Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
76/14.3T8TVD.L1-6
Relator: TOMÉ ALMEIDA RAMIÃO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACTOS DE GESTÃO PÚBLICA
CÂMARA MUNICIPAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A competência material do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica material ou subjacente tal como é apresentada pela Autora na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido e a causa de pedir.
- Estando em causa atos de gestão pública, praticados por Câmara Municipal, no exercício de funções administrativas, ao abrigo de normas de direito administrativo, que violem bens constitucionalmente protegidos, como o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território e a qualidade de vida, e visando a ação popular a sua cessação e reparação, compete ao tribunal administrativo a sua apreciação e decisão, por expressar litígio emergente de relação jurídico-administrativa, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 52.º/3, alínea a) e 212.º/3 da CRP, art.º 4º, nº 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, art.º 1.º /1 e 12.º/1 do Dec. Lei n.º 83/95, de 31/8 e art.º 2.º, n.º2, alínea c) do C.P. A.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


   I- Relatório:

J..., com os sinais dos autos, instaurou a presente ação popular contra o Município de Torres Vedras, C..., presidente do Município de Torres Vedras e P... pedindo que seja:
“a) Declarado que a imposição de pagamento de selo de estacionamento em Torres Vedras constitui enriquecimento sem causa para os Réus;
b) Declarado que o estacionamento na cidade de Torres Vedras não pode nem deve ser taxado por imposição unilateral dos Réus e atenta contra a mobilidade em espaços públicos;
c) Declarado que a exigência de entrega de documentos pessoais como fotocopias do registo de propriedade do veiculo, cartão de identificação fiscal, bilhete de identidade ou cartão de cidadão, compromisso de honra de inexistência de garagem, propriedade de
estabelecimento comercial, etc. traduz invasão da privacidade sob recolha dos dados pessoais do Povo incauto que ainda acredita na Democracia, vota....
d) E atenta contra a privacidade do cidadão, quase sempre anestesiado por campanhas “políticas” de más intenções, a cumprir o desideratum do “big-brother” que George Orwell alertava em 1948......na sequência atenta do estudo que todos os Políticos fazem da cartilha do “ Príncipe”.... de Nicolau Maquiavel
e) Declarado que o estacionamento deve ser gratuito em Torres Vedras, no que devem os RR serem condenados a reconhecê-lo;
f) Declarado que o estacionamento junto ao Tribunal de Torres Vedras- Palácio da Justiça deve incluir espaço gratuito para todos os advogados aquando de serviços em similitude com os Senhores Magistrados Judiciais e do Ministério Publico, no que devem os RR serem condenados;
g) Declarado que a aptidão natural do Parque da Expo-Torres ou “Várzea da Palma”- artigo 39- secção DD e terrenos envolventes constituem, em toda a sua extensão, local apto para implantação de parque verde, numa estreita ligação com o Rio Sisandro, a vala do Alpilhão e a População;
h) Declarado que o parque destinado a milhares de veículos ligeiros e de transporte de passageiros junto à Expo Torres constitui descaracterização da paisagem natural e ofensa à qualidade de vida in loco;
i) Declarado que a densificação automobilística in loco e o impacto ambiental negativo sobre a qualidade de vida dos cidadãos traduzem violação do artº 1º da Lei 83/95 de 31/8;
j) Devem os RR serem condenados a providenciar por transportes gratuitos a ponto de serem usados por todos os contribuintes pelo que, viajar em carro próprio começaria a ser percebido como um luxo.
l) Devem os RR. serem condenados a restituir aos incautos Munícipes o valor do
“Selo de estacionamento”, os documentos pessoais “recolhidos” até à data e abstendo-se de invadir a privacidade de todos os cidadãos, assim respeitando o Povo, no que devem ser condenados.”

Alegou, em síntese, que:
- Sob o lema “Estacionamento na Cidade”, o Sr. Presidente da Câmara de Torres Vedras, ora Réu, mandou emitir milhares de folhetos, que anuncia ao cidadão que para estacionar deve entregar uma série de documentos pessoais e ainda pagar o selo de estacionamento de 5 euros;
- O custo dos aparelhos colocados nas diversas artérias da cidade “para caçar o dinheiro ao cidadão é desconhecido mas, por certo, será (ou já foi ?) pago pelo contribuinte ingénuo mesmo aquele que nunca possuiu viatura....”;
- Sucede que o Município não pode nem deve enriquecer a custa do cidadão que trabalha e se desloca em viatura automóvel, nem “ vigiar” dados pessoais e policiar tudo e todos através da 3ª Ré, empresa municipal com funções policiais de “fiscalização” a mando dos co-RR;
- A exigência de entrega de documentos pessoais como fotocópias do registo de propriedade do veículo, cartão de identificação fiscal, bilhete de identidade ou cartão de cidadão, compromisso de honra de inexistência de garagem, propriedade de estabelecimento comercial, etc. traduz invasão dos dados pessoais dos incautos populares;
- A exigência da Taxa sob a forma de selo de estacionamento de 5 € traduz enriquecimento sem causa do Município e empobrecimento do cidadão comum;
- Acresce que os RR. criam bolsas gratuitas em locais distantes do centro nevrálgico do comércio mas pecam por omissão;
- Na verdade, no espaço reservado ao parque de viaturas do Tribunal constam cerca de 10 espaços para Magistrados e viatura celular sendo os advogados aí ostracizados pelo Município;

***

Liminarmente foi proferido o seguinte despacho:

“Conforme tem entendido pela doutrina e jurisprudência, a competência do tribunal afere-se pelos termos em que a ação foi proposta e pelo pedido do autor, dependendo do thema decidendum concatenado com a causa de pedir.
Nos termos do artigo 64.º do Código de Processo Civil, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Assim, não cabendo uma causa na competência de outro tribunal será a mesma da competência (residual) do tribunal comum.
Estatui o artigo 1.º, n.º 1, do ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por sua vez, o artigo 4.º do ETAF, que estabelece o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, nas alíneas a), b), c) e l), atribui aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões respeitantes «a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por pessoas coletivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que diretamente resulte da invalidade do ato administrativo no qual se fundou a respetiva celebração; c) Fiscalização da legalidade de atos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública; (…) l)) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa».

Daí que as ações que visam promover a prevenção, cessação e reparação de violação de interesses difusos em matéria de ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, bem como ações que visem pôr em causa atos administrativos, são da competência dos tribunais administrativos e fiscais.

A ação popular tem por objeto “quer os interesses difusos stricto sensu, quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos, o que, em termos práticos, significa que a ação popular pode visar tanto a prevenção da violação de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse coletivo, como a reparação dos danos de massas resultantes da violação destes interesses (cfr. artigo 52.º, n.º 3, al. a), CRP). Em contrapartida, no objeto da ação popular nunca se podem compreender direitos ou interesses meramente individuais.” (Teixeira de Sousa, A Legitimidade popular na Tutela dos Interesses Difusos, pág. 120).
O artigo 12.º da Lei n.º 83/95, de 31/08, distingue entre ação popular administrativa e ação popular civil.
Pese embora ambas compreendam a defesa de interesses difusos, na ação popular administrativa, referida no artigo 12.º n.º 1, do diploma citado, está em causa um litígio que se reporte a uma relação jurídica administrativa ou decorrente de ato administrativo, nomeadamente a prevenção, cessação e reparação de violações de valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de urbanismo, ordenamento do território e qualidade de vida cometidos por entidades públicas.

No caso em apreço, atento o alegado na petição, em causa estão atos administrativos da Câmara Municipal de Torres Vedras, atos de gestão pública, pretendendo-se a cessação e reparação do dano urbanístico provocado por tais atos.

Assim sendo, para apreciar da mencionada pretensão são materialmente competentes os Tribunais Administrativo e Fiscais.
Dispõe o artigo 96.º, do Código de Processo Civil, que a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que é uma exceção dilatória insuprível e de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 97.º, 577.º, alínea a), e 576.º do citado diploma legal, determinando, assim e de acordo com o estabelecido nos artigos 99.º, n.º 1, do mesmo Código, o indeferimento em despacho liminar, uma vez que o presente processo o comporta.

Pelo exposto, julgo este Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação e, consequentemente, ao abrigo do disposto nos normativos citados, absolvo os Réus da instância.

Sem custas, por delas estar isento”.

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Desta decisão veio a Autor interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1- O recorrente deduziu pedidos que devem ser apreciados pelo Douto Tribunal a quo: os pedidos formulados em a) a l) inserem-se na competência dos Tribunais Judiciais Comuns.
2- Mesmo que se entenda que caiem no âmbito da Jurisdição Administrativa os pedidos formulados em a), b), j) e l), os demais pedidos inserem-se na questão da poluição, privacidade do cidadão, mobilidade, atentado ao urbanismo, à paisagem, ao ambiente e necessidade de Parque Verde, conforme peticionado em g) e h) o que cabe ao Douto Tribunal a quo julgar.
3- A Douta Decisão violou os arts 97º, 99º, 577º-a), 576º do CPC.
Revogando a Douta Sentença e ordenando o prosseguimento dos autos Vossas Excelências farão a mais Lídima Justiça !

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Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

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II – Âmbito do Recurso:

Perante o teor das conclusões formuladas pelo recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº4, 639.º/1, todos do C. P. Civil em vigor, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para conhecer a presente ação – o Tribunal comum (Comarca de Lisboa Norte, Torres Vedras, Instância Local, Secção Cível, J2) ou o Tribunal administrativo.

            Vejamos, pois.

III – Fundamentação fáctico-jurídica:

Sendo a matéria de facto a constante no antecedente relatório, com a transcrita decisão judicial, vejamos se o recorrente tem razão.
1. Como é sabido e consabido, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica material ou subjacente tal como é apresentada na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido e a causa de pedir ([1]).
Por isso, a competência material do tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos que são invocados.
Entende-se que a regra da competência dos tribunais da ordem judicial tem natureza residual, no sentido de que são da sua competência as causas que não estejam legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (art. 64.º do C. P. Civil e art. 40.º/ 1 da LOSJ ( Lei nº 62/2013 de 26/8 ).
A competência dos tribunais administrativos vem definida no art° 212.º, n.º3, Constituição da República Portuguesa, competindo-lhes o julgamento das ações que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Quanto à controvérsia, na doutrina, sobre o que deve entender-se por “relações jurídicas administrativas e fiscais”, dizem Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T-III, pág. 148: “O melhor critério parece ser, no entanto, aquele para que aponta o próprio sentido literal da expressão: são relações jurídicas administrativas e fiscais as relações de Direito Administrativo ou de Direito Fiscal”. E acrescentam: “Este, aliás, o critério que melhor corresponde à tradição do nosso contencioso administrativo, que não adota um critério estatutário, tendendo a submeter os litígios que envolvam entidades públicas aos tribunais judiciais, quando a resolução de tais litígios não envolva a aplicação de normas de Direito Administrativo…”.
Posição que foi seguida pelo Acórdão do S. T. J., de 8/5/2007, Processo n.º 07A1004, ao afirmar, «Crê-se que na base estará uma perspetiva jurídico material, tendo de existir uma controvérsia resultante de relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo. É que podem assim existir relações jurídicas materialmente administrativas sem que tenham como titulares órgãos da administração».
Idêntica opinião é defendida por Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 3ª edição, pág. 815, quando referem: “Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais) (nº 3 in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1- as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); 2- as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico civil”. Em termos positivos, um litigio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.
Para o Prof. Freitas do Amaral, Direito Administrativo III, pág. 439-440, a relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração”.
Nos termos do art.º 4.º, nº 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) aprovado pela Lei 13/2002 de 19/2, com as alterações introduzidas pela Lei 4/2003 de 19/2 e pela Lei 107-D/2003 de 31/12, “ Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto “Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contraordenacional”.”.
2. O direito de ação popular está consagrado no n.º3 do art.º 52.º da C. R. P., conferindo “ a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
Concretizando esse direito, a Lei n.º 83/95 de 31/08 veio definir os casos em que pode ser exercido o direito de participação popular em procedimento administrativo e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas nessa disposição constitucional ( seu art.º1.º).
Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 1993, 3.ª Edição, “a ação popular traduz-se, por definição, num alargamento da legitimidade processual ativa dos cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa”.
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada”, T-I, 2.ª Edição, pág. 1029, consideram que o direito de ação popular “permite a todos os membros de uma comunidade que atuem como “guardiães” dos bens jurídicos em que todos são indistintamente interessados apenas pela circunstância de integrarem a comunidade em causa”.
Os interesses difusos ou coletivos ([2]) suscetíveis de tutela são aqui, numa enumeração meramente exemplificativa, a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural - alínea a) do n.º 3 do art.º 52º. E a sua tutela enquadra-se na garantia constitucional estabelecida no art.º 20º da C.R.P.
Mediante a ação popular, utilizando as palavras de Paulo Otero ([3]) “pode dizer-se que todos os membros de urna comunidade - ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse diretamente pessoal - estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insuscetíveis de urna apropriação individual”. “(…) Neste sentido, deverá afirmar-se que o ator popular age sempre no interesse geral da coletividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse direto e pessoal”.
A ação popular visa a defesa da legalidade e do interesse público, “prosseguindo a tutela objetiva de bens e valores constitucionalmente protegidos – seja em domínios como a saúde pública, o urbanismo e o ordenamento do território, o ambiente, o património cultural ( alínea a) do n.º3 do art.º 52.º da CRP), seja para defesa de bens da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias ( alínea b) do n.º3 do art.º 52.º da CRP)” -cfr. Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 371 e segs.
A consagração do recurso dos cidadãos à ação popular representa uma forma de participação do cidadão na vida política do Estado, consubstanciando um meio de tutela objetiva da legalidade e do interesse público, mediante a fiscalização da legalidade de atuação dos órgãos da Administração em sectores tidos por fundamentais para a comunidade e acima mencionados.
Quanto à legitimidade ativa, na ação popular, estabelece o n.º 2 do art.º 9 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos que pode ser instaurada por qualquer pessoa, independentemente de ter interesse pessoal na demanda, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais.
Por sua vez, a ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor, e se tiver por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública, deve ser demandada a pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos – art.º 10.º/1 e 2 do C. P. T. A ([4]).
No caso concreto, estamos perante uma ação popular “destrutiva ou anulatória”, na expressão de Paulo Otero, ob. cit., tendente a determinar a cessação de violações de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural”. E realça (pág. 881) que  “A acção popular administrativa, a instaurar junto dos tribunais administrativos, enquanto expressão de litígios emergentes de relações jurídico-administrativas que, por força do artigo 212.°, n.º 3, da Constituição, se integram no âmbito da reserva de competência dos tribunais administrativos”.
E tendo em conta os pedidos formulados e causa de pedir, termos de concluir, como na 1.ª instância, estar-se perante um litígio que envolve uma entidade pública (Município de Torres Vedras e Carlos M. S. Miguel, na qualidade de presidente desse município), atuando no exercício de funções administrativas de gestão pública, exercitando poderes públicos, ao abrigo de normas de direito administrativo e cuja resolução depende da aplicação de normas de direito administrativo – art.º art.º 2.º, n.º2, alínea c) do C. P. A. (cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, in “Código do Procedimento Administrativo, Comentado”, 2.ª Edição, Almedina, pág. 67, e Mário Aroso de Almeida, “Teoria Geral do Direito Administrativo – O Novo Código do Procedimento Administrativo”, 2.ª Edição, 2015, Almedina, pág. 27).
Com efeito, o recorrente invoca que o Senhor Presidente do Município de Torres Vedras, sob o lema “Estacionamento na Cidade”, mandou emitir milhares de folhetos, que anuncia ao cidadão que para estacionar deve entregar uma série de documentos pessoais e ainda pagar o selo de estacionamento de 5 euros; o custo dos aparelhos colocados nas diversas artérias da cidade “para caçar o dinheiro ao cidadão é desconhecido mas, por certo, será (ou já foi ?) pago pelo contribuinte ingénuo mesmo aquele que nunca possuiu viatura....”; Sucede que o Município não pode nem deve enriquecer a custa do cidadão que trabalha e se desloca em viatura automóvel, nem “ vigiar” dados pessoais e policiar tudo e todos através da 3ª Ré, empresa municipal com funções policiais de “fiscalização” a mando dos co-RR; A exigência da Taxa sob a forma de selo de estacionamento de 5 € traduz enriquecimento sem causa do Município e empobrecimento do cidadão comum.
Entende, pois, o recorrente, que a gestão do estacionamento da cidade nos locais públicos pela Câmara Municipal é ilegal, violando bens constitucionalmente protegidos, como o urbanismo, o ambiente e qualidade de vida dos munícipes.
Em consequência, pede, entre outros, que seja declarado que a imposição de pagamento de selo de estacionamento em Torres Vedras constitui enriquecimento sem causa para os Réus, que seja declarado que o estacionamento na cidade de Torres Vedras não pode nem deve ser taxado por imposição unilateral dos Réus e atenta contra a mobilidade em espaços públicos; que seja declarado que o estacionamento deve ser gratuito em Torres Vedras, no que devem os RR serem condenados a reconhecê-lo; que seja declarado que a aptidão natural do Parque da Expo-Torres ou “Várzea da Palma”- artigo 39- secção DD e terrenos envolventes constituem, em toda a sua extensão, local apto para implantação de parque verde, numa estreita ligação com o Rio Sisandro, a vala do Alpilhão e a População; que seja declarado que o parque destinado a milhares de veículos ligeiros e de transporte de passageiros junto à Expo Torres constitui descaracterização da paisagem natural e ofensa à qualidade de vida in loco; que seja declarado que a densificação automobilística in loco e o impacto ambiental negativo sobre a qualidade de vida dos cidadãos traduzem violação do artº 1º da Lei 83/95 de 31/8.
Decorrentemente, o objeto da ação integra-se na competência dos Tribunais Administrativos, face ao que expressamente se inscreve no art. 4º, nº 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Dito de outro modo, no caso concreto, a ação popular usada pelo recorrente expressa os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas, cuja resolução se inscreve na reserva de competência dos tribunais administrativos, por força do n.º3 do art.º 212.º da CRP.
Reforça-o o art.º12.º/1 do Dec. Lei n.º 853/95, de 31/8, identificando como modalidade da ação procedimental administrativa aquela que visa a defesa dos interesses referidos no art.º 1.º - ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do art.º 52.º da Constituição - , e distinguindo a ação popular administrativa da ação popular civil – seu n.º2.
Como também refere Lebre de Freitas, ob. cit, “ A Constituição da República não distingue a ação popular administrativa da ação popular civil. A primeira é dirigida contra pessoas coletivas de direito público, maxime o Estado, e é da competência do tribunal administrativo; tem lugar quando esteja em causa um ato ou omissão de um órgão ou agente da Administração no exercício da sua competência e pode revestir a forma da ação administrativa comum, de ação de condenação à prática de ato devido ou de ação de impugnação de atos administrativos. A segunda, da competência do tribunal cível, é dirigida contra pessoas de direito privado, ou contra pessoas de direito público por ato ou omissão fora do exercício da função administrativa”.
Resumindo, estão em causa, tal como se mostra configurada a causa de pedir e os pedidos formulados, atos de gestão pública, praticados no exercício funções administrativas de gestão pública, ao abrigo de normas de direito administrativo, pela Câmara Municipal de Torres Vedras (pessoa coletiva de direito público – art.º 235.º e segs. da C. R. P. e art.º 2.º/2, alínea c) do C. P. A.), atos de gestão pública que violam bens constitucionalmente protegidos, como o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território e a qualidade de vida, visando-se com esta ação a sua cessação e reparação, cuja competência está atribuída expressamente ao tribunal administrativo.
Como é sabido, o desrespeito pelas das regras de competência em razão da matéria, determina a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, nos termos do artigo 96º al. a), 577º al. a) do CPC, geradora, no caso, de indeferimento liminar (art.s 99.º/1 e  590.º nº 1), e não absolvição da instância, como foi decidido pela 1ª instância.

Improcede, pois, a apelação.

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IV. Sumariando, nos termos do  art.º 663.º/7 do C. P. C.:

1. A competência material do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica material ou subjacente tal como é apresentada pela Autora na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido e a causa de pedir.
2. Estando em causa atos de gestão pública, praticados por Câmara Municipal, no exercício de funções administrativas, ao abrigo de normas de direito administrativo, que violem bens constitucionalmente protegidos, como o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território e a qualidade de vida, e visando a ação popular a sua cessação e reparação, compete ao tribunal administrativo a sua apreciação e decisão, por expressar litígio emergente de relação jurídico-administrativa, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 52.º/3, alínea a) e 212.º/3 da CRP, art.º 4º, nº 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, art.º 1.º /1 e 12.º/1 do Dec. Lei n.º 83/95, de 31/8 e art.º 2.º, n.º2, alínea c) do C. P. A.

V. Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e modificar a decisão recorrida para indeferimento liminar da petição inicial.
Sem custas, face à isenção objetiva atribuída pelo art.º 4.º, n.º1, al. b), do R. C. P.

                                                                      
Lisboa, 2015/04/16
           
Tomé Almeida Ramião                        
Vítor Amaral                                              
Regina Almeida

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([1]) Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de março de 2012, www.dgsi.pt, referindo “como constitui entendimento pacífico, a competência em razão da matéria deve primacialmente aferir-se pela natureza da relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, isto é, no confronto entre o pedido formulado e a materialidade que integra a causa de pedir”.
([2]) Não há unanimidade na doutrina quanto à distinção entre interesse difuso e interesse coletivo. “Prevalece, porém, a ideia de que o interesse coletivo se reporta a uma comunidade genericamente organizada (mas não como pessoa coletiva), por isso permitindo a identificação dos seus membros, enquanto o interesse difuso se reporta a um grupo inorgânico de pessoas, de que qualquer cidadão pode ocasionalmente fazer parte, por isso não permitindo a identificação prévia daqueles em que radica” – cfr. Lebre de Freitas, “Enciclopédia da Constituição Portuguesa”, Quid Juris, 2013, pág. 25.
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, “ Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª Edição, pág. 282, consideram que o interesse difuso corresponde a refração em cada individuo de interesses unitários da comunidade, global e complexivamente considerada, e por interesse coletivo o interesse particular comum a certos grupos e categorias. E acrescentam que “a ação popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associativamente, a defesa de tais interesses”.
Mariana Sotto Maior, in “O Direito de Ação Popular na Constituição da República Portuguesa”, Documentação e Direito Comparado”, n.ºs 75/76, 1998, pág. 260, sublinha que “Os interesses difusos não pertencem a uma pessoa isolada ou grupo delimitado de pessoas mas a uma série indeterminada ou de imprecisa determinação; os seus titulares não estão ligados por um vínculo jurídico definido. Como refere Giannini, no dia em que o interesse difuso encontrar um portador será um interesse coletivo. Este interesse inscreve-se simultaneamente na esfera jurídica de cada cidadão e integra o património do grupo. Quanto ao seu objeto, este traduz-se num bem indivisível, no sentido de ser insuscetível de divisão em quotas atribuídas individualmente a cada um dos interessados e insuscetível de esgotamento”.
([3]) In “ A Ação Popular, configuração e valor no atual Direito português”, Revista O. A., 1999, Vol. III, pág. 872.
([4]) No que respeita ao novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Dec. Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, a legitimidade de intervenção está consagrada no n.º2 do art.º 68.º (anterior art.º 53.º), conferindo “legitimidade para a proteção de interesses difusos perante ações ou omissões da Administração passíveis de causar prejuízos relevantes não individualizados em bens fundamentais como a saúde pública, a habitação, a educação, o ambiente, o ordenamento do território, o urbanismo, a qualidade de vida, o consumo de bens e serviços e o património cultural: a) Os cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e os demais eleitores recenseados no território português; b) As associações e fundações representativas de tais interesses; c) As autarquias locais, em relação à proteção de tais interesses nas áreas das respetivas circunscrições.
Com alteração “harmoniza-se o âmbito material dos interesses difusos com as qualificações levadas a cabo na alínea a) do n.º 2 do artigo 53.º da Constituição, e no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos” – cfr. preâmbulo.