Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1570/13.9TBCSC-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
MÚTUO ONEROSO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
JUROS REMUNERATÓRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I-Segundo alguns autores, a causa específica de resolução dos contratos de mútuo oneroso prevista no art. 1150 do CC pode funcionar com base na falta de cumprimento das fracções de capital.
II-As escrituras notariais de mútuos bancários para aquisição de habitação, que não se referem em concreto ao conteúdo da obrigação de restituição em caso de resolução do contrato, não são título executivo para pedir o cumprimento desta.
III-A obrigação de restituição das quantias emprestadas, em consequência da resolução, não inclui os juros remuneratórios das prestações que ainda não se tinham vencido.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


O Banco, SA, requereu, em 25/02/2013, uma execução contra A, B e C, com base em escrituras notariais de contratos de mútuo com hipoteca, com o fim de obter o pagamento de 478.224€, acrescidos de 55.900,62€ de juros já vencidos e imposto de selo sobre os juros, e ainda de juros legais vincendos até integral pagamento.

Os executados deduziram oposição, alegando a inexequibilidade dos títulos executivos por os contratos não terem sido resolvidos nos termos contratualmente previstos, e impugnando os valores peticionados a título de juros, por não ser perceptível a forma do respectivo cálculo, dizendo entre o mais que o exequente está a tentar cobrar juros remuneratórios não obstante o AUJ do STJ de 25/03/2009.

A exequente contestou, alegando que aos executados foi comunicada a resolução dos contratos perante o incumprimento, incumprimento este que aliás não vem posto em causa pelos mesmos e que, quanto aos juros, os contratos ajustados com os executados correspondem a mútuos onerosos, resultando a previsão dos juros dos documentos complementares subscritos pelos executados; e diz que o AUJ invocado não tem aplicação ao caso, sendo de afastar a regra do art. 781 do CC no que toca aos juros remuneratórios.

Depois de realizado o julgamento, foi proferida sentença julgando improcedente a oposição à execução.

Os executados recorrem desta decisão – para que seja revogada e substituída por outra que considere a oposição à execução procedente – no essencial com fundamento na inexequibilidade dos títulos por falta de vencimento das obrigações em virtude de a exequente não ter emitido qualquer declaração resolutiva dos contratos de mútuo outorgados.

O exequente não contra-alegou.
*

Questão que importa decidir: se os títulos em que a execução se baseia são inexequíveis.
*

Factos provados:

1.-ao 1º§ do relatório deste acórdão.
2.-Em 30/12/2005 o exequente, mediante um processo de fusão por incorporação, incorporou, por transferência global do património, o Bb, SA, cuja inscrição está registada com o n.º de apresentação x/20051223.
3 e 5.-Na sequência do exercício da sua actividade bancária, em 30/12/2003, o Bb e os executados, outorgaram num cartório notarial, uma escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, junta como doc.1 com o requerimento executivo, dado como reproduzida, mediante a qual a executada C declarou ter recebido do Bb 210.000€, para aquisição de habitação própria permanente.
6.-A executada comprometeu-se a reembolsar o exequente da quantia mutuada em 480 prestações mensais de capital e juros.
7/8.-Nessa escritura, a executada C constituiu a favor do BCI, hipoteca voluntária sobre o prédio urbano […] descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de X sob o número xxxx, para garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito do empréstimo concedido, incluindo dos juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais, tudo até ao montante máximo de 262.437€.
9/10.-A 04/03/2008, os executados e o exequente outorgaram outra escritura notarial de mútuo com hipoteca, fiança e procuração, conforme doc.3 junto com o requerimento executivo dado por reproduzido, mediante a qual a executada C declarou ter recebido do exequente 55.000€ e declarou-se devedora da mesma, a qual se destinou a fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente e à aquisição de equipamento para a sua residência.
12 a 14.-A executada C comprometeu-se a reembolsar o exequente da quantia mutuada, em 360 prestações mensais de capital e juros, devendo a primeira prestação ser paga em 01/04/2008 e constitui a favor dele hipoteca voluntária sobre o prédio urbano referido em 7/8, para garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito deste empréstimo, incluindo os juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais até ao montante máximo de 77.825€.
15/16.-A 25/08/2010, os executados e o exequente outorgaram uma escritura notarial de mútuo com hipoteca, conforme doc.4 junto com o requerimento executivo, dado por reproduzido, mediante a qual a executada C declarou ter recebido do exequente 46.000€ e declarou-se devedora da mesma, a qual se destinou a fazer face a compromissos financeiros assumidos anteriormente.
18 a 20.-Nesta escritura a executada comprometeu-se a reembolsar o exequente da quantia mutuada, em 360 prestações mensais de capital e juros, devendo a primeira prestação ser paga em 02/09/2010 e constituiu a favor dele hipoteca voluntária sobre o prédio urbano referido em 7/8 para garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito deste empréstimo, incluindo os juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais até ao montante máximo de 65.090€.
21.-As três hipotecas voluntárias referidas acima encontram-se registadas, respectivamente, sob ap. xx de 2008/02/xx, ap. xx de 2008/03/xx e ap. xx de 2010/08/xx, na 2.ª Conservatória do Registo Predial de X.
22.-No dia 20/03/2007, em X, o exequente e os executados outorgaram nova escritura notarial de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança e procuração, conforme doc.6 junto com o requerimento executivo, dado como reproduzido,
24/25.-Mediante esta escritura, a executada C declarou ter recebido do exequente 169.740€, para aquisição de habitação própria permanente e comprometeu-se a reembolsá-lo da quantia mutuada em 600 prestações mensais de capital e juros.
26/27.-E constituiu, a favor do exequente, hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma individualizada pelas letras AR […] do prédio em regime de propriedade horizontal, descrito sob o número xxxx da x.ª Conservatória do Registo Predial de Y, para garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito do empréstimo, incluindo dos juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais, tudo até ao montante máximo de 240.182,10€.
28.-A 11/12/2007 o exequente e os executados outorgaram nova escritura notarial de mútuo com hipoteca, fiança e procuração, conforme documento junto como doc.8 dado por reproduzido.
30 a 33.-Mediante esta escritura, a executada C declarou ter recebido do exequente 18.000€, para fazer face a compromissos financeiros anteriormente e para aquisição de equipamento para a residência, comprometendo-se a reembolsar o exequente da quantia mutuada em 360 prestações mensais de capital e juros, constituindo a favor dele, hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma referida em 27/28, para garantia do pagamento e liquidação de todas as responsabilidades assumidas no âmbito do empréstimo, incluindo dos juros contratuais e juros de mora que se vencerem, a título de cláusula penal, despesas judiciais e extrajudiciais, tudo até ao montante máximo de 25.470€.
34.-As duas hipotecas constituídas sobre a fracção autónoma referida em 27/28 encontram-se registadas, respectivamente pela ap. xx de 2007/05/xx e ap. xx de 2008/02/xx na Conservatória do Registo Predial de Y.
4, 11, 17, 23 e 29.-Nas escrituras referidas em 3, 9/10, 15/16, 22 e 28 os executados A e B outorgaram na qualidade de fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido ao exequente, em consequência do mútuo constituído pela executada C com expressa renúncia ao benefício de excussão prévia.
35.-Nos termos das condições particulares dos documentos complementares às escrituras públicas, juntas sob docs. 1, 3, 4, 6 e 8, estipulou-se que o incumprimento de qualquer das prestações do mútuo implicaria o vencimento imediato das restantes.
[ou melhor: no doc.1, cl.18ª, fala-se na imediata exigibilida-de… e consequente exequibilidade; nos docs. 3, 4 e 8, cls.9ª/1, fala-se no direito de considerar imediatamente vencido… com a consequente exigibilidade; na 9ª/2 diz-se que constituem causa bastante e fundamentada de resolução do presente contrato… o não cumprimento das obrigações presentes… a mora no pagamento de qualquer prestação…; e que ‘a declaração de vencimento antecipado e consequente resolução do presente contrato será comunicada pelo Banco ao mutuário, através de carta registada com aviso de recepção, que será enviada para a morada constante do registo do Banco à data do envio da mesma, tornando-se tal comunicação eficaz independentemente do mutuário ter ou não acusado a recepção da carta’; no doc.6, clª4ª/5 diz-se que assiste ainda ao Banco o direito de considerar o crédito automática e imediatamente vencido, e exigir o integral reembolso de tudo o que lhe for devido, se o mutuário deixar de cumprir qualquer obrigação contratual e na clª12ª diz-se que a falta de pagamento nos respectivos vencimentos, de qualquer das responsabilidades agora garantidas, importará a imediata exigibilidade de todas as responsabilidades garantidas e consequentemente a imediata exequibilidade desta escritura – esta concretização foi feita por este acórdão do TRL]

36.-A executada C deixou de pagar as prestações mensais a que estava adstrita, assim discriminado:
-Contrato n.º 111 – valor mutuado de 210.000€ – em incumprimento desde 30/09/2010;
-Contrato n.º 222 – valor mutuado de 55.000€ – em incumprimento desde 01/11/2010;
-Contrato n.º 333 – valor mutuado de 46.000€ – em incumprimento desde 02/10/2010;
-Contrato n.º 444 – valor mutuado de 169.740€ – em incumprimento desde 01/11/2010;
-Contrato n.º 555 – valor mutuado de 18.000€ – em incumprimento desde 01/12/2010;

37.-O exequente remeteu aos executados, com data de 02/05/2012, por correio registado, cartas, comunicando-lhes, identificando cada um dos contratos supra referidos, além do mais, o seguinte:
“[…] A E tentou dialogar com V. Exa. para que esta situação de incumprimento fosse resolvida de forma vantajosa para ambas as partes. No entanto, a falta de pagamento continua a verificar-se.
Deste modo, informamos que o contrato acima referido foi denunciado tendo paralelamente já sido dadas instruções para se proceder à cobrança da dívida, através do recurso a uma acção judicial, com a consequente execução das garantias associadas ao crédito em crise.
De acordo com as cláusulas contratuais, é agora exigido o pagamento da totalidade do valor do contrato, incluindo este o montante do capital em dívida até ao final do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas. […]”

38.-O exequente remeteu aos executados, através de mandatário, com data de 11/05/2012, por correio registado, cartas, comunicando-lhe, além do mais, o seguinte:
“[…] Fomos instruídos pelo nosso constituinte em epígrafe para proceder às diligências necessárias à imediata cobrança da dívida de V. Exa. (…) que nesta data ascende ao montante total de 516.900,50€ […].”
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A fundamentação da sentença recorrida.

Na parte que importa, disse a sentença recorrida:

Tudo está portanto em saber se a declaração constante das cartas referidas em 37, equivale à declaração de resolução e vencimento antecipado do contrato contratualmente prevista, para o que importa interpretar a declaração ali produzida, à luz do estatuído no artigo 236/1 do Código Civil.
Nos termos do aludido normativo legal, e de acordo com a teoria da impressão do destinatário, a declaração deve ser entendida de forma objectiva, isto é, com o sentido que uma pessoa medianamente instruída e diligente atribuiria à referida manifestação de vontade, com um sentido que tenha “um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, ex vi art. 238 do CC, por estarmos perante negócio formalizado por escritura pública.
Ora, no caso dos autos, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário retiraria da declaração em causa, é que através da mencionada carta, o exequente, constatando a situação de incumprimento dos executados, considera cessada a relação contratual e comunica a obrigação [de reembolso] pelos executados da totalidade do valor do contrato incluindo este o montante do capital em dívida até ao final do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas.
Num contexto de incumprimento que os executados não impugnam, os termos do escrito remetido aos executados não pode ser entendido de outra forma que não seja a de que, através do mesmo, o exequente efectivamente resolveu o contrato (o que se faz por comunicação à contraparte) e comunicou o vencimento antecipado da dívida, sendo, como refere a exequente, indiferente a «nomenclatura jurídica» usada para fazer cessar o contrato já que, conforme referido, outro sentido não é de retirar à declaração em causa.
[…]
Conclui-se assim que [o] exequente interpelou efectivamente os executados, que não colocaram em causa a sua situação de devedores, e procedeu à resolução dos contratos incumpridos por estes, convertendo a mora em incumprimento definitivo, e sujeitando-se os executados ao pagamento das prestações e do capital nos termos contratualmente previstos e não discutidos por estes.

Os argumentos dos executados.

As escrituras de mútuo só poderiam tornar-se exequíveis após a emissão pelo exequente das correspondentes declarações resolutórias, sem as quais não se efectiva a extinção contratual, nem o vencimento de todo o capital mutuado e respectivos juros, isto tendo em conta as clªs 9/3 dos docs. 3, 4 e 8 juntos ao requerimento executivo.
A emissão das declarações resolutórias dos contratos era um pressuposto necessário e obrigatório para tornar imediatamente exigível toda a dívida e o Banco não deu cumprimento a este dispositivo contratual. As disposições contratuais são claras.
Exigia-se uma declaração de resolução do Banco. Só assim se teriam por cumpridos os dispositivos contratuais e legais (art. 436 do CC) e somente desta forma haveria a extinção dos contratos e o vencimento de toda a dívida e juros. Cumpridos estes pressupostos, teria então o Banco uma dívida vencida e consequentemente uma obrigação exigível.
Não o tendo feito, as obrigações que o exequente configura no seu requerimento executivo são inexigíveis.
Discorda-se do entendimento, que foi defendido pelo tribunal a quo, de que tal formalidade foi cumprida através das cartas remetidas pela exequente aos executados em 02/05/2012.
Em primeiro lugar, anteriormente a estas cartas os executados não receberam outras. Pelo que quando se diz “foi denunciado” não se sabe quando, nem por que meio. De qualquer forma, mesmo que tivesse sido denunciado, o que somente por cautela de patrocínio se admite, o certo é que não foi resolvido.
Em segundo lugar, nenhuma das cartas remetidas pela exequente aos executados incorpora uma declaração de resolução do contrato em causa e vencimento antecipado.   
Encontrava-se e encontra-se preenchida a previsão do art. 814-a, aplicável ex vi art. 816, ambos do CPC [na redacção anterior à reforma de 2013], pelo que, deveria a oposição à execução ter sido declarada procedente.
*

Da exigibilidade imediata e da resolução.

Celebrado um contrato com a constituição de obrigações sujeitas a um certo prazo, a obrigação vence-se nesse prazo, isto é, deve ser então cumprida, e, se o devedor não a cumprir nesse momento, por culpa sua, entra em mora (arts. 777/1, 804 e 805/1-a, todos do CC).

Entrando o devedor em mora, o credor pode resolver o contrato se a prestação perder o interesse ou se converter a mora em incumprimento definitivo (arts. 808 e 801, ambos do CC).

No entanto, se a obrigação for liquidável em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas permite ao credor exigir logo todas as prestações, interpelando o devedor ao pagamento, que o tem de fazer então sob pena de entrar em mora (art. 781 e 804/1, ambos do CC; embora o art. 781 do CC fale em vencimento de todas as prestações, quase toda a doutrina e jurisprudência falam antes em exigibilidade antecipada, com necessidade de interpelação para haver vencimento: assim, Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 4ª edição, 1990, Almedina, págs. 52/53; Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, nota 272, págs. 84/85; Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 1990, págs. 318 e seguintes; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Almedina, 1991, págs. 866 a 896, que cita ainda no mesmo sentido Vasco Xavier e Pessoa Jorge; Teresa Anselmo Vaz, Alguns aspectos do contrato de compra e venda a prestações e contratos análogos, Almedina, 1995, págs. 22/23; Januário Gomes, Assunção fidejussória de dívida, sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Almedina, 2000, págs. 24, nota 71, e 948, nota 28, e em Contratos comerciais, Fev2013, Almedina, pág. 296 e nota 999; Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra editora, Maio de 2011, págs. 391/392; Isabel Menéres Campos, Contributo para o estudo da reserva de propriedade, em especial a reserva de propriedade a favor do financiador, Setembro de 2009, pág. 195, edição on-line); Jorge Morais de Carvalho, Os contratos de consumo, Reflexão sobre a autonomia privada no direito do consumo, Almedina, Junho 2012, págs. 620/621; o entendimento contrário de Galvão Telles, em Direito das Obrigações, 7ª edição, Coimbra Editora, págs. 270 a 272, neste caso nunca chegou a vingar, para o que não será estranho o facto de o próprio Autor considerar que a solução contrária - a solução da exigibilidade antecipada e não do vencimento automático - é a mais razoável).

Quer isto dizer que, no regime geral, quando se está perante obrigações liquidáveis em prestações, as prestações que se venceriam no futuro não se vencem de imediato com a falta de pagamento de uma delas, sem prévia interpelação do devedor. Tornam-se apenas exigíveis antecipadamente, mediante interpelação do devedor. Interpelado o devedor, as obrigações vencem-se então, o devedor entra em mora se as não cumprir nesse momento e depois o credor pode optar ou por exigir o pagamento delas (ou seja, o cumprimento do contrato) ou resolver o contrato (extinguindo-o) se e quando se verificarem os pressupostos da resolução (arts. 801/2 e 808, ambos do CC).

Assim, são coisas diferentes e pertencem a momentos diferentes, a exigibilidade antecipada (mediante interpelação do devedor), o vencimento, a exigência das prestações, a mora e a resolução do contrato (mediante comunicação ao devedor) depois da conversão da mora em incumprimento definitivo.

Mas a lei prevê ainda que as partes de um contrato possam acordar entre si fundamentos específicos de resolução do contrato, verificados os quais, sem mais (se, grosso modo, os fundamentos forem razoáveis), elas possam resolver o contrato. Trata-se das cláusulas resolutivas expressas, previstas no art. 432/1, parte final, do CC.

Para além disso, se estivermos perante um mútuo oneroso, a lei também prevê que a falta de pagamento dos juros no seu vencimento permite ao mutuante resolver o contrato (art. 1150 do CC), sendo que esta norma é naturalmente aplicável também se o devedor não restituir as parcelas de capital (Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, Sobre o conceito e a extensão do sinalagma, Estudos em Honra de Oliveira Ascensão, vol. I, Almedina, 2008, págs. 386 a 395, especificamente nota 15, pág. 388). Se o não pagamento dos juros permite a resolução do contrato, por maioria de razão o permitirá a não restituição de parcelas de capital. E esta causa específica de resolução, não depende da conversão da mora em incumprimento definitivo (Antunes Varela e Pires de Lima, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, págs. 776/777; João José Abrantes, Algumas notas sobre o contrato de mútuo, nos 20 do CSC, vol. II, Coimbra Editora, 2007, pág. 1065, fala também, a propósito deste artigo, de uma causa específica para a resolução do contrato, que opera, naturalmente, sem excluir as restantes causas de resolução, resultantes da aplicação dos princípios gerais).

Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 2ª edição, Almedina, 2006, págs. 374/375, entende que o art. 1150 do CC não é aplicável no caso de a restituição da quantia mutuada ser feita por partes; o regime aplicável, nesta hipótese, seria o do art. 801/2 e 808/1 do CC. Antunes Varela e Pires de Lima, obra citada, pág. 776, dizem que, no direito italiano, pela falta de pagamento de uma das prestações da coisa mutuada o mutuante pode exigir a imediata restituição da coisa por inteiro e que essa solução resulta, entre nós, da regra geral do art. 781 e depois lembram que as duas soluções previstas – vencimento de todas as prestações, num dos casos, e resolução do contrato, no outro - conduzem praticamente, na generalidade das hipóteses, aos mesmos resultados, ou seja, à restituição da coisa mutuada.

Note-se que segundo Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, no estudo citado, a resolução prevista no art. 1150 do CC seria o único modo de o credor reagir ao incumprimento do contrato no mútuo oneroso, dizendo que o art. 781 do CC não se aplica a este dada a sua natureza sinalagmática, posição que Januário Gomes lembra, parecendo a ela aderir, mas sem tirar consequências (nota 1002 dos Contratos Comerciais, citado; contra, veja-se Brandão Proença, obra citada, nota 272, pág. 87, onde diz que não crê “que só a resolução contratual permita reagir à essencial perda de confiança do credor”). Com o art. 20 do DL 133/2009, de 02/06, que prevê a perda do benefício do prazo, ao lado da resolução, o legislador, embora no âmbito do regime do crédito ao consumo, pressupõe uma solução contrária à sugerida por aqueles autores, ou seja, pressupõe a posição maioritária.  

O regime do crédito para aquisição de habitação, do DL 349/98, de 11/11, não modifica o que antecede, quer na versão original, quer na versão consolidada, “após a republicação da Lei 59/2012, de 09/11”, ambas consultadas no sítio do Banco de Portugal, excepto quanto à necessidade de estarem em dívida pelo menos três prestações (artigo 7.º-B Resolução do contrato em caso de incumprimento 1 - As instituições de crédito apenas podem proceder à resolução ou a qualquer outra forma de cessação do contrato de concessão de crédito à aquisição ou construção de habitação própria permanente com fundamento no incumprimento, na sequência da verificação de pelo menos três prestações vencidas e ainda não pagas pelo mutuário) o que se verificava no caso dos autos, e quanto ao direito à retoma do contrato (art. 23-B), mesmo depois da resolução, que não está em causa nestes autos.
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Interpretação da carta de 02/05/2012.

Tendo em conta o que antecede, a carta enviada pelo exequente aos executados em 02/05/2012 (eficaz a partir de 07/05/2012, porque presumivelmente em poder dos executados a partir dessa data: art. 224 do CC), dá a conhecer aos executados a pretensão do exequente de exigir de imediato, sem esperar pelo vencimento, todas as prestações que estavam previstas nos contratos para o futuro e, por outro lado, a pretensão de os considerar extintos. Se a comunicação nada dissesse quanto à ‘denúncia’, estar-se-ia apenas perante uma interpelação para o cumprimento de tudo, uma exigibilidade que provocaria o vencimento imediato das prestações futuras; tendo a referência à denúncia, tornou-se numa carta de cessação dos contratos (que, por si, impõe a obrigação de restituir vencida de imediato: arts. 433 e 289/1, ambos do CC; não são as prestações vincendas da obrigação resolvida que se vencem, neste caso, mas a obrigação de restituir). A carta não pode ser lida como interpelando ao cumprimento (que pressupõe a manutenção dos contratos) e simultaneamente como resolução dos contratos, com exigência de reembolso (que pressuporia a extinção dos contratos), por serem duas coisas contraditórias.

Tudo isto é ainda mais claro, parafraseando a sentença, atento o contexto em que ocorreu. As prestações já não eram pagas há mais de 1 ano e meio quando as cartas foram escritas. Quem está sem cumprir as prestações de um contrato há mais de 1 ano e meio e recebe uma carta com aquele teor, percebe nitidamente o que com ela se pretende: a cessação do contrato e o reembolso do que foi prestado.

É certo, como dizem os executados, que o termo jurídico ‘denúncia’ (um modo de cessação de vínculos obrigacionais de duração indeterminada e, por regra, de exercício discricionário – Romano Martinez, Da cessação do contrato, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 59 –, não retroactiva, limitando-se a extinguir o contrato para o futuro, sem permitir a restituição das prestações entretanto realizadas com base nele – Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. II, 2014, 9ª edição, Almedina, pág. 99), não quer dizer o mesmo que o termo jurídico ‘resolução’ (um meio de extinção do vínculo contratual por declaração unilateral e condicionada por um motivo previsto na lei ou dependente de convenção das partes – Romano Martinez, obra citada, pág. 67), antes são coisas muito diferentes, mas no citado contexto era clara a vontade de cessar o contrato, com reembolso do entregue (resolução), não a cessação para o futuro mantendo-se o que até se tinha passado (denúncia).

É certo ainda, como dizem os executados, que as cartas o que fazem é referência a uma ‘denúncia’ já verificada, ocorrida anteriormente, não sendo elas próprias, formalmente, uma ‘denúncia’. Ora, como não se provou a existência dessas ‘denúncias’ anteriores é como se elas não existissem. E como não são uma ‘denúncia’ actual, impor-se-ia a conclusão de que não existe qualquer ‘denúncia’ que, aliás, não seria uma resolução.

Mas o que importa é que as cartas dão a conhecer aos executados uma clara manifestação de vontade do exequente em que os contratos não subsistam e em querer de volta os valores que foram emprestados aos executados. E isto é, em termos práticos, uma resolução do contrato, embora pressupondo, na linguagem utilizada, que ela já ocorreu. Não tendo ocorrido até então, serve pelo menos para o fazer cessar a partir do conhecimento dela pelos executados. 
 
E é uma resolução dos contratos, porque a qualificação jurídica dos factos deve ser feita de acordo com as normas jurídicas e não de acordo com os nomes que as partes dão aos factos. Ora, alguém que quer reaver aquilo que foi emprestado, não está a denunciar o contrato para o futuro, mas sim a resolvê-lo.
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Da resolução do contrato.

A questão que se coloca é, perante isto, o seguinte:
A sentença recorrida disse que houve uma resolução antecedida de mora de todas as prestações, cujo vencimento teria sido antecipado automaticamente, e conversão da mora em incumprimento definitivo. Ou seja, para a sentença recorrida verificou-se uma resolução dos contratos nos termos gerais (arts. 801/2 e 808 do CC).

Mas não é assim: até à comunicação de 02/05/2012 o que houve foi apenas uma mora no pagamento das prestações vencidas; e, com a comunicação de 02/05/2012, uma resolução dos contratos (eficaz a partir de 07/05/2012). Não houve entretanto, exigibilidade antecipada das prestações vincendas, nem houve interpelação admonitória/conversão da mora em incumprimento definitivo depois da concessão de um prazo razoável (art. 808/1 do CC). Assim, a resolução verificada não observou os requisitos da resolução geral. E, por isso, se se entender que o contrato de mútuo oneroso, com obrigação fraccionada, ou liquidável em prestações, só é resolúvel nos termos gerais, então ela não se verificou.

Se, em vez disso, se entender que a resolução foi a prevista nos contratos, ela só podia ter ocorrido em relação a três deles, pois só os três últimos é que tinham cláusulas resolutivas expressas (as cláusulas 9ª/3 desses contratos).

Aceitando-se a interpretação que Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias fazem do art. 1150 do CC, então sim, temos uma resolução válida e eficaz. Ou seja, o exequente podia resolver os contratos baseado no art. 1150 do CC, que é uma causa específica de resolução dos contratos de mútuo (que embora se refira apenas ao pagamento dos juros, seria, por maioria de razão, como já se disse, aplicável à falta de pagamento das prestações de capital) e que não depende da conversão da mora em incumprimento definitivo.
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Da falta de título exequível.

Podendo, pois, dizer-se que se verificou a resolução dos contratos, embora seguindo-se apenas uma corrente doutrinária e com fundamento diferente do invocado pela sentença, no entanto, o exequente não tem título executivo para exigir dos executados a obrigação decorrente de tal resolução.

O exequente teria título executivo para exigir o cumprimento das prestações constituídas pelos contratos, o que é coisa diferente, já se viu, do direito de exigir o reembolso do valor como consequência da resolução dos contratos, ou seja, a obrigação de restituição. Esse não consta das várias escrituras consignadas acima, que não se lhe referem, nem concretizam minimamente o seu conteúdo.

Assim, por exemplo, Lebre de Freitas, A acção executiva, 6ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 44, nota 2: “Não é tão pouco exequível o título que formalize o contrato em cujo incumprimento se funde o direito a indemnização, ainda que as partes tenham nele estabelecido uma cláusula penal.” Ou dito de outro modo “não é exequível, atenta a diversa natureza das obrigações em causa, o documento particular que formalize o contrato objecto de resolução, para o efeito de fazer valer as consequências do incumprimento das obrigações dele derivadas.” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC, vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 33)
(no mesmo sentido, e, apesar do sumário, também com referência a um mútuo bancário, veja-se o ac. do TRG de 08/10/2015, proc. 81/14.0TBMDL.G1: 1. A exequibilidade conferida por lei aos documentos particulares assenta na aparente certeza e segurança quanto à existência e quantificação das obrigações, o que deve emergir do texto do documento. 2. Tal não ocorre com as obrigações emergentes da resolução do contrato que consta do documento que serve de título executivo à execução, o que desde logo se apreende quando se considera que a restituição é exigível não por força do contrato mas da sua resolução; 3. Fundada execução em obrigações que não se encontram contidas no título executivo, deve a mesma ser liminarmente indeferida, nos termos do artigo 726, n.ºs 1 e 2-a do CPC).
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Do conteúdo da obrigação de restituição.

E tudo isto se imporia com mais força ainda, quando no caso o que está em causa é a concretização de um direito à restituição das quantias mutuadas por força da resolução de um contrato, tendo elas sido exigidas na íntegra, incluindo pois, aparentemente, os juros remuneratórios que as integrariam (o que aliás está pressuposto na contestação do exequente à oposição deduzida, como se vê na síntese que dela foi feita no relatório deste acórdão).  
                            
Ora a resolução dos contratos de mútuo não implica – no regime legal supletivo - a obrigação de restituição de juros que só se venceriam com a sua manutenção. O capital não pode continuar a render juros depois de resolvido o contrato (sem prejuízo dos juros de mora sobre a obrigação de restituição: art. 289 e 1270 do CC, o último por argumento a contrario). Ou seja, aquilo a que a exequente tem direito é apenas à restituição do capital das prestações em dívida e não dos juros que integram essas prestações.

Isto com base, por maioria de razão (não se trata de aplicação directa deste acórdão, já que ele se está a referir ao vencimento imediato das prestações, e no caso dos autos o que houve foi a resolução do contrato), nas razões de ser do ac. do STJ de 25/03/2009, proc. 08A1992 (também publicado no DR Iª SÉRIE, 86, 05/05/2009): No contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art. 781 do CC não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados (neste sentido, isto é, da inadmissibilidade de se pedirem os juros remuneratórios das prestações ainda não vencidas, apenas por exemplo, todos já depois do DL 133/2009, os acs. do TRL de 07/02/2013, proc. 10/11.2TBAGH.L1-2, do TRE de 13/02/2014, proc. 1665/11.3TBCTX.E1, do TRE de 12/02/2015, proc. 341/13.7TBVV.E1, do TRE de 08/09/2016, 431/12.3TBBJA.E1, do TRP de 10/11/2015, proc. 1060/15.5T8PVZ.P1, e de 25/10/2016, 455/16.1T8VFR.P1, do TRG de 14/04/2016, 20/14.8T8FAF.G1, entre muitos outros, e também Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2016, 3ª edição, págs. 332 a 337).

E tudo isto é válido, seja o contrato de crédito ao consumo ou não.

Como dizem, Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias, “Tal como, na generalidade dos contratos sinalagmáticos, uma prestação não é exigível sem a realização da contraprestação (cf. art. 428) e tende a extinguir-se se a contraprestação nunca for cumprida (cf. arts 795 e 801/2), também no mútuo não há lugar ao pagamento de juros quando não chegue a decorrer o correspondente período de disponibilidade do capital e, o que agora mais nos interessa, os juros só são exigíveis, em princípio, à medida que decorre esse tempo correspondente. […P]ode dizer-se que, no sinalagma, a realização da prestação é co-constitutiva do direito à contra-prestação. No mútuo, o decurso do tempo de disponibilidade do capital é co-constitutivo do direito aos juros.” (obra citada, pág. 389; no mesmo sentido, Brandão Proença, obra citada, págs. 86/87; sendo que estes autores não se estão a referir especificamente aos contratos de crédito a consumidores).

Ora, não resulta minimamente das escrituras notariais invocadas pelo exequente, qual é a parte do capital e a parte dos juros que estão em causa nas prestações em que a obrigação se fraccionou. Aliás, nem sequer resulta daquelas escrituras nem do requerimento executivo, quais os valores das prestações que já se tinham vencido até à data da eficácia das cartas de 02/05/2012 e que não foram pagas, nem qual o valor da parte de capital e de juros das prestações que se venceriam a partir de tal data, ou seja, qual o valor de capital que ficaria por restituir a partir de 07/05/2012, sem juros.

Em suma, as escrituras base da execução não são título executivo para a obrigação de restituição subsequente à resolução dos contratos (arts. 814/1-a e 816, ambos do CPC na redacção anterior à reforma de 2013). O valor dela terá de ser apurado em acção declarativa.

Já o seriam em relação às prestações que se venceram até à eficácia das cartas que se tomaram como de resolução dos contratos, se fosse possível saber qual é o valor de tais prestações, mas o requerimento executivo não lhes faz referência nenhuma, nem faz distinção alguma, nem é possível fazê-la nesta decisão. 
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Assim, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por esta que julga procedente a oposição à execução, por o título executivo não ser exequível para a obrigação que se pretendeu executar, com a consequente extinção da execução.
Custas da execução e do recurso pelo exequente.



Lisboa, 26/01/2017



Pedro Martins
Lúcia Sousa
Magda Geraldes