Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1575/18.3YRLSB-5
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: PARCIALMENTE CONCEDIDA, EMBORA SUSPENSA, A ENTREGA
Sumário: – Se no âmbito do processo-crime do tribunal francês estão em investigação não só os factos ocorridos em 26.07.2018, a bordo de embarcação de recreio então situada ao largo da costa portuguesa, mas ainda factos ilícitos ocorridos em datas e locais distintos - ainda não concretamente determinados, no âmbito de apuramento da responsabilidade criminal do arguido por crime de associação criminosa com vista à importação ilegal de estupefacientes, ilícito não imputado ao arguido no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa - estando o processo português em fase de inquérito, sendo que a pessoa cuja entrega se pretende foi detida em Portugal, mantendo-se actualmente em prisão preventiva à ordem do processo que corre no nosso país, e que não existe qualquer acordo entre as autoridades portuguesas e francesas quanto à transferência do processo para prosseguimento da investigação em França, sendo os Tribunais Portugueses os competentes para apreciar os factos ocorridos em Território Nacional - apenas deverá ser deferida parcialmente ( ou seja quanto aos factos não abrangidos no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa) a execução do Mandado de Detenção Europeu devendo, no entanto, ser suspensa a sua entrega à autoridade francesa de emissão, para que este seja sujeito a procedimento penal em Portugal no âmbito do processo 35/18.7JBL5B, nos termos do disposto no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sem prejuízo, se for caso disso, da sua entrega temporária a pedido da autoridade de emissão, nas condições que vierem a ser estabelecidas, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam    os Juízes da (5ª) secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

 
O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, promoveu a execução do presente Mandado de Detenção Europeu emitido em 03-08-2018 pelo substituto do Procurador da República encarregado de investigações preliminares do Tribunal de Grande Instância de Bastia, França, em que é requerido o cidadão francês L. , melhor identificado a fls.2, actualmente preso preventivamente em Portugal, no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária, em Lisboa, à ordem do processo n.º 35/18.7JBLSB, que corre termos na Comarca de Lisboa, tendo em vista a prossecução de procedimento criminal, em França, por factos integradores da prática de crime de participação numa organização criminosa com vista à prática de crimes de importação de estupefacientes, puníveis com pena superior a 10 anos de prisão e de coacção e sequestro cometidos em bando.

Teve lugar a audição a que se refere o Art.º 18° da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, durante a qual o detido manifestou a sua oposição à entrega e declarou não renunciar à aplicação da regra da especialidade.

Uma vez que o requerido se encontra em prisão preventiva à ordem de outro processo a correr termos nos Tribunais Portugueses, foi determinado que fosse informado o processo à ordem do qual o requerido se encontra preso que, caso entretanto venha a cessar a medida de prisão preventiva, interessa a sua detenção à ordem do presente M.D.E.

O requerido tempestivamente deduziu por escrito oposição ao requerido, invocando, para tanto, os seguintes fundamentos:
1.– O MDE objecto desta oposição pretende a entrega de L. , em razão de procedimento criminal a correr termos em França que remete a factos que, segundo a legislação francesa, integram crime de "Captura, Rapto, sequestração ou detenção de força cometida pelo um grupo de forma organizada: 30 anos” e de "participação a uma associação de malfeitores para a preparação de um delito é punível com uma pena de 10 anos de prisão: 10 anos" (cfr. indicado no campo c) do formulário do MDE, para efeitos de definição da pena máxima aplicável).
2.– Inicialmente, é de se ressaltar que, por terem ocorrido em território português, os fatos mencionados no MDE são, hoje, objecto de investigação criminal em Portugal – processo n° 35/18.7JBLSB, a correr termos na 1ª Secção do DIAP, no âmbito do qual L.  encontra-se preso a cumprir medida preventiva.
3.– Tendo os factos sido deflagrados em Portugal, pela autoridade policial portuguesa, resta evidente que é no âmbito do processo de investigação criminal português que se terá a melhor possibilidade de produção e utilização das provas e, consequentemente, é onde poderá haver um melhor enquadramento dos factos para os efeitos jurídicos pretendidos.
4.– De fato, é no local da prática do crime (art.19º, n° 1, do CPP) que, como regra, que se radica a competência territorial, não por ser aí a garantia de que uma decisão mais justa se atinja, mas por ser aí que melhor se recolhem as provas, menos perturbação causa e da instrução do julgamento, além de que mais aí do que noutro local se fazem sentir as necessidades de prevenção e repressão do crime. Esse é, portanto, o principal critério orientador da não entrega, que deve ser ponderado por este Tribunal da Relação.
5.– Mais, pelo princípio da territorialidade consagrado pelo art.º 4° do C.P. português, a legislação penal do Estado pune todas as infracções cometidas no seu território, mesmo aquelas que tiverem sido cometidas por cidadão estrangeiro.
6.– Importa, nesse sentido, a recusa do pedido de extradição de L. , para que seja o mesmo possa ser julgado em Portugal, no âmbito do processo n° 35/18.7JBLSB, sendo certo que o direito internacional entende que nenhum Estado é obrigado a extraditar uma pessoa presente em seu território, devido ao princípio da soberania estatal.
7.– Não obstante, cumpre ressaltar que os factos imputados à L. , segundo o que se fez constar do MDE, uma vez confirmados, importarão na prática de 2 (duas) infracções puníveis, respectivamente, com as penas de 30 e 10 anos de prisão.
8.– Ora, se somadas tais penas, pode L.  ser punido com uma pena superior a pena máxima admitida em Portugal (locus delicti), o que seria inadmissível também do ponto de vista dos Direitos Humanos.
Nestes termos e melhores de direito, requer-se a V. Exa. que se digne a considerar procedente a presente oposição e, em consequência, que se recuse a entregar L.  à autoridade judicial francesa emissora do MDE, prosseguindo-se com a apuração dos factos e julgamento pelas autoridades portuguesas competentes.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido do cumprimento do Mandado de Detenção Europeu, com os seguintes fundamentos:
1.– As autoridades francesas emitiram MDE contra o requerido, cidadão de nacionalidade francesa, no âmbito do processo B18/16 do Tribunal de Grande Instância de Bastia, para efeitos de procedimento criminal, cujo âmbito de investigação é mais vasto do que a investigação encetada no âmbito do processo 35/18.7JBLSB do DIAP de Lisboa, à ordem do qual o requerido se encontra detido preventivamente.
1.1.- Mais concretamente, no âmbito do processo-crime do tribunal francês estarão em investigação não só os factos ocorridos em 26.07.2018,a bordo de embarcação de recreio então situada ao largo da costa portuguesa, mas ainda factos ilícitos ocorridos em datas e locais distintos, ainda não concretamente determinados, no âmbito de apuramento da responsabilidade criminal do arguido por crime de associação criminosa com vista à importação ilegal de estupefacientes, como decorre de fls 19 verso do MDE, ilícito não imputado ao arguido no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa, como decorre do elenco dos factos indiciariamente imputados neste processo do DIAP, constantes do auto de interrogatório judicial retirado do sistema "habilus" existente neste TRL, e cuja junção se requer.

2.– Independentemente da coordenação investigatória criminal que venha a mostra-se necessária entre as autoridades francesas e portuguesa, e da necessidade de acautelar o cumprimento do princípio "ne bis in idem", não se verifica nos presentes autos a existência de qualquer causa de recusa obrigatória ou facultativa do MDE emitido, nos termos previstos pelos arts. 11° a 13° da Lei 65/2003.
2.1.- Nos termos do art.º11° da citada lei, é causa de recusa (obrigatória) de execução do MEDE "que a pessoa procurada tenha sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida (....).
2.2.- Ora não é essa a situação dos presentes autos: o MDE emitido pelas autoridades francesas destina-se a procedimento criminal por factos mais abrangentes do que aqueles que foram indiciariamente imputados ao requerido no âmbito do processo proc. 35/18.7JBLSB do DIAP de Lisboa, no qual não terá sido, ainda, sequer deduzida acusação pública.

3.– Não havendo qualquer causa de recusa obrigatória ou facultativa de recusa de execução do presente MEDE, e informando o M° P° afecto ao citado processo 35/18.7JBLSB do DIAP de Lisboa não se mostrar necessária a presença do arguido em diligência de investigação, promove-se o indeferimento da oposição deduzida à execução do MDE emitido pelas autoridades francesas e a oportuna entrega do requerida a tais entidades, sem prejuízo de o requerido poder ser de novo entregue a Portugal, caso tal se venha a mostra necessário no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa.

Designado dia para alegações orais, foram as mesmas oportunamente produzidas.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Considera-se provado o seguinte:

a)- L. foi apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa, em 23-08-2018, por ser pedida a sua entrega com vista a prossecução de procedimento criminal, em França, por factos integradores da prática de crime de participação numa organização criminosa com vista à prática de crimes de importação de estupefacientes, puníveis com pena superior a 10 anos de prisão e de coacção e sequestro cometidos em bando.
b)- Após ser informado da existência e conteúdo do Mandado de Detenção Europeu, bem como da possibilidade de consentir em ser entregue às autoridades Francesas e de renunciar à regra da especialidade, disse o predito requerido não consentir na entrega e não renunciar à regra da especialidade;
c)- No prazo que lhe foi concedido para esse efeito, veio o mesmo deduzir oposição, nos termos supra descritos.

d)- Segundo o conteúdo dos mandados, é o L.  procurado para efeitos de procedimento criminal por factos susceptíveis de integrarem a prática, por aquele, de crimes de participação numa organização criminosa com vista à prática de crimes de importação de estupefacientes, puníveis com pena superior a 10 anos de prisão e de coacção e sequestro cometidos em bando, crimes que se consubstanciarão na prática, pelo L. , dos seguintes factos:
No dia 26 de Julho de 2018, a polícia judiciária francesa de Lyon foi avisada pelo Sr. FG que o seu amigo o Sr. YD foi sequestrado sobre o seu navio, de tipo veleiro, denominado LA M., em Portugal, por três indivíduos. Ele tinha avisado por telefone na véspera, e falou de um L. e de dois espanhóis.
Com a cooperação activa das autoridades portuguesas, o veleiro foi abordado em mar aberto ao largo das costas portuguesas estando a bordo, além do Sr. YD o capitão, um denominado L.. Este último foi detido a 8 de Agosto pelas autoridades portuguesas.
Paralelamente, a polícia judiciária francesa procedeu a investigações sobre os interessados e, resulta os elementos que permite pensar que os indivíduos em causa e, sem dúvida, outras pessoas localizadas em França, tenham participado numa organização de importação de produtos estupefacientes.
O dinheiro encontrado a bordo do navio LAM., a realização de uma viagem para a Colômbia entre o 15 e o 20 Julho de 2018 por L. acompanhado de uma outra pessoa que podia ser o Sr. AF, antes de ir até o Porto, a participação de este, e sem dúvida do Sr. AF na compra do barco para ir às Antilhas são elementos que permitem pensar que se trata na realidade de uma associação de malfeitores com a finalidade de importação de produtos estupefacientes. YD queria demitir-se de esta associação e ele declarou, sem dúvida, que foi forçado a iniciar a viagem interrompida pela denúncia de seu amigo, pelas investigações policiais e pela intervenção activa das autoridades portuguesas. As investigações continuam a bom ritmo no território francês, para identificar a totalidade dos autores de esta associação de malfeitores.

e)- Da certidão extraída do processo de inquérito n.º 35/18.7JBLSB, a correr termos no DIAP de Lisboa resulta que, após a detenção do L.  ocorrida no dia 29/07/2018, foi o mesmo, presente à Mm.ª Juíza de Instrução Criminal para primeiro interrogatório judicial, após o qual o MP promoveu a aplicação de medidas de coacção, considerando estar indiciada a prática, pelo mesmo arguido de um crime de sequestro, um crime de coacção grave e de um crime de tráfico agravado, p. p. pelos arts. 158.º, 154.º e 155.º, do C P, respectivamente e dos artigos 21º e 24º do DL nº 15/93 de 22 de Janeiro.
Como medida coactiva foi determinada a prisão preventiva de L. , encontrando-se o mesmo actualmente preso preventivamente em Portugal, no Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária, em Lisboa, à ordem do mencionado processo n.º 35/18, indiciado pela prática dos seguintes factos:
YD adquiriu o veleiro LAM no início do mês de Junho de 2018 na Córsega em França, altura em que conheceu L. e outros dois indivíduos.
Na sequência de contactos anteriores, o arguido abordou o denunciante YD , em Maio de 2018 na cidade de La Rouchelle, no sentido de este utilizar o seu veleiro para realizar uma viagem em direcção à "Ilha da Martinique", para proceder à aquisição e transporte de uma grande quantidade de produto estupefaciente.
Perante a recusa veemente de YD, L. disse-lhe que ele e o outro indivíduo atentariam contra a vida dos seus familiares, designadamente os seus pais, a sua irmã e companheira, dizendo inclusive que "rasgariam esta em dois".
O denunciante levou esta ameaça tanto mais seriamente já que os três indivíduos demonstraram ser conhecedores de detalhes relativos aos seus familiares, nomeadamente o facto de os seus pais viverem fora da Córsega e respectiva localização.
Assim, saiu da Córsega na Embarcação acima referida e dirigiu-se a Gijon em Espanha onde ficou cerca de cinco dias. De seguida fez nova viagem, atracando na Corunha.
Por não querer levar a cabo esta viagem para a Martinique e numa tentativa de os levar a abortá-la, telefonou a L. dizendo-lhe que estava com um problema no piloto automático e que precisava de tempo para o reparar ou comprar um novo. Este disse-lhe que fizesse o que tinha a fazer mas a viagem era para se fazer.
Após ter adquirido um novo equipamento de piloto automático, zarpa da Corunha e segue em direcção a águas territoriais portuguesas onde atracou no porto de Matosinhos a 26 de Junho do corrente ano, e decidido a não prosseguir a viagem inicial proposta.
Acresce que nesta altura estava em estado febril e doente, tendo encontrado naquele porto a segurança que desejava uma vez que havia controlo de entrada e força policial permanente.
No porto de Matosinhos decidiu engendrar um plano que levasse os dois indivíduos acima referidos a convencerem-se da impossibilidade dele realizar a viagem.
O plano consistiu em deixar os seus pertences num cacifo da estação de comboios do Porto e dizer ao arguido que lhos tinham roubado, nomeadamente o seu passaporte, e documentos da embarcação sem os quais não poderia continuar a viagem, para fora de espaço europeu.
Nesta altura perguntaram-lhe se com o "papel" estava tudo bem, tendo informado que sim porque percebeu que falavam do dinheiro que estava escondido a bordo. Foi nesta altura que L.  lhe diz "não te mexas de onde estás, dá-me a tua localização precisa, que vou de imediato ter contigo".
Após esta conversa, L. diz que dentro de dois ou três dias juntava-se a ele e que "não pensasse em fugir porque sabiam onde morava a sua família".

Face a esta atitude e porque não os conseguiu demover, teve que esconder os seus documentos de identificação, os do barco e o seu computador pessoal para fazer o seu plano, escondendo tudo num cacifo da estação de comboios do Porto.

No dia 24 de Julho, perto da meia-noite, L. surge no porto de Matosinhos, onde se encontra com o ora denunciante, e onde este tenta por uma última vez abortar a viagem.

Nesta altura L.  diz ao denunciante que a viagem é para ser feita custe o que custar, dizendo-lhe de forma clara e inequívoca que, em caso contrário, haveria consequências.

O denunciante diz-lhe que se iniciasse viagem sem dizer nada à sua amiga ela entraria em pânico e contactaria as Autoridades Policiais.

Na sequência disso, o arguido L.  diz-lhe que teria que tomar uma decisão que era "cortar a relação com ela de imediato senão enviavam alguém para a cortar em dois". Disse ainda que "sabia bem onde é que os seus pais viviam e que também iriam enviar alguém para tratar deles".

Perante esta ameaça séria e grave contra a sua vida e dos seus familiares, o denunciante não teve outra alternativa senão aceder a fazer tal viagem, não sem antes ocultar o seu passaporte e outros pertences de valor, os quais conseguiu remeter a um amigo de nome FG a quem contactou via telefone dando conta da perigosa situação em que se encontrava.

Assim, o veleiro zarpou do Porto de Leixões no dia 26-07-2018, pelas 20h30, com o denunciante e o arguido a bordo em direcção à Ilha da Madeira, onde por indicação do arguido L.  iriam comprar combustível para o motor do barco.

Na sequência da denúncia efectuada por FG e o pedido de cooperação realizado pelas Autoridades Francesas, a Policia Judiciária encetou contactos com a Força Aérea, a Marinha, a Policia Marítima e a Guarda Nacional Republicana, tendo em vista localizar e abordar o veleiro em causa, de molde a fazer cessar, no mais curto espaço de tempo, os crimes em curso e acautelar a vida e integridade física quer da vítima, quer dos seus familiares.

Pelas 13 horas e 5 minutos do dia 27 de Julho de 2018, a embarcação viria a ser localizada pela Força Aérea em pleno acto de navegação, a cerca de 76 milhas náuticas da costa portuguesa em local ao qual correspondem as coordenadas 39°25'3N 10°59'9W, estando a navegar, por imposição do arguido, sem qualquer tipo de sinalização activa.

Dada a impossibilidade de, naquele momento, estabelecer qualquer tipo de contacto com os ocupantes da embarcação sem pôr em risco a eventual segurança do denunciante foi accionada a C... J... C... Marinha Portuguesa no sentido de proceder à sua intercepção.

Tendo ainda em conta que a embarcação possui pavilhão francês e existe a forte suspeita que possa a estar a ser utilizada para o tráfico internacional do produto estupefaciente, foram as autoridades francesas notificadas desse facto, tendo a respectiva embaixada em Lisboa informado que as autoridades portuguesas estavam tacitamente autorizadas a adoptar medidas adequadas a pôr termo a esta utilização a partir do momento em que foi formulado o pedido de cooperação policial dirigido às autoridades nacionais através do PUC-CPI.

Dada a ausência de contactos, no sentido de salvaguardar a integridade física e a própria vida do denunciante, dois inspectores da P.J. dirigiram-se ao local onde se encontrava a embarcação LAM, tendo feito a respectiva abordagem com o apoio técnico da Marinha Portuguesa quando aquela se encontrava em pleno acto de navegação a cerca de 160 milhas náuticas da costa Portuguesa, em local ao qual correspondem as coordenadas 36°52'2N 11°57'3W.

Foi deste modo possível proceder à localização da embarcação, a qual foi dificultada pelo facto de ter todos os sistemas de comunicação desligados (com o objectivo de evitar o controlo das autoridades), tendo sido a mesma abordada e cessado o sequestro em curso pelas 04h16 do dia 28-07-2018.

No interior da embarcação encontrava-se o denunciante e um outro indivíduo de sexo masculino que se identificou como sendo L., agora arguido.

No momento da abordagem, o denunciante mostrava-se visivelmente assustado, perturbado e aterrorizado, só tendo manifestado intenção de colaborar com as autoridades quando L. foi retirado do veleiro e transportado para a C... da Marinha Portuguesa, tendo-se recusado, num primeiro momento a falar com as autoridades nacionais, por temer pela própria vida e pela vida dos seus familiares.

Apenas depois de separado do arguido e de garantida a sua segurança e de ter sido assegurado que as autoridades nacionais se encontravam em articulação com as autoridades francesas, e somente ao fim de muitas horas é que o denunciante acedeu a esclarecer a situação em que se encontrava.

Verifica-se assim que a situação de constrangimento da vontade e liberdade da vítima se prolongou, pelo menos desde as 00h00 do dia 25-07-2018 até às 04h16 do dia 28-07-2018, provocando na vítima um genuíno e legítimo terror e temor pela sua vida e dos seus entes mais próximos.

No âmbito das buscas ao veleiro foram recolhidos e apreendidos elementos que corroboram a versão dos factos da vítima, nomeadamente a grande quantia de dinheiro apreendido e que se encontrava oculto em compartimentos secretos (374.900€), bem como a demonstração da rota marcada e da rota já percorrida.

Ao deslocar-se para aquele destino, mundialmente conhecido por ser um dos locais privilegiados para a produção de produto de estupefacientes de diversa natureza (cocaína, heroína e haxixe), o arguido e os demais colegas de actividade, não concretamente identificados, pretendiam adquirir droga correspondente à quantia monetária apreendida, o que corresponderia a uma enorme quantidade, qualquer que fosse a sua natureza, pretendendo, posteriormente, introduzir o produto estupefaciente adquirido em vários países da Europa, entre eles a França, assim vindo a vender a droga a um grande número de pessoas, obtendo dessa actividade da venda de estupefacientes avultadas quantias económicas.

Pretendia o mesmo e demais intervenientes nesses factos obrigar o denunciante, sob ameaça de morte ao próprio e aos seus familiares próximos e companheira, a efectuar essa viagem para a Martinique para adquirir produto estupefaciente, bem como a realizar a viagem de regresso à Europa já com esse produto estupefaciente para venda.

O arguido agiu, livre, deliberada e conscientemente, com o propósito directo de privar o denunciante da sua liberdade por tempo correspondente à viagem de ida de barco a La Martinique e respectiva viagem de regresso à Europa, obrigando-o a tal sob ameaça directa à sua vida, bem como com ameaças de morte aos seus familiares mais próximos, como pais e irmã, e, ainda, à sua companheira.

O arguido agiu, ainda, livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de se dirigir a La Martinique para adquirir produto estupefaciente de natureza e em quantidade em concreto não apuradas, mas correspondente à quantia monetária que lhe foi apreendida e que era transportada no barco, de montante superior a 374 mil euros, que destinava, posteriormente, à venda em outros países da Europa, nomeadamente a França, vendendo-a a inúmeras pessoas, sempre com o intuito de alcançar avultados lucros económicos.

I–FUNDAMENTAÇÃO.
Contribuíram para formar a convicção do tribunal o auto de interrogatório judicial retirado do sistema “habilus” existente neste Tribunal, e o mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal de Grande Instância de Bastia, França.
Na definição legal dada pelo art.1º da Lei nº65/2003, «O mandato de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa de liberdade».
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, substituindo o recurso ao tradicional e mais complexo processo de extradição, para se alcançar o mesmo fim.
O objecto do presente processo encontra-se delimitado pelos termos do mandado de detenção europeu e pela oposição deduzida.
No caso em apreço inexiste qualquer dúvida sobre a aplicação da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, com a nova redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de Maio.
No que concerne ao presente mandado a executar contra o arguido L. , não se suscitam dúvidas sobre a sua autenticidade e proveniência, observando o mesmo o disposto no art.º 3.º da citada Lei e está devidamente traduzido para português.
Verifica-se, de igual modo, que os factos em causa são puníveis, de acordo com a Lei do Estado membro de emissão, com pena de prisão que ascende a três anos o que só pode levar a concluir que o presente Mandado de Detenção Europeu se encontra abrangido pelo âmbito de aplicação previsto no Art.º 2º, n.º 1 da sobredita Lei, não se tornando necessária a verificação da dupla incriminação dos factos que justificam a emissão do MDE.
O arguido opôs-se, porém, à sua entrega às autoridades Francesas.
Preceitua o art.21º n.º2 da mencionada Lei n.º 65/2003 que a oposição pode ter por fundamento o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do MDE.
No caso em análise, o opoente não invocou qualquer erro de identificação, resta-nos assim verificar se existe alguma causa de recusa obrigatória ou facultativa (cf. art.11.º e 12.ºdo citado diploma legal).

Estabelece o art.11º da Lei nº 65/2003, sob a epígrafe “Causas de recusa de execução do mandado de detenção europeu” que:
A execução do mandado de detenção europeu será recusado quando:
a)- A infracção que motiva a emissão do mandado de detenção europeu tiver sido amnistiada em Portugal, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento da infracção;
b)- A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado membro onde foi proferida a decisão;
c)- A pessoa procurada for inimputável em razão da idade, nos termos da lei portuguesa, em relação aos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;”

Por seu turno, preceitua o art.º 12º da citada Lei, sob a epígrafe “Causas de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu” que:
A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:
a)- O facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu não constituir infracção punível de acordo com a lei portuguesa, desde que se trate de infracção não incluída no n.º 2 do artigo 2.º;
b)- Estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu;
c)- Sendo os factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu do conhecimento do Ministério Público, não tiver sido instaurado ou tiver sido decidido pôr termo ao respectivo processo por arquivamento;
d)- A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado membro em condições que obstem ao ulterior exercício da acção penal, fora dos casos previstos na alínea b) do artigo 11.º;
e)- Tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu;
f)- A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado da condenação;
g)- A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa;

h)- O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
i)– Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional ou a bordo de navios ou aeronaves portugueses; ou
ii)– Tenha sido praticada fora do território do Estado membro de emissão desde que a lei penal portuguesa não seja aplicável aos mesmos factos quando praticados fora do território nacional.

2– A execução do mandado de detenção europeu não pode ser recusada, em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios, com o fundamento previsto no n.º 1, pela circunstância de a legislação portuguesa não impor o mesmo tipo de contribuições ou impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de contribuições e impostos, de alfândegas e de câmbios que a legislação do Estado membro de emissão.
3– A recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada.
4– A decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo à revisão e confirmação de sentenças condenatórias estrangeiras.

No caso em apreço, sendo forçoso salientar inexistirem quaisquer dos fundamentos de recusa obrigatória constantes do Art.º 11º da Lei n.º 65/03, de 23 de Agosto, verifica-se porém, ser inequívoco ocorrerem dois fundamentos de recusa facultativa.
Na verdade, determina o Art.º 12º da antedita Lei que: “1 – A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: (…) b) estiver pendente em Portugal procedimento penal contra a pessoa procurada pelo facto que motiva a emissão do mandado de detenção europeu. (… ) h)-i) O mandado de detenção europeu tiver por objecto infracção que:
Segundo a lei portuguesa tenha sido cometida, em todo ou em parte, em território nacional….

Ora, conforme resulta da leitura dos factos que lhe são indiciariamente imputados no âmbito do supra mencionado processo n.º 35/18.7JBLSB, ao ora requerido é imputada, em Portugal, a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de Sequestro, previsto e punido pelo artigo 158º, nº1 e nº2, alínea a) do Código Penal; um crime de Coacção Grave, previsto e punido pelo artigo 154º, nº1, por referência ao artigo 155º, nº1, alínea a), do Código Penal; e de um crime de Tráfico Agravado previsto e punido pelos Arts 21º, n.º 1 e 24º, alíneas b), c) e f) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Ou seja, quanto a tais ilícito, verificam-se as causas de recusa facultativa, previstas nas alíneas b) e h)-i), do art.º 12.º da Lei 65/05, de 23/08, que poderiam levar à recusa de execução do mandado.

Todavia, no âmbito do processo-crime do tribunal francês estarão em investigação não só os factos ocorridos em 26.07.2018, a bordo de embarcação de recreio então situada ao largo da costa portuguesa, mas ainda factos ilícitos ocorridos em datas e locais distintos, ainda não concretamente determinados, no âmbito de apuramento da responsabilidade criminal do arguido por crime de associação criminosa com vista à importação ilegal de estupefacientes, ilícito não imputado ao arguido no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa.

Assim, uma vez que o processo português se encontra ainda em fase de inquérito, que a pessoa cuja entrega se pretende foi detida em Portugal, mantendo-se actualmente em prisão preventiva à ordem do processo que corre no nosso país, e que não existe qualquer acordo entre as autoridades portuguesas e francesas quanto à transferência do processo para prosseguimento da investigação em França, sendo os Tribunais Portugueses os competentes para apreciar os factos ocorridos em Território Nacional, apenas deverá ser deferida parcialmente (quanto aos factos não abrangidos no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa) a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Tribunal de Grande Instância de Bastia, França, referente ao cidadão francês L. , devendo, no entanto, ser suspensa a sua entrega à autoridade francesa de emissão, para que este seja sujeito a procedimento penal em Portugal no âmbito do processo 35/18.7JBL5B, nos termos do disposto no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sem prejuízo, se for caso disso, da sua entrega temporária a pedido da autoridade de emissão, nas condições que vierem a ser estabelecidas, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa:

– Em recusar a execução do M.D.E. relativamente aos factos que são objecto de apreciação no âmbito do processo 35/18.7JBL5B, julgando-se procedentes os motivos de recusa previstos nas alíneas b) e h)-i), do art.º 12.º da Lei 65/05, de 23/08;  
– Em deferir parcialmente (quanto aos factos não abrangidos no âmbito do processo 35/18.7JBL5B do DIAP de Lisboa) a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido pelo Tribunal de Grande Instância de Bastia, França, referente ao cidadão francês L.  e suspender a sua entrega à autoridades francesa de emissão, para que este seja sujeito a procedimento penal em Portugal no âmbito do processo 35/18.7JBL5B, nos termos do disposto no art.º 31.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sem prejuízo da sua entrega temporária a pedido da autoridade de emissão, nas condições que vierem a ser estabelecidas, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.
Sem custas, por não serem devidas;
Notifique e comunique, nomeadamente ao processo n.º 35/18.7JBLSB, que corre termos no DIAP de Lisboa.


Lisboa,08/01/2019


Margarida Bacelar
Agostinho Torres
João Carrola