Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1584/18.2T9SNT.L1-9
Relator: MARIA DA LUZ BATISTA
Descritores: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
NULIDADE DO INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-Se o Ministério Público profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência no âmbito do inquérito ignorando um patamar minimo de investigação face aos factos denunciados, comete a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no art. 119.°, aI. d), do CPP;
 II-O que efectivamente interessa  saber, é , se a denúncia, tal como é apresentada, tem alguma potencialidade para configurar um crime. Se de forma evidente e conclusiva não houver crime, nem deve ser aberto inquérito. Mas se houver indicios ou suspeitas, mesmo ténues que sejam, tem que haver inquérito, procedendo-se pelo menos à inquirição do arguido/suspeito, antes de eventualmente o Ministério Público decidir arquivar o inquérito;
III-Tendo sido totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, estamos perante uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a que alude o art. 119.°, aI. d), do Código de Processo Penal (cf. ainda o art. 118°, n.° 1, do mesmo código).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os Juízes que integram o Tribunal da Relação de Lisboa:
No processo n° Proc. n.° 1584/18.2T9SNT do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Instrução Criminal de Sintra - Juiz 3 o M° P° veio interpor recurso do despacho do Mm° Juiz de Instrução que, por considerar que foi totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, julgou verificada nulidade (insanável, de conhecimento oficioso), prevista no art. 119.°, al. d), do Código de Processo Penal em conjugação com o art. 118°, n.° 1, do mesmo diploma e bem assim declarou inválido o despacho de arquivamento de fls. 24 e 28 e subsequente requerimento de abertura de instrução.
Extrai da motivação do seu recurso as conclusões que se transcrevem:
«1 - o presente recurso é interposto de decisão do Mmo. Juiz de Instrução Criminal que, por entender que não existiu qualquer diligência de inquérito, o mesmo é nulo;
2 - o inquérito criminal à margem identificado teve a sua origem em queixa elaborada e assinada por Ilustre Causídico;
3 - Da mera leitura da referida queixa dúvidas não existem de que a mesma é clara, precisa e devidamente pormenorizada quanto ao circunstancialismo de tempo, modo e lugar da factualidade que pretende ver apreciada, tendo assim permitido subsumir a mesma face ao nosso Ordenamento Jurídico e, consequentemente, concluir estarmos perante um contrato reconduzível à figura do contrato de mútuo;
4 - A mera circunstância das partes num negócio apelidado pelo denunciante como "acordo verbal de parceria de negócios" (sic) não vincula o intérprete chamado a apreciar a situação, e como tal, não se encontrava o Ministério Público impedido de, perante a factualidade cabal e devidamente descrita em sede de "queixa" concluir estarmos perante questão que não integra a prática de qualquer ilícito criminal previsto no Código Penal nem em legislação extravagante, mas sim perante um contrato reconduzível ao contrato de mútuo o qual, terá sido incumprido;
5 - A factualidade "denunciada" não consubstancia a prática de qualquer ilícito criminal pelo que, conclui-se que não teria de existir lugar à realização de diligencias de investigação sob pena de, e salvo o devido respeito por opinião contrária, consubstanciarem tais diligencias a prática de atos inúteis, o que se encontra vedado por lei - cfr. art.° 130.° do Código de Processo Civil aplicável ex vi art.° 4.° do Código de Processo Penal:
6 - O Direito Penal constitui a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária;
7 - A esta subsidiariedade caracterizadora do direito penal acresce ainda o carácter fragmentário deste ramo do Direito, atento o facto de apenas proteger determinados bens jurídicos, e mesmos estes, a maioria das vezes, apenas face a determinadas formas de agressão;
8 - Os factos denunciados poderão, eventualmente, configurar a violação de deveres subsequentes à celebração de um contrato, contudo, a apreciação de tais fatos e eventual responsabilidade daí emergente tem natureza cível, e é nesse ambito que a questão terá ou poderá obter tutela.
9 - Pelo exposto, o Mm.° Juiz a quo ao declarar a nulidade de todo o processado, desde logo, declarando inválido o despacho de arquivamento, violou o disposto nos artigos art.°s 49.°,53.°, 118.°, 119°, 120.°, 122.°, 262.°, 267.°, todos do Código de Processo Penal.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo-se este por outro que não declare a invalidade do despacho de arquivamento porquanto não houve insuficiência de inquérito.
V. Ex.as, no entanto, melhor decidirão e farão como sempre a Costumada
Justiça!»
Não tendo havido resposta, nesta instância o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer constante de fs. 71, 72 no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os vistos vêm os autos à conferência para decisão.
É pacífica a jurisprudência no sentido de que «o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação» (Acórdão do S.T.J. de 13-03-1991, Proc. 41.694/3', citado em anotação ao art° 412° no Código de Processo Penal Anotado de Maia Gonçalves).
São as conclusões formuladas na motivação do recurso que em exclusivo definem e delimitam em definitivo o respectivo objecto, sendo que, conforme vem sendo também entendimento do STJ, não retomando o recorrente nas conclusões as questões que suscitou na motivação o tribunal superior só conhecerá das questões resumidas nas conclusões uma vez que, nos termos do disposto no art° 684° n° 3 do C.P.C. (ex vi art° 4° do CPP), nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso.
Analisando as conclusões extraídas pelo recorrente da sua motivação verificamos que impugna a decisão recorrida pretendendo que, não consubstanciando os factos denunciados qualquer ilícito, não teria que praticar qualquer acto, pelo que não existe a nulidade de inquérito considerada na decisão recorrida que deve ser revogada.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«O Ministério Público, invocando o disposto no n.2 1 do art. 277.° do Código de Processo Penal, proferiu o despacho de arquivamento de fls. 24 a 28. Nesta sequência, o assistente AA, a fls. 39 a 57, arguiu a nulidade do inquérito, por insuficiência, fazendo referência ao disposto no art. 120.°, n.° 2, aI. d), do Código de Processo Penal, e requereu a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de BB.
Sucede que o Ministério Público não podia proferir despacho de arquivamento nas condições em que o fez e o assistente não podia requerer a abertura de instrução. E tal sucede porque no caso dos autos ocorreu, não a nulidade a que o assistente fez alusão, mas a nulidade insanável a que se reporta a al. d) do art. 119.° do Código de Processo Penal.
Na verdade, o assistente apresentou a queixa de fls. 3 a 11, contra BB, imputando-lhe a prática do crime de abuso de confiança, e alegando, em síntese que:
a) Ambos mantiveram um acordo verbal referente a uma parceria de negócios para aquisição e venda de veículos automóveis utilizados;
b) Na execução desse acordo, o assistente procedeu à entrega ao BB de valores monetários destinados à aquisição de viaturas pelo segundo;
- Em 15.05.2015, 03.06.2015 e 11.01.2016, o assistente entregou ao BB, em cada uma daquelas datas, o valor de €4.000,00;
c) Apesar de o BB ter afirmado que, com estes montantes, adquiriu veículos automóveis destinados a venda, somente entregou ao assistente €2.300,00, acrescidos de €365,00, sendo estes referentes ao lucro pela venda de um veículo;
d) O BB age como se as quantias que lhe foram entregues fossem suas.
O Ministério Público, sem que após a apresentação da queixa se tenha procedido a qualquer diligência de recolha de prova, proferiu o mencionado despacho de arquivamento, alegando, em suma, que "no caso em apreço resulta (...) estarmos perante um contrato, de «empréstimo» (sic), não cumprido pelo denunciado" (fls. 25), que "os factos denunciados poderão, eventualmente, configurar a violação de deveres subsequentes à celebração de um contrato" e que "levando em linha de conta a impossibilidade de se configurar a verificação dos elementos essenciais de qualquer ilícito criminal, decorre a inutilidade do prosseguimento do inquérito" (fls. 27).
Desde logo, ao contrário do que parece resultar do alegado pelo Ministério Público, na queixa que deu início a estes autos o assistente não emprega o termo "empréstimo". Por outro lado, tal como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14.05.2008, "o despacho de arquivamento nos termos do art. 277.° do CPP, não sendo precedido da realização das necessárias diligências de investigação é legalmente inadmissível", acrescentando-se no mesmo aresto que "não resultando a inexistência do crime denunciada do simples confronto dos factos descritos na participação com a lei, impunha-se ao Ministério Público que investigasse a existência do ilícito que vinha denunciado'. No mesmo sentido, decidiu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.03.2011, onde se afirma que "o inquérito tem como finalidade investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação" e que se, por um lado, "se os factos que são participados por si só não constituem crime, ou seja, não há qualquer dúvida de que não configuram um crime (p. ex., crime amnistiado, direito de queixa já caducou) pôr a máquina judicial a funcionar, a trabalhar, para de seguida determinar o arquivamento é uma inutilidade a todos os níveis (humanos e económicos)", por outro lado, "se, porém, estamos perante factos que nos oferecem dúvidas pela sua complexidade, pelos valores em causa, pelos contornos da situação que não são tão simples como se desenham na denúncia e pela abundante prova que há a investigar, significa que estão reunidos todos os pressupostos do dever de investigar a começar pelo interrogatório do arguido"2. De acordo com a jurisprudência citada, neste caso, "se o MP profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência, comete-se a nulidade insanável de falta de inquérito prevista no art. 119.°, aI. d), do CPP". Tal como elucidativamente se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20.12.2012, "a nulidade insanável de falta de inquérito ou de instrução prevista no are. 119.°, aI. d), do CPP, é perspectivada em função da obrigatoriedade legal de realização de inquérito ou instrução, conforme se menciona no próprio preceito", sendo que "a notícia de um crime a que se reporta o n.° 2 do art. 262.° do CPP não se confunde com a enunciação clara, completa e precisa dos elementos da infracção eventualmente em causa, pois o inquérito serve para apurar os factos relevantes com toda a amplitude, definindo-se o objecto do processo apenas na acusação", e "incorre na nulidade de falta de inquérito, o titular deste que, podendo fazê-lo, não enceta quaisquer diligências para melhor concretização e esclarecimento da factualidade imprecisamente apresentada na queixa, com vista à concreta configuração factual e jurídica do que se apresenta como notícia de crime3: Ainda a este propósito, afirma-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.03.2016, que "a lei não impõe ao denunciante que qualifique criminalmente os factos, nem tão pouco que os delimite em pormenor. O denunciante pode até nem saber exactamente o que se passou. Isso é matéria para a investigação durante o inquérito. Essencial é que identifique o «episódio», ou episódios, a que se refere, de forma a que, no futuro, não haja dúvidas sobre aquilo de que efectivamente se queixou"."
No caso dos autos, embora não seja manifesto do teor da queixa apresentada pelo assistente que a conduta que este imputa a Paulo Silva não constitua crime (nomeadamente, de abuso de confiança ou de burla), o Ministério Público não procedeu a qualquer das diligências a que se reporta o nº 1 do art. 262.° do Código de Processo Penal, lendo em vista apurar, por exemplo, se o segundo recebeu do primeiro os montantes em causa e se lhes deu destino diverso do que foi acordado entre ambos. E tal omissão por parte do Ministério Público traduz-se na falta de inquérito e consubstancia a nulidade referida na al. d) do art. 119.0 do código mencionado (cf., ainda, o n.° 2 do art. 262.° do mesmo diploma legal). Por fim, por esta razão, não é admissível a abertura da fase de instrução requerida pelo assistente, pois conforme se refere no citado acórdão4 do Tribunal da Relação de Évora, de 20.12.2012, "não é admissível a pronúncia dos denunciados por factos que não tenham sido objecto de inquérito, mesmo que se encontrassem exemplarmente descritos no RAI, pois nestes casos visa-se sujeitar o arguido a julgamento por factos relativamente aos quais o MP se decidira pelo arquivamento após inquérito efectivamente realizado e não a substituição de inquérito materialmente inexistente pela integral investigação e pronúncia judiciar." Em suma, a nulidade insanável que no caso se verifica prejudica, quer o conhecimento da nulidade invocada pelo assistente, quer a apreciação do requerimento de abertura de instrução.
Tendo sido totalmente omitido o inquérito num caso em que a lei determina a sua obrigatoriedade, estamos perante a nulidade insanável, de conhecimento oficioso, a que alude o art. 119.°, aI. d), do Código de Processo Penal (cf. ainda o art. 118°, n.° 1, do mesmo código). E, nesta medida, declaro inválido, quer o despacho de arquivamento de fls. 24 e 28, quer o requerimento de abertura de instrução de fls. 39 a 57 - art. 122.°, n.° 1 e 2, do Código de Processo Penal.»
(• • .)
Ora, analisando a queixa apresentada à luz de toda a disciplina legal aplicável, não podemos deixar de estar em total acordo com o expendido pelo Mm° Juiz de Instrução na decisão recorrida e bem assim que de facto se verifica a nulidade insanável por injustificada omissão de inquérito de que oficiosamente conheceu.
Como bem refere o Senhor Procurador-Geral Adjunto nesta instância, «a notitia criminis, desde que que fundada em plausíveis elementos fácticos, que abstractamente possam configurar algum tipo de ilícito previsto na lei penal deve dar lugar à instauração de inquérito com a realização das necessárias diligências investigatórias, designadamente e para começar pela auscultação da posição assumida pelo denunciado na observância do contraditório".
"Desde que a notícia sobre a existência de uma infracção criminal seja idónea à formulação por banda das autoridades judiciárias ou dos órgãos de polícia criminal de um juízo de suspeita sobre aquela situação ilícita e culposa lato sensu - e não necessariamente sobre a respectiva autoria -, a actividade tendente a investigá-la inscreve-se na área processual penal e deve ser objecto de inquérito" in parecer do Conselho Consultivo da P.G.R., Relator Padrão Gonçalves)."Trata-se da observância do princípio da legalidade em processo penal, consagrado no artigo 262.°, n.° 2 do Código de Processo Penal".
... a circunstância de poder haver matéria do foro civil não invalida que possa simultaneamente coexistir matéria com relevância criminal.
O que interessa é saber se a denúncia, tal como é apresentada, tem alguma potencialidade para configurar um crime. Se de forma evidente e conclusiva não houver crime, nem deve ser aberto inquérito. Mas se sim, tem que haver inquérito.»
No caso, «os factos objecto da denúncia, dirigidos a uma pessoa em concreto, são apresentados e imputados de maneira tal que não se pode dizer sem mais que estamos perante um mero empréstimo incumprido e que portanto trata-se de matéria do foro exclusivamente civil» ... podendo, nos termos em que são expostos «vir a configurar a prática de crime, seja abuso de confiança ou burla.»
Ainda como aí bem se prossegue, «será preciso apurar se o denunciado recebeu e a que título os montantes em causa, qual os destino que lhes deu e aquele que deveria ou não ter dado".
Por forma alguma estamos pois perante uma situação de impossibilidade de se poder estar em face do cometimento de ilícito, antes sendo os factos relatados, para além de geradores de responsabilidade civil, também em abstracto passíveis de poder conlevar o cometimento de crime, devendo ser objecto de investigação mediante a prática dos actos necessários a apurar se de facto foi cometido.
Bem andou assim o Mm° Juiz quando, nos termos e com os fundamentos expostos na decisão recorrida, julgou verificada a nulidade em questão, declarando inválido o despacho de arquivamento e bem assim o subsequente requerimento de abertura de instrução, devendo o recurso improceder.

DECISÃO
Por tudo o exposto acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a douta decisão recorrida.
Lisboa, 30 de Maio de 2019

Maria da Luz Batista
Cláudio Ximenes


'Publicado em www.dgsLpt (processo 1544/2007-3).
2 Disponível em www.dgsLpt (processo3664/09.6TACBR.C1).
3Publicado em www.dgsLpt (processo 642/12.1TASTB.E1).
4Disponível em www.dgsi.pt(processo679/12.0TAFAF.G1)
5 No mesmo sentido, cf. os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06.11.2013 (processo 310/12.4T3AND-A.C1), do Tribunal da Relação do Porto, d e 12.10.2016 (processo 17701/13.6TDPRT.P1), e do Tribunal da Relação do Porto, de 07.12.2016 (processo 9348/10.5TAVNG.P1), todos publicados em www.dgsi.pt.