência (fase executiva) que esteja devidamente dirimida a questão de saber se a recorrente tem ou não direito a haver do Réu/recorrido, valores despendidos no pagamento do mútuo bancário e respetivos juros de mora vencidos e vincendos, o que só é possível através da admissão liminar do pedido de compensação de créditos formulado pela recorrente e do julgamento das questões por eles suscitadas o que satisfaz os princípios da gestão processual e adequação formal;
VII - Sendo que, seguir para a conferência de interessados e atribuir as tornas ao comproprietário que não adjudica o imóvel, e/ou que adjudica calculadas apenas de acordo com as quotas respetivas, significa criar uma situação de injusta composição do litígio quando um dos interessados invoca créditos relativos ao próprio imóvel, suscetíveis de fundamentar a compensação, criando uma impossibilidade de acordo e um acerto do deve e haver;
VIII- Deve assim ser dado provimento ao presente recurso, admitindo-se o pedido de compensação de créditos deduzido pela ora Recorrente, ordenando-se assim o prosseguimento dos presentes autos com a observância da lei aplicável.
4. Não houve contra-alegações.
5. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A questão objeto deste recurso é a admissibilidade de cumulação nesta ação especial de divisão de coisa comum do pedido de reconhecimento de um crédito da A. sobre o R. emergente de despesas com a amortização do empréstimo contraído para aquisição da coisa a dividir.
2.1. O factualismo a levar em consideração é o supra exposto no Relatório (I).
2.2. O Direito
Nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão (art.º 1412.º n.º 1 do Código Civil).
Se não for feita amigavelmente, a divisão será feita judicialmente, nos termos da lei de processo (n.º 1 do art.º 1413.º do Código Civil).
À divisão judicial de coisa comum a lei reservou um processo especial, desejavelmente propiciador de um adequado tratamento adjetivo dos particulares interesses em presença.
Trata-se do processo de divisão de coisa comum, regulado nos artigos 925.º a 930.º do CPC.
Na tramitação aí prevista prevê-se uma fase declarativa e uma fase executiva.
Na fase declarativa trata-se, em princípio, da existência ou subsistência da compropriedade, proporção das quotas, o problema da divisibilidade material ou jurídica da coisa.
Na fase executiva realizam-se as diligências necessárias à concretização da partilha propriamente dita.
Na fase declarativa a lei prevê dois articulados: petição inicial e contestação (artigos 925.º e 926.º n.º 1).
Se houver contestação, o juiz adotará, na sequência, uma tramitação sumária, assente nas regras dos incidentes (artigos 294.º e 295.º CPC), proferindo logo decisão sobre as questões suscitadas pelo pedido de divisão (n.º 2 do art.º 926.º).
Porém, se o juiz verificar que as questões a tratar não podem ser sumariamente decididas, mandará seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum (n.º 3 do art.º 926.º).
O exercício do direito potestativo de pôr fim à indivisão de coisa comum pode despoletar o confronto dos comproprietários com divergências e litígios de diversa índole, nomeadamente no que concerne a eventual desproporção entre despesas suportadas com a coisa comum e benefícios colhidos a partir dela.
Daí que a aparente singeleza das matérias a abordar na fase declarativa do processo de divisão de coisa comum (existência da comunhão, quotas, divisibilidade da coisa comum) se possa complicar com a invocação, por exemplo, de benfeitorias introduzidas na coisa comum, de créditos por despesas ou benefícios desproporcionadamente suportados ou gozados por algum dos comproprietários, etc. Ora, não se vê por que razão essas matérias, suscitadas pela pretensão da cessação da indivisão, não possam ser julgadas no processo, uma vez que o legislador admite que o juiz adeque a tramitação processual ao eventual avolumar da complexidade do objeto do processo, aplicando a forma de processo declarativo comum. Conjugar no mesmo processo o julgamento de questões interrelacionadas é uma manifestação básica do princípio da economia processual. Nesse espírito a jurisprudência tem maioritariamente admitido que o objeto da ação especial de divisão de coisa comum se alargue, na sequência de pedido reconvencional deduzido pelo réu, à apreciação da invocação de créditos alegadamente existentes sobre o outro ou outros comproprietários decorrentes de encargos respeitantes à coisa suportados pelo demandado em proporção superior à respetiva quota: benfeitorias, encargos com empréstimo para aquisição da coisa, despesas de condomínio, encargos fiscais. Em situações de indivisibilidade da coisa, tais créditos teriam relevância, por força de compensação, na fixação do valor das tornas devidas pelo interessado a quem a coisa porventura viesse a ser adjudicada (cfr., v.g., acórdão da Relação de Lisboa, de 24.3.2022, processo 823/20.4T8CSC-A.L1-2 e acórdão do STJ, de 01.10.2019, processo 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, acórdãos onde se dá desenvolvida nota das divergências jurisprudenciais manifestadas a este respeito).
O direito fundamental a uma jurisdição efetiva postula que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP). Nesse desiderato, logo no seu início o Código de Processo Civil declara que “[a] todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação” (art.º 2.º n.º 2).
O art.º 555.º n.º 1 do CPC autoriza o autor a “deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação”.
A referência às regras da coligação remete para o art.º 37.º, n.ºs 1 a 3:
1 - A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada”.
Dos preceitos suprarreferidos resulta que a cumulação de pedidos não é admissível se a cada um corresponder forma de processo diferente, a não ser que a respetiva tramitação não seja manifestamente incompatível, caso em que o juiz poderá autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. Nesse caso caberá ao juiz adaptar o processado à cumulação autorizada. O que está em linha com o dever de gestão processual cometido ao juiz pelo art.º 6.º n.º 1 do CPC, de que a adequação formal consignada no art.º 547.º do CPC é um instrumento fundamental.
No caso destes autos, à pretensão própria da ação especial de divisão de coisa comum, que é a da cessação da indivisão, a A. adicionou o pedido de reconhecimento do alegado crédito emergente dos pagamentos efetuados pela sua mãe e sua avó para liquidação do empréstimo contraído para aquisição do imóvel dividendo e sua concomitante compensação com o direito a tornas do R. resultante da adjudicação do imóvel à A. Este último pedido teria como forma processual adequada a ação declarativa comum (artigos 10.º n.ºs 1, 2 e 3, 546.º e 548.º).
O tribunal a quo admitiu que comportando a ação de divisão de coisa comum, se necessário, uma fase declarativa comum (art.º 926.º n.º 3), “apesar das distintas formas de processo, a tramitação não é, à partida, manifestamente incompatível”.
Contudo, o tribunal a quo acabou por rejeitar liminarmente a cumulação de pedidos, excluindo da ação o peticionado reconhecimento de crédito pelo pagamento do empréstimo para aquisição do imóvel, invocando três razões:
1- Apenas no caso de benfeitorias ou despesas necessárias à conservação e fruição da coisa comum, a lei consagra expressamente a possibilidade de os proprietários se ressarcirem posteriormente, por compensação (art.º 1411.º do Cód. Civil);
2 - Na definição do valor das quotas parcelares do direito real de propriedade apenas são intervenientes elementos materiais ligados à própria coisa, sendo que os direitos de crédito, ainda que reconhecidos ou derivados da aquisição do imóvel, não interferem na fixação do valor da quota do direito real, sendo compensáveis posteriormente, mas não na proporção das quotas;
3 - A cumulação de enxertos declarativos na ação especial de divisão de coisa comum para discussão de questões não relacionadas com a fixação do direito real vem alterar de forma velada a competência do tribunal em função do valor, na medida em que atribui ao Juízo Local Cível competência para pedidos que na maioria dos casos, em função do valor deveriam correr no Juízo Central Cível - embora se admita que no caso vertente não seria esse o caso.
Vejamos.
Quanto aos argumentos aduzidos em primeiro e em segundo lugar, dir-se-á que a razão material indicada pelo legislador para fundar a cumulação de pedidos a que correspondem formas processuais diversas traduz-se na indispensabilidade da apreciação conjunta das pretensões para a justa composição do litígio ou na simples existência de interesse relevante nessa apreciação conjunta.
Ora, cremos que o interesse relevante na apreciação conjunta não se cinge, nesta espécie processual, a créditos emergentes das benfeitorias e despesas referidas no art.º 1411.º do Código Civil e, mais ainda, a créditos que interfiram na determinação da quota do comproprietário na coisa. Esta última, salvo o devido respeito por opinião contrária, nem sequer constituiria aditamento de objeto estranho à ação de divisão de coisa comum, mas integraria por direito próprio o objeto intrínseco desta ação especial. Com efeito, a fixação da quota de cada comproprietário na coisa comum constitui objeto necessário da ação, enquanto critério indispensável da divisão.
Ora, revertendo ao caso destes autos, a verdade é que parte da jurisprudência das Relações tem admitido que os comproprietários discutam na ação de divisão de coisa comum os créditos que para eles emerjam do pagamento além da respetiva quota parte de despesas como a liquidação de empréstimos contraídos para aquisição da coisa comum. Neste sentido, cfr., v.g., o acórdão da Relação de Lisboa, de 15.3.2018, processo n.º 2883/15.5T8CSC.L1.L1-8; acórdão da Relação do Porto, de a27.4.2021, processo n.º 5962/20.9T8VNG.P1; Relação de Lisboa, 04.02.2021, processo 11259/18.7T8SNT.L1-6; Relação de Lisboa, 13.7.2021, processo 967/20.2T8CSC.L1-7; Relação do Porto, 15.4.2021, processo 9133/20.6T8PRT.P1.
Ao nível do STJ encontra-se, sem dissonância conhecida, o reconhecimento do direito à discussão na ação de divisão de coisa comum da existência de créditos emergentes da aquisição da coisa comum: cfr. acórdão do STJ de 26.01.2021, processo 1923/19.9T8GDM-A.P1.S1 e acórdão de 25.5.2021, processo 1761/19.9T8PBL-A.C1.S1.
Em todos esses acórdãos se entendeu que não fazia sentido obrigar as partes a instaurarem nova ação para porem fim a um litígio relacionado com a propriedade em comum do bem a dividir. O interesse da apreciação conjunta dessas questões é ainda mais evidente quando um dos comproprietários pretenda compensar o seu alegado crédito com o crédito de tornas que advenha ao outro ou outros comproprietários em virtude da adjudicação do bem comum ao credor ativo.
Cremos, pois, que as duas primeiras objeções apontadas na decisão recorrida à cumulação de pedidos não procedem.
Resta a última objeção, isto é, a de que a cumulação de enxertos declarativos na ação especial de divisão de coisa comum para discussão de questões não relacionadas com a fixação do direito real altera de forma velada a competência do tribunal em função do valor, na medida em que atribui ao Juízo Local Cível competência para pedidos que na maioria dos casos, em função do valor deveriam correr no Juízo Central Cível.
Vejamos.
Sendo a ação de divisão de coisa comum uma ação especial, o seu julgamento cabe ao juízo local de competência cível e não ao juízo central, independentemente do respetivo valor: é o que resulta do disposto nos artigos 117.º n.º 1 al. a) e 130.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26.8 (Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ, com as alterações publicitadas).
O julgamento do alegado crédito pela liquidação em excesso do empréstimo pela aquisição do imóvel seria da competência do juízo central cível ou do juízo local cível consoante o seu valor excedesse ou não € 50 000,00 (citados artigos 117.º n.º 1 al. a) e 130.º n.º 1 da LOSJ).
Esta eventual disparidade na competência para apreciação de cada uma das pretensões não constitui obstáculo à cumulação, pois não ofende regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia (cfr. art.º 37.º n.º 1 do CPC).
Estando em causa uma cumulação de pedidos ocorrida no âmbito de uma ação especial, a competência para a apreciação do conjunto recairá no juízo local cível.
No mais, quanto a eventuais disparidades entre os pedidos quanto à competência territorial, regem os números 2 e 3 do art.º 82.º do CPC – sendo certo que nada parece obstar, segundo eles, à atribuição de competência ao juízo da localização do imóvel a dividir (art.º 70.º n.º 1 do CPC).
A terceira objeção também não constitui, assim, obstáculo à cumulação de pedidos.
Na decisão recorrida nota-se que “não se mostra adequada a cumulação de pedidos de reembolso de metade do valor despendido na amortização de créditos, o qual não vem sequer precisamente alegado”. A parte por nós sublinhada constitui obiter dictum que merece ser registado. Com efeito a A. embora na petição inicial tenha feito referência a alguns valores representativos da dívida resultante do mútuo bancário contraído para a aquisição do imóvel (cfr. artigos 4.º, 9.º e 12.º da petição inicial), não liquidou o montante que a seu ver lhe é devido, formulando um mero pedido genérico sem que se mostrem reunidos os requisitos legais para tanto (cfr. art.º 556.º do CPC).
Tal situação poderá justificar um convite ao aperfeiçoamento da petição inicial (artigos 6.º n.º 2, 7.º n.º 2, 590.º n.ºs 3 e 4 do CPC).
Sendo certo, de resto, que não cabe no âmbito deste recurso apreciar a viabilidade de sucesso da pretensão da A. quanto ao seu mérito.
Cabendo ao tribunal a quo proceder à adequação formal que considerar conveniente, pois que a adequação compreende momentos de apreciação e/ou decisão discricionária, ou seja, envolve valorações subjetivas que cabem, em exclusivo, ao tribunal de 1.ª instância tendo em conta a maior proximidade deste em relação ao processo (neste sentido, cfr. João Pedro Pinto-Ferreira, Adequação Formal e Garantias Processuais na Ação Declarativa, Almedina, outubro de 2022, p. 319).
Neste conspecto, a apelação é procedente, devendo ser revogada a decisão recorrida.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo do apelado, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).

Lisboa, 24.11.2022
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva