Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
310/14.0TCFUN.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: PETIÇÃO INICIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRESUNÇÃO DE CULPA
RELAÇÃO DE COMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Na petição inicial com que introduz em juízo uma ação, deve o autor, além da alegação dos pertinentes factos essenciais, expor as razões de direito que que lhe servem de fundamento, por imposição do art. 552.º, n.º 1, al. d), do C.P.C., pois que a repartição das tarefas entre as partes e o juiz resumida no velho brocardo “da mihi facta, dabo tibi ius”, ou seja, "dá-me os factos, dar-te-ei o direito” já não vale hoje de modo absoluto.
2. A ilicitude pode revestir duas modalidades:
a) Pode traduzir-se na violação do direito de outrem, ou seja, na infração de um direito subjectivo;
b) Pode consistir na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
3. Para que o lesado num acidente causado por veículo beneficie de presunção a que alude o art. 503.º, n.º 3, 1ª parte, do C.C., é necessária a demonstração da efetiva existência de uma relação de comissão entre o condutor e o proprietário do veículo, não se presumindo a qualidade de comissário de qualquer condutor que conduza um veículo alheio.
4. Trata-se de uma presunção iuris tantum, logo ilidível, o cedendo perante a prova da culpa do lesado na produção daquele evento.
5. Constitui, tal presunção, um evidente fortalecimento da posição do lesado, libertando-o do encargo probatório da culpa, tornando assim muito mais segura a obtenção da indemnização.
6. Por sua vez, ao réu não basta a mera contraprova daquela presunção legal, antes lhe incumbindo, para a ilidir, demonstrar a inexistência do facto presumido ou da factualidade que lhe está na base.
7. A culpa assume a veste de um juízo de censurabilidade relativamente à atuação do agente, sendo possível inferir-se que este podia e devia ter agido de forma diversa.
8. A sua conduta é tida como culposa quando se revele juridicamente reprovável, assumindo particular importância o critério legalmente estipulado no n.º 2 do art. 487.º, onde se estabelece que a culpa do agente será apreciada segundo a diligência de um bom pai de família, face ao caso concreto.
9. Este padrão abstrato consistirá na diligência do homem médio, prudente e sagaz, identificando-se com a fórmula romana bonus pater familias, ou seja, do homem comum, não sendo demais sublinhar que, apesar de este critério se traduzir num conceito abstrato, deve atender-se sempre às circunstâncias do caso em apreço, o mesmo é dizer, aos próprios condicionalismos inerentes à concreta situação em apreço.
10. Nestes termos, a culpa é aferida não apenas enquanto deficiência da vontade mas como deficiência da conduta.
11. Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado (como sucede no caso sub judice) ou a terceiro.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
JG intentou a presente ação declarativa de condenação contra COMPANHIA DE SEGUROS A., S.A., e LG, alegando, em suma, que «no dia 19 de Janeiro de 2011, pelas 11h20m, na Estrada Regional 101 - sentido Este Oeste, ao km 15.3, freguesia de SM, concelho de F, ocorreu um atropelamento, que envolveu o autor e o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, marca Opel, modelo corsa, com a matricula FQ, propriedade de N, S.A., e conduzido por LG».
Naquela data, a responsabilidade civil decorrente da circulação do FQ encontrava-se transferida para a ré seguradora através de contrato de seguro a que se reporta a apólice n.º 000000.
Em consequência daquele sinistro, o autor sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial, pelos quais pretende ser indemnizado.
O autor conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos e mais de Direito, deve a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada e, em consequência, serem os Réus condenados a pagar ao Autor:
A – €25.000,00 a titulo de danos morais, com as dores, tratamentos, cirurgias, dificuldades em dormir, pesadelos, incapacidade permanente para o trabalho e demais incómodos;
B – €950,55 (novecentos e cinquenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais com despesas de medicamentos;
C – €4.060,00 (quatro mil e sessenta euros), a título de custos com deslocação;
D – €54.000,00 (cinquenta e quatro mil euros), devidos pelos vencimentos referentes aos meses de Fevereiro de 2011 até Janeiro de 2014, que o Autor deixou de auferir;
E – 18.000,00€ (dezoito mil euros), devida por 1/3 do vencimento que o Autor deixará de auferir desde o mês de Janeiro de 2014 até Janeiro de 2017;
F – €16.470,00 (dezasseis mil e quatrocentos euros), devidos pelo custo de reparação dos dentes do Autor;
Perfazendo assim o montante de global de €118.480,55 (cento e dezoito mil quatrocentos e oitenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de danos patrimoniais e danos morais.
Todos os valores supra referidos devem ser acrescidos de juros a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento».
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A ré contestou, começando por arguir a exceção perentória consistente na prescrição do direito que o autor pretende fazer valer através desta ação, uma vez que a ação foi instaurada mais de três anos após a ocorrência do sinistro.
No mais, impugna parte da factualidade alegada pelo autor na petição inicial.
Conclui pugnando para que:
a) a exceção perentória de prescrição seja julgada procedente, com a sua consequente absolvição do pedido; ou, caso assim se não entenda,
b) a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.
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O réu LG também contestou, através de peça processual que não contém parte dispositiva, invocando:
a) em sede de exceção dilatória, a sua ilegitimidade para os termos da ação, uma vez que, estando, à data do acidente, transferida para a ré seguradora a responsabilidade civil decorrente da circulação do FQ, o valor peticionado pelo autor é inferior ao limite do capital mínimo obrigatório garantido pela apólice acima identificada;
b) em sede de exceção perentória, a prescrição do direito que o autor presente fazer valer através desta ação.
No mais, impugna parte da factualidade alegada pelo autor.
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O autor respondeu à matéria de exceção arguida pelos réus, pugnando pela sua improcedência.
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Posteriormente, através da peça processual que consta de fls. 251-253, veio o ISSM, pedir a condenação da ré seguradora a pagar-lhe a quantia de € 21.621,06, que em consequência do acidente pagou ao autor a título de subsídio de doença.
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Ambos os réus responderam, pugnando pela improcedência da pretensão do ISSM.
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Na audiência prévia a que se reporta a ata de fls. 298-310, além do mais:
a) foi proferido despacho saneador, que julgou procedente a exceção dilatória consistente na ilegitimidade do réu LG para os termos da ação e, consequentemente, o absolveu da instância;
b) relegou para sede de sentença o conhecimento da exceção perentória de prescrição;
c) fixou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
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Mediante requerimento de fls. 424-425 veio o autor requerer a ampliação do pedido, pugnando para a ré seguradora seja condenada:
a) a pagar-lhe, «a título de perda de rendimento, a quantia de € 406.014,28, em vez do inicialmente pedido, no  montante de € 72.000,00, ou, em alternativa, o correspondente às retribuições líquidas que deixou de receber, desde fevereiro de 2011, à razão de 14 prestações por ano, até à data do trânsito em julgado da sentença e, posteriormente, uma renda vitalícia de igual valor mensal, multiplicada por 14 rendas por ano»;
b) a pagar-lhe «todas as despesas medicamentosas que este tenha de realizar por causa da deficiência que o afeta na sequência do sinistro»;
c) a «custear todas as despesas médicas que o A. tenha de realizar para não agravar o seu estado ou, pelo menos, mantê-lo estável»;
d) a pagar-lhe mensalmente, «de forma vitalícia, a quantia correspondente ao salário mínimo regional, para assegurar o auxílio de terceira pessoa»;
e) a «assegurar o pagamento junto de organismo de segurança social das prestações que assegurem ao A. uma pensão de reforma correspondente ao rendimento líquido que auferia à data do sinistro».
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Por decisão de fls. 427-428:
- foi admitida a ampliação do pedido relativamente às als. a) a d);
- indeferida a ampliação do pedido relativamente à al. e).
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Na audiência final, o autor reduziu em € 21.621,06, o pedido formulado em a) supra.
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Ainda no decurso da audiência, através do requerimento de fls. 447-448, o autor requereu a ampliação do pedido em € 719,52, sendo:
- € 90.00, respeitantes consultas e tratamentos médicos;
- € 629,52, respeitantes à aquisição de medicamentos,
em ambos os casos, em consequência do acidente.
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Por despacho de fls. 468-469, foi admitida a referida ampliação do pedido.
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Após a realização da audiência final foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolveu a ré de todos os pedidos contra si deduzidos.
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O autor não se conformou com o assim decidido, pelo que interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações conclui assim:
A) O condutor do veículo de matrícula FQ imprimia ao veículo um andamento superior a 80 km/h;
B) A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG com desatenção e falta de cuidado;
C) LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente, não adotou uma velocidade prudente e zelosa;
D) LG tinha obrigatoriedade de ver que o veículo conduzido pelo Autor estava na berma, e reduzir a velocidade imprimida ao seu veículo;
E) LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor;
F) Em consequência do acidente, o A. foi transportado às urgências do Hospital, onde foi operado e ficou hospitalizado;
G) Durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia;
H) Após a alta hospitalar, o Autor continuou a tomar medicamentos para o mal-estar mental;
I) Após sair do Hospital, o Autor esteve de repouso durante três meses, necessitando da ajuda de outras pessoas para poder realizar as suas tarefas diárias, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho e ir à casa de banho;
J) O Autor, nos meses subsequentes ao acidente, teve pesadelos e dificuldades em dormir;
K) O A. deslocou-se ao Hospital para realizar sessões de fisioterapia, nos dias 27-01-2011; 03-02-2011; 08-02-2011; 10-02-2011; 15-02-2011; 16­02-2011; 17-02-2011; 22-02-2011; 24-02-2011; 25-02-2011; 03-02-2011; 01-03-2011; 03-03-2011; 07-03-2011; 10-03-2011; 15-03-2011; 17-03­2011; 22-03-2011; 24-03-2011; 29-03-2011; 31-03-2011; 05-04-2011; 07­04-2011; 12-04-2011; 14-04-2011; 19-04-2011; 21-04-2011; 26-04-2011; 28-04-2011; 03-05-2011; 04-05-2011; 10-05-2011; 12-05-2011; 14-05­2011; 17-05-2011; 19-05-2011; 30-05-2011; 31-05-2011; 06-06-2011; 08­06-2011; 13-06-2011; 15-06-2011; 20-06-2011; 22-06-2011; 04-07-2011; 06-07-2011; 11-07-2011; 13-07-2011; 18-07-2011; 20-07-2011; 25-07­2011; 27-07-2011; 04-08-2011; 06-08-2011; 11-08-2011; 13-08-2011; 18­08-2011; 20-08-2011; 25-08-2011; 27-08-2011; 05-09-2011; 07-09-2011; 12-09-2011; 14-09-2011; 19-09-2011; 21-09-2011; 26-09-2011; 28-09­2011; 03-10-2011; 10-10-2011; 12-10-2011; 17-10-2011; 19-10-2011; 24­10-2011; 26-10-2011; 02-11-2011; 07-11-2011; 09-11-2011; 14-11-2011; 16-11-2011; 21-11-2011; 23-11-2011; 28-11-2011; 30-11-2011; 05-12­2011; 07-12-2011; 12-12-2011; 14-12-2011; 19-12-2011; 21-12-2011; 28­12-2011; 27-01-2012; 02-02-2012; em Janeiro de 2014, nos dias 24,19, 21, 17, 27, 29 e 31; em Fevereiro de 2014, nos dias 3, 9, 10, 12, 14, 24, 26, 28; em Março de 2014, nos dias 3, 5, 7, 12, 14, 13, 12, 11, 17, 19, 21, 24, 26, 28 e 31; em Abril de 2014, nos dias 2, 4, 7, 9, 11, 14, 16, 21, 23 e em maio de 2014, nos dias 5, 7 e 9;
L) O custo de deslocação é de € 35,00, pelo que, o Autor já despendeu em transportes, para o hospital, a quantia de € 3.535,00.
M) O A. ficou com IPP que o impede de trabalhar, com dependência permanente, pelo que teve uma perda de rendimento o resto da sua vida.
N) O A. teve danos de natureza não patrimonial, decorrente do seu défice decorrente do atropelamento;
O) Há, assim, nexo de causalidade entre o atropelamento sofrido pelo A. e os danos patrimoniais e não patrimoniais por este sofridos;
P) O Juiz a quo não fixou os montantes indemnizatórios a pagar ao A., quer por danos patrimoniais, quer não patrimoniais.
E quanto ao direito:
Q) Não há culpa do lesado, nos termos do artigo 505.° do Código Civil, tendo o Juiz a quo efetuado uma aplicação errada do disposto no artigo 487.° do Código Civil;
R) O condutor do veículo é responsável pelos danos causados ao A., não só por via da aplicação do disposto no n.° 1 do artigo 483.° do CC, mas também do disposto no n.° 1 do artigo 503.° do mesmo Código;
S) O condutor do veículo atropelante havia transferido a sua responsabilidade civil decorrente de acidente de viação para a R. cabendo a esta indemnizar o A.;
T) A indemnização a favor do A. deve abranger, não só os danos patrimoniais (despesas e perdas de rendimento, tendo em conta também a IPP), mas também os danos não patrimoniais, nos montantes reclamados nos autos;
U) A decisão recorrida viola a aplicação do disposto nos arts. 24.°, 53.°, n.° 2, 56.°, n.° 3, al. b) e al. h), 60.°, n.° 2, al. c), 63.°, n.° 1, 72.°, n.° 1 e n.° 2, al. b), e 88.°, todos do Código da Estrada e os arts. 483.° e ss ex vi arts. 503.° e 505.°, ao determinar a aplicação do art. 570.°, todos do CC,
V) Já que o atropelamento ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado junto da R.
W) Por isso, deve a ação ser julgada procedente, dado que os factos essenciais foram provados favoravelmente ao A.
NESTES TERMOS,
Deve esse Tribunal da Relação de Lisboa proferir Douto Acórdão que, revogando a decisão do Juiz a quo, julgue a ação procedente, condenando a R. a indemnizar o A. pelos danos patrimoniais efetivamente sofridos e provados documentalmente (e bem assim os dados como provados pelo Juiz a quo), e ainda os danos não patrimoniais, em montante a fixar de forma equitativa, tendo em conta a situação da família do A. e bem assim o seu comprovado grau de incapacidade permanente constante do relatório de perícia, montantes estes acrescidos de juros, à taxa legal, desde a data da citação e até integral pagamento, pois só assim será feita
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O ISSM aderiu ao recurso interposto pelo autor, nos termos do art. 634.º, n.º 3, do C.P.C., declarando expressamente subscrever as alegações e conclusões do apelante.
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A ré seguradora contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do C.P.C. de 2013) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3, do C.P.C. de 2013), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do C.P.C. de 2013) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, do C.P.C. de 2013, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pelo recorrente, que o objeto da presente apelação está circunscrito às seguintes questões:
a) apurar se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) apurar a quem deve ser imputada a culpa na produção do acidente;
c) no caso de se concluir que houve culpa do condutor do FQ, apurar se essa culpa é total ou se é concorrente com culpa do autor;
d) no caso de se concluir pela concorrência de culpas, apurar a percentagem de culpa que deve ser atribuída ao condutor do condutor do FQ;
e) nos casos referidos em c) e d), apurar os danos sofridos pelo autor; e, consequentemente,
f) apurar o quantum indemnizatório a pagar pela ré ao autor.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Da fundamentação de facto:
A sentença recorrida considerou provada a seguinte factualidade:
A) No dia 19 de Janeiro de 2011, o autor conduzida o veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM na Estrada Regional nº 101 (via rápida), no sentido este – oeste;
B) O veículo referido em A) transportava barrotes e tábuas de madeira que, pela sua dimensão, ultrapassavam as medidas da zona de carga do veículo, indo em suspensão;
C) O Autor imobilizou na berma, com o rodado frontal esquerdo sobre a linha delimitadora da berma e o rodado esquerdo traseiro dentro da hemi-faixa de rodagem da direita por onde circulava, junto ao quilómetro 15,3, o veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM;
D) De seguida, saiu do veículo e apertou as cintas que seguravam a madeira do lado direito da viatura e deslocou-se para o lado esquerdo do veículo, para apertar as cintas do lado esquerdo;
E) No dia referido em A), pelas 11h20m, o veículo de matrícula FQ, de marca e modelo OC, conduzido por LG, seguia pela via de trânsito da direita da Estrada Regional nº 101 (via rápida), no sentido este – oeste;
F) No local, a estrada regional permite a circulação de duas vias de trânsito no mesmo sentido, sendo de 3,20 m a largura da via da direita e de 1,50 m a largura da berma do mesmo lado, atento o aludido sentido de marcha do FQ;
G) A velocidade era limitada, no local, a 100 km/h;
H) Fazia bom tempo;
I) O condutor do veículo de matrícula FQ apercebeu-se que, à sua frente, ocupando a berma do lado direito e parte da via de trânsito da direita por onde circulava, se encontrava parado um veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM;
J) O Autor tentava acondicionar, junto à lateral esquerda do veículo, a carga que transportava (tábuas de madeira), apertando as cintas de segurança da mesma;
K) No momento em que o veículo de matrícula FQ passava pelo veículo de marca e modelo MC, com a matrícula FM, o Autor deu um passo atrás na direcção da faixa de rodagem, posicionando-se agachado, para tomar balanço a fim de ajustar as referidas cintas e desequilibrou-se;
L) Na sequência do referido em K) ocorreu o embate entre o Autor e a lateral direita do veículo de matrícula FQ;
M) Após o embate, o Autor rodopiou para o seu lado direito, indo novamente embater com o corpo na parte posterior direita (guarda-lamas traseiro) do veículo de matrícula FQ e foi projectado, indo embater na parte central do veículo de matrícula FM;
N) Na sequência do embate, o Autor embateu com a cabeça no pavimento, ficando imobilizado junto à parte frontal do veículo de matrícula FM;
O) O condutor do veículo de matrícula FQ não logrou desviar o veículo para a via do lado esquerdo, porque havia trânsito a circular nessa faixa;
P) A cerca de 200 m do local onde ocorreu o embate existia um ramal de saída da via rápida para Santo António;
Q) O Autor não envergava colete reflector;
R) A presença do veículo de mercadorias de matrícula FM na via não estava sinalizada com triângulo de pré - sinalização de perigo e sinais luminosos intermitentes em funcionamento;
S) A posição em que se colocou o Autor para efectuar a manobra de ajustamento das cintas não permitia a sua visibilidade;
T) O veículo de matrícula FQ pertencia a “N, S.A” e era conduzido por LG enquanto trabalhava;
U) Na sequência do embate, o Autor foi assistido no local por uma equipa do EMIR e pelos Bombeiros Municipais, que o transportaram ao Hospital Dr. NM, onde recebeu tratamento e ficou internado;
V) Na sequência do embate, o Autor foi admitido no serviço de urgência do Hospital Central de F, no dia 19 de Janeiro de 2011, com fractura do ramo isquiopúbico e do acetábulo direito (coaptadas), fractura estável da décima vértebra dorsal (D10) e fractura do 8º arco costal, feridas no couro cabeludo e duas feridas na coxa direita (uma das quais drenou, nos primeiros dias de internamento, serosidade amarelada);
W) O Autor teve as feridas suturadas à entrada e esteve eupneico durante todo o internamento;
X) O Autor teve alta hospitalar a 03 de Fevereiro de 2011;
Y) Após a alta hospitalar, o Autor realizou sessões de fisioterapia; Z) Na sequência do embate ocorrido, o Autor apresentou, em 05 de Julho de 2011, queixa-crime nos serviços do Ministério Publico do Tribunal Judicial de F, contra LG, em que solicitava a instauração de procedimento criminal, requeria a sua constituição como assistente e manifestava o propósito de deduzir pedido de indemnização civil;
AA) A queixa referida em Z) correu termos na 2ª secção dos serviços do Ministério Público de F, sob o n.º de inquérito 000/00.0TAFUN;
BB) Por despacho datado de 12 de Dezembro de 2012 foi determinado o arquivamento do inquérito, tendo-se concluído pela inexistência de elementos que levassem a concluir que o atropelamento de JG tinha sido provocado pela violação de um dever de cuidado que fosse exigível a JG”;
CC) Por contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice com o número 000000, a “COMPANHIA DE SEGUROS A., S.A.” assumiu a responsabilidade  civil pelos danos causados a terceiros, emergentes da circulação do veículo automóvel de matrícula FQ;
DD) À data do embate, o Autor trabalhava como polidor na “RLAM – P & C, Lda.”, com sede à estrada de SC, n.º 000, CL, de que era sócio-gerente;
EE) À data do embate, o Autor auferia vencimento mensal bruto no valor de € 1.500,00;
FF) Por deliberação da Comissão de Recurso de Incapacidade Permanente, datada de 24 de Abril de 2014, o Autor foi considerado incapaz para o exercício da sua profissão/trabalho, tendo-se ali consignando que “se encontra em situação de incapacidade permanente que o impede de auferir na sua profissão mais de um terço da remuneração correspondente ao seu exercício normal, presumindo-se que o mesmo não recupere a capacidade de auferir no desempenho da sua profissão mais de 50% da retribuição correspondente, dentro dos próximos 3 anos”;
GG) Durante o internamento, o Autor foi sujeito a meios complementares de diagnóstico, actos clínicos e terapêutica;
HH) Após a alta hospitalar, o Autor continuou a ser seguido e a tomar medicamentos para as dores;
II) Em consequência do embate e até Setembro de 2013, o Autor despendeu com medicamentos a quantia de € 730,89;
JJ) Em consequência do embate e entre Julho de 2014 e Novembro de 2016, o Autor despendeu com medicamentos a quantia de € 569,51;
KK) Em consequência do embate e dos traumatismos ocorridos por força dele, o Autor sofreu:
i) Um Período de Défice Funcional Temporário Total (anteriormente designado por Incapacidade Temporária Geral Total) de 379 dias, ocorridos entre 19 de Janeiro de 2011 e 01 de Fevereiro de 2012;
ii) Um Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total (anteriormente designada Incapacidade Temporária Profissional Total) de 379 dias, ocorridos entre 19 de Janeiro de 2011 e 01 de Fevereiro de 2012;
iii. Um quantum doloris fixável no grau 5/7;
LL) Em consequência do embate e dos traumatismos sofridos, o Autor mostra-se afectado por:
i) Um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (tradicionalmente designado por Incapacidade Permanente Geral) fixável em 47,22 pontos;
ii. Sequelas impeditivas do exercício da sua actividade profissional habitual bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional;
iii. Dano estético permanente de grau 3/7;
MM) Em consequência do embate e dos traumatismos sofridos, o Autor está afectado de dependência permanente de:
i) Ajudas medicamentosas (Caverjet, Cialis, Spedra, Acutil, Nolotil, Tramadol, paracetamol, amitriplina);
ii) Tratamentos médicos regulares (terapia neuropsicológica e consultas de andrologia três vezes por ano);
iii) Ajuda de terceira pessoa (parcial, devido aos défices severos na execução de tarefas mais complexas que exijam julgamento moral ou uso de funções cognitivas profundas; incapacidade para ajuizar, em consciência, assuntos pessoais complexos que exijam tomada de decisão);
NN) A data de consolidação médico-legal das lesões fixa-se em 01 de Fevereiro de 2012;
OO) O Autor auferiu, da Segurança Social, entre 19 de Janeiro de 2011 e 17 de Janeiro de 2014, o valor de € 21.621,06, a título de subsídio de doença.
*
A sentença recorrida considerou não provada a seguinte factualidade:
1. O Autor foi o responsável pelo acondicionar da carga no veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM e foi quem procedeu à colocação das cintas;
2. O Autor é um condutor experiente e está habilitado para a condução de veículos do tipo “Canter” há muitos anos;
3. O condutor do veículo de matrícula FQ imprimia ao veículo um andamento próximo dos 80 km/h;
4. Nos momentos que precederam o acidente, o Autor foi alertado por agentes da PSP que circulavam naquela via, que deveria imobilizar a sua viatura e prender as madeiras transportadas, pois as mesmas apresentavam sinais de se terem desprendido;
5. O Autor imobilizou a viatura, na berma, o mais à direita possível, seguindo as instruções dos agentes da Polícia de Segurança Pública;
6. A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG com desatenção e falta de cuidado;
7. LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente, não adoptou uma velocidade prudente e zelosa;
8. LG tinha obrigatoriedade de ver que o veículo conduzido pelo Autor estava na berma, tendo de reduzir a velocidade imprimida ao seu veículo;
9. LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor;
10. O veículo de marca e modelo OC e de matrícula FQ tem uma largura de 161 cm;
11. O veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM tem uma largura de 210cm;
12. O local onde se deu o embate constitui uma recta de grandes dimensões[1];
13. O local onde se deu o embate configura o início de uma curva à esquerda e é precedido por uma curva à direita e entre esta e o local do acidente distam cerca de 100 metros;
14. Com a violência do acidente o Autor perdeu os sentidos;
15. Durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia;
16. Após a alta hospitalar, o Autor continuou a tomar medicamentos para o mal-estar mental;
17. Após sair do Hospital, o Autor esteve de repouso durante três meses, necessitando da ajuda de outras pessoas para poder realizar as suas tarefas diárias, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho e ir à casa de banho;
18. O Autor nos meses subsequentes ao acidente teve pesadelos e dificuldades em dormir;
19. O Autor tinha como hábito dar passeios a pé e, em função do acidente e das diversas fracturas sofridas, nunca mais realizou esses passeios;
20. Actualmente o Autor não pode fazer grandes caminhadas, pois fica logo com dores nos pés e nas costas;
21. O Autor sente rigidez no cotovelo e no tornozelo, o que lhe causa incómodo, desconforto e inibe-o de realizar determinadas tarefas que exijam uma maior amplitude dos membros afectados;
22. O Autor sente dores com a mudança de temperatura;
23. O Autor deslocou-se ao Hospital, para realizar sessões de fisioterapia, nos dias 27-01-2011; 03-02-2011; 08-02-2011; 10-02-2011; 15-02-2011; 16-02-2011; 17-02-2011; 22-02-2011; 24-02-2011; 25-02-2011; 03-02-2011; 01-03-2011; 03-03-2011; 07-03-2011; 10-03-2011; 15-03-2011; 17-03-2011; 22-03-2011; 24-03-2011; 29-03-2011; 31-03-2011; 05-04-2011; 07-04-2011; 12-04-2011; 14-04-2011; 19-04-2011; 21-04-2011; 26-04-2011; 28-04-2011; 03-05-2011; 04-05-2011; 10-05-2011; 12-05-2011; 14-05-2011; 17-05-2011; 19-05-2011; 30-05-2011; 31-05-2011; 06-06-2011; 08-06-2011; 13-06-2011; 15-06-2011; 20-06-2011; 22-06-2011; 04-07-2011; 06-07-2011; 11-07-2011; 13-07-2011, 18-07-2011; 20-07-2011; 25-07-2011; 27-07-2011; 04-08-2011; 06-08-2011; 11-08-2011; 13-08-2011; 18-08-2011; 20-08-2011; 25-08-2011; 27-08-2011; 05-09-2011; 07-09-2011; 12-09-2011; 14-09-2011; 19-09-2011; 21-09-2011; 26-09-2011; 28-09-2011; 03-10-2011; 10-10-2011; 12-10-2011; 17-10-2011; 19-10-2011; 24-10-2011; 26-10-2011; 02-11-2011; 07-11-2011; 09-11-2011; 14-11-2011; 16-11-2011; 21-11-2011; 23-11-2011; 28-11-2011; 30-11-2011; 05-12-2011; 07-12-2011; 12-12-2011; 14-12-2011; 19-12-2011; 21-12-2011; 28-12-2011; 27-01-2012; 02-02-2012; 18-02-2012; 20-02-2012; 08-03-2012; 16-03-2012; 19-03-2012; 16-04-2012; 18-05-2012; 20-06-2012; 19-07-2012; 16-08-2012; 15-10-2012; 14-11-2012; 18-02-2013; 12-04-2013; 14-04-2013; em Janeiro de 2014, nos dias  24, 19, 21, 17, 27, 29 e 31; em Fevereiro de 2014, nos dias 3, 9, 10, 12, 14, 24, 26, 28; em Março de 2014, nos dias 3, 5, 7, 12, 14, 13, 12, 11, 17, 19, 21, 24, 26, 28 e 31; em Abril de 2014, nos dias 2, 4, 7, 9, 11, 14, 16, 21, 23, e em Maio de 2014, nos dias 5, 7 e 9;
24. O custo de cada deslocação é de €35,00, pelo que, o Autor, já despendeu em transportes, para o hospital, a quantia de €4.060,00; 25. Desde a data do embate o Autor não aufere qualquer tipo de subsídio;
26. Desde o embate o Autor não auferiu qualquer quantia;
27. Na sequência do embate, o Autor ficou com vários dentes partidos, com cuja reparação irá despender a quantia de € 16.470,00;
28. Na sequência do embate o Autor despendeu, com consultas dentárias, a quantia de € 90,00;
29. Na sequência do embate o Autor adquiriu um suporte ortopédico no valor de € 23,90.
*
3.2 – Do mérito do recurso:
3.2.1 – Da alteração da decisão sobre a matéria de facto:
Considera a apelada que deve ser rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto por o apelante não cumprir o ónus que lhe é imposto pelo art. 640.º do C.P.C., pois não se vislumbram quais os concretos pontos de facto que este pretende impugnar, quais os meios probatórios de que se socorre e qual a decisão que, em seu entender, deveria ser proferida.
Não lhe assiste, no entanto, razão.
Dispõe o art. 640.º do C.P.C.:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 – (...)».
Segundo Abrantes Geraldes «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Ora, no caso concreto, o apelante afirma, na motivação do recurso, que «o Juiz a quo fez uma errada apreciação da prova, desde logo ao considerar como não provados os factos referidos nas alíneas 3., 6, 7., 8., 9., 15., 16., 17., 18., 23. e 24.» (art. 29º das alegações).
Os enunciados vertidos em 3., 6., 7., 8 e 9. dos «factos não provados» respeitam a matéria atinente à dinâmica do acidente.
Relativamente a eles, o apelante transcreve os excertos que considera relevantes dos depoimentos das testemunhas AV, RG e LG, e que, em se entender, impunham, relativamente àqueles enunciados, decisão diversa da recorrida.
O apelante faz, inclusivamente, uma resumida análise crítica do depoimento de cada uma dessas testemunhas.
E afirma, ainda na motivação do recurso:
«Logo, a decisão da matéria de facto, nas alíneas 3., 6. a 9., deveria ter sido que:
3. O condutor do veículo de matrícula FQ imprimia ao veículo um andamento superior a 80 km/h;
6. A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG com desatenção e falta de cuidado;
7. LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente, não adoptou uma velocidade prudente e zelosa;
8. LG tinha obrigatoriedade de ver que o veículo conduzido pelo Autor estava na berma, tendo de reduzir a velocidade imprimida ao seu veículo;
9. LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor».
Relativamente aos enunciados vertidos em 15., 16., 17., e 18. dos «factos não provados», o apelante indica como meio probatório que impunha uma decisão diferente da recorrida, o relatório pericial junto aos autos (art. 53.º das alegações), afirmando, ainda na motivação do recurso, que:
- «O facto 15. deveria ter sido dado como provado, já que durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia» (art. 57.º);
- «O facto 16. deveria ter sido dado como provado, já que após a alta hospitalar, o Autor continuou a tomar medicamentos para o mal-estar mental» (art. 58.º);
- «O facto 17. deveria ter sido dado como provado, já que após sair do Hospital, o Autor esteve de repouso durante três meses, necessitando da ajuda de outras pessoas para poder realizar as suas tarefas diárias, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho e ir à casa de banho» (art. 59.º);
- «O facto 18. deveria ter sido dado como provado, já que o Autor nos meses subsequentes ao acidente teve pesadelos e dificuldades em dormir» (art. 60.º).
Relativamente aos enunciados vertidos em 23. e 24. dos «factos não provados» indica como meios probatórios que impunham uma decisão diferente da recorrida, o relatório de «MFR datado de 23-03-2012» e o relatório «MFR datado de 01-12-2014» (art. 62.º das alegações), afirmando, ainda na motivação do recurso, que:
- «o facto 23. deveria ter sido dado como parcialmente provado (...)» (art. 65.º);
- «(...) o facto 24, deveria ter sido dado como parcialmente provado, despendendo o A. a quantia de € 3.535,00» (art. 66.º).
Nas conclusões da alegação do recurso afirma o autor que «face ao que fica exposto, pode concluir-se, decorrente da prova produzida, transcrita e documental, quanto aos factos que:
A) O condutor do veículo de matrícula FQ imprimia ao veículo um andamento superior a 80 km/h;
B) A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG com desatenção e falta de cuidado;
C) LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente, não adotou uma velocidade prudente e zelosa;
D) LG tinha obrigatoriedade de ver que o veículo conduzido pelo Autor estava na berma, e reduzir a velocidade imprimida ao seu veículo;
E) LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor;
F) Em consequência do acidente, o A. foi transportado às urgências do Hospital, onde foi operado e ficou hospitalizado;
G) Durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia;
H) Após a alta hospitalar, o Autor continuou a tomar medicamentos para o mal-estar mental;
I) Após sair do Hospital, o Autor esteve de repouso durante três meses, necessitando da ajuda de outras pessoas para poder realizar as suas tarefas diárias, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho e ir à casa de banho;
J) O Autor, nos meses subsequentes ao acidente, teve pesadelos e dificuldades em dormir;
K) O A. deslocou-se ao Hospital para realizar sessões de fisioterapia, nos dias 27-01-2011; 03-02-2011; 08-02-2011; 10-02-2011; 15-02-2011; 16­02-2011; 17-02-2011; 22-02-2011; 24-02-2011; 25-02-2011; 03-02-2011; 01-03-2011; 03-03-2011; 07-03-2011; 10-03-2011; 15-03-2011; 17-03­2011; 22-03-2011; 24-03-2011; 29-03-2011; 31-03-2011; 05-04-2011; 07­04-2011; 12-04-2011; 14-04-2011; 19-04-2011; 21-04-2011; 26-04-2011; 28-04-2011; 03-05-2011; 04-05-2011; 10-05-2011; 12-05-2011; 14-05­2011; 17-05-2011; 19-05-2011; 30-05-2011; 31-05-2011; 06-06-2011; 08­06-2011; 13-06-2011;15-06-2011; 20-06-2011; 22-06-2011; 04-07-2011; 06-07-2011; 11-07-2011; 13-07-2011; 18-07-2011; 20-07-2011; 25-07­2011; 27-07-2011; 04-08-2011; 06-08-2011; 11-08-2011; 13-08-2011; 18­08-2011; 20-08-2011; 25-08-2011; 27-08-2011; 05-09-2011; 07-09-2011; 12-09-2011; 14-09-2011; 19-09-2011; 21-09-2011; 26-09-2011; 28-09­2011; 03-10-2011; 10-10-2011; 12-10-2011; 17-10-2011; 19-10-2011; 24­10-2011; 26-10-2011; 02-11-2011; 07-11-2011; 09-11-2011; 14-11-2011; 16-11-2011; 21-11-2011; 23-11-2011; 28-11-2011; 30-11-2011; 05-12­2011; 07-12-2011; 12-12-2011; 14-12-2011; 19-12-2011; 21-12-2011; 28­12-2011; 27-01-2012; 02-02-2012; em Janeiro de 2014, nos dias 24,19, 21, 17, 27, 29 e 31; em Fevereiro de 2014, nos dias 3, 9, 10, 12, 14, 24, 26, 28; em Março de 2014, nos dias 3, 5, 7, 12, 14, 13, 12, 11, 17, 19, 21, 24, 26, 28 e 31; em Abril de 2014, nos dias 2, 4, 7, 9, 11, 14, 16, 21, 23 e em maio de 2014, nos dias 5, 7 e 9;
L) O custo de deslocação é de € 35,00, pelo que, o Autor já despendeu em transportes, para o hospital, a quantia de € 3.535,00»
Perante isto, a afirmação, pela apelada, de que o apelante, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não cumpre o estatuído no art. 640.º do C.P.C., e pugnar, consequentemente, pela rejeição do recurso, raia a litigância de má-fé, por dedução de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (art. 542.º, n.º 1, al. a), parte final, do C.P.C.).
Questão diferente é, naturalmente, a que se prende com a procedência, ou não, da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Os enunciados vertidos em 3., 6., 7., 8. e 9. dos «factos não provados» respeitam a matéria atinente à dinâmica do acidente.
Têm a seguinte redação:
- Ponto 3: O condutor do veículo de matrícula FQ imprimia ao veículo um andamento próximo dos 80 km/h;
- Ponto 6: A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG com desatenção e falta de cuidado;
- Ponto 7: LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente, não adoptou uma velocidade prudente e zelosa;
Ponto 8: LG tinha obrigatoriedade de ver que o veículo conduzido pelo Autor estava na berma, tendo de reduzir a velocidade imprimida ao seu veículo;
- Ponto 9 - LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor.
O segmento «com desatenção e falta de cuidado» contido no ponto 6 contém um mero juízo conclusivo, sendo que a pertinente matéria de facto está vertida na primeira parte do ponto 7.
A restante matéria contida no ponto 6, «A viatura de matrícula FQ era conduzida por LG», está dada como provada em E. dos factos provados.
O segmento final contido no ponto 7. «(...) não adotou uma velocidade prudente e zelosa» constitui igualmente juízo conclusivo, sendo que a pertinente matéria de facto está vertida na primeira parte do ponto 9.
O enunciado contido no ponto 8 configura igualmente um juízo meramente conclusivo.
Assim sendo, importa decidir se o tribunal recorrido errou na decisão de considerar não provados os supra transcritos pontos de facto 3., 7. (expurgado da expressão «(...) não adotou uma velocidade prudente e zelosa») e 9..
O tribunal a quo motivou assim a sua decisão de considerar não provado o enunciado vertido em 3. dos «factos não provados»:
«No que respeita aos factos elencados em (...) 3. (...), estribou o Tribunal a sua convicção na total ausência de prova que os corroborasse, na medida em que nenhuma das testemunhas inquiridas sobre eles se pronunciou ou revelou possuir conhecimento sustentado, da mesma forma que nenhum elemento de prova foi carreado aos autos que se mostrasse capaz de comprovar o ali exarado».
E motivou assim a sua decisão de considerar não provados os enunciados vertidos em 7. e 9. dos «factos não provados»:
«Ponderados todos estes elementos probatórios, à luz das regras da experiência comum e de raciocínios lógicos e cotejando-os entre si, concluiu o Tribunal ter-se produzido prova cabal do elencado em A. a S. e, bem assim, nenhum elemento probatório cabal ter sido carreado aos autos capaz de sustentar o elencado em 6., 7., 8., 9., na medida em que o relatado pelas testemunhas e pelos elementos documentais supra mencionados, de forma alguma corrobora o aí exarado.
Na verdade, da ponderação dos depoimentos apresentados, cotejados entre si e com o teor do croqui elaborado a fls. 33 e das fotografias de fls. 205 e 218, resulta claro que o veículo conduzido pelo Autor se encontrava, no rodado traseiro, a ocupar parte da hemi-faixa de rodagem e que aquele, numa tentativa de melhor apertar as cintas que acondicionavam a carga de madeira que transportava, se posicionou na lateral esquerda do veículo, necessariamente ocupando parte – face à posição em que o veículo se encontrava – da hemi-faixa de rodagem da direita (atento o sentido de marcha em que, momentos antes, o seu veículo seguia).
Do depoimento das testemunhas resulta, igualmente, que pela posição assumida pelo Autor para esse efeito de acomodar a carga, este não se mostrava visível (já que se encontrava agachado e sem envergar qualquer colete reflector) e, bem assim, que a sua maior entrada na hemi-faixa de rodagem se dá por força de um desequilíbrio ocorrido no preciso momento em que o veículo de matrícula FQ passava no local, não lhe dando qualquer possibilidade de, por um lado, prever o aparecimento do Autor e, por outro lado, se desviar para a outra hemi-faixa de rodagem, já que ali circulavam outras viaturas.
Concluiu, assim, o Tribunal pela existência de prova cabal do referido em A. a S. (inclusive) e pela inexistência de prova capaz de comprovar o elencado em 6., 7., 8. e 9.».
Foram ouvidas as gravações dos depoimentos das testemunhas AV (é agente da PSP em situação de pré-aposentação; exerce funções na esquadra de trânsito de F há cerca de 37 anos; era o condutor do veículo da PSP que circulava atrás do FQ, a cerca de 200 metros do local onde ocorreu o acidente, sendo, por isso, testemunha presencial do sinistro) e RG (é agente da PSP há cerca de 28 anos; exerce funções na referida esquadra há cerca de 20 anos; seguia naquela mesma viatura da PSP, sentada no banco da frente, ao lado do condutor, a referida testemunha AV; é, assim, também ela, testemunha ocular do sinistro)
Foi também lido e analisado o depoimento da testemunha LG (era o condutor do FQ no momento do acidente; o seu depoimento foi apresentado por escrito, ao abrigo do disposto no art. 518.º, n.º 1, do C.P.C., nos termos que constam de fls. 505-506).
Resultou dos depoimentos das testemunhas AV e RG, como referido, que no circunstancialismo de tempo e lugar referidos em A. e E. dos factos provados seguiam numa viatura da PSP, no mesmo sentido de trânsito do FQ; AV era o condutor da viatura da PSP, e RG seguia sentada no banco da frente do lado do condutor.
Após o veículo da PSP em que seguiam ter saído de um túnel existente na via rápida identificada no ponto de facto A., e “desfeito” uma ligeira curva situada à saída desse túnel, atento o seu sentido de marcha, avistaram imediatamente o FQ, que circulava no mesmo sentido, cerca de 200 metros à sua frente, praticamente no mesmo instante em que este veículo embateu no autor.
É o que decorre do depoimento da testemunha AV, segundo o qual, só quando desfez a curva situada à saída do túnel é que viu o FQ; ou seja, viu o FQ pela primeira vez, no momento em que este embateu no autor; «foi tudo instantaneamente», apercebeu-se «da presença do FQ no momento do embate, foi tudo simultaneamente», segundo afirmou.
É também o que resulta do depoimento da testemunha RG, segundo o qual, assim que o carro da PSP desfez a referida curva ligeira à saída do túnel, avistou o FQ, exclamando de imediato: «Meu Deus, meu Deus, vai bater, vai bater».
Posto este enquadramento, assiste razão ao tribunal a quo ao referir a ausência de prova quanto ao enunciado a que se reporta o ponto 3. dos «factos não provados», e que «nenhuma das testemunhas inquiridas (...) revelou possuir conhecimento sustentado» quanto à matéria nele vertida, ou seja, quanto à velocidade a circulava o FQ.
Segundo a testemunha LG, o condutor do FQ, circulava «na faixa da direita e numa velocidade normal e dentro dos limites em vigor».
A testemunha AV disse que o veículo da PSP, por si conduzido, circulava a uma velocidade entre 75 a 80 kms/hora, quando avistou o FQ, que seguia cerca de 200 metros à sua frente.
A testemunha RG limitou-se a afirmar que quando o veículo da PSP saiu do túnel e desfez a ligeira curva existente à saída do mesmo, teve a sensação que o OC seguia a uma velocidade superior à do carro da PSP. A testemunha não concretizou, no entanto, a base de suporte de tal sensação, nem se vislumbra que o pudesse fazer, uma vez que avistou pela primeira vez o FQ praticamente no mesmo instante em que se deu o embate no autor, a uma distância, segundo afirmou, de cerca de 200 metros relativamente à posição do veículo da PSP em que seguia.
Quanto aos pontos 7. (expurgado do segmento «(...) não adotou uma velocidade prudente e zelosa») e 9., insiste-se que as testemunhas AV e RG apenas avistaram o FQ praticamente no mesmo instante em que este veículo embateu no autor, cerca de 200 metros à frente do carro da PSP em que ambos seguiam.
Não podem, por isso, saber se o condutor do FQ, LG, circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente.
Assim como não podem saber se LG reduziu, ou não, a velocidade que imprimia ao FQ, não podendo, por conseguinte, ajuizar se foi por não ter reduzido a velocidade do veículo que conduzia, que não conseguiu evitar o embate no autor.
Aliás, a este propósito, a testemunha AV descreveu rigorosamente a dinâmica do acidente, ou seja, do embate do FQ no autor. Assim, indicou o local exato da via rápida onde se encontrava imobilizado o FM, numa versão que coincide com o teor do auto de participação de acidente por si elaborado e assinado pouco tempo após a ocorrência do sinistro (documento de fls. 19-24), assim como com as fotografias que constituem os documentos de fls. 205 (1.ª parte) e 218.
Resultou inequivocamente do depoimento da testemunha AV que o autor se encontrava fora do FM, junto à roda traseira do lado esquerdo deste veículo, cerca de 50 centímetros dentro da hemi-faixa de rodagem por onde seguia o FQ, numa via rápida, equiparada a auto-estrada, reclinado para trás, a esticar uma “cinta” com a qual pretendia acondicionar a carga transportada naquela viatura, toros de madeira.
As referidas fotografias revelam com nitidez que as rodas do lado esquerdo do FM pisavam o risco longitudinal que separa a hemi-faixa da direita, por onde seguia o FQ, da respetiva berma.
Por isso, encontrando-se o autor fora do FM, em frente ao seu rodado esquerdo, a esticar uma “cinta”, com a qual pretendia acondicionar a carga que transportava (toros de madeira), com o corpo reclinado para trás, é, reitera-se, de todo verosímil a versão da testemunha AV no sentido de que o autor se encontrava cerca de 50 cms dentro da hemi-faixa de rodagem da direita, por onde circulava o FQ.
Deve acrescentar-se, aliás, que vistas as ditas fotografias, 50 centímetros seria a medida mínima de ocupação que o autor faria da hemi-faixa da direita.
Mais resultou do depoimento da testemunha AV que quando ocupava a hemi-faixa da direita nos termos descritos, o autor fez um gesto de desequilíbrio, rodando sobre si mesmo, para o seu lado esquerdo, sem no entanto se projetar ou cair no solo, mas ocupando mais um espaço da faixa de rodagem, «avançando mais na faixa de rodagem», nas palavras da testemunha, tendo sido, segundo afirmou, neste exato momento que foi colhido pelo FQ. No dizer da testemunha AV, ninguém espera aquele movimento do autor.
Ainda segundo a testemunha AV, no momento do embate, na hemi-faixa da esquerda, sempre no mesmo sentido de marcha, um pouco mais atrás relativamente à posição do FQ, circulava um outro veículo que tinha desenhado um logótipo de uma padaria.
Tudo isto coincide com o afirmado pela testemunha LG, o condutor do FQ: «E sem dar por isso, do nada [viu] um vulto “Sr. João Luís” sem quaisquer elementos de sinalização, neste caso um colete, a dar um ligeiro movimento para o interior da faixa a qual transitava no momento, sendo uma situação imprevista e não podendo desviar na totalidade para a faixa da esquerda, pela passagem de outras viaturas». Por isso, afirma, se limitou «a tentar desviar do senhor, não conseguindo na totalidade contornar o mesmo», pelo que lhe tocou com a parte lateral direita do FQ.
A testemunha RG afirmou igualmente que se apercebeu que o FQ ia embater no autor assim que este «fez um movimento quando estava a apertar a cinta». Segundo esta testemunha, o autor estava agachado, na faixa de rodagem, a apertar a cinta que acondicionava a carga, fez um movimento sobre si próprio, rodando o tronco para a esquerda, sendo esse o exato momento em que foi embatido pelo FQ.
Não viu o FQ abrandar ou desviar-se para a esquerda, sendo certo, no entanto, que apenas visualizou aquele veículo praticamente no exato instante em que embateu no autor.
Foi expressiva a sua afirmação no decurso do depoimento que prestou em audiência: «Eu muito sinceramente, na minha maneira de pensar, acho, pronto, que se não fosse o facto do senhor que está no solo a fazer aquele movimento, se calhar o Opel até nem lhe tocava».
Ainda segundo afirmou, o que a «impressionou» e lhe fez crer que ia dar-se o embate, foi o gesto do autor rodar sobre si mesmo para a esquerda.
Perante todo o excurso que antecede, não pode considerar-se provado que:
«7. LG circulava distraído e não teve o cuidado de verificar se existiam veículos ou obstáculos à sua frente»;
«9. LG não reduziu a velocidade do seu veículo e com esse comportamento não conseguiu evitar o embate no Autor».
Termos em que improcede, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
E quanto aos enunciados vertidos em 15., 16., 17. e 18. dos «factos não provados»?
O tribunal a quo motivou assim a sua decisão:
«No que respeita aos factos elencados em (...) 10. a 22. (inclusive), estribou o Tribunal a sua convicção na total ausência de prova que os corroborasse, na medida em que nenhuma das testemunhas inquiridas sobre eles se pronunciou ou revelou possuir conhecimento sustentado, da mesma forma que nenhum elemento de prova foi carreado aos autos que se mostrasse capaz de comprovar o ali exarado.
Especificamente no que respeita ao elencado em 17. a 22., cumpre referir que nem mesmo a testemunha RNG – irmão do Autor – que referiu ter sido sempre o apoio do Autor, mencionou a existência de tais factos, não se referindo aos mesmos.
Na ausência de testemunhos que os referissem e de provas documentais que o sustentassem, nada mais havia a fazer que não fosse concluir pela inexistência de prova que os corroborasse».
O único concreto meio probatório constante do processo indicado pelo autor, e que, em seu entender, impunha decisão sobre os enunciados vertidos em 15., 16., 17. e 18. dos «factos não provados», diversa da recorrida, é o “Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil”, elaborado pelo Gabinete Médico-Legal e Forense da Madeira, que consta de fls. 391 a 394vº.
Ora, nada de concreto resulta desse relatório de modo a permitir concluir que:
15. Durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia;
16. Após a alta hospitalar, o Autor continuou a tomar medicamentos para o mal-estar mental;
17. Após sair do Hospital, o Autor esteve de repouso durante três meses, necessitando da ajuda de outras pessoas para poder realizar as suas tarefas diárias, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho e ir à casa de banho;
18. O Autor nos meses subsequentes ao acidente teve pesadelos e dificuldades em dormir.
Aquilo que se afirma no relatório pericial, no que respeita aos “dados documentais”, é que «da documentação clinica» facultada ao Gabinete Médico-Legal e Forense da Madeira, «consta cópia de registos do hospital Dr. NM, relatório do “Centro de Saúde”, Participação do Acidente da PSP (...), Deliberação da Verificação de Incapacidade Permanente da SS, da qual se extraiu:
(...)
3) Foi internado em Ortopedia tendo sido preconizado tratamento conservador para as lesões evidenciadas e teve alta do internamento a 03­02-2011 sendo portador de colete de Jewet e foi orientado para tratamentos de MFR e consulta de Ortopedia».
Ora, daqui não resulta que «durante o internamento o Autor foi submetido a fisioterapia».
Aliás, a este propósito o que resultou provado foi que «após a alta hospitalar, o Autor realizou sessões de fisioterapia».
No capítulo «DISCUSSÃO» e no subcapítulo intitulado «No âmbito do período de danos permanentes não valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano», afirma-se, no item denominado «Dependências Permanentes de Ajudas»:
· Ajudas medicamentosas (correspondem à necessidade permanente de recurso a medição regular – ex: analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos, sem a qual a vítima não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações da vida diária. Neste caso e por recomendação de Urologia manter terapêutica com Caverjet, Cialis, Spedra e Acutil, Nolotil, Tramadol+paracetamol, Amitriplina.
· Tratamentos médicos regulares (Correspondem à necessidade de recurso regular a tratamentos médicos para evitar um retrocesso ou argumento de sequelas – ex.: fisioterapia). Neste caso terapia neuropsicológica para um melhor ajustamento psicoemocional e comportamental, bem como para potenciar a funcionalidade dentro das suas competências cognitivas disponíveis. Tratamentos de reabilitação para evitarem o agravamento da rigidez de segmentos estabelecida. Recomendações de Urologia em manter a terapêutica com Caverjet, medicação oral (Cialis, Spedra) e consultas de Andrologia 3 vezes por ano.
· Ajuda de terceira pessoa (Corresponde à ajuda humana apropriada à vítima que se tornou dependente, como complemento ou substituição na realização de uma determinada função ou situação da vida diária) Neste caso deverá ser parcial devido aos défices severos na execução de tarefas mais complexas que exijam julgamento moral ou uso de funções cognitivas profundas entanto; incapacidade para ajuizar, em consciência assuntos pessoais complexos que exijam tomada de decisão.
Nada disto, reitera-se, permite dar como provados os enunciados vertidos em 15. a 18. dos «factos não provados.
Termos em que, também nesta parte, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
E quanto aos enunciados vertidos em 23. e 24. dos «factos não provados»?
O tribunal a quo motivou assim a sua decisão:
«Quanto ao referido em 23. e 24. estribou o Tribunal a sua convicção na ausência de prova sustentada que o comprovasse, na medida em que nenhum elemento documental que os corroborasse foi junto aos autos, sendo que a única testemunha que referiu a existência de sessões de fisioterapia - RNG – não mencionou datas, alturas ou períodos em que estas ocorreram (sequer fez menção a qualquer periodicidade) nem mencionou os custos que a deslocação para tais sessões acarretou.
Provou-se, assim, que o Autor efectuou sessões de fisioterapia – como consignado em Y. – mas não quantas sessões, com que periodicidade e nos dias mencionados em 23., da mesma forma que não se produziu prova capaz de comprovar os custos mencionados em 24.».
Ora, a verdade, é que além do que resulta demonstrado no ponto de facto Y), nenhum outro meio probatório constante do processo permite decisão sobre os enunciados vertidos em 23. e 24. dos «factos não provados», diversa da recorrida.
Termos em que, também nesta parte, se indefere a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.2 – Do enquadramento jurídico:
Afirma-se na sentença recorrida que «os factos elencados como provados já não permitem estabelecer a existência de um acto ilícito por parte do condutor do veículo de matrícula FQ (pois que nenhuma prova se produziu no sentido de que tenha violado qualquer norma estradal e/ou qualquer dever de diligência e prudência a que estava obrigado, antes se tendo comprovado o surgimento inopinado e insólito do peão), nem de um nexo de causalidade adequada entre a sua conduta e a produção do dano.
Face ao supra exposto, concluímos não ser possível, no caso dos autos, atribuir responsabilidade pela culpa ao condutor do veículo de matrícula FQ.
Ponderada a factualidade supra elencada como provada, concluímos que, pese embora o referido em T. e o preceituado pelo artigo 503º, do Código Civil, se produziu prova susceptível de ilidir a presunção ali estabelecida (cfr. o artigo 350º, 2, do Código Civil), na medida em que os factos revelam que o embate se ficou a dever à conduta do Autor.
Impõe-se, assim, concluir que o sinistro é imputável a culpa efectiva do Autor, mostrando-se ilidida a presunção de culpa do condutor do veículo de matrícula FQ».
Ou seja, a sentença recorrida começa por afirmar que o condutor do FQ não praticou qualquer facto ilícito, pois que nenhuma prova se produziu no sentido de que tenha violado qualquer norma estradal e/ou qualquer dever de diligência e prudência a que estava obrigado, antes se tendo comprovado o surgimento inopinado e insólito do peão.
A seguir refere que os factos elencados não permitem estabelecer «a existência de um nexo de causalidade adequada entre a sua conduta e a produção do dano», rematando no sentido de que não é «possível, no caso dos autos, atribuir responsabilidade pela culpa ao condutor do veículo de matrícula FQ».
Há, salvo o devido respeito, “uma certa dose de equívoco” no curso sequencial destas afirmações.
A doutrina define o conceito de responsabilidade como «a situação jurídica em que se encontra uma pessoa que, por força de determinada ocorrência, vê formar-se na sua esfera jurídica, um dever cominado pelo Direito»[2].
No caso concreto, movemo-nos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual.
É no nº 1 do artigo 483º do Código Civil que reside o preceito regra em matéria de responsabilidade civil extracontratual subjetiva.
Aí se dispõe este preceito que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São, assim, pressupostos da responsabilidade civil extracontratual:
- o facto ilícito (facto voluntário violador de direitos alheios ou de interesses juridicamente protegidos);
- o nexo de imputação do facto ao agente (a título de dolo ou negligência);
- o dano ou prejuízo;
- e o nexo de causalidade entre este e o comportamento do agente (danos resultantes da violação ou causados pelo facto).
Naturalmente que não se verificando qualquer facto ilícito, carece de sentido a invocação do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
A ilicitude pode revestir duas modalidades:
a) Pode traduzir-se na violação do direito de outrem, ou seja, na infração de um direito subjectivo;
b) Pode consistir na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
A propósito da primeira modalidade, escreve Sinde Monteiro: «Em primeiro lugar não pode duvidar-se que esta modalidade de ilicitude implica ou pressupõe a violação de direitos subjectivos, como aliás também resulta com clareza da história da lei.
(…). Um mínimo de coerência sistemática no próprio “contexto da lei” obriga a aceitar que por “direitos de outrem” se devem entender direitos subjectivos e não meros interesses, embora juridicamente protegidos (se toda a causação culposa de danos houvesse em princípio de ser considerada ilícita por virtude da primeira cláusula (…), então a 2ª alternativa tornar-se-ia tautológica ou inútil).
Em segundo lugar, reguladas no capítulo do incumprimento das obrigações (arts. 798 s.) as consequências da violação da mais importante categoria de direitos relativos (direitos de crédito), parece razoável admitir (salvo quando o contrário resulte da lei) que aqui, em sede de responsabilidade extracontratual, é aos direitos absolutos que autor norma se quer referir.
Esta é inequivocamente a intenção do legislador histórico, em correspondência com a concepção que subjaz à divisão da ilicitude em dois grupos fundamentais (violação de direitos e violação de disposições legais de protecção), tal como a encontramos no direito comparado»[3].
Menezes Cordeiro afirma, por sua vez, que «a contraposição feita no artigo 483º/1 entre direitos e (…) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (…) inculca que “direitos” é, efectivamente, o direito subjectivo próprio sensu. A tutela aquiliana é concedida, apenas, perante permissões específicas de aproveitamento de bens»[4].
Segundo Menezes Leitão, «a primeira variante da ilicitude prevista no art. 483º, nº 1 do Código Civil consiste na violação de direitos subjectivos. Esta modalidade de ilicitude tem a como característica especial o facto de, ao se exigir uma lesão de um direito subjectivo específico, se limitar a indemnização à frustração das utilidades proporcionadas por esse direito, não se admitindo assim nesta sede a tutela dos danos puramente patrimoniais (pure economic loss). Efectivamente, neste caso a função da primeira variante de ilicitude prevista no art. 483º, nº 1, não se reconduz à tutela genérica do património do sujeito, mas antes à tutela das utilidades que lhe proporcionava o direito subjectivo objecto de violação.
(…) é evidente que são abrangidos por esta modalidade de ilicitude os direitos sobre bens jurídicos pessoais como a vida, corpo, saúde e liberdade, cuja protecção tem, aliás, dignidade constitucional (cfr. arts. 24º e ss. da Constituição). A lesão de qualquer um destes bens é assim sancionada com a indemnização pelos prejuízos causados. Também os outros direitos absolutos como os direitos reais, os direitos de propriedade industrial e os direitos de autor se encontram tutelados pela responsabilidade civi1. Haverá assim ilicitude sempre que o agente venha a lesar alguma das utilidades proporcionadas por esses direitos.
Já os direitos de crédito não são abrangidos pelo art. 483º, uma vez que, conforme já se referiu, a sua tutela apenas se efectua nos termos da responsabilidade contratual (art. 798º), ou da cláusula geral do abuso de direito (art. 334º).
(…) haverá ilicitude sempre que sejam violados direitos de personalidade, como o direito ao nome e ao pseudónimo (arts. 72º a 74º); à não divulgação de escritos confidenciais (arts. 75º a 78º), à imagem (art. 79º) e à intimidade da vida privada (art. 80º)»[5].
Antunes Varela afirma que «ficam compreendidos nesta rubrica os casos mais nítidos da de ilicitude civil e, por isso, os mais fáceis de determinar.
Os direitos subjectivos aqui abrangidos (desde que o não-cumprimento, o cumprimento tardio e o cumprimento defeituoso dos direitos de crédito são abrangidos pela responsabilidade contratual), são, principalmente os direitos absolutos, nomeadamente os direitos sobre as coisas (corpóreas ou incorpóreas) ou direitos reais, os direitos de personalidade, os direitos familiares e a propriedade intelectual (…)»[6].
Almeida Costa refere também que «neste primeiro dispositivo – violação de direitos subjectivos – incluem-se caracterizadamente as ofensas de direitos absolutos, de que constituem exemplos os direitos reais (arts. 1251º e segs.) e os direitos de personalidade (arts. 70º e segs).
(…).
A matéria da violação dos direitos de crédito não se encontra, evidentemente, aqui contemplada, pois, como sabemos, o legislador ocupou-se dela em lugar à parte (arts. 798º e segs.)»[7].
E quanto à segunda das modalidades de ilicitude ali previstas, ou seja, a violação de uma disposição legal de protecção?
Segundo Antunes Varela[8] neste ponto em consonância com a doutrina alemã, para que se verifique uma violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios, são necessários três requisitos:
- que à lesão dos interesses do particular corresponda uma norma legal;
- que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada; e,
- que o dano se tenha registado no círculo dos interesses privados que a lei visa tutelar.
Almeida Costa afirma, a propósito desta modalidade da ilicitude: «tem-se agora em conta a ofensa de deveres impostos por lei que vise a defesa de interesses particulares, mas sem que confira, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos. (…).
Saliente-se, contudo, que a invocação do referido fundamento da responsabilidade depende de se verificarem os seguintes requisitos próprios: 1) que à lesão dos interesses dos particulares corresponda a ofensa de uma norma legal, entendendo-se esta expressão em termos amplos (…); 2) que se trate de interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos por essa norma e não simples interesses reflexos ou por ela apenas reflexamente protegidos, enquanto tutela interesses gerais indiscriminados (…), 3) que a lesão se efective no próprio bem jurídico protegido ou interesse privado que a lei tutela»[9].
Menezes Leitão considera que «esta categoria de ilicitude exige os seguintes pressupostos:
a) a não adopção de um comportamento, definido em termos precisos pela norma;
b) que o fim dessa imposição seja dirigido à tutela de interesses particulares;
c) a verificação de um dano no âmbito do circulo de interesses tutelados por esta via.
Exige-se, assim, em primeiro lugar, que alguém tenha desrespeitado determinado comando, sem o que não haverá base para estabelecer o juízo de ilicitude. Não basta, porém, qualquer norma jurídica, exigindo-se que o fim da norma consista especificamente na tutela de interesses particulares e não do interesse geral. Se a norma for dirigida a proteger o interesse público e só reflexamente atingir interesses particulares, estará naturalmente excluída a possibilidade de um particular exigir indemnização.
Finalmente, exige-se que o dano se verifique no círculo de interesses que a norma visa tutelar, sendo excluída a indemnização relativamente a outros danos, ainda que verificados em consequência do desrespeito pela norma.
Ao contrário do que sucede na categoria da ilicitude anterior, neste caso está naturalmente admitida a indemnização dos danos puramente patrimoniais»[10].
Menezes Cordeiro afirma que «numa certa preocupação importada da fonte alemã [o § 823, II, do BGB], o artigo 483º/1, na parte em que se reporta à ilicitude “normas de protecção”, restringiu o seu âmbito: pretendeu evitar que, havendo inobservância de normas jurídicas, qualquer pessoa que se entendesse prejudicada pudesse reclamar uma indemnização. Podemos, deste modo, fixar uma grelha de requisitos relativa à aplicação do preceito em causa, na parte referente às normas de protecção:
1.º Requer-se a presença de uma norma de conduta, devidamente aplicável;
2.º Essa norma deve destinar-se a proteger determinados interesses alheios, como tal se entendendo vantagens juridicamente protegidas e cuja supressão dê azo a um dano;
3.º A adopção, pelo agente, de um comportamento contrário à referida norma de conduta;
4.º De tal maneira que sejam precisamente atingidos os interesses protegidos pela norma violada»[11].
Ora, a sentença recorrida, ao afirmar que «os factos elencados como provados já não permitem estabelecer a existência de um acto ilícito por parte do condutor do veículo de matrícula FQ (pois que nenhuma prova se produziu no sentido de que tenha violado qualquer norma estradal e/ou qualquer dever de diligência e prudência a que estava obrigado […]), reporta-se apenas à segunda das modalidades da ilicitude a que acima se fez referência, olvidando a primeira.
Ora, aquilo que a matéria de facto provada revela, desde logo, é a ocorrência de um facto objetivamente ilícito na primeira das referidas modalidades da ilicitude.
É que o veículo FQ, conduzido por LG, embateu no corpo do autor, o que lhe provocou lesões.
Foi, assim, objetivamente violado um bem jurídico pessoal do autor, o seu corpo, se se quiser, a sua integridade física.
Questão diferente é a respeitante ao aludido nexo de imputação subjetiva do facto ao condutor do FQ, a título de dolo ou de negligência; por outras palavras, questão diferente é saber se alguma culpa pode ser imputada ao condutor do FQ pela ocorrência do facto objetivamente violador de um direito absoluto do autor, qual seja, como referido, o da sua integridade física.
Esta ação, emergente de responsabilidade civil por acidente de viação foi intentada pelo lesado:
- contra o condutor do FQ com base na culpa deste na produção do sinistro; e,
- contra a seguradora para a qual, à data do evento, se encontrava transferida a responsabilidade civil decorrente da circulação daquele veículo.
O autor nada diz acerca do circunstancialismo em que LG conduzia o FQ, limitando-se a afirmar, repetidamente (cfr. arts. 1.º, 11.º e 15.º da petição inicial):
- que este veículo era «propriedade de N, S.A.»; e,
- que era conduzido pelo referido LG.
No art. 13.º da petição inicial, para justificar a legitimidade passiva de LG, refere que o condutor do FQ, «à data do acidente de viação, foi o 2.º Réu».
No entanto, nada diz quanto ao contexto ou circunstancialismo em que o FQ, sendo propriedade da N, S.A., era, no momento do acidente, conduzido por LG.
Nada diz, nomeadamente, quanto a qualquer relacionamento entre LG e a dita N, S.A..
Aliás, apesar da imposição consagrada no art. 552.º, n.º 1, al. d), do C.P.C., o autor não expõe sequer as razões de direito que servem de fundamento à ação[12].
Foi LG quem veio informar, na contestação que apresentou em juízo, que:
- à data do acidente, a N, S.A, então proprietária do FQ, era a sua entidade patronal;
- o FQ lhe foi entregue pela N, S.A., para que se «deslocasse no exercício do seu trabalho, cumprindo as ordens que lhe foram dadas nesse dia circulando (...) por conta e no interesse da sua entidade patronal»;
- «no momento em que ocorreu o acidente o réu[13] estava a trabalha para a N, S.A, S.A. empresa que também era responsável pela manutenção e gestão do veículo».
Foi, pois, LG, enquanto réu, quem trouxe aos autos matéria enquadrável na previsão do art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do C.C., onde se encontra consagrada uma presunção de culpa dos condutores por conta de outrem na produção de acidentes causados por veículos.
A simples alegação, pelo autor, na petição inicial, de que o FQ era, à data do acidente, propriedade da N, S.A., jamais seria suscetível de enquadrar a situação sub judice na previsão daquele preceito e, consequentemente, de lhe acarretar o benefício da presunção ali estabelecida.
É que, para que o lesado beneficie de tal presunção é necessária a demonstração da efetiva existência de uma relação de comissão entre o condutor e o proprietário do veículo, não se presumindo a qualidade de comissário de qualquer condutor que conduza um veículo alheio[14].
Ora, depois de o próprio LG, enquanto réu[15], se ter colocado sob a alçada do art. 503.º, n.º 3, 1ª parte, do C.C., resultou provado que «o veículo de matrícula FQ pertencia a “N, S.A” e era conduzido por LG enquanto trabalhava».
O tribunal a quo fundamentou assim a decisão sobre tal ponto de facto: «O elencado em T. mostra-se comprovado pelo depoimento de LG que, de forma clara, o refere, acrescentando que se encontrava em trabalho aquando da ocorrência do embate».
Ora, no depoimento que prestou por escrito (fls. 505-506), LG afirma que «no dia 19.01-2011 dia da ocorrência do acidente, estava a conduzir uma viatura OC de matrícula FQ em trabalho, pertencente à empresa N., S.A.. Circulava no sentide F / São Vicente, para junto de um funcionário da TM proceder à organização dos trabalhos (locais a colocar a sinalização, locais a dar início aos cortes de via) a dar início no princípio da semana seguinte, em áreas de reposição de pavimentos para a Via Expresso».
Conclui-se, assim, face à matéria de facto provada em T., que no momento do acidente LG conduzia o FQ por conta da sua entidade patronal, a sociedade N, S.A, S.A., no exercício das suas funções de trabalhador dessa sociedade; ou seja, numa relação de comissão.
Nos termos do já referido art. 503.º, n.º 3, do C.C., «aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1».
Este preceito estatui, como há pouco se referiu, uma presunção de culpa sobre o condutor por conta de outrem, pelos danos que causar, presunção essa, conforme o S.T.J. estabeleceu no seu já longínquo assento n.º 1/83, de 14.04.1983, aplicável nas relações externas, ou seja, nas relações entre o condutor, como lesante, e o titular ou titulares do direito a indemnização.
E já agora acrescente-se que «a consequência lógica de que, se aquele que conduz por conta de outrem é considerado comummente um comissário e se a presunção de culpa só se aplica enquanto ele conduzir no exercício das funções, no sentido que a esta expressão é dado pelo n.º 2 do art. 500.º[16], então, sempre que o comissário for responsável com fundamento em presunção de culpa, também o comitente o será; comitente que, em regra, será igualmente detentor efetivo do veículo e sobre o qual incidirá, simultaneamente, responsabilidade objectiva nos termos do n.º 1 do art. 503.º».
No caso concreto, o autor goza, assim, por via do alegado pelo próprio comissário, LG, condutor do FQ, da presunção de culpa deste na produção do evento danoso, ou seja, do acidente de viação a que se reportam os presentes autos.
Seja como for, trata-se de uma presunção iuris tantum, logo ilidível, que cede perante a prova da culpa do lesado, no caso, do autor, na produção daquele evento, consubstanciando um evidente fortalecimento da posição, libertando-o do encargo probatório da culpa, tornando assim muito mais segura a obtenção da indemnização, sendo que, ao réu não basta a mera contraprova daquela presunção legal, antes lhe incumbindo demonstrar a inexistência do facto presumido ou da factualidade que está na base daquela presunção, para a ilidir[17].
Vejamos, então, se na situação em apreço se mostra ilidida a presunção de culpa que, por via da 1.ª parte do n.º 3 do art. 503.º do C.C., impende sobre LG, o condutor do FQ, enquanto comissário, na produção do acidente.
A sentença recorrida deu como provado que:
 (i). No dia 19 de Janeiro de 2011, o autor conduzida o veículo ligeiro de mercadorias, de marca e modelo MC, com a matrícula FM na Estrada Regional nº 101 (via rápida), no sentido este – oeste;
(ii). O FM transportava barrotes e tábuas de madeira que, pela sua dimensão, ultrapassavam as medidas da zona de carga do veículo, indo em suspensão[18];
(iii). O autor imobilizou o FM na berma, com o rodado frontal esquerdo sobre a linha delimitadora da berma e o rodado esquerdo traseiro dentro da hemi-faixa de rodagem da direita, junto ao Km 15,3, sendo que, a cerca de 200 m do local onde ocorreu o embate existia um ramal de saída da via rápida para Santo António;
(iv). De seguida, saiu do veículo e apertou as cintas que seguravam a madeira do lado direito da viatura e deslocou-se para o lado esquerdo do veículo, para apertar as cintas deste lado;
(v). No momento do embate do FQ no autor este tentava acondicionar, junto à lateral esquerda do veículo, a carga que transportava (tábuas de madeira), apertando as cintas de segurança da mesma;
(vi). Na altura em que FQ passava pelo FM, o autor deu um passo atrás na direcção da faixa de rodagem, posicionando-se agachado, para tomar balanço a fim de ajustar as referidas cintas e desequilibrou-se;
(vii). Na sequência do que se deu o embate entre o autor e a lateral direita do FQ;
(viii). O autor não envergava colete reflector;
(ix). A presença do FM imobilizado na via não estava sinalizada com triângulo de pré-sinalização de perigo e sinais luminosos intermitentes em funcionamento[19]
Está ainda provado que:
(x). O condutor do FQ apercebeu-se que, à sua frente, ocupando a berma do lado direito e parte da via de trânsito da direita por onde circulava, se encontrava parado o FM;
(xi). O condutor do FQ não logrou desviar o veículo para a via do lado esquerdo, porque havia trânsito a circular nessa faixa;
(xii). A posição em que se colocou o autor para efectuar a manobra de ajustamento das cintas não permitia a sua visibilidade[20].
Ora, perante isto, a outra conclusão não parece ser possível chegar que não seja a de que o autor foi o único culpado na produção do acidente a que se reportam os presentes autos, assumindo a culpa a veste de um juízo de censurabilidade relativamente à atuação do agente, sendo possível inferir-se que este podia e devia ter agido de forma diversa.
A conduta do agente é tida como culposa quando se revele juridicamente reprovável, assumindo particular importância o critério legalmente estipulado no n.º 2 do art. 487.º, onde se estabelece que a culpa do agente será apreciada segundo a diligência de um bom pai de família, face ao caso concreto.
Este padrão abstrato consistirá na diligência do homem médio, prudente e sagaz, identificando-se com a fórmula romana bonus pater familias, ou seja, do homem comum, não sendo demais sublinhar que, apesar de este critério se traduzir num conceito abstrato, deve atender-se sempre às circunstâncias do caso em apreço, o mesmo é dizer, aos próprios condicionalismos inerentes à concreta situação em apreço.
Nestes termos, a culpa é aferida não apenas enquanto deficiência da vontade mas como deficiência da conduta, no caso concreto, tendo presente o descuido e falta de zelo com que o autor atuou[21].
Conforme corretamente afirmado na sentença recorrida, «o Autor decidiu parar o seu veículo na berma da via rápida – quando a cerca de 200 metros podia fazê-lo em segurança (conforme elencado em P) – sair do veículo, sem qualquer precaução de sinalização e sem envergar colete reflector, invadir a hemi-faixa de rodagem (se o veículo se encontrava parado no limite da berma, como se extrai de fls. 205 e o Autor se colocou na lateral do veículo, necessariamente já se encontrava dentro da hemi-faixa de rodagem), na posição de agachado (portanto, ainda menos visível para quem circulava nos outros veículos) e fazer balanço para melhor acondicionar as cintas que prendiam a sua mercadoria, na sequência do que se desequilibrou e recuou ainda mais para dentro da hemi-faixa de rodagem.
Tudo ponderado, temos que a factualidade provada nos autos, no que respeita à dinâmica do embate, comprova a existência de um comportamento perfeitamente imprevisível por parte do Autor, tornado impossível ao condutor do veículo de matrícula FQ (como a qualquer outro condutor que seguisse na mesma via, nas mesmas circunstância de tempo, modo e lugar, e se mostrasse medianamente prudente) evitar o embate».
Em suma, pois, também nós entendemos que a produção do acidente a que se reportam os presentes ocorreu por culpa exclusiva do autor.
Perante esta conclusão, carece de sentido, por total desnecessidade, trazer à liça questões relacionadas com a concorrência:
- de culpas (art. 570.º do C.C.);
- entre a culpa e o risco (art. 505.º do C.C.),
não que sem antes se afirme que se discorda do entendimento sufragado na sentença recorrida no sentido de as «normas civis que regem o nosso Código Civil», não permitirem, para efeitos indemnizatórios por danos emergentes de acidente de viação, a concorrência entre a culpa do lesado e o risco decorrente da circulação de veículo automóvel.
Conforme salienta Calvão da Silva, sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado (como sucede no caso sub judice) ou a terceiro[22].
Face a todo o excurso que antecede, não sendo o condutor do FQ culpado na produção do acidente, antes devendo a culpa pela ocorrência do sinistro ser imputada, em exclusivo, ao autor, por falta de um dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil, no caso, extracontratual, terá o presente recurso de ser julgado improcedente, com a consequente manutenção da sentença recorrida.
*
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pelo apelante (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.), sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga.

Lisboa, 12 de março de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)
Relator
José Capacete
Adjuntos
Carlos Oliveira
Diogo Ravara

[1] Trata-se de um enunciado conclusivo.
[2] Cfr. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. II, Lisboa, 1980, p. 258.
[3] Responsabilidade por Conselhos, Recomendações e Informações, Coleção Teses, Almedina, 1989. pp. 181 ss.
[4] Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, 2010, p. 447.
[5] Direito das Obrigações, Vol. I, 8ª Ed., Almedina, 2009, pp. 292 ss.
[6] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª Ed., Almedina, 2003, pp. 533 ss.
[7] Direito das Obrigações, 8ª Ed., Almedina, 2000, pp. 505 ss.
[8] Ob. Cit., pp. 539-540.
[9] Ob. Cit., pp. 506-507.
[10] Ob. Cit., pp. 297-298.
[11] Ob. Cit., pp. 451-452.
[12] A repartição das tarefas entre as partes e o juiz resumida no brocardo Da mihi facta, dabo tibi ius já não vale hoje de modo absoluto.
[13] Por evidente lapso escreveu «autor».
[14] Cfr. o Ac. do Pleno das Secções Cíveis do S.T.J. de 30.04.1996, DR n.º 144/96, Série II, de 24.06.1996. Maria da Graça Trigo, Responsabilidade Civil, Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2017, p. 27, nota 26, refere «que o condutor do veículo não seja o seu proprietário (ou detentor efetivo a outro título) não faz, por si só, presumir a relação de comissão (...)»; no mesmo sentido, cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, 2010, p. 671: «Perante a presunção de cumpra do comissário, via 500.º, os tribunais têm sido mais restritivos na caracterização da comissão. Assim, a culpa do condutor só se presume quando conduza por conta de outrem e não quando apenas conduza um veículo alheio».
[15] Foi, posteriormente, como se viu, julgado parte ilegítima para os termos da causa e absolvido da instância, tendo prestado depoimento como testemunha, apresentado por escrito, nos termos permitidos pelo art. 518.º, n.º 1, do C.P.C. (fls. 505-506).
[16] «A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada».
[17] Cfr. Marta Inês Soares de Almeida, Culpa versus Risco, Reflexões Concernentes à Dualidade de Fundamentos na Responsabilidade Civil por Acidentes de Viação, O Caso Particular da Concorrência da Culpa do Lesado com o Risco do Veículo, Dissertação de Mestrado, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, pp. 44-45, acessível na internet em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42727/1/Marta%20Almeida.pdf.
[18] O que constitui violação do disposto no art. 56.º, n.ºs 2 e 3, al. b), do Código da Estrada (doravante referido apenas por CE).
[19] Tudo isto configura violação do disposto nos arts. 60.º, n.º 2, al. c), 63.º, n.º 3, n.ºs 2, al. a) e 4, e 88.º, n.ºs 2, 3 e 4, do Coimbra Editora;
[20] Importa recordar que a decisão sobre a matéria de facto provada, descrita em A. a OO. da fundamentação de facto da sentença recorrida, não foi objeto de impugnação, pois o apelante apenas se limitou a impugnar a decisão do tribunal a quo sobre os enunciados descritos sob os pontos 3., 6., 7., 8., 9., 15., 16., 17., 18., 23. e 24., dos «factos não provados».
[21] Cfr. Marta Inês Soares de Almeida, Ob. cit., pp. 38-39.
[22] Sobre a questão da concorrência entre culpa e risco, vejam-se os excelentes estudos Calvão da Silva, em anotação ao Ac. do S.T.J. de 01.03.2001, R.L.J., Ano 134.º, pp. 112 ss (esp. pp. 115-118) e ao Ac. do S.T.J. de 04.10.2007, R.L.J., Ano 137.º, pp. 35 ss..