Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1536/12.6T2AMD.L1-7
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
TRIBUNAL COMPETENTE
NACIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/01/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Sumário: 1. O Estado português está vinculado à “Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 e aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro, que constitui direito internacional convencional recebido na ordem interna por via do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa, com prevalência sobre o direito interno.
2. A par disso, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à “Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental”, vigora tanto em Portugal como na Itália, desde 1 de Agosto de 2004, com excepção de algumas disposições imediatamente aplicáveis, constituindo fonte derivada do Direito da UE, com aplicação directa e que também prevalece sobre o direito interno, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição.
3. Tendo o menor residência habitual em Itália, são os tribunais italianos os competentes, em razão da nacionalidade, para providenciar sobre a pretensão de entrega do menor, nos termos da norma do n.º 1 do artigo 8.º do citado Regulamento, a qual é inderrogável e de conhecimento oficioso, como se preceitua no art.º 17.º do mesmo diploma, e que portanto prevalece sobre o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do CPC.
4. Por outro lado, o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 65.º do mesmo CPC, invocado com base em alegadas dificuldades económicas para propor a acção no estrangeiro, não prevalece sobre as normas de competência exclusiva constantes do Regulamento, porquanto o próprio corpo do n.º 1 do artigo 65.º ressalva os regulamentos comunitários e outros instrumentos internacionais, seja em relação ao critério atributivo de competência constante da alínea b), seja em relação ao editado pela alínea d).
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. MA, residente em Portugal, veio requerer, em 26-12-2012, junto do Juízo de Família e Menores da Amadora, contra SF, residente na Itália, a entrega judicial da menor AN, nascida em …/…/…, filha do requerente e da sua mulher SA, falecida em …/…/…, alegando, em resumo, que:
- A requerida, irmã da falecida mulher do requerente, com o invocado intuito de o ajudar, de forma a ocultar à menor o trauma da morte da mãe, levou consigo aquela menor para a Itália;
- O requerente, quando recuperou da morte da sua mulher, procurou ir buscar a sua filha a Itália, mas a requerida, apresentando sempre desculpas sucessivas, foi adiando tal entrega.
- Porém, desde Setembro de 2012, a requerida tem-se negado a entregar a menor ao requerente e proibiu-o de a ver, avisando-o de que, se ele procurasse o auxílio das autoridades, faria desaparecer a menor no Paquistão, onde tem familiares;
- Assim, com a situação criada existe o perigo real de efectivo de a menor desaparecer para o P… e de se cortarem, definitivamente, os laços de paternidade com o requerente.
- Dentro dos poucos meios económicos que possui e das suas dificuldades financeiras para actuar em Itália, o requerente tem de procurar o auxílio dos meios judiciais nacionais, que deverão então desencadear os mecanismos de cooperação judiciária internacional existentes.
Concluiu, pedindo que se ordene a entrega judicial da menor ao mesmo, determinando-se as diligências necessárias junto das autoridades judiciárias italianas e adoptando-se as medidas cautelares para impedir a saída daquela menor da sua actual localização, nomeadamente para o Paquistão.
2. Citado, o MP pronunciou-se no sentido de que, tendo sido alegado pelo requerente a retenção ilícita da menor, importava apurar se aquele tinha a efectiva guarda da mesma menor à data entrega, de modo a apurar a verificação das circunstâncias referidas no artigo 10.º do Regulamento de Bruxelas II Bis.
3. Por sua vez, também citada, a requerida deduziu oposição, sustentando, no essencial, que:
- A requerida levou a menor consigo para a Itália, a pedido e por insistência do pai, ora requerente, dadas as suas enormes dificuldades financeiras, tendo sido outorgada, para tal efeito, em 07-07-2011, uma procuração à requerida;
- Foi o requerente quem solicitou à requerida que promovesse junto das autoridades italianas a guarda da criança, o que foi decretado por decisão do Tribunal de Modena, em 23/06/2012, com o consentimento do mesmo requerente, regulando-se também aí a respectiva tutoria e protutoria;
- A requerida dispõe de um agregado familiar estável, proporcionando à menor uma boa integração no mesmo, traduzida numa relação afectiva extremamente positiva, sob a vigilância dos serviços italianos competentes.
- Nunca o requerente contribuiu com qualquer quantia monetária para as despesas da filha, que têm sido suportadas pela requerida;
- O requerente nunca pretendeu ir a Itália buscar a menor, durante todo esse período, e só lá foi, apenas um par de vezes, a solicitação da própria requerida, nunca tendo esta negado as visitas nem imposto qualquer restrição.
Concluiu a requerida no sentido de que a pretensão do requerente deve ser rejeitada, em primeira linha, porque o tribunal português não tem competência para alterar a decisão do tribunal italiano ou, se assim se não entender, porque tal pretensão afecta o superior interesse da menor.
4. Subsequentemente, o MP promoveu que se desse cumprimento ao disposto no artigo 17.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27/11/2003, tendo também a requerida apresentado o articulado de fls. 103-105 a sustentar a incompetência do tribunal português, nos termos dos artigos 8.º e 9.º, n.º 2, do indicado Regulamento.
5. Por fim, foi proferida decisão a julgar verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal português, absolvendo a requerida da instância.
6. Inconformado com tal decisão, veio o requerente apelar dela, formulando as seguintes conclusões:
1.ª - O Apelante, apenas continua a pedir a regular observância das regras legais aplicáveis ao caso em análise.
2.ª - O Mm.° Juiz a quo decidiu a causa assente apenas na versão produzida pela Apelada, colocando-lhe um termo definitivo.
3.ª - Defendeu-se em termos decisórios, a aplicabilidade da regra geral fixada no art. 8.° Regulamento (CE) 2201/2003, de 27-11, do Conselho da UE de serem competentes os Tribunais do Estado membro onde a criança tem a sua residência habitual à data em que o pro-cesso foi instaurado, considerando-se que a menor AN tem a sua residência habitual em Itália, pelo que a pretensão deduzida em Tribunais nacionais pelo Apelante deveria improceder.
4.ª - De nada valeu ao apelante o facto de ter invocado as dificuldades financeiras para actuar de forma adequada em Itália, atentos os custos económicos inerentes a tal situação.
5.ª - O Mm°. Juiz a quo não fez caso de nenhum dos factores de atribuição de competência previstos de forma autónoma no art.° 65.º do CPC, onde basta a verificação de um dos factores para os Tribunais nacionais serem competentes;
6.ª - Nem sequer se averiguou da real capacidade do apelante para fazer face à necessidade de agir em Itália, conforme foi alegado pelo mesmo.
7.ª - A menor id. a fls. nasceu em território português e por morte da sua mãe o exercício das responsabilidades parentais pertence ao cônjuge sobrevivo, o ora Apelante, cfr. art.° 1904.º do CC ;
8.ª - Assim, o processo destinado a obter o regresso de uma criança ilicitamente retida num Estado-Membro subscritor dos acordos internacionais em apreço, não se destina a obter nenhuma decisão sobre a sua guarda, mas a garantir a eficácia de uma determinação legal que assegura essa guarda pelo ora Apelante.
9.ª - O Mm.º Juiz a quo não deu cumprimento ao disposto no art.º 65.º, n.º 1, alínea d), do CPC, tendo o mesmo preceito sido violado pela decisão em apreço.
Pede o apelante que seja revogada a sentença recorrida e que se profira decisão a consagrar a posição por ele articulada.
7. O Exm.º Agente do Ministério Público apresentou contra-alegações, a pugnar pela confirmação do julgado, em que remata com o seguinte quadro conclusivo:
1.ª - Trata-se “in casu” de uma acção destinada a entrega judicial de menor, em que o pai da menor vem invocar: i) que a mãe desta faleceu em 29/05/2010; ii) que a criança foi residir desde essa altura para Itália com uma tia materna, então com o consentimento do progenitor; iii) que esta tia proibiu o Requerente de ver a filha e se nega agora a entregá-la;
2.ª - Nos termos do art.° 61.° do CPC, aos tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas no art. 65. °.». A competência internacional dos tribunais portugueses é atribuída por força de convenções internacionais ou, no caso de estas não existirem ou não se aplicarem, do art. 65.° do CPC.
3.ª - No tocante a Portugal e Itália, no que respeita à competência internacional, reconhecimento e execução de decisões em matéria de responsabilidade parental, vigoram no ordenamento jurídico português o Regulamento CE n° 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro, e a Convenção Relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e de Medidas de Protecção das Crianças, concluída na Haia em 19 de Outubro de 1996.
4.ª - Trata-se de direito convencional internacional que, tendo sido aprovado e ratificado, prevalece sobre o direito interno português, como decorre do art.º 8.° n.° 2 e n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, consagrando-se neste art.° 8.°, n.º 4, o princípio do primado do direito da União.
5.ª - Pelo que, não tem aqui aplicação o disposto no art.° 65.º do CPC, ao invés do que pretende o recorrente.
6.ª - Considerando o disposto no art.° 8.°, n.° 1, do referido Regulamento, o critério relevante é o da residência habitual do menor à data em que o processo é instaurado, sendo certo que na situação vertente está excluída a aplicação do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.° do mesmo Instrumento, pelo que, à luz de tal normativo de direito internacional convencional, atenta a data de entrada da acção em 26/12/2012, e residindo habitualmente a menor nessa data em Itália, são os tribunais italianos os competentes para apreciar tal pedido.
7.ª – Por conseguinte, a sentença recorrida não violou quaisquer disposições legais, designadamente a invocada pelo recorrente.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
1. Factos assentes
Está assente nos autos que:
1.1. AN nasceu no dia …/…/…, na freguesia …, concelho da …, sendo filha de MA e de SA, casados e ambos com nacionalidade … – doc. de fls. 10 a 14;
1.2. SA faleceu em …/…/…– doc. de fls. 19.
1.3. Após o falecimento de SA, o requerente consentiu que a ora requerida SF, residente em Itália, levasse consigo a menor AN, para ocultar o trauma da morte da mãe;
1.4. O requerente outorgou a procuração de fls. 37-38, em 7 de Julho de 2011, a constituir sua bastante procuradora a tia da menor e irmã da mãe desta, FS, ora requerida, residente na …, Itália, a quem conferiu os poderes necessários para, em nome dele mandante, e relativamente à filha menor deste AN, proceder aos actos em Itália descritos no documento de fls. 38, que aqui se dão por reproduzidos;
1.5. A requerimento de FS, deduzido em 07/10/2011, o Tribunal italiano de Módena, tendo em consideração o relatório dos serviços sociais, proferiu decisão, em 23 de Junho de 2012, a atribuir a guarda da menor AN a FS, que nomeou como tutora – doc. fls. 66 a 71;
1.6. Nesse processo, foi apresentada declaração de consentimento do pai da menor para a atribuição da sua guarda a SF – doc. de fls. 68.
Toda a restante matéria de facto alegada pelo requerente se mostra controvertida.
2. Mérito do recurso
Em face do teor das conclusões do recorrente, a única questão a apreciar consiste em ajuizar sobre a competência, em razão da nacionalidade, do tribunal a quo para conhecer do objecto da presente acção.
Como é sabido, a competência absoluta do tribunal para conhecer de determinada causa, como pressuposto processual que é, afere-se em função da qualidade das partes, do objecto da acção e, porventura, de outros factores atributivos de competência, atenta a configuração da pretensão deduzida pelo autor.
Para tal efeito, importa pois atentar na factualidade alegada pelo autor na perspectiva do efeito pretendido, à luz do quadro normativo aplicável, por forma a identificar e caracterizar a causa de pedir em que se funda a pretensão ou as pretensões deduzidas, devendo proceder-se a tal aferição relativamente a cada uma dessas pretensões.
Antes de mais, importa ter presente que, segundo o disposto no artigo 24.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, salvo, quanto a estas, as hipóteses em que tenha sido suprimido o órgão a que a causa se encontre afecta ou lhe seja atribuída competência de que inicialmente não dispunha.
Tendo a presente acção sido proposta em 26-12-2012, há que atentar nos factores de atribuição de competência internacional constantes do artigo 65.º do CPC, na redacção dada pela citada Lei n.º 52/2008, segundo o qual:
1 – Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos comunitários e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
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b) – Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa.
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d) – Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.
Por sua vez, o artigo 65.º-A do mesmo diploma prescreve, no que aqui possa relevar, que:
Os tribunais portugueses são exclusivamente competentes:
a) – Nos casos previstos em regulamentos comunitários ou em outros instrumentos internacionais.
No caso vertente, estamos no âmbito de um processo tutelar cível para entrega judicial de menor, previsto e disciplinado nos termos dos artigos 191.º a 193.º da Organização Tutelar de Menores (OTM), aprovada pelo Dec.-Lei n.º 314/78, de 27-10, com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 133/99, de 28-08, n.º 147/99, de 01-09, n.º 166/99, de 14-09 e n.º 31/2003, de 22-07, cuja pretensão se funda na alegação de que a menor se encontra ilicitamente retida, em Itália, por quem não está legalmente tutelada, contra a vontade do seu progenitor, o ora recorrente, residente em Portugal.
No que aqui releva, segundo o disposto no artigo 155.º da OTM:
1 – Para decretar as providências é competente o tribunal da residência do menor no momento em que o processo foi instaurado.
5 – Se, no momento da instauração do processo, o menor não residir no País, é competente o tribunal da residência do requerente, ou do requerido…
6 – São irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração da acção.
Com base apenas neste quadro normativo, poder-se-ia considerar que, encontrando-se a menor no estrangeiro e residindo o requerente em Portugal, seriam os tribunais portugueses competentes para a presente providência, em razão da nacionalidade, face ao critério previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do CPC com referência à norma de competência territorial constante do citado artigo 155.º, n.º 5 da OTM.
Porém, importa ponderar se existe norma de regulamento comunitário ou de outro instrumento internacional que prevaleça sobre a referida norma de direito interno.
Em primeiro lugar, Portugal está vinculado à “Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças”, adoptada em Haia em 19 de Outubro de 1996 e aprovada pelo Decreto n.º 52/2008, de 13 de Novembro, que constitui direito internacional convencional recebido na ordem interna por via do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição Portuguesa, com prevalência sobre o direito interno.
A par disso, há que convocar sobretudo o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à “Competência, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Matrimonial e em Matéria de Responsabilidade Parental”, em vigor, tanto em Portugal como na Itália, desde 1 de Agosto de 2004, embora só aplicável a partir de 1 de Março de 2005, com excepção de algumas disposições imediatamente aplicáveis. Este Regulamento constitui fonte derivada do Direito da União Europeia, com aplicação directa e que também prevalece sobre o direito interno, nos termos do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição.
No âmbito deste Regulamento, de forma algo coincidente com o que consta dos artigo 1.º, n.º 1, alínea c), e 3.º da Convenção de Haia, inscrevem-se, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, a atribuição, o exercício, delegação, limitação ou cessação da responsabilidade parental, nomeadamente, no que respeita:
a) - ao direito de guarda e ao direito de visita;
b) – à tutela, à curatela e outras instituições análogas;
c) – à designação e às funções de qualquer pessoa ou organismo encarregado da pessoa ou dos bens da criança e da sua representação ou assistência;
d) – à colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição;
e) – às medidas de protecção da criança relacionada com a administração, conservação ou disposição dos seus bens.
E, de acordo com o art.º 2.º, n.º 7, do mencionado Regulamento entende-se por “responsabilidade parental”, o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança, compreendendo ainda o direito de guarda e o direito de visita.
Ora, artigo 8.º do sobredito Regulamento, também em alinhamento com o artigo 5.º da Convenção de Haia, prescreve que:
1. Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado.
2. O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º.
E segundo o artigo 9.º do mesmo diploma:
1. Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm a sua competência, em derrogação do artigo 8.º, durante um período de três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão, sobre o direito de visita proferido nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança, desde que o titular do direito de visita, por força dessa decisão, continue a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança.
2. O n.º 1 não é aplicável se o titular do direito de visita referido no n.º 1 tiver aceitado a competência dos tribunais do Estado-Membro da nova residência habitual da criança, participando no processo instaurado nesses tribunais, sem contestar a sua competência.
Por sua vez, o artigo 10.º do indicado Regulamento, sob a epígrafe “competência em caso de rapto de criança, e em sintonia com o artigo 7.º da Convenção de Haia, dispõe que:
Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e:
a) – Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou
b) – A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada nos seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:
i) – não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,
ii) – o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i);
iii) – o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do art.º 11.º,
iv) – os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido um decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.
Nas palavras da Exm.ª Professora Maria Helena Brito Artigo publicado nos Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, pag. 326-327.:
“… em caso de deslocação ou retenção ilícita de uma criança, continuam a ser competentes os tribunais do Estado membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas. Essa competência só cessa quando a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado membro, desde que o titular do direito de guarda venha a consentir na deslocação ou retenção, ou desde que a criança tenha estado a residir no novo Estado membro durante, pelo menos, um ano, se a criança se encontrar integrada no novo ambiente e se, em síntese, não existir qualquer decisão que determine o regresso da criança”.
Nos termos do artigo 12.º, n.º 3, do sobredito Regulamento:
Os tribunais de um Estado-Membro são … competentes em matéria de responsabilidade parental em processo que não os referidos no n.º 1, quando:
a) – A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro; e
b) – A sua competência tendo sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.
E segundo o n.º 1 do art.º 13.º:
Se não puder ser determinada a residência habitual da criança nem for possível determinar a competência com base no artigo 12.º, são competentes os tribunais do Estado-Membro onde a criança de encontra.
Segundo o artigo 17.º do Regulamento em referência:
O tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente.
No caso presente, segundo as versões, nesta parte coincidentes, de ambas as partes, após o decesso da mãe da menor, …/…/…, o requerente consentiu que a requerida tomasse à sua conta a menor AN e fosse com ela para a Itália, tendo-lhe outorgado procuração para o efeito, datada 7-07-2011, passando assim a menor a residir com a requerida em Itália.
Também está provado que o tribunal de Molena, a pedido da requerida e ali apresentando original da declaração de consentimento do requerente, atribuiu a guarda da menor AN à ora requerida, que nomeou como tutora desta, conforme decisão de 13 de Setembro de 2012.
Por sua vez, o requerente só veio requerer a entrega judicial da menor, no tribunal recorrido, em 26-12-2012, muito embora alegue que a requerida se recusa a entregar-lhe a menor e a permitir as visitas desde Setembro de 2012, matéria esta controvertida.
Desse factualismo extrai-se que, aquando da instauração do presente processo, a menor já residia habitualmente em Itália, pelo menos desde 2011, e passou a estar confiada à guarda e sob tutela da requerida mediante decisão judicial proferida, em 23-06-2012, pelo tribunal italiano da área da residência daquela menor.
Assim, atenta aquela situação de residência da menor, os tribunais portugueses não são competentes para decretar a providência tutelar requerida, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, do citado Regulamento, disposição que prevalece, como já acima foi dito, sobre as normas do direito interno, como resulta do corpo do n.º 1 do artigo 65.º do CPC e do artigo 8.º, n.º 4, da Constituição da República.
Também não se divisa que seja aplicável a extensão prevista no artigo 9.º do mesmo Regulamento, porquanto decorreram mais de três meses sobre a deslocação da menor e a instauração da presente acção, além de que nem sequer se trata de alterar uma medida sobre o direito de visita adoptado por tribunal português.
Por outro lado, não se configura aqui a hipótese de retenção ilícita prevista no artigo 10.º do Regulamento, uma vez que a deslocação da menor para Itália com a requerida foi consentida pelo próprio requerente, chegando mesmo a ser tutelada por decisão judicial do tribunal italiano com o aparente consentimento do requerente, muito embora este consentimento seja agora questionado pelo requerente, não cabendo aqui discutir a sua validade ou eficácia.
O que parece ocorrer, no caso, é uma situação bem diferente, em que o que o requerente pretende agora recuperar a guarda da sua filha, pondo em causa a autorização que concedera à requerida e até a validade do consentimento que, segundo ele, teria sido abusivamente veiculado para o tribunal italiano que confiou a guarda e tutoria da menor à requerida.
Nestas circunstâncias, atenta a residência habitual da menor em Itália com o próprio consentimento do requerente, pelo menos até Setembro de 2012, serão os tribunais italianos os competentes, em razão da nacionalidade, para providenciar sobre tal pretensão, nos termos da norma do n.º 1 do artigo 8.º do citado Regulamento, que é inderrogável e de conhecimento oficioso, como se preceitua no art.º 17.º do mesmo diploma, e que portanto prevalece sobre o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 65.º do CPC.
Todavia, o apelante convoca ainda o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 65.º do mesmo Código, invocando dificuldades económicas para propor a acção no estrangeiro.
Mas também aqui não se divisa que essa norma deva prevalecer sobre as normas de competência exclusiva constantes do Regulamento, porquanto o próprio corpo do n.º 1 do artigo 65.º ressalva os regulamentos comunitários e outros instrumentos internacionais, seja em relação ao critério atributivo de competência constante da alínea b), seja em relação ao editado pela alínea d). De resto, as dificuldades financeiras nem seriam de relevar, já que o requerente sempre poderia habilitar-se aos mecanismos de apoio judiciário existentes.
Termos em que improcedem as razões da apelante.
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Lisboa, 1 de Outubro de 2013
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria do Rosário Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho