Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
918/15.6T8SXL.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: REMOÇÃO DE TUTOR
PROTUTELA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – A interdição e a inabilitação só podem ser decretadas judicialmente; também a remoção do tutor é decretada pelo tribunal, ouvido o conselho de família, não podendo resultar simplesmente do acordo das partes no âmbito de um determinado incidente. Neste âmbito não há um qualquer direito de que se possa dispor – daí não poderem ser considerados admitidos por acordo os factos alegados pelo apelante, consoante por ele pretendido.
II - A remoção do tutor nomeado e investido pressupõe a demonstração de quaisquer factos que reconduzindo-se a uma das situações previstas no art. 1948 do CC ponham em causa a anterior nomeação, o que não sucedeu no âmbito dos presentes autos: não está caracterizada uma situação de falta de cumprimento dos deveres próprios do cargo por parte do tutor, não se evidencia que o tutor revele inaptidão para o exercício do cargo, nem está caracterizada uma situação em que o tutor, por facto superveniente à investidura tenha ficado em circunstâncias que, nos termos previstos no art. 1933, seriam impeditivas da sua designação.
III - Incumbindo ao conselho de família, designadamente, vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor, a fiscalização da acção do tutor é exercida com carácter permanente por um dos vogais do conselho de família – o protutor.
IV – Havendo a protutora casado com o tutor, após a respectiva nomeação, a fiscalização em permanência do desempenho da tutela por parte daquela resulta aparentemente prejudicada, tanto mais que a lei dá indicações no sentido de o tutor e o protutor representarem linhas de parentesco diferentes.
V – Neste contexto, por motivo superveniente, a protutora Ana Maria Arzos Abalos deixou de ser pessoa adequada ao desempenho da função de protutor, constituindo-se em situação que obstaria à sua designação, pelo que deverá ser removida do cargo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Em 10-11-2016, JD…, na qualidade de sobrinho da interditada VM… deduziu incidente de remoção do tutor e da protutora desta.
Alegou o requerente, em resumo:
Foi decretada a interdição definitiva, por anomalia psíquica, de VM…, sendo nomeado tutor AC…, protutora AM… e Vogal ML….
O tutor recebe na sua conta pessoal rendas de uma fracção autónoma de que é proprietária uma sociedade de que a interditada é sócia, no valor de 2.000,00 € que não entraram nas contas da sociedade e consequentemente no património da interditada.
Também relativamente a outro imóvel desde 8-3-2015 até 30-12-2015 o valor das rendas, segundo o arrendatário, foi entregue ao tutor.
Acresce que o tutor e a protutora foram contemplados por testamento com um legado de 50% das quotas da sociedade «T… e S…, Lda.», havendo aqueles assumido a gestão e direcção da sociedade mas não cumprindo as respectivas obrigações fiscais o que levou a testamenteira, por forma a evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada, a pagar os atinentes montantes. A “conta de caixa” daquela sociedade tem vindo a aumentar significativamente, o que é indicativo de vendas não facturadas.
Uma vez que a protutora vive em comunhão, ou é casada, com o tutor não existem condições legais para a continuação do conselho de família designado.
Formulou o requerente o seguinte pedido:
«...deve:
- O incidente de remoção de tutor e protutor ser considerado procedente e provado e consequentemente o tutor AC… e a protutora AM…, serem considerados indignos e removidos das funções de tutela da interditada VM…;
- Mais, deve o conselho de família ser exonerado e constituído de novo, de modo a assegurar os interesses da interdita VM….
- Para defesa dos interesses da interditada, deve o presente incidente ser decretado sem audição prévia do tutor nomeado».
Foi determinada a notificação do tutor nomeado para em 10 dias deduzir oposição e para os demais efeitos previstos no art. 293, nº 1 do CPC.
O tutor deduziu oposição dizendo que o presente incidente carece de fundamento legal e material e requerendo a improcedência do mesmo.
Foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo requerente após o que teve lugar reunião do Conselho de Família em que intervieram, para além do Ministério Público, o Tutor, a Protutora e a Vogal que expuseram as suas posições (estando igualmente presentes os mandatários do requerente e do tutor).
A final foi proferida decisão julgando o incidente de remoção de tutor e protutora improcedente.
Apelou o requerente, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1.º O tutor não deduziu propriamente dito qualquer oposição ao presente incidente, não impugnou qualquer dos factos referidos no requerimento inicial nem os documentos juntos a este e não apresentou quaisquer meios de prova.
2.º Nos termos do disposto no artigo 293.º do CPC, “a falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere”.
3.º Não se verificando qualquer das excepções previstas no artigo 568.º do CPC, deviam considerar-se confessados os factos articulados pelo Requerente, tal como dispõe o artigo 567.º, n.º 1 do CPC.
4.º E, considerando-se confessados aqueles factos, deveria ter sido proferida sentença de remoção de tutor.
5.º Mais, existem pontos da matéria de facto considerados não provados que, para além de não terem sido impugnados pelo tutor, face à prova documental e testemunhal produzida, deveriam ter sido considerados provados ao invés de não provados.
6.º Assim, quanto à alínea a) dos factos não provados, o ora Recorrente juntou com o Requerimento Inicial como Doc. n.º 1 o comprovativo de transferência da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), efectuada para a conta do tutor, referente ao pagamento da renda do mês de Março/2015 respeitante ao restaurante em Azeitão, propriedade da sociedade M…, cuja titularidade é do falecido AG… e da interditada VM…, que nunca entrou nas contas da sociedade. Tal facto porque provado documentalmente e não impugnado deveria constar dos factos provados.
7.º Quanto à alínea b) dos factos não provados, o ora Recorrente juntou com o Requerimento Inicial como Doc. n.º 2 uma declaração em que AS…, arrendatário da garagem nº1, sita na Rua …, nº … – C, no Feijó, concelho de Almada, declara que desde a morte do Senhor AG… até 30/12/2015, entregou o valor das rendas (50,00€/mensais) ao senhor tutor AC…. Esse facto não foi impugnado e encontra-se igualmente provado documentalmente, pelo que deveria igualmente constar dos factos provados.
8.º Quanto à alínea c) e d) dos factos não provados, a testamenteira prestou depoimento e confirmou que tem pago os impostos em falta para evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada, o que demonstra que o tutor e protutora, tendo os desígnios da sociedade indicada em 9) dos factos provados nas mãos, não vêm cumprindo as obrigações fiscais. Tal deveria igualmente constar dos factos provados por provado testemunhalmente e não ter sido impugnado.
9.º Mais, embora não conste da sentença como facto provado nem como facto não provado, tem particular relevância para a decisão da causa que o tutor e a protutora são casados um com o outro, como resulta do Assento de Casamento junto com o requerimento referência …. Tal deveria constar dos factos provados.
10.º Consta da fundamentação da matéria de facto quanto aos factos não provados que e não foram juntos aos autos documentos comprovativos dos mesmos quando tal não corresponde à realidade.
11.º Sendo tais factos dado como provados, a fundamentação de direito da sentença teria necessariamente de ser diferente do que foi.
12.º Com efeito, esses factos demonstram a incapacidade do tutor para o cargo, por falta de cumprimento adequado dos deveres próprios do cargo, nos termos dos artigos 1948.º e 1949.º do Código Civil, aplicáveis por força do disposto do artigo 139.º do mesmo diploma.
13.º E, para além disso, é juridicamente inadmissível a continuação do conselho de família designado sendo o tutor casado com a protutora.
14.º O protutor tem como missão a fiscalização permanente da acção do tutor, tal como dispõe o artigo 1955.º, n.º 1 do Código Civil e, por isso, deve, sempre que possível (como é o caso), representar a linha de parentesco diversa da do tutor, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
15.º Mesmo relativamente aos vogais do Conselho de Família, determina o artigo 1952.º do Código Civil, aplicável por força do disposto do artigo 139.º do mesmo diploma, que “Sempre que possível, um dos vogais do conselho de família pertencerá ou representará a linha paterna e o outro a linha materna do menor”.
16.º O propósito de tais normas é assegurar a efectiva fiscalização da acção do tutor pelos vogais nomeados, mormente pelo protutor.
17.º Aplicando-se com as devidas adaptações tais artigos à presente situação, constatamos que, sendo tutor e protutora marido e mulher, a pretendida fiscalização da acção do tutor pela protutora está manifestamente prejudicada.
18.º Pelo que, também por isso, um desses dois membros do Conselho de Família deverá ser, s.m.o., removido do cargo.
O tutor contra alegou nos termos de fls. 101 e seguintes.
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II – 1 - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1) O requerente é filho de ML…, irmã da interditada VM….
2) Em 29-04-2015, MT…, Advogada, na qualidade de testamenteira de AG…, veio interpor acção declarativa especial para interdição, por anomalia psíquica, de VM…,
3) A interdição de VM…, foi requerida na sequência do cumprimento do testamento, outorgado por AG…, em 05-03-2015;
4) Na petição inicial da acção em causa, acção principal, foram indicados para comporem o conselho de família, os seguintes nomes: a) ML…, b) FM…, c) JD…, d) CL…, e) PM…, nos termos que constam do documento de fls. 34 a 42 dos autos principais cujo teor se dá por reproduzido e assente;
5) Foi proferida na acção principal sentença com data de 03.07.2016, transitada em julgado, que decretou interdição da requerida, sendo que desta além do mais consta que a “Requerida apresenta-se incapaz (…) sendo uma deficiência psíquica que limita acentuadamente a sua capacidade de decisão e juízo crítico (…)”;
6) E conclui-se pela presença de uma anomalia psíquica de carácter permanente e irreversível “(…) pelo que necessário se torna a sua interdição e a instituição da tutela para o suprimento da incapacidade.” tendo assim sido decretada a interdição definitiva por anomalia psíquica da requerida VM…, tudo nos termos que constam da sentença proferida nos autos principais de fls. 222 a fls. 228 cujo teor se dá por integralmente reproduzido e assente;
7) Na sequência foi nomeado para tutor, o requerido AC…;
8) E para integrar o Conselho de Família, tendo sido nomeada para protutora, AM… e para vogal, ML…;
9) O tutor foi contemplado por um legado, em conjunto com AM… – protutora – com cinquenta por cento das quotas da sociedade comercial “T… & S…, LDA.” NIPC ….
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II – 2 - O Tribunal de 1ª instância não considerou provados os seguintes factos:
a) AC…, recebe na sua conta pessoal as rendas de uma fracção autónoma, referente a uma Loja em Azeitão, designada pela letra “T”, fracção “A”, propriedade de uma sociedade comercial denominada “M…-SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA.”, NIPC …;
b) E manteve o mesmo procedimento em relação a outros bens, concretamente, quanto à garagem nº1, sita na Rua …, nº … – C, no Feijó, concelho de Almada, onde o arrendatário AS…, desde a morte do Senhor AG… (08-03-2015) até 30/12/2015, entregou o valor das rendas (50,00€/mensais) a AC…;
c) Desde o óbito do testador que tutor e protutora não vêm cumprindo as obrigações fiscais relativas à sociedade indicada em 9) dos factos provados;
d) Levando a que a testamenteira, por forma a evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada, tenha vindo a pagar os montantes relativos a impostos em falta;
e) A “conta de caixa” da sociedade referida em 9) tem vindo a aumentar significativamente, o que só por si é indicativo de vendas não facturadas;
f) O tutor tem vindo a praticar actos em prejuízo da interdita,
g) Bem assim como a protutora;
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III – São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Assim, face ao teor das conclusões de recurso apresentadas as questões que se nos colocam são as seguintes: se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos e pelas razões invocadas pela apelante (não apresentação de oposição, prova documental e prova testemunhal); se existe fundamento para a remoção do tutor; se, de qualquer modo, a protutora deveria ser retirada do cargo.
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IV – 1 - De acordo com o art. 139 do CC «sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, o interdito é equiparado ao menor, sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regulam a incapacidade por menoridade e fixam os meios de suprir o poder paternal».
Temos, pois, que o interdito sofre de incapacidade genérica de exercício, por aplicação do regime do art. 123 do CC, relativo à incapacidade dos menores. A forma de suprimento da incapacidade de exercício do interdito é a representação e o meio de suprimento a tutela.
Tal incapacidade terá de ser judicialmente decretada, através do meio próprio, o processo especial de interdição e inabilitação previsto e regulado nos arts. 891 e seguintes do CPC.
São órgãos da tutela do interdito o tutor e o conselho de família (art. 1924 do CC), sendo ainda de destacar, entre os vogais do conselho de família, as funções especificamente atribuídas ao protutor (arts. 1955 e 1956 do CC).
Sobre a acção de remoção do tutor dispõe o art. 1949 do CC do qual decorre, feitas as necessárias adaptações para a circunstância de se tratar de um interdito (e não de um menor – ver o art. 140 do CC), que a remoção do tutor é decretada pelo tribunal, ouvido o conselho de família, a requerimento, designadamente do Ministério Público ou de qualquer parente.
Diziam-nos Pires de Lima e Antunes Varela ([1]) que coube a este art. 1949 «fixar os termos adjectivos da remoção» e que os termos do processo de remoção do tutor «vêm hoje sumariamente regulados nos artigos 1402.º e 1403.º do Código de Processo Civil».
Efectivamente, o anterior CPC, na versão então em vigor (que antecedeu o dl 227/94, de 8-9) determinava, nos seus arts. 1402 e 1403, que requerida a remoção de pessoa investida em cargo de tutela, com a especificação dos fundamentos do pedido, o arguido seria notificado para responder, sendo aplicável ao incidente o disposto nos arts. 302 e 304 do CPC, sendo o conselho de família sempre ouvido sobre a remoção.
Estas disposições foram revogadas pelo dl 227/94, do mesmo modo não tendo correspondência no actual CPC.
Estamos, no caso, perante uma instância incidental – nesses termos havendo sido processados estes autos. Tratando-se de um incidente sem regulamentação especial, aplicar-se-á o disposto nos arts. 292 e seguintes do CPC.
Sustenta, desde logo, o apelante que os factos por si alegados deveriam ter sido julgados provados, uma vez que o tutor não deduziu propriamente qualquer oposição nem impugnou os factos referidos no requerimento inicial.
Dispõe o nº 3 do art. 293 do CPC que a «falta de oposição no prazo legal determina, quanto à matéria do incidente, a produção do efeito cominatório que vigore na causa em que o incidente se insere».
Dizem-nos, a propósito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre que a «revelia do requerido tem os mesmos efeitos que a revelia ocorrida na causa em que o incidente se insere, os quais são os dos arts. 567 e 568 quando essa causa siga a forma de processo declarativo comum e quando, seguindo a forma de processo especial, não haja norma própria sobre esses efeitos (art. 549–1)».      
No caso que nos ocupa o tutor deduziu uma oposição genérica, dizendo que o presente incidente carece de fundamento legal e material e requerendo a improcedência do mesmo. Não estamos, pois, perante um caso de “revelia”, de verdadeira falta de oposição.
Acresce que o estabelecido no art, 1949 do CC sobre a remoção do tutor e nos arts. 891 e seguintes do CPC sobre o processo de interdição e inabilitação não é consentâneo com a aplicação do disposto no art. 567 do CPC. A interdição e a inabilitação só podem ser decretadas judicialmente ([2]); também a remoção do tutor é decretada pelo tribunal, ouvido o conselho de família, não podendo resultar simplesmente do acordo das partes no âmbito de um determinado incidente – ver, aliás, a alínea c) do art. 568 do CPC. Neste âmbito não há um qualquer direito de que se possa dispor – daí considerarmos não podermos considerar admitidos por acordo os factos alegados pelo apelante/requerente, consoante por ele pretendido.
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IV – 2 - Prossegue o apelante defendendo que deveria ter sido julgada provada a alínea a) dos factos não provados, atento o documento por si junto correspondente a um comprovativo de transferência da quantia de € 2.000,00 efectuada para a conta do tutor, referente ao pagamento da renda do mês de Março/2015 respeitante ao restaurante em Azeitão, propriedade da sociedade «M…» cuja titularidade é do falecido AG… e da interditada VM… e que nunca entrou nas contas da sociedade.
O documento em referência – documento de fls. 14 – corresponde a uma cópia de talão de transferência multibanco datada de 11-3-2015, no montante de 2.000,00 €, sendo o nome do destinatário dessa transferência AC….
O dito documento demonstra, apenas, aquela transferência de 2.000,00 para uma conta de AC… naquela data – e nada mais, dele não decorrendo qual a proveniência daquela quantia (apenas ali consta o número da conta de origem, não se sabendo a quem a mesma pertence).
Tal facto – “em 11-3-2015 foi feita transferência por multibanco da quantia 2.000,00 € para uma conta de AC…” – é, por si só, inócuo.
Aquilo que consta do ponto a) dos factos não provados («AC…, recebe na sua conta pessoal as rendas de uma fracção autónoma, referente a uma Loja em Azeitão, designada pela letra “T”, fracção “A”, propriedade de uma sociedade comercial denominada “M…-SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA.”, NIPC …») não se encontra, efectivamente, provado.
Defende, também, o apelante que quanto à alínea b) dos factos não provados, juntou uma declaração em que AS… arrendatário da garagem nº1, sita na Rua …, nº … – C, Feijó, concelho de Almada, declara que desde a morte do Senhor AG… até 30-12-2015 entregou o valor das rendas (50,00 €/mensais) ao tutor AC…, pelo que o facto que integra a alínea b) dos factos não provados deveria igualmente constar dos factos provados.
Dos autos (fls. 15) consta um escrito assinado, datado de 3 de Maio de 2016, nos termos do qual AJ… declara que a partir da morte do Sr. AG…, 8-3-2015, e até 30-12-2015 pagou a renda mensal referente a uma garagem arrendada na Rua …, nº … – C, no Feijó no valor de 50,00 € ao seu sobrinho AC… e que essa garagem é propriedade da «M…».
Vejamos.
O “documento” em causa é como que um arremedo de depoimento escrito – sem prestação de juramento nem interrogatório preliminar, logo de duvidoso valor.
Por outro lado, não temos nos autos elementos que nos levem a concluir que a dita garagem era propriedade da sociedade «M…» ([3]) – na verdade, nem temos nestes autos quaisquer elementos que estabeleçam uma relação entre a interdita e a dita sociedade.
Refira-se, ainda, que a circunstância de o actual tutor, anteriormente a haver sido decretada a interdição, ter recebido rendas respeitantes a uma garagem é, igualmente, por si só inócua ([4]).
Pelo que também não fazemos transitar este facto para os factos provados.
Na sequência pretende o apelante que constem dos factos provados os elencados sob as alíneas c) e d) dos factos não provados, porque provado testemunhalmente, uma vez que a testamenteira prestou depoimento e confirmou que tem pago os impostos em falta para evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada.
Constam daquelas alíneas c) e d):
«c) Desde o óbito do testador que tutor e protutora não vêm cumprindo as obrigações fiscais relativas à sociedade indicada em 9) dos factos provados [“T… & S…, Lda.”];
d) Levando a que a testamenteira, por forma a evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada, tenha vindo a pagar os montantes relativos a impostos em falta».
Trata-se de afirmações vagas – a que “obrigações fiscais” se reporta o apelante? – sendo que dos autos não constam quaisquer elementos escritos que comprovem os alegados pagamentos efectuados pela testamenteira.
Segundo o apelante a testamenteira prestou depoimento e confirmou que tem pago os impostos em falta para evitar processos de execução fiscal que afectem a interditada.
Baseando-se o apelante, nesta parte, no depoimento de uma das testemunhas, não lhe bastava, para efeitos da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, trazer aos autos a sua versão daquilo que a testemunha dissera, cumprindo, igualmente, porque o meio probatório invocado foi gravado, «indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso» - nº 2-a) do art. 640 do CPC. O que o apelante não fez. Deste modo e nesta parte não haverá que apreciar a impugnação do apelante.
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IV – 3 - Alegou o apelante no requerimento inicial que o tutor e a protutora vivem em comunhão ou são casados.
A fls. 36-37 encontra-se uma certidão de casamento da qual resulta que AC… e AM… contraíram casamento na Conservatória do Registo Civil do Seixal, em 14-11-2016.
Assim, adita-se aos factos provados o seguinte facto:
10 - Em 14-11-2016, AC… e AM… casaram um com o outro na Conservatória do Registo Civil do Seixal.
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IV – 4 - Determina o art. 1948 do CC que pode ser removido da tutela:
- O tutor que falte ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revele inaptidão para o exercício;
- O tutor que por facto superveniente à investidura do cargo se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação.
Correspondendo a remoção do tutor ao seu afastamento compulsivo do exercício do cargo, um dos fundamentos desse afastamento é, assim, a falta - que Pires de Lima e Antunes Varela ([5]) qualificam como sendo “significativa” – do cumprimento dos deveres próprios do cargo.
Nos termos do art. 1935 do CC o tutor deve exercer a tutela com a diligência de um bom pai de família e tem as mesmas obrigações dos pais com as modificações constantes dos artigos que àquele se seguem. No caso de interdição o tutor «deve cuidar especialmente da saúde do interdito» (podendo para esse efeito alienar os bens deste, obtida a necessária autorização judicial) – art. 145 do CC.
Saliente-se que o tutor só pode utilizar os rendimentos dos bens do seu tutelado no sustento (bem como saúde e segurança) deste e na administração dos seus bens (art. 1936) e é obrigado a prestar contas ao tribunal quando cessar a sua gerência ou, durante ela, sempre que o tribunal o exigir (art. 1944), sendo responsável pelo prejuízo que por dolo ou culpa causar (art. 1945).
Como explicam Pais de Sousa e Carlos Matias ([6]) «o tutor não deve proceder mal na sua gerência quer em relação à pessoa do seu tutelado, quer no que respeita à administração dos seus bens».
Ora, nos autos não está caracterizada uma situação de falta de cumprimento dos deveres próprios do cargo por parte do tutor.
Do mesmo modo não se evidencia que o tutor revele inaptidão para o exercício do cargo - o que essencialmente se traduz em ao tutor faltarem «condições físicas ou psíquicas para exercer a tutela» ([7]).
Também não está caracterizada uma situação em que o tutor, por facto superveniente à investidura tenha ficado em circunstâncias que, nos termos previstos no art. 1933, seriam impeditivas da sua designação.
 A remoção do tutor nomeado e investido pressupunha a demonstração de quaisquer factos que reconduzindo-se a uma daquelas situações previstas no art. 1948 do CC pusessem em causa a anterior nomeação – o que não sucedeu no âmbito dos presentes autos.
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IV – 5 - O conselho de família é composto por dois vogais, sendo presidido pelo Ministério Público, consoante determina o art. 1951 do CC.
Vem sendo entendido que não indicando a lei o critério por que devem ser designados os vogais do conselho de família no caso de interdição, será de aplicar o art. 143 do CC ([8]).
Como decorre do art. 1954 do CC incumbe ao conselho de família, designadamente, vigiar o modo por que são desempenhadas as funções do tutor.
Comentando a propósito Pires de Lima e Antunes Varela ([9]) que o conselho de família tem um «papel fundamental de vigilância, de fiscalização ou de orientação geral da actividade do tutor».
Dispõe o art. 1955 do CC que a fiscalização da acção do tutor é exercida com carácter permanente por um dos vogais do conselho de família – o protutor – a quem cabem as demais funções previstas no art. 1956 do CC. Resulta ainda deste artigo que a preferência da lei é no sentido de o protutor «representar a linha de parentesco diversa da do tutor». Diz-nos Luís Silveira ([10]) que tal sucede «por óbvias razões de equilíbrio familiar».
Cabe, pois, ao protutor a incumbência de fiscalizar com permanência o desempenho da tutela, substituir o tutor nos seus impedimentos, auxiliá-lo e representar o interdito se houver conflito de interesses entre este e o tutor.
De acordo com o nº 1 do art. 901 do CPC a sentença que decreta a interdição confirma ou designa o tutor e o protutor.
Quando foi proferida a sentença que decretou a interdição, em 3-7-2016, o tutor e a protutora designados ainda não haviam contraído matrimónio, o que veio a suceder em Novembro de 2016.
A sociedade conjugal pressupõe uma plena comunhão de vida. Neste âmbito, preceitua o art. 1672 do CC que os cônjuges estão reciprocamente vinculados por deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência.
O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (art. 1671 do CC) e não contende com os direitos que a Constituição e a lei conferem a cada pessoa; todavia, aquela comunhão de vida (e de interesses), não deixará de influenciar as perspectivas, análise e posicionamento dos membros da sociedade conjugal perante as diversas situações que se lhes deparam, pese embora a imparcialidade que desejem manter.
Neste contexto, a fiscalização em permanência do desempenho da tutela (exercida pelo marido) que incumbe à protutora poderá ser influenciada, ainda que inconscientemente, pela circunstância de ser casada com o tutor, não ocorrendo o equilíbrio de perspectivas que a lei tem por aconselhável. Mesmo que assim não seja a aparência perante terceiros em relação ao desempenho das funções atinentes será comprometida, surgindo o tutor e a protutora como um “bloco familiar”. O que a lei, em termos gerais não deseja – assim, o nº 2 do art. 1955 prescreve que o protutor deve, sempre que possível, representar linha de parentesco diversa da do tutor.
Consoante prevê o art. 1960 do CC são aplicáveis aos vogais do conselho de família, com as necessárias adaptações as disposições relativas à remoção do tutor.
Como vimos, incumbe ao protutor a fiscalização permanente da acção do tutor – função essencial que, pelas razões supra aludidas, por motivos supervenientes a protutora designada deixou de ser a pessoa adequada a fazê-lo.
Deste modo, por motivo superveniente, a protutora AM… deixou de ser pessoa adequada ao desempenho da função de protutor, nos termos previstos na lei.
Feitas as adaptações a que alude o art. 1960, entendemos que a situação é susceptível, em razão dessas mesmas adaptações, de se enquadrar na previsão da alínea b) do art. 1948 do CC, numa interpretação ampla do preceito ([11]) – por facto superveniente à investidura do cargo, pela sua posição pessoal, a protutora constituiu-se numa situação que obstaria à sua designação.
Pelo que a protutora AM… deverá ser removida do seu cargo – o que, aliás, foi também peticionado pelo requerente.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, determinam a remoção da protutora AM…, devendo o Tribunal de 1ª instância proceder em ordem a ter lugar a sua substituição.
Custas na proporção de metade por requerente e requeridos.
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Lisboa, 15 de Novembro de 2018

Maria José Mouro
   
Jorge Vilaça           
                                              
Vaz Gomes


[1] No «Código Civil Anotado», Coimbra Editora, vol. V, 1995, pags. 475-476.
[2] No processo especial de interdição e inabilitação a falta de contestação não importa a confissão dos factos articulados pelo autor – ver, a propósito Emídio Santos, «Das Interdições e Inabilitações», Quid Juris, 2011, pags. 30-31.
[3] Não basta para tal que alguém o afirme; para o efeito poderia o apelante ter junto aos autos certidão de registo predial relativa ao imóvel em causa.
[4] Assim: Recebeu-as e fê-las suas? Entregou-as?
[5] Obra citada, pag. 474.
[6] Em «Da Incapacidade Jurídica dos Menores Interditos e Inabilitados», Almedina, 2ª edição, pag. 166.
[7] Ver Luís Silveira em «Código Civil Anotado», coordenação de Ana Prata, Almedina, 2017, II vol., pag. 857.
[8] Ver Gabriela Páris Fernandes em «Comentário ao Código Civil – Parte Geral», coordenação de Carvalho Fernandes e Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2014, pag. 313.
[9] Obra citada, pag. 483.
[10] No já citado «Código Civil Anotado», coordenação de Ana Prata, vol. II, pag. 863.
[11] Segundo Pires de Lima e Antunes Varela (obra citada, pag. 451) a enumeração constante do nº 1 do art. 1933, relativamente ao tutor, «não possui nenhum sinal externo de revestir carácter taxativo»