Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20852/22.2T8LSB.L1-2
Relator: PAULO FERNANDES DA SILVA
Descritores: ARROLAMENTO
UNIÃO DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil):
I. A procedência do arrolamento depende da verificação cumulativa de dois requisitos: (i) existência de um direito ou probabilidade séria de existência de um direito por parte do requerente quanto aos bens ou documentos cujo arrolamento requer – o chamado fumus boni juris; (ii) ocorrência de um fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de tais bens ou documentos – o denominado periculum in mora.
II. Se o direito do requerente do arrolamento depender de uma ação que ele venha a propor é um ónus daquele provar sumariamente no arrolamento a justeza da pretensão a deduzir em tal ação.
III. Nos termos do artigo 5.º, n.ºs 1 a 9, da Lei n.º 7/2001, o direito real de habitação e o direito de preferência quanto à casa de morada da família conferidos ao membro sobrevivo da união de facto depende da circunstância do membro falecido ser proprietário ou comproprietário, com o membro sobrevivo, da casa de morada da família ao tempo do respetivo óbito.    
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
No presente procedimento cautelar de arrolamento, em que é Requerente D… e são Requeridas RBM GLOBAL INVESTMENTS, LDA., e LSKGLOBAL, LDA., a Requerente veio pedir que seja decretado o arrolamento da fração autónoma, destinada a habitação, individualizada pela letra “E”, que constitui o primeiro andar A, piso 2, com os lugares de parqueamento n.ºs 20 e 21 e a arrecadação n.º 17, no piso -3, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, denominado Lote 2.02.06, situado…concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de …, inscrito na matriz da freguesia ….
Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que vive naquela fração autónoma desde 01.05.2008, o que sucedeu em união de facto com J … até 23.07.2022, data em que o mesmo faleceu.
Alegou também que o referido imóvel foi adquirido durante a constância da união de facto, tendo sido registado apenas em nome de J…, o qual, em 24.05.2022, vendeu tal imóvel às Requeridas, cujo objeto social é a aquisição de imóveis para revenda, temendo a Requerente que as Requeridas se preparem para revender o mencionado imóvel.
Na sua petição inicial a Requerente refere ainda que o requerido arrolamento é «preparatório à propositura do (…) processo para exercício do direito de preferência, caso as sociedades requeridas (…) venham a outorgar escritura de transmissão do imóvel (…)».
As Requeridas foram citadas, tendo além do mais alegado que a Requerida não tem o direito de preferência que invoca, quer por J … ter falecido no estado de casado, quer por o imóvel em causa já não pertencer ao mesmo à data do seu óbito.
Referiram também que não foram invocados factos dos quais se possa concluir pelo fundado receio de extravio do imóvel.
Nestes termos, as Requeridas concluíram pela improcedência do pedido.
Notificada da oposição, a Requerente alegou que o J … faleceu no estado de divorciado e reafirmou a titularidade do referido direito de preferência, termos em que concluiu pela improcedência da oposição.
Produzida a prova, o Juízo Central Cível de Lisboa julgou improcedente o presente procedimento cautelar.
Inconformada com tal decisão, dela recorreu a Requerente, apresentando as seguintes conclusões:
«A. Na prolação da Sentença, a Mª Juiz não atendeu ao teor da Certidão de Nascimento quanto: (i) à data em que foi lavrado o Assento n.º ... de 4 de Agosto do ano de 2015 e (ii) foi com base em Certidão da Missão católica de Malange de 6 de Novembro de 2013 e (iii) casou catolicamente (com B…) em 31 de Maio de 1975, conjugado com a constatação de que (iv) “(…) por sentença transitada em julgado em 16.11.1993, o divórcio por mútuo acordo entre J… 
B. E, sendo assim, a invocação do estado de casado de J … é despiciendo para efeitos de ser impedimento à aplicação do Regime de União de Facto porquanto – para que justiça seja feita – o n.º 2 do artigo 978.º do CPC estipula que “Não é necessária a revisão quando (i) a decisão seja invocada em processo pendente nos tribunais portugueses, (ii) como simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa.”
C. Mais, constitui “venire contra factum próprio” invocarem e pretenderem as Requeridas aproveitar da situação, argumentando quanto ao suposto «casamento», quando na escritura de compra e venda em apreço fizeram constar o estado civil do outorgante J…: divorciado!
D. Consequentemente, deve ser aditado aos factos provados:
“(º) Aquando da aquisição da Nacionalidade Portuguesa por J…, em 2015 (distintamente do que consta do Registo Civil) não era casado com B…, de acordo com o consignado em 11, por ter sido decretado o divórcio em 16.11.1993.
(º) Em 24.05.2022, J…, como vendedor, outorgou com as sociedades Requeridas, como compradoras, escritura pública de compra e venda da fracção autónoma identificada em 1., daí constando que o preço da venda foi de € 300.000,00 e o estado civil como divorciado.”
E. Todavia, se assim se não considerar, a escritura em crise seria inválida por errónea menção do estado civil do outorgante – divorciado – em detrimento do considerado pela Mª Juiz a quo casado em Portugal pelo que carecia da autorização/consentimento conjugal ex vi artigo 1684.º n.º 1 do C.C., no caso, que respeite a forma escrita (artigo 1684.º n.º 2, 262.º n.º 2 e 875.º do C.C.) pois nenhuma dessas exigências legais foram observadas no caso concreto.
F. O que implicaria extrair a consequência legal da invalidade do ato, de acordo com o disposto nos artigos 1682.º-A n.º 1 al. a), 1684.º n.º 1 e n.º 2, 262.º n.º 2, 75.º e 1687.º n.º 1 do C.C.
G. Acresce que está comprovado que as Requeridas são sociedades comerciais que se dedicam à aquisição de imóveis para revenda, pelo que estando em causa um bem transacionável de imediato, até por imposição do regime fiscal de aquisição «isenção de IMT na condição da sua revenda em 3 anos», atento o objeto social das Sociedades adquirentes, a localização do imóvel e o preço «desfasado da realidade» da sua aquisição a sua transmissão imediata a terceiro (ignorando o presente litígio) é, diríamos, mais do que imperativo.
H. Assim, atento o exposto nos presentes autos e a mera natureza das coisas, o “procedimento cautelar surge como meio jurídico-processual com função de evitar que se realizem actos que impeçam ou dificultem a satisfação de determinada pretensão, já tida como legítima[1], o que se consegue mediante uma incidência na esfera jurídica do demandado adequada e suficiente para produzir esse efeito[2]”.
I. Já a afirmação de que, à data da morte do companheiro da Requerente, já este tinha validamente alienado o imóvel às Requeridas, não pode ser determinada desta forma porquanto, como vimos, a escritura – inclusive no entendimento da Mª Juiz - está eivada de erro de julgamento por carecer da autorização do cônjuge – com afirmação que dela consta que o estado civil de J… é de divorciado.
J. Pelo que é manifestamente apriorístico afirmar que o direito de preferência - invocado pela Requerente - nunca se formou na sua esfera jurídica …”.
K. E, ainda, acrescenta a Mº Juiz “(…) já que sempre seria necessário que o membro falecido fosse ainda proprietário do imóvel – no caso de um direito real de habitação, também consagrado no preceito, «a ocorrência do óbito do membro da união de facto proprietário da casa de morada de família é, só por si, facto constitutivo…”.
L. Ora, o regime que regula os direitos que assistem ao sujeito que sobreviva a União de Facto previsto na Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, que deu nova redação à Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio “(…) no caso de a união de facto dispõe no n.º 9 do artigo 5.º que “O membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título.”
M. Não se deve olvidar o prazo em que os dois membros da união de facto habitaram o Imóvel, no caso “(…) desde Maio de 2008, com os seus 3 filhos…” dado como provado na sentença recorrida nos Ponto 1 e 4.
N. Nesta conformidade, a Recorrente deve beneficiar da aplicação do espírito que presidiu à instituição do regime e não a uma aplicação cega da letra da lei que pretendeu garantir, por via do atual regime da união de facto, uma solução justa e equitativa, tendo em atenção as relações criadas, para as uniões de facto duradouras, como sucedeu no caso em apreço.
O. A situação em que a Recorrente viveu (mais de 14 anos) permite-lhe criar a firme convicção e a legítima expectativa de que tem direito à casa de morada de família, na circunstância como as dos autos, atento a que o perecimento do outro membro da União se deu mero mês após a escritura e em que aquele interveio em circunstâncias não claramente, ainda, apuradas quanto ao montante fixado e o destino do dinheiro resultante da alienação: neste sentido veja-se a menção a divorciado quando a Recorrida vem defender e mostrar ter conhecimento do estado de casado do outorgante J ….
P. Ora, o princípio da confiança visa a previsibilidade das soluções, a proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica o qual é violado quando haja uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos (Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 287/90, 303/90, 625/98, 634/98 e 186/2009, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Q. A solução de Direito vertida na sentença recorrida viola, salvo o devido respeito por entendimento diverso, o princípio da legalidade.
R. Como se pode entender não existir uma situação de flagrante necessidade de “habitação própria e permanente, para a Requerente e filhos (gerados no seio da união de facto), quando os móveis foram adquiridos na constância da União (por ambos) e é a Requerente, que não tem outro local onde possa habitar, paga as contas das despesas da casa?”
S. Ou seja, para além do erro de julgamento sobre os pressupostos de facto que apontam para que uma decisão com racionalidade económica (atente-se a que a venda imediata do imóvel a terceiro está na génese e é pressuposto da sua aquisição pelas requeridas) impõe solução diametralmente oposta à da Sentença pois, esta, deixa sem qualquer proteção jurídica a Requerente face a ulterior adquirente de boa-fé.
T. Foi, também, violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º e o n.º 1 do artigo 65.º da Constituição, pois é inadmissível que um procedimento seja decidido ao arrepio de assegurar o mais elementar direito à habitação da Requerente e seu agregado familiar.
U. A violação do princípio da tutela judicial efetiva é manifestamente injusta, pois tem como consequência a denegação do direito de ação «do direito» de preferência.
V. O Tribunal violou garantias constitucionais da requerente, alheando-se da condução e tramitação dos autos em consonância com as previsões e procedimentos legalmente previstos para assegurar os direitos da Requerente (Nulidade, anulabilidade da Escritura de compra e venda do imóvel nas circunstâncias relacionada com o estado civil do de cujus) e direitos legalmente consagrados à União de Facto quanto à habitação própria e permanente dos seus elementos.
W. Ou seja, deve atentar-se na nulidade praticada, nos termos do disposto no artigo 195.º do Código de Processo Civil, e inconstitucionalidade por violação dos artigos 20.º e 65.º n.º 1 da CRP.
X. Foi, assim, violado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição com a consequente inconstitucionalidade por violação, também, do artigo 65.º n.º 1 da CRP.
Nestes termos e nos demais de direito ao caso aplicáveis que, V. Exas., Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogada a, aliás, douta Sentença recorrida e substituída por Acórdão que dê provimento ao invocado pedido para ser determinado o arrolamento do imóvel em apreço, nos termos alegados, em consonância com os cânones legais.
Assim se fazendo a costumada. Justiça!»
As Requeridas apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pelo Recorrente, nos presentes autos está em causa apreciar e decidir as seguintes questões:
- Do aditamento da matéria de facto indiciária;
- Do arrolamento do imóvel.
Assim.
III.
DO ADITAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO INDICIÁRIA
(Conclusões A. a D).
Nesta sede a Requerente pretende que sejam aditados dois novos factos ao elenco dos dados como indiciariamente provados pelo Tribunal Recorrido, a saber:
- Aquando da aquisição da Nacionalidade Portuguesa por J…, em 2015 (distintamente do que consta do Registo Civil) não era casado com B…, de acordo com o consignado em 11, por ter sido decretado o divórcio em 16.11.1993;
- Em 24.05.2022, J…, como vendedor, outorgou com as sociedades Requeridas, como compradoras, escritura pública de compra e venda da fracção autónoma identificada em 1., daí constando que o preço da venda foi de € 300.000,00 e o estado civil como divorciado.
Vejamos.
No ponto 11. dos factos dados como indiciariamente provados, a decisão recorrido refere que:
«11. Pelo Tribunal da Comarca de Luanda, República de Angola, Sala de Família, 1ª Secção, foi decretado, por sentença transitada em julgado em 16.11.1993, o divórcio por mútuo acordo entre J … e B… ».
Com o requerido aditamento, pretende a Recorrente deixar consignado que J… era divorciado em 2015 e em 24.05.2022.
Ora, em função do referido facto n.º 11 dado como indiciariamente provado, afigura-se desnecessário o pretendido aditamento da decisão de facto.
Com efeito, o estado de «divorciado» de J …, por indiciariamente adquirido em 16.11.1993, na falta de outros elementos probatórios, tem-se por existente em 2015, aquando da alegada aquisição da nacionalidade portuguesa, e em 24.05.2022, na data da compra e venda do imóvel em causa.
No que respeita, pois, ao estado civil de divorciado por parte de J… em 2015 e em 24.05.2022, o mesmo decorre, assim, por si só, do indicado facto n.º 11 e da ausência de outro facto subsequente que o altere.
É certo que no facto dado como indiciariamente provado com o n.º 4 consta da decisão recorrida que:
«4. J… faleceu em Portugal no estado de casado com B… ».
Contudo, tal é o que consta da certidão de óbito daquele, junta pela Requerente com a sua petição inicial, pelo que a fim de manter a necessária coerência da decisão de facto importa acrescentar ao indicado em 4. que o aí indiciado decorre da certidão de óbito de J …, passando, pois, tal facto indiciado a ter a seguinte redação: 
«4. Da certidão de óbito de J… consta que este faleceu em Portugal, no estado de casado com B… ».
No mais.
Quanto à «aquisição da nacionalidade portuguesa» e no que respeita à referência do estado de «divorciado» do comprador na referida escritura de 24.05.2022, tem-se tal matéria factualidade por impertinente à boa decisão da causa, pelo que revela-se infundada a pretendida alteração da matéria de facto.
Com efeito, ao desfecho dos autos é indiferente a aquisição da nacionalidade portuguesa por parte J …, assim como também é indiferente fazer constar da factualidade indiciariamente apurada a referência ao estado civil daquele constante da escritura de compra e venda do imóvel em causa.
Improcede, pois, a pretendida alteração da decisão de facto.  
*
Nestes termos, este Tribunal da Relação de Lisboa tem como indiciariamente provados os seguintes factos:
«1. A Requerente habita desde maio de 2008, com os seus 3 filhos, no imóvel a que corresponde a fração autónoma destinada a habitação individualizada pela letra “E”, que constitui o 1.º andar A, piso 2, com os lugares de parqueamento n.º 20 e 21 e arrecadação n.º 17, no piso -3, do prédio urbano denominado Lote 2.02.06, sito no … descrito na CRP de Lisboa sob o n.º ... da freguesia de … e inscrito na matriz da freguesia do… sob o artigo 284.º;
2. As Requeridas são sociedades comerciais que se dedicam à aquisição de imóveis para revenda;
3. A Requerente viveu em condições análogas às dos cônjuges com J… até à morte deste, em 23 de julho de 2022;
4. Da certidão de óbito de J … consta que este faleceu em Portugal, no estado de casado com B…;
5. J … é o progenitor dos 3 filhos da Requerente, os quais nasceram, respetivamente, em 2001, 2002 e 2005;
6. A propriedade do imóvel encontrava-se registada apenas em nome de J … mas foi adquirido durante a constância da união de facto;
7. Em 24.05.2022, J…, como vendedor, outorgou com as sociedades Requeridas, como compradoras escritura pública de compra e venda da fração autónoma identificada em 1., daí constando que o preço da venda foi de €300.000,00;
8. O recheio da casa que é habitação da Requerente e dos 3 filhos foi adquirido por aquela e pelo falecido J …;
9. Atualmente, é a Requerente quem efetua o pagamento das contas da casa, designadamente, as da água;
10. A Requerente não possui outro imóvel onde possa habitar;
11. Pelo Tribunal da Comarca de Luanda, República de Angola, Sala de Família, 1ª Secção, foi decretado, por sentença transitada em julgado em 16.11.1993, o divórcio por mútuo acordo entre J … e B….
IV.
DO ARROLAMENTO DO IMÓVEL.
(Conclusões E. a X).
Os presentes autos constituem um procedimento cautelar de arrolamento.
Nos termos do artigo 403.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil, «[h]avendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles», sendo que «[o] arrolamento é dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas».
Segundo o artigo 405.º do referido CPCivil, «[o] requerente faz prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação; se o direito relativo aos bens depender de ação proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente».
Das apontadas disposições legais decorre que a procedência do arrolamento depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
· Da existência de um direito ou probabilidade séria de existência de um direito por parte do requerente quanto aos bens ou documentos cujo arrolamento requer – o chamado fumus boni juris;
· Da ocorrência de um fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de tais bens ou documentos – o denominado periculum in mora.
No que respeita àquele primeiro dos requisitos.
Do apontado regime legal decorre que se o direito do requerente do arrolamento depender de uma ação que ele venha a propor é um ónus daquele provar sumariamente no arrolamento a justeza da pretensão a deduzir em tal ação.  
Como referem na matéria Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, edição de 2019, página 191, «é exigido ao requerente do arrolamento que, quando o seu direito relativo aos bens dependa da obtenção de sentença de mérito favorável na ação (constitutiva: art. 362-2), faça prova sumária da probabilidade de nela obter vencimento».
No mesmo sentido referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, que «se o arrolamento for dependente de ação constitutiva do próprio direito sobre os bens (v.g. exercício do direito de preferência, execução específica de contrato-promessa), cumpre alegar factos que, uma vez apurados, possibilitem a afirmação da probabilidade da procedência dessa ação».
In casu.
Considerando o disposto no artigo 978.º, n.º 2, do CPCivil e os factos indicados como indiciados com os n.ºs 2, 7 e 11 aceita-se como indiciariamente provado que J … faleceu no estado de divorciado e em união de facto com a Recorrente.
Ora, invocando o disposto no artigo 5.º, n.º 9, da Lei n.º 7/2001, de 11.05, enquanto membro sobrevivo da união de facto, a Recorrente fundamenta o arrolamento num direito de preferência de que alegadamente é titular quanto ao imóvel que pretende arrolado.
Vejamos.
A referida Lei n.º 7/2001, de 11.05, sucessivamente alterada pelas Leis n.ºs 23/2010, de 30.08, 2/2016, de 29.02, 49/2018, de 14.08, e 71/2018, de 31.12, estabelece medidas de proteção das uniões de factos.
Uma dessa medidas refere-se à proteção da casa de morada da família.
O artigo 4.º da referida Lei n.º 7/2001 refere-se à proteção em caso de rutura da união de facto, ao passo que o artigo 5.º da mesma Lei alude à proteção da casa de morada da família em caso de morte de um dos membros da união de facto.
Aquele preceito último preceito legal é composto de 10 números, sendo que o último daqueles números refere-se à situação em que o falecido membro da união de facto é arrendatário do imóvel que constitui a casa de morada da família, ao passo que os restantes nove números do artigo 5.º respeitam à situação em que o de cujus é proprietário de tal imóvel ou este pertence em compropriedade a ambos os membros da união de facto.
Naquela situação de titularidade da propriedade por parte do falecido ou de compropriedade daquele e do membro sobrevivo, este «pode permanecer na casa de morada da família, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio», conforme n.º 1 do apontado artigo 5.º da Lei n.º 7/2001.
Tal direito real pressupõe, pois, que o membro da união de facto que falece seja proprietário do imóvel que constitui casa de morada da família ou seu comproprietário, com o membro da união de facto sobrevivo, sendo que com o óbito daquele este adquire ipso facto o apontado direito real de habitação quanto ao imóvel e de uso do recheio do mesmo imóvel.
Do mesmo modo, «[o] membro sobrevivo tem direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título», conforme n.º 9 do referido artigo 5.º da Lei n.º 7/2001.
Como refere Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, edição de 2018, página 540, «[e]m caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada de família, o membro sobrevivo goza do direito real de habitação, pelo prazo de cinco anos, sobre a casa de morada de família, e direito de preferência na sua venda, “durante o tempo em que a habitar por qualquer título” (art. 5.º, n.ºs 1 e 9, da LUF)».
Em tal situação, constitui, pois, pressuposto do referido direito real de habitação e do aludido direito de preferência, direito real de aquisição, que o falecido membro da união de facto seja proprietário do imóvel que constituía a casa de morada da família à data de tal óbito.
Tal é também o que sucede em sede de atribuições preferenciais quanto ao direito de habitação da casa de morada da família e direito de uso do recheio relativamente ao cônjuge sobrevivo: o regime em causa pressupõe que a casa de morada da família seja objeto da herança do de cujus, conforme artigo 2103.º-A, do CCivil.
Entender de outro modo, seria conferir ao membro sobrevivo da união de facto um direito sobre a casa de morada da família a partir de uma situação meramente factual, a ocupação por ele de uma casa que constituía a casa de morada da família, o que por certo não foi pretendido pelo legislador.
Conforme decorre da factualidade indiciariamente provada, o falecido J… não era proprietário da casa de morada da família à data do respetivo óbito.
Então, a Requerente residia naquela casa, mas desconhece-se a que título, o qual nem sequer foi alegado pela Recorrente.
Nestes termos, carece de fundamento o direito de preferência invocado como causa de pedir do presente arrolamento.
Com efeito, pressupondo tal direito de preferência que J … fosse proprietário da casa de morada da família à data do respetivo óbito, não se tendo indiciado tal, carece de fundamento o direito em que a Requerente motiva o presente arrolamento, não se verificando, pois, desde logo, o primeiro dos apontados requisitos do arrolamento em causa.
Em consequência, atenta a apontada natureza cumulativa dos respetivos requisitos, inverificado um deles, urge considerar improcedente o arrolamento requerido, conforme decisão recorrida, mostrando-se prejudicado o conhecimento do segundo dos indicados requisitos do arrolamento.
Por outro lado, vistos assim os autos revela-se inconsistente a alegada violação de princípios e normas constitucionais e legais.
Desde logo, a fundamentação do recurso revela-se contraditória, pois ao mesmo tempo que se afirma o estado de divorciado do de cujus a fim de firmar a união de facto, afastando, assim, a exceção do artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º 7/2001, invoca-se o estado de casado do mesmo com o propósito de ter a compra e venda como inválida e dessa forma integrar a casa de morada da família na esfera patrimonial do falecido, à data do respetivo óbito.
Ora, das duas uma.
Ou J… faleceu no estado de casado e então inexistia união de facto na asserção legal, não podendo a Recorrente invocar a seu favor o regime legal da união de facto.
Ou ele faleceu no estado de divorciado e embora existisse união de facto o mesmo não era proprietário da casa de morada da família, pelo que a Recorrente não tem direito de preferência quanto à alienação daquela casa.       
Por outro lado, não tendo a Recorrente o direito de preferência que invoca como causa do seu pedido de arrolamento, sendo este, pois, legalmente infundado, não se descortina como se pode assacar à decisão recorrida as inconstitucionalidades e ilegalidades invocadas pela Recorrente.
Mesmo que ela tenha confiado na justeza da sua posição, sendo ela infundada, tal confiança carece de tutela jurídica.
Confiou mal e disso não pode a Recorrente retirar proveito.
O direito à habitação não é um direito absoluto, devendo conjugar-se com outros direitos, nomeadamente com o direito de propriedade, o que se afigura decorrer do apontado regime legal nos termos entendidos na decisão recorrida e nesta decisão.
Da circunstância do Tribunal não acolher a pretensão de uma das partes não decorre por si só a violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva.
No caso, a Recorrente exerceu cabalmente os seus direitos, nomeadamente processuais, sendo que cabe ao Tribunal dirimir o conflito de interesses que lhe é presente, o que no caso se tem por cabalmente efetuado, com observância dos termos legalmente prescritos.
Improcede, pois, o presente recurso, mantendo-se, assim, a decisão recorrida nos seus exatos termos.
*
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, o recurso é considerado um «processo autónomo» para efeito de custas processuais, sendo que a decisão que julgue o recurso «condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, na situação vertente a Recorrente configura-se como parte vencida, pois improcede o recurso que interpôs.
Nestes termos, as custas do recurso devem ser suportadas pela Recorrente, incluindo naquelas tão-só as custas de parte, conforme artigos 529.º, n.º 4, e 533.º do CPCivil, assim como 26.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais.

V. DECISÃO  
Pelo exposto, julga-se improcedente o presente recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.  
Custas, na vertente de custas de parte, pela Recorrente.

Lisboa, 12 de janeiro de 2023
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins
Inês Moura
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[1] E não tida como certa e comprovada.
[2] Único desiderato da pretensão apresentada pois que o respetivo direito deve ser - tempestivamente - invocado no prazo de seis meses da tomada de conhecimento do Direito que assiste a Requerente (a outorga da escritura).