Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
542/10.0TBLNH.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I) A delimitação do âmbito do caso julgado não pode reduzir-se à consideração literal do dispositivo da decisão, antes implica a consideração do contexto decisório em que está inserido e de que emerge.
II) Para considerar verificada tardia apresentação à insolvência excludente da exoneração do passivo restante, releva a situação de insolvência iminente e não o incumprimento generalizado ou relevante.
III) Face à situação de um Insolvente, com 66 anos de idade, padecendo de uma incapacidade de 69%, sem bens imóveis e parcos bens móveis, vivendo exclusivamente de duas pensões no montante global de € 1.511,77 e pagando de renda € 325,00, tem de concluir-se inexistir perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
IV) A apresentação tardia não basta para que seja indeferido o prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante, sendo ainda necessário que do atraso tenham resultado prejuízos para os credores.
V) Aqueles prejuízos não se presumem e devem resultar da comparação entre a situação dos credores na data da apresentação e a que se verificaria se ela tivesse ocorrido nos seis meses subsequentes à verificação da iminência da insolvência.
VI) Cabe aos credores o ónus de provar que o insolvente não se encontra em condições de beneficiar da exoneração do passivo restante.
VII) Revogado o despacho que indeferiu o procedimento de exoneração do passivo restante, não deve a Relação substituir-se à primeira instância na prolação do despacho de prosseguimento do incidente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
Carlos, com os sinais dos autos, apresentou-se à insolvência com pedido de exoneração do passivo restante.
Foi proferida sentença que declarou a insolvência do Requerente e, com o mais legal, designou data para a assembleia de credores de apreciação do relatório.
O Senhor Administrador da insolvência juntou competente relatório, no qual, entre o mais, se pronunciou pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Alegou nessa sede que as causas da insolvência se relacionaram com um primeiro empréstimo para pagamento de uma dívida fiscal e com uma situação de instabilidade familiar e afectiva do Requerente, que este tentou superar através de longas viagens, para as quais adquiriu uma viatura, mediante um segundo empréstimo, tendo acabado por se desfazer da viatura por a não poder manter, sucedendo-se os empréstimos destinados ao pagamento dos anteriormente contraídos. Mais referiu entender que a situação de insolvência se verificou em 5 de Julho de 2007, continuando o Requerente a endividar-se após essa data, pelo que entende verificada a previsão do artigo 238.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CIRE.
Dos autos constam elementos de outros processos de insolvência sem que se vislumbre a razão, o que será, porém, tratado na primeira instância, nos termos que forem entendidos convenientes.
Realizou-se assembleia de credores na qual os presentes nada requereram quanto ao relatório do Senhor Administrador.
Cumprido o demais legal, foi proferida decisão de indeferimento do pedido e de encerramento do processo.
Desta decisão foi interposto recurso para este Tribunal que, em decisão sumária, julgando-o procedente, determinou a reavaliação dos requisitos do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
 Devolvidos os autos à primeira instância foi ordenada a notificação dos credores para se pronunciarem sobre o pedido de exoneração do passivo restante.
Os credores Barclays e Santander vieram declarar que se opunham à exoneração do passivo restante. Nada alegaram. Não apresentaram requerimentos de prova.
Foi proferida decisão que considerou preenchida a previsão da alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, em razão do que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos que seguem:
«No caso dos autos, é pacífico e encontra-se desde já consignado, atenta a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que a apresentação à insolvência é intempestiva (verso de fls. 421).
Com efeito, não obstante o devedor tenha começado a incumprir generalizadamente as suas obrigações a partir Fevereiro de 2010, certo é que nos anos que antecederam a declaração de insolvência contribuiu para agravar a sua situação de insolvência, tendo continuado a contrair créditos, uma vez que três meses depois de ter contraído um empréstimo no valor de € 35.767,32, contraiu um outro no valor de € 13.919,99, e, posteriormente, outros, no valor de € 10.932,34 e de € 9.256,57, bem sabendo que os seus rendimentos são apenas os provenientes da reforma por invalidez, no valor de € 1.511,77 e que padece de incapacidade de 69%.
Impõe-se, pois, concluir, que nos anos que antecederam a declaração de insolvência, o devedor foi, progressivamente, agravando o seu passivo com a constituição, sucessiva, de créditos e que atenta a sua particular situação de vida, seria de todo improvável, ver aumentado o seu activo.
Concluindo-se, por todo o exposto, como aliás já se encontra consignado nos autos, que a apresentação à insolvência foi intempestiva.
Quanto ao mais, a conduta do devedor, e anteriormente descrita, melhor retratada a fls. 133 a 135 (lista de credores) e que aqui dou por reproduzida (constituição sucessiva de créditos em montante avultado), aliada aos seus únicos rendimentos provenientes da pensão reforma, permite-me concluir que a mesma é manifestamente agravadora da sua situação de insolvência, traduzindo-se, em particular, os empréstimos contraídos no ano de 2008 num manifesto agravamento do seu passivo, com consequente prejuízo para os anteriores credores e que o devedor (nascido em 1942), atenta a sua particular situação de vida, sabia perfeitamente que não tinha qualquer perspectiva séria de melhorar a sua situação económica.
É, pois, meu entendimento, que a circunstância do devedor ter contraído empréstimos em 2008 (um no valor de € 10.932,34 e outro no valor de € 9.256,57), depois de em 2007 ter contraído (em curto período de tempo), dois empréstimos de avultado montante (um no valor de € 35.767,32 e outro no valor de € 13.911,99), sabendo que é reformado por invalidez, padece de incapacidade e não tem quaisquer outros rendimentos além dos provenientes da sua pensão, acarretou prejuízo para os anteriores credores, prejuízo esse de que o devedor estava perfeitamente ciente pois que “apenas vive” da sua reforma e padece de 69% de incapacidade, e se traduz na circunstância de que, quando em 2008 voltou a contrair créditos agravou a sua situação de insolvência e não podia ignorar que já não estava em condições de pagar os créditos anteriormente constituídos, nem aqueles que veio (em 2008) a contrair.
Ora, a exoneração do passivo restante é determinada pela necessidade de conferir aos devedores, pessoas singulares, uma oportunidade de começar de novo, pelo que só deve ser concedida a quem a merecer, e a lei exige uma situação anterior pautada pela boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo que já resulta da insolvência não seja incrementado por actuação culposa do devedor.
Reportando-nos ao caso dos autos, a debilidade da situação económico-financeira do insolvente está plasmado nos autos, bem como a sua impossibilidade de cumprir pontualmente todas as obrigações vencidas e de liquidar os montantes em dívida.
O comportamento do devedor e que desembocou na sua insolvência, é manifestamente consumista, quando apenas aufere pensão no valor global de € 1.511,77 por mês, sendo evidente que não podia ignorar - sem culpa grave – que não possui, precisamente porque se encontra reformado por invalidez e nasceu em 1942, nem possuía, qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Ora, sendo o rendimento mensal do devedor o supra o referido, e o seu agregado familiar composto apenas por si, nascido em 1942, reformado por invalidez e que sofre de incapacidade de 69%, e não resultando dos autos qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica, não se percebe como pode alegar que teve perspectivas sérias de melhoria da sua situação económica, ainda para mais quando nem sequer os custos com os seus tratamentos serão elevados atendendo a que refere como despesas com farmácia e consultas € 70,00 por mês (fls. 14), tal como não se compreende porque razão contraiu, desenfreadamente, créditos de elevados montantes, quando nem sequer alegou que os contraiu para fazer face a despesas inesperadas, como por exemplo tratamentos médicos.
Ora a excepcionalidade do regime da exoneração do passivo restante reside na circunstância de constituir uma pura benesse concedida ao insolvente, inteiramente à custa do património do credor, apenas justificável no caso de devedor que, não obstante ter adoptado, ao longo da sua vida, um comportamento impoluto, seja confrontado, mercê de inesperada e incontrolável má fortuna, com uma situação de absoluta carência de meios para satisfazer os compromissos de natureza pecuniária assumidos.
Não pode, assim, ser usado como meio de todo e qualquer devedor se descartar do seu passivo, acumulado ao longo do tempo e a maior parte das vezes proveniente da contracção de empréstimos para aquisição de bens que, nada tendo a ver com a satisfação de necessidades básicas, é ditada pelas regras de funcionamento da sociedade de consumo.
Por conseguinte, o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, pelo benefício que comporta para o devedor/insolvente e, eventual prejuízo dos credores, está dependente da comprovação duma conduta não censurável do devedor/insolvente no que se refere ao processo de endividamento que culminou na insolvência e ao seu relacionamento com os seus credores (neste sentido leia-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Outubro de 2012, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, auferindo o devedor - nascido em 1942 e portador de uma incapacidade de 69%, que vive sozinho, em casa arrendada - € 1.511,77 por mês a título de pensão, com o qual deveria satisfazer as suas necessidades básicas, e suportar o pagamento dos empréstimos contraídos até 2007, é de concluir, em face das regras da lógica e da experiência comum, que os empréstimos contraídos posteriormente, em 2008, causaram prejuízo aos credores , e que o devedor não podia ignorar que não tinha qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Sendo por demais evidente que os empréstimos por si contraídos no ano de 2008 agravaram a sua (já então presente) situação de insolvência e comprometeram os anteriores credores.
Por todo o exposto e sem necessidade de mais considerandos por de todo despiciendos, encontrando-se preenchida a al. d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo deduzido pelo devedor».
Desta decisão vem agora interposto recurso pelo Requerente que concluiu as suas alegações como segue:
«Recorre-se do Despacho de 13.11.12 que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante requerido pelo Apelante – cfr doc n.º 1.
II. Decisão essa baseada no facto de terem ocorrido circunstâncias que se enquadram nos dispositivos legais plasmados no art.º 238 n.º 1 d) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
III. Crê-se, porém que, e salvo o devido respeito por melhor opinião, a decisão recorrida peca por notório e evidente erro na apreciação das provas e dos factos.
IV. Além de que não fez a correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis, ao dar como preenchida a al. d) do n.º 1 do art. 238.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas - CIRE, devendo, por conseguinte, ser revogado e substituído por outro decisão que defira o pedido de exoneração do passivo restante.
V. Nem tão pouco corrobora as decisões de Tribunais Superiores, nomeadamente o Supremo Tribunal de Justiça que, como se verá, contradizem claramente a decisão e correspondente fundamentação do Despacho aqui recorrido.
VI. Assim sendo, esta causa de indeferimento liminar, do pedido de exoneração do passivo restante prescreve três requisitos cumulativos:
a) Que o devedor se haja abstido de se apresentar à insolvência nos seis meses posteriores à verificação da sua situação de insolvência;
b) Que dessa abstenção resulte um prejuízo para os credores;
c) Que o devedor saiba (ou pelo menos não possa ignorar sem culpa grave) não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; ou seja, ainda é necessário que o devedor saiba que a sua situação económica é definitiva, no sentido de não ser alternável a curto prazo, ou que não possa deixar de disso estar consciente, a não ser por inconsideração grave.
Vejamos alínea por alínea.
a) Que o devedor se haja abstido de se apresentar à insolvência nos seis meses posteriores à verificação da sua situação de insolvência;
VII. Tal como referido no Douto Despacho que aqui se recorre, o devedor começou a incumprir generalizadamente as suas obrigações em Fevereiro de 2010 “Com efeito, não obstante o devedor tenha começado a incumprir generalizadamente as suas obrigações a partir Fevereiro de 2010…”.
VIII. Apresentou-se à insolvência em Agosto de 2010, ou seja, dentro do prazo dos 6 meses legalmente admitidos.
IX. Dispõe o art.º 3 n.º 1 do CIRE que se encontra insolvente aquele que está impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
X. Essa impossibilidade verificou-se em Fevereiro de 2010, pois, na verdade, não houve qualquer incumprimento da parte do insolvente até essa data.
XI. Sobre esta matéria pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa de 30.06.11 Processo 524/11.4 TJLSB –AL1-6 quando refere que “A situação de insolvência corresponde a uma incapacidade de cumprimento em que alguém, por carência de meios próprios e por falta de crédito , se encontra impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações.
d) Que dessa abstenção resulte um prejuízo para os credores;
XII. Desde logo, na sua origem, o próprio requisitado não se encontra verificado na medida em que não existiu abstenção na apresentação à insolvência nos 6 meses seguintes à situação de insolvência.
XIII. Pelo que apenas por mero raciocínio académico, se analisará a aplicação do requisito “prejuízo para os credores” à situação em concreto.
XIV. Considerou a decisão recorrida que em relação a este requisito que o credor desenfreadamente assumiu novas obrigações que à partida sabia não cumprir.
XV. Na verdade o devedor já antes de 2004 recorria ao crédito, liquidando na integra as prestações a que estava obrigado.
XVI. Tal como decorre dos Autos, só em Fevereiro de 2010 é que deixou de pagar as prestações dos seus créditos pelo que, durante mais de 6 anos, foi um devedor exímio e que não se absteve de assumir as suas responsabilidades.
XVII. Deve-se antes analisar o comportamento dos credores em todo o processo de contracção de divida!!
XVIII. Aquando da verificação das dificuldades financeiras do devedor (nomeadamente através de consulta de mapas de responsabilidade do Banco de Portugal ou porque, no caso em apreço, diversas vezes foram informadas dessa situação por parte do devedor), este continuou a merecer o apoio dos credores através da concessão de crédito submetido a taxas de juro elevadíssimas e permanentes comunicações ao devedor no sentido deste recorrer ao crédito para poder liquidar outras obrigações que já detinha.
XIX. Não deveriam ter as instituições financeiras abster-se de realizar operações (proveitosas unicamente para estas) que contribuíram para a impossibilidade de cumprimento das obrigações do devedor?
XX. Sobre as instituições financeiras impendem deveres de vigilância e aconselhamento no deferimento do crédito, que no caso em concreto não foram respeitados.
XXI. Contribuindo assim, de forma clara, para o sobreendividamento do devedor e a sua consequente insolvência.
XXII. E dos autos não existe qualquer outro elemento donde resulte a demonstração directa de qualquer prejuízo para os credores.
XXIII. Assim, também, em relação a este requisito, existiu erro grosseiro na apreciação da matéria de facto.
e) Se conheça da inexistência, «ou não podendo ignorar sem culpa grave» de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica;
XXIV. Obviamente que sendo o devedor reformado por invalidez com uma incapacidade de 69%, as perspectivas de melhoria da sua situação económica, no que respeita ao aumento dos seus rendimentos mensais, foram-se gorando ao longo dos anos.
XXV. Não obstante, a verdade é que foi conseguindo acordos com os seus credores, nomeadamente através de créditos consolidados como o celebrado em 2007, no valor de 35.767,32€.
XXVI. A sua perspectiva seria pois a de conseguir negociar as prestações a que estava obrigado, através da diminuição dos encargos mensais e alargamento de prazos de pagamento.
Ocorre ainda que,
XXVII. Não constam dos Autos factos nem elementos suficientes susceptíveis de levar o Tribunal a considerar que houve motivos para decidir pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
XXVIII. Não foram alegados factos que despoletassem o vertido em alguma das alienas do art.º 238 do CIRE.
XXIX. Ou seja, não foi produzida prova nem da parte dos credores nem por parte do Administrador de Insolvência, suficiente para que o Tribunal a quo indeferisse liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante pelo que o pedido deveria ter merecido acolhimento pelo Tribunal a quo.
XXX. De acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Outubro de 2010, que pode ser visualizado no site www.dgsi.pt, mais especificamente http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1bde671c45dda98f802577c4003d92bf?OpenDocument&Highlight=0,exonera%C3%A7%C3%A3o,do,passivo,restante, o ónus de trazer ao processo elementos que impeçam os insolventes que requeiram o pedido de exoneração do passivo restante, cabe aos credores ou ao Administrador de Insolvência.
XXXI. Os devedores não têm que apresentar prova dos requisitos para beneficiarem daquele mecanismo jurídico, bastando formular o pedido pois “…bem vistas as coisas, as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração.
Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito.
Nesta mediada, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. nº2 do artigo 342º do Código Civil.
XXXII. Isto porque, “…como refere Assunção Cristas “in” Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168 “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”.
XXXIII. Ora, como se disse, não foi produzida prova nos Autos que impedisse que o direito potestativo de admissão do pedido de benefício de exoneração do passivo restante tivesse operado.
XXXIV. E assim, conclui-se que a decisão proferida pelo Tribunal da Lourinhã não foi de encontro ao que está, nos dias de hoje, reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça Português».
Foram apresentadas contra-alegações pelo Ministério Público defendendo o bem fundado da decisão.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente e inexistindo questões de conhecimento oficioso - artigo 684.º, n.º 3, 685.º A, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 660.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre decidir da verificação dos requisitos de prolação do despacho inicial de prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante.
Advirta-se quanto a tal que entendemos que o tribunal de recurso não está limitado à apreciação do requisito fundamento do despacho impugnado, ou dos requisitos invocados e discutidos nas alegações ou conclusões do recurso, antes pode apreciar da apreciação de todos os requisitos legais a apreciar no despacho impugnado.
É o regime que cremos resultar do disposto no artigo 11.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[1] que estabelece o princípio do inquisitório em termos amplos.
Nesse sentido Adelaide Menezes Leitão[2], em anotação ao Acórdão da Relação do Porto de 28 de Setembro de 2010 (Des. João Ramos Lopes) «aponta para uma análise ex officio, a realizar pelo juiz, de todos os requisitos da admissão do pedido de exoneração do passivo restante em nome do princípio do inquisitório (previsto expressamente no art. 11.º do CIRE) (…)».

III) FUNDAMENTAÇÃO

1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Não foi impugnada a decisão de facto, estando assentes nos autos os seguintes factos:
A) Carlos, nascido em 6 de Dezembro de 1942, é deficiente das Forças Armadas desde os 22 anos de idade, padecendo de uma incapacidade de 69%;
B) Vive em casa arrendada pela qual paga € 325,00 por mês;
C) Encontra-se reformado e vive exclusivamente do rendimento mensal proveniente de duas pensões sociais no valor global de € 1.511,77;
D) Sofre de patologia crónica, do foro metabólico que lhe exige frequentes avaliações médicas, despendendo, mensalmente, em farmácia e consultas € 70,00;
E) Em 28 de Março de 2006 contraiu um empréstimo cujo valor é € 3.741,82;
F) Em 27 de Junho de 2006 contraiu um outro empréstimo cujo valor é de € 2.494,56;
G) Em 7 de Julho de 2007 voltou a contrair um empréstimo no valor de € 35.767,32;
H) Três meses depois, em 12 de Outubro de 2007, contraiu um outro empréstimo no valor de € 13.911,99;
I) Não satisfeito, continuou na sua saga consumista, pois que em 2 de Abril de 2008 contraiu um empréstimo no valor de € 10.932,34;
J) E em 4 de Agosto de 2008 contraiu um outro no valor de € 9.256,57;
L) Em Fevereiro de 2010 começou a incumprir generalizadamente as suas obrigações.

2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A questão a apreciar no presente recurso é a da verificação ou não dos requisitos para a prolação de despacho inicial de prosseguimento do pedido de exoneração do passivo restante.
2.1 O regime
O CIRE veio estabelecer, no regime de insolvência de pessoas singulares, a possibilidade de, verificados certos requisitos e decorrido um lapso temporal fixado, conceder ao insolvente o benefício de exoneração das dívidas não satisfeitas de modo a reiniciar uma vida económica nova.
Esta possibilidade corresponde ao que a doutrina anglo-saxónica denomina fresh start[3]. Postergando em alguma medida os interesses dos credores por consagrar uma forma de extinção das obrigações sem a sua anuência, o instituto visa “recuperar” para a vida económica os devedores de “boa-fé” envolvidos no endividamento de que também é responsável uma sociedade que apela ao consumo e à solicitação de crédito.
O regime está atualmente previsto nos artigos 235.º a 248.º do CIRE, nas suas dimensões adjectivas e substantivas.
O artigo 235.º indica, pelas consequências, a teleologia do instituto: ser «concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste».
Em termos processuais desenvolve-se com os seguintes trâmites e fases: pedido (artigo 236.º, n.º 1); apreciação pela assembleia de credores (artigo 236.º, n.º 4); despacho inicial de prosseguimento ou indeferimento, com nomeação do fiduciário e indicação das condições do período de cessão (artigo 239.º, n.ºs 1 e 2); período de cessão (artigo 239.º, n.º 4); eventual despacho de cessação antecipada (artigo 243.º); e despacho final.
Constituem requisitos processuais do pedido:
1. legitimidade do requerente, detendo-a o «insolvente» (artigo 236.º, n.º 1, Iª parte);
2.  tempestividade, devendo ser apresentado na petição quando se apresente ou no prazo da contestação quando seja requerido (artigo 236.º, n.º 1, IIª parte);
3. declaração de conformidade da situação do devedor e de aceitação das condições da exoneração (artigo 236.º, n.º 3);
4. não homologação de um plano de pagamentos (artigo 237.º, alínea c), com referência ao artigo 250.º).
Em termos substantivos o regime caracteriza-se por exigir requisitos de «comportamento económico» do insolvente, prévios ou subsequentes à apresentação ou instauração da insolvência. Estes requisitos são objecto de apreciação nos despachos judiciais de apreciação inicial, antecipatória ou final.
Importam-nos os requisitos a apreciar no despacho inicial, já que tem essa natureza o despacho impugnado.
São requisitos substantivos a apreciar nesse despacho:
1. prestação pelo insolvente de informações falsas ou incompletas sobre a sua situação económica, nos três anos anteriores ao início do processo, para obter crédito ou evitar pagamentos a instituições públicas;
2. obtenção pelo insolvente de exoneração do passivo restante nos dez anos anteriores ao início do processo;
3. incumprimento do dever de apresentação ou apresentação em prazo superior a seis meses contados desde a verificação da situação de insolvência, desde que, cumulativamente: a) ocorra prejuízo para os credores; b) inexistisse perspectiva séria de melhoria da situação económica que o devedor conhecia ou não podia ignorar;
4. inexistência nos autos de elementos que indiciem culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência;
5. inexistência de condenação pelos crimes previstos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos dez anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
6. inexistência de violação pelo devedor dos deveres de apresentação, colaboração ou informação, com dolo ou culpa grave.
2.2 O caso concreto: requisitos processuais
O pedido foi apresentado pelo devedor, na petição de apresentação à insolvência, constando da mesma a declaração de conformidade e aceitação, não estando homologado plano de pagamentos.
Verificam-se os requisitos processuais de prosseguimento.
2.3 O caso concreto: requisitos substantivos
No caso dos autos é pacífico não estarem preenchidos os requisitos negativos indicados em 2 e 5 e não existirem indícios de verificação dos requisitos negativos indicados em 1 e 6.
A questão coloca-se quanto aos requisitos indicados em 3 e 4, correspondentes, respectivamente, às alíneas d) e e), do n.º 1, do artigo 238.º: tardia apresentação à insolvência e inexistência de indícios de culpa.
2.3.1 Tardia apresentação à insolvência
Dispõe o artigo 238.º, n.º1, alínea d), que «o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica».
No caso dos autos, o insolvente é uma pessoa singular, não estando assim obrigado a apresentar-se à insolvência. É o que resulta do artigo 18.º, n.º 2.
A questão que se coloca é a de saber se se absteve da apresentação nos seis meses seguintes à verificação da insolvência.
a) Caso julgado anterior
A decisão recorrida refere que essa questão está já decidida nos autos pelo anterior acórdão deste Tribunal revestido de autoridade de caso julgado.
A esse respeito, disse-se no referido acórdão: «não se discute a intempestividade da apresentação à insolvência, face aos factos assentes que, como se disse, não foram sindicados» continuando o acórdão com a apreciação dos diversos requisitos de prosseguimento para concluir que «da leitura do despacho recorrido, o que se constata é que apenas o primeiro dos requisitos indicados – a não apresentação tempestiva à insolvência – se encontra apreciado, sendo que relativamente aos demais, na prática, não se passou da sua mera enunciação, ou concluiu-se nesse sentido mas sem suporte factual».
A decisão foi a de revogar «a decisão recorrida, que será substituída por outra que proceda à reavaliação dos requisitos do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo verifique se os mesmos, em concreto, se acham devidamente preenchidos, seguindo-se a subsequente tramitação processual».
Deve considerar-se que o caso julgado formado por esta decisão abrange a intempestividade da apresentação à insolvência?
O alcance do caso julgado é definido pelo dispositivo, como resulta do artigo 671.º, n.º 1, do CPC. Ora, o dispositivo, no caso, não ressalva o aspecto da tempestividade, antes ordenando a reavaliação dos requisitos sem excepção.
Todavia, a avaliação do âmbito do caso julgado de uma dada decisão não pode reduzir-se à consideração literal do seu dispositivo, antes implica a consideração do contexto decisório em que está inserido e de que emerge. A consideração global da decisão é, assim, necessária para a fixação daquele âmbito.
O Acórdão do STJ de 15 de Janeiro de 2013 (Cons. Fernandes do Vale) refere a respeito, citando jurisprudência vária: «Tendo, durante algum tempo, dominado a posição de que apenas tem autoridade de caso julgado a conclusão ou dispositivo do julgado, hodiernamente tem-se por mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas».
Os termos que resultam dos incisos do acórdão transcritos acima, determinam que a decisão da Relação engloba a intempestividade da apresentação, dando-a por assente e fixando a data da verificação da situação de insolvência?
A decisão globalmente não aprecia a questão da tempestividade, não analisa quaisquer fundamentos quanto à data da verificação da insolvência, não indica a data em que entende a mesma verificada (embora se refira à parte da decisão da primeira instância que a indica), limitando-se àquela referência discursiva para passar à análise da questão que no recurso era colocada: a verificação concreta do prejuízo dos credores.
Porém, anote-se que em lugar algum dessa decisão se aprecia, em termos de fundar a decisão, qual a data concreta a que deve atender-se como sendo a da insolvência[4].
Consideramos, assim, contrariamente à primeira instância, que o pressuposto da tardia apresentação e, mais do que isso, a fixação da data de verificação da insolvência, não foram objecto da decisão da Relação anteriormente proferida nos autos.
b) Situação de insolvência: a iminência ou a quebra
A questão implica saber o que deve entender-se por situação de insolvência.
O artigo 3.º, n.º 1, estatui, no que às pessoas singulares interessa, que «é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas».
Por seu turno o artigo 18.º, n.º 1, refere que «o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1, do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la».
Determinante ainda o teor do artigo 3.º, n.º 4, no qual se lê: «equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência».
Do cotejo destas normas exprimem Carvalho Fernandes e João Labareda[5] uma dúvida: «A dúvida, por sua vez, consiste em saber se, verificando-se, efectivamente, uma situação de insolvência iminente, nasce, imediatamente, para o devedor, (…) um verdadeiro dever de o fazer, sempre e quando ele esteja obrigado à apresentação em conformidade com o que consta do art.º 18.º, e com as consequências que são inerentes à respectiva violação, se o devedor nada fizer».
Continuando na dilucidação da dúvida, dizem: «embora a questão não possa haver-se como suficientemente firme, temos, para nós, como melhor solução, em ponderação dos elementos da hermenêutica interpretativa disponível, a que aponta no sentido de, à vista de insolvência iminente, o devedor dever requerer a sua declaração se a situação não puder ser ultrapassada[6]».
Para concluírem «ser mais consentâneo com o pensamento legislativo entender que o dever de apresentação existe quando o devedor incorra em insolvência iminente (…)[7]».
Na busca de uma delimitação do que seja uma situação de insolvência iminente, propõem os referidos Autores: «a iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já actual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível»[8].
A questão releva quanto à determinação do que deva considerar-se como tardia apresentação para os efeitos do artigo 238.º, n.º 1, alínea d), e não apenas quanto aos pressupostos substantivos da declaração de insolvência.
Também neste caso se nos afigura de dilucidar a dúvida no sentido proposto, ou seja, de considerar que a situação relevante é a de insolvência iminente e não de quebra de pagamentos caracterizada por um incumprimento geral ou relevante de obrigações vencidas.
Pode o devedor, por exemplo, ter contraído um conjunto relevante de dívidas de que, face ao seu património e capacidade de ganho, resulte desde logo, independentemente do vencimento, a situação de insolvência num prazo curto, face ao seu património e rendimentos.
Entendemos que a necessidade de considerar o curto prazo é manifesta. Quando não, a consideração de dívidas de longo prazo dificilmente poderia ter em conta capacidade de ganho e sua evolução com correspondente mudança de fortuna. Ora, se não podemos restringir a situação de insolvência à quebra de pagamentos generalizada e verificada, também não podemos considerar como de insolvência iminente uma contabilização de activos e passivo desligada da dimensão temporal.
Ou seja, a determinação da iminência da insolvência implica uma criteriosa observação da concreta situação do devedor.
c) A situação económica do insolvente: data da insolvência iminente
Quanto a tal está assente que o Recorrente vive exclusivamente do rendimento mensal global de € 1.511,77, paga de renda de casa € 325,00 por mês, e em 28 de Março de 2006 contraiu um empréstimo de € 3.741,82, em 27 de Junho de 2006 contraiu um outro empréstimo de € 2.494,56, em 7 de Julho de 2007 contraiu um empréstimo no valor de € 35.767,32, em 12 de Outubro de 2007, contraiu um outro empréstimo no valor de € 13.911,99, em 2 de Abril de 2008 contraiu um empréstimo no valor de € 10.932,34, em 4 de Agosto de 2008 contraiu um outro no valor de € 9.256,57 e em Fevereiro de 2010 começou a incumprir generalizadamente as suas obrigações.
Ou seja, em 4 de Agosto de 2008 tinha contraído um conjunto de dívidas de valor de capital superior a € 76.000,00, com um rendimento mensal exclusivo, paga a renda de casa, de pouco menos de mil e duzentos euros.
Este contexto fáctico levou a Senhora Juiz a considerar que os empréstimos contraídos em 2008 agravaram a sua situação de insolvência e, por isso, prejudicaram os credores.
Resulta implícito que se considera verificada a situação de insolvência iminente em 2007 com a contracção dos dois empréstimos desse ano, aliás na senda da proposta do administrador.
Ora, os autos carecem de elementos que nos permitam extrair essa conclusão, uma vez que deles não constam factos atinentes às cláusulas, nomeadamente de vencimento de juros, de eventual período de carência ou outras de bonificação, de prazos dos empréstimos, que permitam concluir que em 2007 o Recorrente se encontrava já em situação de insolvência iminente, nomeadamente quando se atente nos seus rendimentos, que não são excepcionalmente baixos no contexto nacional, ascendendo ao triplo do salário mínimo.
É certo que a contracção de empréstimos a um ritmo de dois por ano entre 2006 e 2008, alguns avultados face aos rendimentos mensais, indicia uma situação que suscita alguma estranheza, mas essa estranheza não foi dilucidada nos autos em termos de constar dos factos assentes, sendo certo que a Senhor Administrador adiantou causas que não foram objecto de prova, nada tendo sido requerido a respeito, por ele ou pelos credores que se opuseram ao pedido de exoneração do passivo restante.
De todo o modo, são factos apresentados como causas dos empréstimos, não factos que expressem a repercussão dos mesmos no património do devedor em 2007 e 2008, em termos de se poder situar a situação de insolvência iminente em data anterior à da contracção dos últimos empréstimos.
O mesmo é dizer que entendemos inexistirem elementos que permitam concluir pela verificação da iminência da insolvência em Julho de 2007.
Nada existe nos autos quanto a despesas do insolvente, execuções instauradas, pagamento de empréstimos ou juros pelo recurso a outros empréstimos, ou outros que elucidem sobre a situação patrimonial de modo cabal ao longo dos anos que precederam a apresentação á insolvência.
Consideremos, não obstante, a situação económica decorrente dos empréstimos de 2008, últimos conhecidos. Como mencionado o montante de capital em dívida ascendia já a mais de setenta e seis mil euros, culminando a situação num incumprimento generalizado em Fevereiro de 2010. Afigura-se legítimo neste contexto global, entender que a situação de insolvência iminente estava já devidamente caracterizada em 2008.
O recurso a crédito neste ano, no montante de quase vinte e cinco mil euros, quando no anterior havia mutuado o avultado montante de € 35.767,32, indica uma situação de imensa dificuldade de solvência que permite assim concluir.
2.3.2 Inexistência de perspectiva de melhor fortuna
Os factos assentes relativos à situação de incapacidade do Recorrente, à sua idade, aos seus bens pessoais e à natureza dos rendimentos que aufere, permitem concluir inexistir qualquer perspectiva de mudança de fortuna, encontrando-se verificado este requisito.
2.3.4 Prejuízo para os credores
2.3.4.1 Autonomia do requisito
Apesar de a apresentação ser tardia, tal não basta para que seja indeferido o prosseguimento do incidente. Necessário é ainda que do atraso tenham resultado prejuízos para os credores, prejuízos que não se presumem.
Necessário é que a apreciação da situação concreta dos credores na data da apresentação seja pior do que aquela que se verificava na data em que a apresentação deveria ter ocorrido.
A jurisprudência das Relações não é uniforme quanto à questão, não se tendo encontrado divergência no Supremo Tribunal.
Por todos pode ler-se no Acórdão do STJ de 19 de Abril de 2012, proferido no processo 4434/11.5TJCBR-D.C1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos): «Conforme já se espessou no acórdão referido, entendemos que do simples facto de o devedor se atrasar na apresentação à insolvência não se pode concluir automaticamente que daí advieram prejuízos para os credores».
Não vemos dúvida em sufragar este entendimento, resultando inútil a referência normativa autónoma ao prejuízo dos credores quando o mesmo resultasse inelutável da tardia apresentação.
2.3.4.2 Pressupostos de ponderação
O prejuízo deve ser medido ponderando a situação dos credores no caso concreto e a que se verificaria caso a apresentação tivesse ocorrido nos seis meses subsequentes à verificação da iminência da insolvência.
Ou seja, há que apreciar se entre o termo do prazo de seis meses para a apresentação e a data em que a mesma ocorreu, se verificou prejuízo para os credores, e se este foi causado pela apresentação tardia[9].
Veja-se o Acórdão do STJ de 22 de Março de 2011, proferido no processo 570/10.5TBMGR-B.C1.S1 (Cons. Martins de Sousa) onde se lê: «(…) o retardamento da apresentação de pessoa singular à insolvência que a essa apresentação não está obrigada pela lei, só por si, não tem consequências danosas para o devedor.
De forma consentânea e congruente com o disposto no nº5 do artº186ºonde se não considera que o retardamento na apresentação por banda da pessoa singular, ainda que determinante de agravamento de sua situação económica, não serve de fundamento à qualificação como culposa da própria insolvência, também naquela al.d), aqui em análise, se estatui que essa apresentação tardia, só por si, não constitui fundamento de indeferimento da exoneração do passivo. Só o integrará se, além dela, nomeadamente, se verificar pejuízo dos credores».
O Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 2011, proferido no processo 85/10.1 TBVCD-F.P1.S1 (Cons. Maria dos Prazeres Beleza) em cujo sumário se lê: «O prejuízo para os credores previsto na al. d) do nº 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não resulta automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas abrange qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada por esse atraso, desde que concretamente apurada, em cada caso».
Idêntica posição é assumida pelos Acórdãos do STJ de 19 de Junho de 2012, proferido no processo 1239/11.9TBBRG-E.G1.S1 (Cons. Helder Roque) e de 21 de Outubro de 2010, proferido no processo 3850/09.9TBVLG-D.P1.S1 (Cons. Oliveira Vasconcelos).
 No caso sub judice não vemos que esteja demonstrado prejuízo para os credores decorrente do atraso.
Da factualidade apurada nada resulta que permita concluir que os credores foram prejudicados pelo facto de o Recorrente se ter apresentado à insolvência na data em que o fez, mesmo quando considerarmos todo o período após a contracção do último empréstimo (e nenhum outro pode ser considerado, como procurámos demonstrar).
Na verdade, apenas poderia considerar-se como prejuízo o vencimento de juros. No entanto, nada se sabe em concreto quanto aos juros que se venceram ou não, seus montantes, datas etc, sendo que o mero vencimento de juros não permitiria integrar sem mais o conceito.
No Acórdão do STJ (1239) antes citado aborda-se a questão dos juros, distinguindo o regime vigente do pretérito. Decidiu-se: «(…) ao contrário do que acontecia com o regime estabelecido no artigo 151º, nº 2, 1ª parte, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estatuía a cessação da contagem dos juros, “na data da sentença da declaração de falência”, os juros passaram a ser considerados créditos subordinados, nos termos do preceituado pelo artigo 48º, nº 1, b), do CIRE, o que significa que, actualmente, os créditos continuam a vencer juros, após a apresentação à insolvência, pelo que o seu atraso nunca ocasionaria, a este respeito, qualquer prejuízo para os credores, que, consequentemente, continuam a ter direito aos juros, com a inerente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência no avolumar da divida».
A solução implica dilucidar a quem cabe fazer a prova dos factos. Ao devedor demonstrando que nenhum prejuízo causou o atraso ou aos credores, v.g. ao administrador, demonstrando que o prejuízo ocorreu?
Mais uma vez a jurisprudência da segunda instância divide-se, com pendor para seguir a do Supremo Tribunal de Justiça em que não conhecemos divergência quanto a atribuir aos credores o ónus de provar que os requisitos se não verificam.
No mencionado Acórdão (3850) decidiu-se: «Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos.
Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração.
Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito.
Nesta medida, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. nº2 do artigo 342º do Código Civil».
Ou o Acórdão de 6 de Julho de 2011, proferido no processo 7295/08.0TBBRG.G1.S1 (Cons. Fernandes do Vale): «Com efeito, contra o entendimento perfilhado no acórdão recorrido e em sintonia com o decidido no sobredito Ac. de 21.10.10, deste Supremo, consideramos que os fundamentos de indeferimento liminar[2] previstos no art. 238º, nº1 do CIRE têm natureza impeditiva do direito à exoneração do passivo restante por parte do requerente-insolvente, sobre o qual, por isso (art. 342º, nº2, do CC), não impende o ónus processual de, desde logo, alegar e, subsequentemente, provar a inexistência, no caso, de tais fundamentos (numa das previsões constantes da al. e), tal exigiria, mesmo, a subsequente tramitação do incidente “até ao momento da decisão”, com dotes divinatórios que ao requerente não poderiam, obviamente, ser exigidos…)».
Ou o Acórdão citado (1239): «Tratando-se de factos que, de acordo com a norma substantiva que serve de fundamento à pretensão de cada uma das partes, se destinam a inviabilizar o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor-insolvente, são susceptíveis de obstar a que esse direito se tenha constituído, validamente[13], cabendo, assim, aos credores ou ao administrador demonstrar a sua existência, sendo certo, a este propósito, que “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento, em conformidade com o preceituado pelo artigo 236º, nºs 1 e 4, do CIRE”».
Acompanhamos a posição que atribui aos credores o ónus de provar que o insolvente não se encontra em condições de beneficiar da exoneração. Esta posição foi já assumida no Acórdão de 25 de Novembro de 2011 proferido no processo 1512/10.3 TJLSB.L1-A-6, relatado pelo Senhor Desembargador primeiro adjunto.
Por um lado, porque a análise da norma substantiva (o artigo 238.º, n.º 1) decorre que a mesma constrói uma previsão de factos que impedem o deferimento do pedido. Trata-se portanto de factos impeditivos do benefício que por ele o insolvente pretende alcançar, da previsão do artigo 342.º, n.º 2, do CC.
Mesmo quando a dúvida sobre essa natureza impeditiva determinasse, em obediência ao n.º 3, da norma citada, que se considerassem tais factos constitutivos do direito à exoneração, ainda assim haveria que atentar em que se trata de factos negativos que carecem de demonstração contrária, também ela a cargo dos credores.
Em suma, consideramos que cabe aos credores o ónus de demonstrar que o insolvente “não merece” sequer a fixação do regime do período de cessão para exoneração do passivo restante a final.
Prova que não está feita nos autos.
2.3.5 Culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência
Inexistem quaisquer factos que permitam assim concluir, dado nomeadamente a escassez factual que envolve a contracção dos empréstimos, suas cláusulas e desenvolvimentos.
Em conclusão, deve ser revogado o despacho recorrido.
2.5 Cassação ou substituição
Nos termos do artigo 715.º, nº 2, do CPC, a Relação deve proferir decisão relativamente a questões não decididas pelo tribunal recorrido, nomeadamente, por prejudicadas pela solução dada na primeira instância. Apenas em caso de os autos não conterem todos os elementos necessários deverá remeter os autos à primeira instância sem essa decisão «substitutiva».
Será este regime aplicável, determinando em consequência a Relação a proferir o despacho de prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante?
Cremos que não.
O regime de substituição consagrado naquela norma, oposto ao de mera cassação, implica que a Relação se situe, em substituição do tribunal recorrido, no âmbito da mesma decisão. V.g. quando se substitui ao tribunal de primeira instância na solução de uma questão que aquele não apreciou por outra prévia a tal ter obstado.
No caso vertente, não é essa a situação. O tribunal recorrido analisou apenas os requisitos de prosseguimento do incidente de exoneração do passivo restante e é no contexto dessa apreciação que a Relação se situa. É nesse contexto, portanto, que a substituição pode ocorrer: apreciação dos requisitos de prosseguimento ou de indeferimento.
É certo, que a consequência da revogação da decisão é a prolação de um despacho que analisa, aprecia e decide sobre diversas questões, nomeadamente sobre as obrigações do período de cessão.
Porém, esse despacho é inteiramente diverso deste que no recurso se aprecia, limitando-se a ser-lhe subsequente.
Em consequência, a decisão da Relação apenas pode ser de cassação.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida para que seja  substituída pelo despacho a que alude o artigo 239.º, n.º 1, do CIRE, sem prejuízo da verificação de razões supervenientes, na ocorrência ou no conhecimento, que a tal obstem.
Custas pela massa insolvente – artigos 303.º e 304.º, do CIRE.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2013

Ana de Azeredo Coelho
Tomé Ramião
Vítor Amaral
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[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que sem outra indicação forem citadas.
[2] In “Pré-condições para a exoneração do passivo restante”, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, Julho/Setembro 2011
[3] Refere Assunção Cristas in “Exoneração do devedor pelo passivo restante”, Thémis, 2005, edição especial, novo direito da insolvência, 165-182: «Trata-se de uma solução inspirada no chamado modelo do fresh start: o devedor pessoa singular liberta-se daquele peso e pode recomeçar de novo a sua vida» ou,  mais adiante, «esta solução legal é o primeiro passo no tratamento diferenciado das pessoas singulares. Não pretende ser o único, nem tão-pouco afastar soluções mais adequadas que se prendem com a necessidade de tratar o sobreendividamento das pessoas singulares e das suas famílias».
[4] Embora seja transcrita a decisão da primeira instância que indicava a de 5 de Julho de 2007.
[5] “Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado”, reimpressão, Quid Juris, 2009, p. 71, nota 4.
[6] Idem.
[7] (Fernandes & Labareda, 2009, p. 72)
[8] (Fernandes & Labareda, 2009, p. 73)
[9] Nesse sentido Catarina Serra refere: «(…) para que a norma se aplique será preciso (…) que entre a não apresentação atempada à insolvência e o prejuízo para os credores se verifique um nexo de causalidade (…)»In “O regime português da insolvência”, Almedina, 2012, p. 161.