Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
139/22.1T8MFR.L1-8
Relator: TERESA SANDIÃES
Descritores: PROCESSO DE MAIOR ACOMPANHADO
AUDIÇÃO DO BENEFICIÁRIO
OMISSÃO
NULIDADE
CONSEQUÊNCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Decorre dos art.ºs 139º, nº 1 do CC e 897º, nº 2 do CPC que a diligência de audição do beneficiário no processo de maior acompanhado é obrigatória, não se contemplando qualquer exceção.

II - A situação física e psíquica do beneficiário (incluindo eventuais dificuldades de comunicação) deve ser verificada pelo juiz na diligência (princípio da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, com reflexo na opção pelas medidas de acompanhamento mais adequadas à situação), ainda que para tal o juiz se desloque onde se encontre o beneficiário.

III - A omissão da audição do beneficiário constitui a nulidade prevista no art.º 195º, nº 1, 2ª parte, do CPC (cfr. art.º 897º, nº 2 do CPC), por ter influência no exame e decisão da causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

O Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 138º e 141º, nº 1 do Código Civil e 891º e seguintes do CPC, com as alterações introduzidas pela Lei nº 49/2018 de 14 de agosto, instaurou ação especial de acompanhamento de maior, contra ML.
Concluiu pela procedência da ação, nos seguintes termos:
“- decretar-se o Acompanhamento de ML, relativamente à gestão da sua pessoa e bens mediante representação geral por razões de saúde, nos termos do artigo 145º nº 2 al b) 1ª parte do Código civil uma vez que não tem capacidade para exercer qualquer actividade que lhe diz respeito quer no âmbito da gestão da sua pessoa quer no âmbito da gestão de bens;
- que a data de início de incapacidade seja aferida pelo Perito Médico competente aquando da avaliação médica nos presentes autos. (…)
Para exercer as funções de acompanhamento, em qualquer das suas vertentes pessoal ou patrimonial (representação geral) indica-se: PL, filho do beneficiário.“
Face à impossibilidade de citação do beneficiário foi nomeada defensora, que apresentou contestação, tendo requerido a realização de prova pericial ao beneficiário, bem como a sua audição. Requereu, ainda, que seja nomeada para as funções de acompanhante ao beneficiário a sua mulher, com quem reside; e nomeado como protutor o filho do beneficiário.
Foi realizada perícia ao beneficiário.
Notificado do relatório pericial e face ao seu teor, o beneficiário requereu, por ter por necessária, a sua audição “afim de cabalmente melhor se aferir das medidas de Acompanhamento, nomeadamente, as limitadoras de direitos pessoais, e de quem, logisticamente e afetivamente, deverá ser o Acompanhante/tutor do Beneficiário do Beneficiário.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de nada opor ao requerido, diligência que também requereu por considerá-la como essencial e obrigatória.
De seguida foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“a) Declaro a necessidade de representação geral de ML, por razões de saúde, desde 2021;
b) Nomeio como sua acompanhante a mulher, AL;
c) Constituo Conselho de Família, nomeando como vogais do Conselho de Família PL e CR, filho e nora, respectivamente;
d) Designo como Protutor PL;
e) Declaro que se desconhece a existência de testamento vital e de procuração para cuidados de saúde.”
Previamente à prolação da sentença, e sob a mesma conclusão, foi proferido o seguinte despacho:
“Considerando o conteúdo do relatório pericial que antecede, a vigência da Lei n.º 1- A/2020 de 19.03, cuja eficácia retrotrai a 09.03.2020, nos termos do seu artigo 10.º, conjugado com o artigo 37.º do Dec. Lei n.º 10-A/2020 de 13.03, e bem assim o estado de alerta por virtude do SARS COV 2 e a doença COVID 19, declarado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022 de 26.08, dispenso a realização da audição do beneficiário, ao abrigo do artigo 26.º, n.º 2 da Lei n.º49/2019 de 14.08.”
O Ministério Público interpôs recurso do despacho de dispensa de realização da audição do beneficiário, e consequentemente da sentença final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
“1. Por decisão proferida a 26.09.2022, em momento anterior à prolação da sentença, a Mm.ª Juiz do tribunal a quo decidiu dispensar a realização da audição do beneficiário, fazendo-o ao abrigo do artigo 26.º, n.º 2 da Lei n.º49/2019 de 14.08 e “considerando o conteúdo do relatório pericial (…), a vigência da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, cuja eficácia retrotrai a 09.03.2020, nos termos do seu artigo 10.º, conjugado com o artigo 37.º do Dec. Lei n.º 10-A/2020 de 13.03, e bem assim o estado de alerta por virtude do SARS COV 2 e a doença COVID 19, declarado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022 de 26.08”.
2. Mais considerou que “as razões arguidas nos requerimentos que antecedem relativamente à audição do beneficiário prendem-se essencialmente com o diferimento do cargo de acompanhante, não bulindo com a aferição da necessidade de acompanhamento ou sua extensão, razão pela qual não se vislumbra necessidade de proceder à audição daquele, atendendo às razões expostas no corpo do texto, sendo quanto àquele diferimento os autos já possuem elementos que permitem decidi-lo sem necessidade de outras diligências.”
3. Ora, após o exame médico realizado ao beneficiário e na sequência do relatório pericial junto, este, por intermédio do seu defensor, veio requerer a sua audição pessoal, “afim de cabalmente melhor se aferir das medidas de Acompanhamento, nomeadamente, as limitadoras de direitos pessoais, e de quem, logisticamente e afetivamente, deverá ser o Acompanhante/tutor do Beneficiário do Beneficiário”, em conformidade com o previsto nos artigos 139.º, n.º 1, do C. Civil e art.º e 898º do C.P. Civil.
4. Tal requerimento mereceu a concordância do Ministério Público, requerendo igualmente a audição daquele.
5. Porém, em momento imediatamente anterior à sentença proferida, a Mm.ª Juiz do tribunal a quo decidiu pela dispensa da audição do beneficiário, fazendo-o ao abrigo do disposto no art.º 26.º/2 da Lei n.º 49/2019 de 14.08 e com base nos fundamentos supra aduzidos.
6. Ora art.º 26.º da Lei n.º 49/2019 de 14.08, que criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, estabelece no seu n.º 1 que a “presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor”, referindo o n.º 2 que o juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes”.
7. Acontece, que a presente ação foi já instaurada após a entrada em vigor de tal lei, não havendo, no nosso entender, que efetuar qualquer gestão processual ou adequação formal do processado em face do novo regime estabelecido, porquanto tal apenas se justifica nos processos de interdição e/ou inabilitação anteriores.
8. Consideramos ainda que a invocação da vigência da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03, e do Dec. Lei n.º 10-A/2020 de 13.03, e bem assim o estado de alerta por virtude do SARS COV 2 e a doença COVID 19, diplomas que, na altura da sua entrada em vigor vieram estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, não é fundamento suficiente para dispensar a diligência de audição pessoal do beneficiário a qual, perante o invocado estado de alerta, sempre poderia ser realizada através de meio de comunicação à distância adequado (nesse mesmo sentido vide o art.º 6.º-E/n.º 2 al. b), n.º 4 al. a) e n.º 5 da primeira citada lei).
9. Nos processos de maior acompanhado a diligência de audição pessoal e direta do beneficiário é obrigatória e em caso algum pode ser dispensada, sendo que qualquer eventual impossibilidade de proceder àquela audição deve ser pessoalmente verificada pelo juiz, aquando a realização da diligência – art.ºs 897.º e 898.º ambos do Código Processo Civil
10. Com efeito, esta audição pessoal deve sempre ocorrer, mesmo que o juiz se tenha que deslocar ao local onde o beneficiário se encontre, pois que um dos princípios orientadores do processo especial de acompanhamento de maiores é o da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, não só para se poder conhecer a real situação daquele, mas também para se poder ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas a essa situação e, a nosso ver, da pessoa que melhor desempenhará as funções de acompanhante.
11. Prescindir da audição pessoal do beneficiário implicaria reduzir, de modo desproporcionado e sem motivo bastante, o seu direito a ser consultado, contrariando assim um dos mais relevantes princípios norteadores do regime do maior acompanhado.
12. Cremos, pois, que o despacho da Mm.ª Juiz do tribunal a quo, que dispensou a realização da audição pessoal e direta do beneficiário, violou a norma legal prevista no art.º 897º, nº 2 do CPC, o que, por ter manifesta influência no exame e decisão da causa, configura uma nulidade processual, nos termos previstos no art.º 195º, n° 1, 2ª parte, do CPC, e que tem como consequência a anulação do processado subsequente, maxime da sentença final, proferida posteriormente.
13. Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão que dispensou a realização da audição do beneficiário, anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, e determinar-se a audição pessoal e direta de ML, nos termos do artigo 139º, nº 1 do Código Civil e nos artigos 897º, nº 2 e 898º ambos do Código de Processo.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O beneficiário apresentou recurso da sentença, terminando com as seguintes conclusões:
“I- O presente destina-se à parte da douta Sentença, que após declarar “(…) a necessidade de representação geral de ML, por razões de saúde, desde 2021; (…)” vem a decidir, nomeando, CR, como uma das vogais para composição do conselho de família, tendo como pressuposto, entre outros e nomeadamente, que a atrás referida CR é nora do Beneficiário ora Recorrente, conforme se passa a transcrever da Sentença supra identificada e  o infra transcrito que consta a sublinhado, é nosso), isto é,
i- Se não tendo sido indicada pelos Requerente/Ministério Público, nem pelo Beneficiário ora Recorrente, a CR para qualquer cargo da tutela, a mesma poderia vir a ser nomeada segunda vogal do concelho de família, sem que antes fossem ouvidos os demais que foram nomeados e os Requerente/Digno MP e Requerido/o ora Recorrente, nem que tal fosse feito por notificação elaborada para o efeito e;
ii- Se estão, ou não, verificados os necessários pressupostos para a nomeação do segundo vogal, CR, para o concelho de família.
Prosseguindo com a transcrição da Sentença que ao caso interessa e consta no acima ponto I referida:
“ V - FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
(…)
Face ao anteriormente exposto, entende este Tribunal encontrarem-se verificados todos os pressupostos previstos na lei e que determinam o peticionado decretamento da medida de acompanhamento de representação geral do beneficiário dado que é a única que logra satisfazer todas as necessidades a suprir no caso concreto – cfr. artigo 145.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) primeira parte, ambos do Cód. Civil.
Impõe-se assim, ao abrigo do artigo 143.º do Cód. Civil, suprir a incapacidade de exercício do beneficiário por via da nomeação de um acompanhante.
Considerando a factualidade apurada nos autos, da qual resulta ser o acompanhado casado, sendo a sua mulher, AL, quem provê à satisfação das suas necessidades imediatas, acompanhando-o e dele tratando, impõe-se nomeá-lo como seu acompanhante, tal como requerido - cfr. n.º 2, alínea a) do preceito em referência.
Por fim, face ao conteúdo do artigo 900.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, em conjugação com o disposto no n.º 4 do artigo 145.º do Cód. Civil, impõe-se a constituição do Conselho de Família por virtude de se ter decretado a medida de acompanhamento de representação legal.
Donde, há que nomear Protutor, que, nos termos do artigo 1952.º do Cód. Civil, a escolher por entre os parentes ao afins …, tomando em conta, …, a proximidade do grau, as relações de amizade, a idade, o lugar da residência e o interesse manifestado pela pessoa do interditado.
Ora, considerando que o acompanhado é pai de PL, nomeio-o como vogal protutor – cfr. ainda artigo 1955.º, n.º 2 do Cód. Civil.
Por fim, considerando os critérios para nomeação do outro elemento do Conselho de Família, ínsitos no já referido artigo 1952.º do Cód. Civil, nomeadamente no seu n.º 2, ex vi artigo 139.º do mesmo diploma legal, integrará tal órgão da tutela CR, nora.
VI - DISPOSITIVO: (…)”
II- Tendo o acompanhamento decidido incluído a representação geral da Requerida, há que ter presente que o n.º 4, do artigo 145.º, do Código Civil, dispõe que essa representação segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, sendo que, a tutela é exercida por um Tutor/Acompanhante e pelo Conselho de Família, cuja constituição pode ser dispensada, no regime de acompanhamento de maiores (artigo 1924.º, n.º 1, e 145.º, n.º 4, do Código Civil), sendo que:
a) O Conselho de Família é composto por dois vogais (artigo 1951.º do Código Civil), escolhidos segundo os critérios estabelecidos no artigo 1952.º do Código Civil.
III- Face ao transcrito no supra ponto I, constata-se que o pressuposto legal para ter sido nomeada vogal do Conselho de Família CR, foi apenas o facto de a mesma ser nora do ora Recorrente, o que não corresponde à verdade, porquanto;
a) Juntos com a petição inicial, existem, entre outros e nomeadamente, os docs. 1, 3 e 4, que são, respetivamente, os Assentos de Nascimento do ora Recorrente, de PL, filho do Recorrente e da mulher do Recorrente e, de AL, que é a mulher do Recorrente e mãe do atrás referido PL, sendo que:
b) Pelo Assento de Nascimento/doc. 3 acima referido, constata-se que o acima referido PL  foi casado com CR, mas que tal casamento foi dissolvido por divórcio ocorrido em 07 de Abril de 2011, conforme se passa a transcrever do doc. 3, respetiva 3ª página, junto com a P.Inicial/Requerimento Inicial:
“Assento de Nascimento nº 000, Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa Averbamento nº …, de 07-04-2011
O Casamento averbado sob o nº 1 foi dissolvido por divórcio declarado por decisão de 07 de Abril de 2011, transitada em 07 de Abril de 2011 proferida pela Conservatória do Registo Civil de Torres Vedras. Processo nº 000 da Conservatória do Registo Civil de Torres Vedras. Conservador(a) MON, Conservatória do Registo Civil de Torres Vedras”.
III- É também referido pelo Requerente/Digno M.P. que os familiares mais próximos do Beneficiário são o filho/ PL e a esposa do Beneficiário/ AL bem como, que não existem outros familiares próximos do Beneficiário, conforme consta dos artigos 19º e 20º da P.Inicial a fls… dos autos já já transcritos no ponto vii do supra artigo 5º.
IV- A alegada nora do Beneficiário mencionada na Sentença ora em causa, CR, deixou de ser nora do Beneficiário desde 07/04/2011 em diante, pelo que deixou de ser parente, por afinidade, do Beneficiário, não lhe sendo familiar a qualquer outro título, porquanto:
a) O parentesco é uma relação de sangue: são parentes as pessoas que descendem umas das outras (parentesco em linha reta ou direta), ou descendem de progenitor comum (parentesco em linha transversal ou colateral) – face ao atrás referido, a referida CR não é parente ou familiar do Beneficiário;
b) A afinidade é o vínculo que liga um dos cônjuges aos parentes (que não aos afins) do outro cônjuge (art.º 1584º CC), pelo que a fonte da afinidade é o casamento no entanto, a partir da entrada em vigor, em 01/12/2008, da Lei nº 61/2008, a afinidade passou a cessar pela dissolução do casamento por divórcio, apenas continuando a não cessar por morte – face ao atrás referido, a referida CR, deixou de ter qualquer vinculo, por afinidade, com o Beneficiário e;
c) A referida CR, não foi indicada pelo Requerente/digno M.P., nem pelo Beneficiário, para o exercício de qualquer função inerente ao que se destina o presente processo, cfr. se verifica ao longo de fls… dos autos e, face ao facto de constar o  averbamento da dissolução do casamento por divórcio, de PL e a respetiva mulher, CR, conforme o já referido e transcrito no supra nº 2, respetiva alínea a), era imprevisível ao Beneficiário ora Requerente que esta última referida viesse nomeada como vogal do Conselho de Família, com o fundamento de ser nora do Beneficiário (uma vez que já não é nora desde 07/04/2011, em diante).
Acresce ao acima exposto;
V- Sobre a referida CR, desde a data em que ocorreu o divórcio entre aquela e seu filho/PL, nada o Beneficiário ora Recorrente sabe daquela primeira, e desde então até à presente data que nunca mais a viu, não se sabendo onde a mesma reside, nem que contactos a mesma tem, inexistindo qualquer relação de amizade entre o Beneficiário e a referida CR, tudo o que se tem como factos impeditivos de que a mesma possa ser vogal do Conselho de Família, para além de que:
a) Estipula o nº 1 do artigo 1952º do Código Civil conforme se passa a transcrever “1. Os vogais do conselho de família são escolhidos entre os parentes ou afins do menor, tomando em conta, nomeadamente, a proximidade do grau, as relações de amizade, as aptidões, a idade, o lugar de residência e o interesse manifestado pela pessoa do menor.”( ao caso a “pessoa do menor” tem que ser entendido como a “pessoa do maior acompanhado” – face ao já exposto nos supra artigos 3º e 6º a 9º , isto é, a CR carece dos necessários pressupostos expressos no normativo atrás referido para poder ser escolhida e/ou nomeada como vogal do Conselho de Família, isto é, a referida CR não é parente de sangue, nem por afinidade, do Beneficiário ora Recorrente, pelo que não tem qualquer grau de proximidade, seja por sangue, seja por afinidade, não tendo qualquer relação com o Beneficiário, pelo que não existe qualquer relação de amizade entre o Beneficiário e a referida CR, ou vice versa, o que fica patente do também já exposto, isto é, a CR carece dos necessários pressupostos expressos no normativo atrás referido para poder ser escolhida e/ou nomeada como vogal do Conselho de Família;
b) Acresce que, estipula o nº 2 mesmo artigo 1952º do Código Civil, o que se passa a transcrever “2. Na falta de parentes ou afins que possam ser designados nos termos do número anterior, cabe ao tribunal escolher os vogais de entre os amigos dos pais, vizinhos ou outras pessoas que possam interessar-se pelo menor.” ( mais uma vez, o “interessar-se pelo menor” tem que ser entendido como o interessar-se pelo Maior Acompanhado) – sucede que a CR, não é amiga de qualquer familiar do Maior Acompanhado ora Recorrente, nem é amiga do mesmo, nem é vizinha do mesmo, nem é pessoa que se possa interessar pelo Beneficiário, este que pós o supra referido divórcio, em 07/04/2011, nunca foi contactado ou visitado pela sua ex-nora, nem a mesma foi vista pelo Beneficiário ou sua mulher na vizinhança da casa de ambos, nem são conhecidos o paradeiro e/ou quaisquer contactos de CR e, o Beneficiário ora Recorrente, desde Abril de 2011 em diante e até à presente data, que não tem qualquer relação, incluindo não ter relação de amizade, com a referida CR, sua ex-nora, o que se tem que ocorre vice-versa, por inexistência de quaisquer contactos da ex-nora com o Beneficiário ora Recorrente ( ou com a mulher ou filho deste último referido) desde 07/04/2011 em diante e até à presente data).
c) Referido nas acima alíneas a) e b), retira-se também a seguinte consequência, salvo melhor opinião e com o devido respeito – caso CR seja vogal do Conselho de Família, este órgão não pode cumprir com as suas obrigações legais que decorrem, entre outros e nomeadamente, dos artigos 1957º e 1958º do C.Civil.
VI- Por outro lado, quanto ao conselho de família e aos vogais que devem constituir o mesmo, já não sendo aquele, sequer, de constituição obrigatória, à luz da lei atual (art.º 900.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), rege o art.º 1951.º e ss. do Código Civil e a regra para a escolha do cargo deve cumprir as regras do art.º 1952.º sendo certo que:
a) Tal como resulta da douta Sentença ora em causa, o único fundamento para a nomeação da segunda vogal/CR para membro do Conselho de família, foi o facto errado e inexistente de aquela ser casada com o filho/PL do ora Recorrente, o que teve como consequência o facto errado daquela primeira ser tida como nora do ora Recorrente e;
b) Para além do errado fundamento de CR ser nora do ora Recorrente ( que já não é desde 07/04/2011 em diante), da fundamentação da decisão de que ora se recorre, não resulta qualquer menção e qualquer outra justificação que permita perceber qual outro critério que presidiu à nomeação atrás referida, nomeadamente que permitisse aferir das suas capacidades físicas, psíquicas e económicas atuais por forma a se concluir pela salvaguarda do interesse imperioso do Beneficiário.
c) Acresce que, face ao estipulado nos artigos 1957º e 1958º do C.Civil, não se vislumbra como o Conselho de Família, com CR a ser vogal do concelho de família, possa cumprir com o estipulado em tais normativos, para além de que, já se sabe que a mesma não tem qualquer relação, nem quaisquer contactos, desde a data da dissolução do divórcio, até à presente data, com quaisquer dos demais nomeados na douta Sentença, nem com o ora Recorrente.
d) O facto de ter ocorrido a dissolução do casamento por divórcio, em 07/04/2011 e entre o filho do ora Recorrente e a sua ex-mulher/CR, e respetivas consequências já supra enunciadas, não foram, respetivamente, atentadas na douta Sentença, não tendo sido ponderados ou especificados na Sentença ora Recorrida, nem foram objeto de mais completo esclarecimento em termos probatórios, o que se impunha fazer atento o objeto da ação e  tratando-se de processo especial ao qual são aplicáveis, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do Juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (artigo 891.º, n.º1, do CPC, sendo a dissolução do casamento por divórcio superveniente ao casamento, o que não veio a ser considerado na Sentença ora em causa).
VII- Doutro passo, feito o exame/perícia médica ao ora Recorrente que consta do respetivo Relatório a fls…dos autos (junto no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21710455 na data de 08/09/2022) o qual termina com o seguinte parecer que do mesmo se passa a transcrever “(…)que se justificam as medidas de representação propostas pelo Requerente e que o Examinado beneficia da nomeação de um acompanhante, no caso e face à importante incapacitação com poderes de representação geral e administração total do património, justificando-se também a limitação de alguns direitos pessoais”. E após a atrás referida notificação;
VIII- O Beneficiário ora Recorrente, interpõe o Requerimento que consta a fls… dos autos (que consta no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21754148 na data de 14/09/2022) onde reforça o antes requerido e que consta exposto e transcrito ao longo do acima ponto ii do supra artigo 5º, de onde se passa a transcrever o requerido a final:
a) “Face ao exposto no supra nº 1, a que acresce o exposto ao longo do supra nº 2, requer-se a V.Exa. se digne proceder à Audição do Beneficiário, (cfr. artigos 139.º, n.º 1, do C. Civil e art.º e 898º do C.P. Civil), afim de cabalmente melhor se aferir das medidas de Acompanhamento, nomeadamente, as limitadoras de direitos pessoais, e de quem, logisticamente e afetivamente, deverá ser o Acompanhante/tutor do Beneficiário do Beneficiário.
Face ao acima requerido, e para eventuais esclarecimentos que venham a ser tidos por necessários e/ou convenientes, requer-se a V.Exa. que, no dia e hora que vierem a ser marcados para a audição do Beneficiário, seja diligenciado o necessário a que os seus mulher e filho, respetivamente, AL e PL, venham a estar presentes no Tribunal.” E, após,
d) Veio o digno M.P., a responder ao Requerimento do Beneficiário acima referido ( Requerimento do M.P. que consta no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21758581 na data de 15/09/2022), onde “ vem dizer que nada tem a opor ao requerido pelo mesmo, em especial no que à sua audição pessoal e da sua esposa AL (pessoa indicada na petição inicial para exercer o cargo de acompanhante), diz respeito, diligência, aliás, aquela que também requer por considerá-la como essencial e obrigatória – cfr. art.º 898° do C.P.Civil ((e ainda nesse sentido, por ex., acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 08.09.2020, proc. n.º 635/19.8T8CNT-A.C1 e de 19.05.2020, proc. n.º 312/19.0T8CNT-A.C1, bem como acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-10-2019, proc. n.º 9922/18.1T8LSBA.
e) L1)”, conforme se transcreveu do atrás referido requerimento do digno M.P.
Após o acima transcrito;
IX- Veio a ser proferida a douta Sentença de que ora se Recorre, sem que houvesse qualquer notificação aos Requerente/Digno M.P. do Tribunal “a quo” ou ao Maior Acompanhado e ora Recorrente, para que viessem indicar terceiro elemento para compor, como segundo vogal, o Conselho de Família, e/ou para se pronunciarem, antes da Sentença ora em causa, sobre a que na mesma veio a ser nomeada para tal, CR, não tendo a referida CR sido indicada pelo digno Ministério Público e/ou pelo Beneficiário ora Recorrente – o que atrás se refere não ter sido feito, é o que deveria ter sido feito, uma vez constatados os seguintes factos:
a) A dissolução do casamento ocorrido já supra referido e transcrito no supra ponto III e;
b) O facto de o Requerente/digno M.P. do Tribunal “a quo” não ter indicado terceiro elemento para compor o Conselho de Família, sem prejuízo de que tal falta de indicação poder;
c) Vir a ser entendida tendo implícito ( nos termos e para os efeitos do artigo 145º nº 4 do C.Civil), a pretendida dispensa de Conselho de Família uma vez que no Requerimento Inicial/P.Inicial do Ministério Público consta nos seus artigos 19º e 20º, respetivamente, “ Os familiares mais próximos são o filho e a esposa (com 73 anos de idade) do beneficiário que tratam do beneficiário zelando pelo seu interesse,” e “Não há outros familiares próximos com conhecimento da situação vivencial do beneficiário e que zelem pelo bem estar do mesmo” e assim, foram apenas indicados aqueles dois elementos, mulher/AL e filho/PL, sem prejuízo do facto de;
d) A testemunha indicada, S., ter como morada de residência, a mesma morada do filho do ora Recorrente, PL o que indicia ser aquela a companheira deste, o que posteriormente à douta Sentença, veio a ser;
e) Confirmado pelo Protutor e nomeado Primeiro Vogal do Concelho de Família/o filho do Beneficiário/PL, com o seu requerimento (que consta no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21907210 na data de 07/10/2022), que se passa a transcrever:
“(…) Solicito a alteração do conselho de família da vogal CR, em virtude de nos encontrarmos divorciados e consequentemente a mesma não fazer parte do círculo familiar. Em sua substituição venho indicar a minha atual companheira, SN Cc número 0000 3ZX9, desde de 2011.(…)” E;
X- O Beneficiário e ora Recorrente, veio interpor o Requerimento (que consta no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21921398 na data de 10/10/2022) que se junta ao presente como doc. C, primeira a terceira partes, onde, pelos motivos e fundamentos expressos no mesmo, que na essência, são os que se expõem no presente no presente Recurso, a pautar-se pelo já exposto e transcrito no ponto vii do supra artigo 5º e assim:
a) Tal como já informado a fls… dos autos de 1ª instância, informa-se que o filho do Beneficiário, PL, há mais de três anos que tem como sua companheira SN, residindo em união de facto com a mesma, sendo a referida SN, professora, residente com o PL na …., morada esta que é a mesma do filho do Beneficiário, conforme também se retira da P.Inicial a fls…, onde SN consta indicada como testemunha ( que é portadora do Cartão de Cidadão nº 0000, emitido pela República Portuguesa e válido até 19/07/2019, da referida SN, cfr. doc. X que é a terceira parte do doc. C que se junta ao presente), sendo que:
b) É a referida SN que é tida como mulher/Companheira do Requerente PL e nora do Beneficiário e de sua mulher/AL, existindo relações de amizade entre todos e, estando todos próximos uns dos outros, sendo também a SN que também tem ajudado o Beneficiário e sua mulher no que tem sido necessário.
XI- De notar que da nomeada como segunda vogal/CR nada se sabe, incluindo o paradeiro, tendo-lhe sido pressuposta na douta Sentença a mesma morada que ao filho PL, pelo erro/lapso de não ter sido atentado no divórcio ocorrido em 07/04/2011, já constando a carta de notificação que lhe foi efetuada da douta Sentença devolvida ao Tribunal “a quo” por “destinatário desconhecido na morada(…)” ( a carta atrás referida devolvida está no sistema Citius sob a Refr.ª nº 21963887 na data de 17/10/2022) sendo que:
a) Salvo melhor opinião e com o devido respeito, crê-se que a nomeação da segunda Vogal/CR, veio a ocorrer por lapso/erro da Meritíssima do Tribunal “a quo” por a mesma não ter atentado no facto do casamento entre a referida CR e o filho/PL do Maior Acompanhado ora Recorrente, ter sido dissolvido por divórcio em 07/04/2011, cfr. da terceira página do doc. 3/Assento de Nascimento do atrás referido PL e consta transcrito no supra artigo 3º e acima ponto III das Conclusões.
XII- Face ao supra exposto tem-se como impossível a Senhora CR fazer parte do Conselho de Família, impossibilidade esta que se estende ao facto de não ser possível o Conselho de Família cumprir com as suas obrigações ( caso seja mantido que a mesma no Conselho de Família ), seja por da mesma não se saber, seja por entre a mesma e Beneficiário ora Recorrente, sua mulher/AL ou seu filho/PL, inexistirem qualquer relações, incluindo a de amizade, não sendo aquela primeira referida/CR, amiga, vizinha ou familiar, por parentesco ou afinidade, do Beneficiário ora Recorrente, ou de sua mulher ou de seu filho, sua mulher ou filho, sendo que:
a) Face ao divórcio ocorrido e que consta averbado no Assento de Nascimento de PL junto com a P.Inicial a fls… dos autos, ao presente processo, crê-se que por erro/lapso é que na Sentença consta nomeada, como vogal do Conselho de Família, a CR, esta que na Sentença consta referida como nora do Beneficiário (pelo que consta como sendo casada com o filho do Beneficiário nomeado Protutor), o que não corresponde à verdade desde 07/04/2011, opondo-se o Beneficiário ora Recorrente a que CR pertença ao Conselho de Família, até porque se tem que não assiste à referida CR os necessários pressupostos legais a que tal nomeação pudesse ocorrer e/ou ocorra, por contrariar frontalmente os normativos do Código civil mencionados ao longo dos acima pontos I a VIII, para além de inviabilizar ao Conselho de Família o cumprimento das suas funções/obrigações.
XIII- Salvo melhor opinião e com o devido respeito, a decisão de nomeação do segundo vogal do Conselho de Família, CR, deve ser revogada por não preencher os necessários pressupostos legais para tal, seja por o fundamento de tal nomeação inexistir – não é nora, nem parente, nem tem qualquer vinculo por afinidade, com o Beneficiário ora Recorrente, também não tem qualquer relação de amizade, vizinhança com o mesmo, não se sabendo o respetivo paradeiro, nem se tendo conhecimento de quaisquer contactos da referida vogal nomeada, tudo desde 07/04/2011 em diante - seja pela falta de prévia audição de ambos os nomeados como Acompanhante/Tutor/AL e Protutor/PL que é também nomeado primeiro vogal do Conselho de Família, e do Beneficiário ora Recorrente e, em consequência, por falta apuramento de elementos que fundamentassem tal decisão de nomeação, ou seja, por falta de diligências necessárias, para melhor avaliar a possibilidade de nomeação daquela referida segunda vogal, sendo certo que o único fundamento para a respetiva nomeação foi o facto errado de se ter a referida segunda vogal/CR, como NORA do Beneficiário ora Recorrente, o que não corresponde à verdade desde 07/04/2011/data da dissolução do casamento por divórcio já transcrito no supra nº 3, o que se crê ter ocorrido por erro/lapso – não se atentou na terceira página do Assento de Nascimento/doc. 3 junto com a P.Inicial a fls… dos autos.
Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui dou suprimento de Vossas Excelências, pugna-se pela procedência do presente Recurso, requerendo-se a Vossas Excelências:
A- Que a decisão de nomeação de CR como segunda vogal do Conselho de Família seja revogada, nomeando-se em sua substituição, SN já referida do supra ponto VIII e, caso assim se não venha a entender;
B- Que a decisão de nomeação de CR como segunda vogal do Conselho de Família seja revogada e, em consequência, sejam ordenadas as diligências necessárias a que venha a ser nomeado o segundo vogal para compor o Conselho de Família, em substituição da atrás referida CR.”

O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo: “a conceder-se provimento ao recurso instaurado pelo Ministério Público, revogando-se a decisão que dispensou a realização da audição do beneficiário e anulando o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final, fica o que nesta foi decidido, nomeadamente a nomeação dos membros para comporem o Conselho de Família, prejudicado.
 Efetivamente considera o Ministério Público que ao conceder-se provimento ao recurso por si apresentado, todo o processado posterior à decisão que dispensou a realização da audição do beneficiário, in casu a sentença final recorrida, é nulo, logo, sem quaisquer efeitos, não havendo, assim, que efetuar qualquer apreciação sobre o seu teor.”

A decisão recorrida considerou como provada a seguinte matéria de facto:
“1. O beneficiário nasceu a 3 de Setembro de 1940 e é casado com AL, com quem reside e que é quem lhe dispensa os cuidados de que necessita, mais gerindo toda a dinâmica familiar;
2. É pai de PL, nascido a 27.08.1974, e sogro de CR, casada com este desde 2002;
3. O beneficiário padece de demência não especificada;
4. Em virtude disso, encontra-se dependente de terceiros para a realização das actividades de higiene e alimentação
5. Encontra-se desorientado no espaço e no tempo, desconhecendo a sua idade, data de nascimento e outros elementos biográficos;
6. Identifica o valor facial do dinheiro em notas, manifestando dificuldade quanto às moedas;
7. Não consegue efectuar cálculo simples nem escrever frases simples;
8. Não consegue interpretar semelhanças ou provérbios, revelando manifestas dificuldades no pensamento abstracto;
9. A patologia que afecta o beneficiário é medicamente qualificada como irreversível e incapacita-o desde 2021.”
Não foram consignados factos não provados.
*
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos apelantes e das que forem de conhecimento oficioso (art.ºs 635º e 639º do NCPC), tendo sempre presente que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº3 do NCPC).
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da nulidade processual por não audição do beneficiário e respetivas consequências
2. Da nomeação do segundo vogal para o conselho de família.
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1.  Da nulidade processual por não audição do beneficiário e respetivas consequências
O presente recurso tem por objeto decisão proferida em ação especial de acompanhamento de maior, previsto nos art.ºs 891º e ss. do CPC, o qual é regulado pelas disposições que lhe são próprias e pelas disposições gerais e comuns (art.º 546º, nº 1 do CPC), sendo-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891º, nº 1).
O regime do maior acompanhado, instituído pela Lei 49/2018, de 28/08, introduziu um novo paradigma nesta área, como resulta da exposição de motivos da respetiva proposta de lei: 
“Os fundamentos finais da alteração das denominadas  incapacidades  dos  maiores (…) são, em síntese, os seguintes: a primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser  respeitada e aproveitada até ao limite do possível; a  subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua  capacidade, só  admissíveis  quando o  problema  não possa ser  ultrapassado  com recurso  aos  deveres  de  proteção  e  de acompanhamento  comuns,  próprios  de  qualquer  situação  familiar;  a flexibilização  da  interdição/inabilitação,  dentro  da  ideia  de  singularidade  da  situação;  a  manutenção  de  um controlo jurisdicional eficaz sobre qualquer constrangimento imposto ao visado; o primado dos seus interesses pessoais e patrimoniais; a agilização dos procedimentos, no respeito pelos pontos anteriores; a intervenção do Ministério Público em defesa e, quando necessário, em representação do visado.
Para prosseguir estes objetivos, opta-se, por um lado, por um modelo monista – em claro detrimento de um modelo de dupla via ou múltiplo – por se considerar ser o dotado de maior flexibilidade e de amplitude suficiente, por compreender todas as situações possíveis, e por outro, por um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade. Por comparação com o regime atual, é radical a mudança de paradigma. Este modelo é o que melhor traduz o respeito pela dignidade da pessoa visada, que é tratada não como mero objeto das decisões de outrem, mas como pessoa inteira, com direito à solidariedade, ao apoio e proteção especial reclamadas pela sua situação de vulnerabilidade.”
Estabelece o art.º 138º do CC que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.”
O art.º 140º (epígrafe: “Objetivo e supletividade”) dispõe:
“1 - O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença.
2 - A medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam.”
E o art.º 139º do CC dispõe que:
“1 - O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas.
2 - Em qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido.”
Sob a epígrafe “poderes instrutórios” estabelece o art.º 897º do CPC:
“1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.
2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.”
“A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.” (art.º 898º, nº 1 do CPC).
O Ministério Público pugna pela nulidade do despacho que dispensou a audição do beneficiário, por entender que a mesma é obrigatória e, consequentemente, da sentença proferida de seguida.
Efetivamente decorre dos art.ºs 139º, nº 1 do CC e 897º, nº 2 do CPC que a diligência de audição do beneficiário é obrigatória, não se contemplando qualquer exceção.
Ainda que se admita a sua dispensa em situações absolutamente excecionais, como no caso de o beneficiário se encontrar em coma, a situação física e psíquica do beneficiário (incluindo eventuais dificuldades de comunicação) deve ser verificada pelo juiz na diligência (princípio da imediação na avaliação da situação física ou psíquica do beneficiário, com reflexo na opção pelas medidas de acompanhamento mais adequadas à situação), ainda que para tal o juiz se desloque onde se encontre o beneficiário.
A obrigatoriedade da audição do beneficiário é uma expressão do novo paradigma instituído pela Lei 49/2018, de 14/08, no respeito pelos princípios da primazia da autonomia da pessoa, do respeito pela sua vontade, como resulta da respetiva exposição de motivos.
“A interpretação literal/elemento linguístico ou gramatical do art.º 897º, n.º 2 do CPC (poderes instrutórios no processo especial de acompanhamento de maiores) mostra que o legislador pretende que o beneficiário seja sempre ouvido pelo juiz, no sentido de verificar a situação real e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas (art.º 898º, n.º 1 do CPC), o que apenas pode ser feito na sua presença - o juiz procede à audição “pessoal e direta” e fá-lo “sempre”, “em qualquer caso”. (…)
A audição do beneficiário pelo juiz só não ocorrerá (não sendo marcada) se se revelar totalmente impossível (por exemplo, beneficiário que permanece em coma).” [1]
A dispensa de audição do beneficiário foi, pelo tribunal recorrido, fundamentada no conteúdo do relatório pericial, na vigência da Lei n.º 1- A/2020 de 19.03 (…) e no estado de alerta por virtude do SARS COV 2 e a doença COVID 19, declarado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 73-A/2022 de 26.08, e artigo 26.º, n.º 2 da Lei n.º49/2019 de 14.08.”
Dispõe o art.º 6º-E da Lei 1-A/2020, de 09/03, sob a epígrafe “regime processual excecional e transitório”:
“1 - No decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, as diligências a realizar no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal regem-se pelo regime excecional e transitório previsto no presente artigo.
2 - As audiências de discussão e julgamento, bem como outras diligências que importem inquirição de testemunhas, realizam-se:
a) Presencialmente, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 82.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, na sua redação atual; ou
b) Sem prejuízo do disposto no n.º 5, através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, quando não puderem ser feitas nos termos da alínea anterior e a sua realização por essa forma não colocar em causa a apreciação e valoração judiciais da prova a produzir nessas diligências, exceto, em processo penal, a prestação de declarações do arguido, do assistente e das partes civis e o depoimento das testemunhas.
3 - Em qualquer caso, compete ao tribunal assegurar a realização dos atos judiciais com a observância do limite máximo de pessoas e demais regras de segurança, de higiene e sanitárias definidas pela DGS.
4 - Nas demais diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer outros atos processuais e procedimentais realiza-se:
a) Preferencialmente através de meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente; ou
b) Quando tal se revelar necessário, presencialmente.
5 - As partes, os seus mandatários ou outros intervenientes processuais que, comprovadamente, sejam maiores de 70 anos, imunodeprimidos ou portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde, devam ser considerados de risco, não têm obrigatoriedade de se deslocar a um tribunal, devendo, em caso de efetivação do direito de não deslocação, a respetiva inquirição ou acompanhamento da diligência realizar-se através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente, a partir do seu domicílio legal ou profissional. (…)”
Por seu turno, o art.º 26º da Lei 49/2018, de 14/08 dispõe:
“1 - A presente lei tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando o da sua entrada em vigor.
2 - O juiz utiliza os poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes.
3 - Aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática. (…)”
Os poderes de gestão processual e de adequação formal previstos no art.º 26º, nº 2 da Lei 49/2018 circunscrevem-se à adaptação dos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor, como resulta cristalinamente do nº 1 – o que não é o caso.
Do relatório pericial nada se retira que permita excluir a audição do beneficiário, nomeadamente que este se encontra em coma, não constando qualquer impossibilidade de comunicação.
Como refere Maria Inês Costa, A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas,  Julgar Online, julho de 2020, “a obrigatoriedade da audição é especialmente vincada no n.º 2 do artigo 897.º do Código de Processo Civil, pela utilização pelo legislador das expressões “em qualquer caso” e “sempre”, não deixando dúvida sobre a intenção daquele no sentido de que a decisão final a proferir neste tipo de processos especiais seja invariavelmente precedida da audição do beneficiário pelo juiz (alterando, como já mencionado, o regime anterior, que só a exigia se fosse deduzida contestação – cf. n.º 2 do artigo 896.º do Código de Processo Civil, na sua versão anterior). Note-se, aliás, que no decurso do processo legislativo o legislador aceitou a sugestão apresentada pelo Conselho Superior da Magistratura de aditamento da expressão «pessoal e directa» após «audição», afastando a hipótese de redução dessa audição ao simples chamamento aos autos e ulterior resposta do requerido. Por referência à correspondente finalidade, estabelece o n.º 1 do artigo 898.º (com a epígrafe audição pessoal) do Código de Processo Civil, que «A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas». (…)
Face à importância que a diligência instrutória da audição do beneficiário assume na lide (e a que supra se fez alusão) fica vedada ao juiz a possibilidade de (através de invocação das regras do processo de jurisdição voluntária, para a qual remete, com as devidas adaptações, o artigo 891.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ou da gestão e adequação formal – cf. artigo 6.º e 547.º do Código de Processo Civil) prescindir dessa diligência instrutória, cuja realização se lhe impõe, como vimos, como um autêntico dever.”
O quadro legal invocado na decisão recorrida não autoriza a dispensa de realização de diligência judicial obrigatória. Tal diligência devia ter sido realizada por meio de comunicação à distância ou presencialmente.
A omissão da audição do beneficiário constitui a nulidade prevista no art.º 195º, nº 1, 2ª parte, do CPC (cfr. art.º 897º, nº 2 do CPC), por ter influência no exame e decisão da causa. [2]
Em regra, a arguição de nulidade processual segue o regime geral previsto no art.º 149º do C.P.C., de acordo com o qual o prazo é de 10 dias, perante o Tribunal onde foi cometida, por meio de reclamação, e apenas da decisão que sobre a mesma recair se pode interpor recurso.
Constitui desvio a esta regra, o caso de a nulidade se revelar por efeito de uma decisão recorrível, em que o meio próprio para a impugnar é o recurso.
Neste sentido, v. entre outros, Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág. 393: “se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Anselmo de Castro, Direto Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 134 refere “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677º, nº 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz (art.º 666.º)”.
A nulidade invocada surge coberta pela sentença proferida na mesma data.
Nesta conformidade, é nula a decisão de dispensa de audição do beneficiário, seguida da prolação de sentença, o que acarreta a nulidade da sentença, dado que daquela depende totalmente, nos termos do nº 2 do art.º 195º do CPC.
Fica prejudicada a apreciação do recurso interposto pelo beneficiário.
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, anula-se a decisão que dispensou a audição do beneficiário e o ato subsequente, a sentença, devendo ser proferido despacho a determinar a audição (pessoal e direta) do beneficiário, e, após, ser proferida nova sentença.
Sem custas (al. h), n.º 2, do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 6 de dezembro de 2022
Teresa Sandiães
Octávio Diogo
Cristina Lourenço
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[1] Ac. RC de 19/05/2020, proc. nº 312/19.0T8CNT-A.C1. No mesmo sentido Ac. RC de 14/06/2022, proc. nº 10/22.7T8SPS-A.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, v. entre outros, Ac RC de 08/09/2020, proc. nº  635/19.8T8CNT-A.C1, www.dgsi.pt