Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2362/14.3T2SNT.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
FACTOS-INDICES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Cabe ao credor requerente da acção de insolvência do seu devedor a alegação e prova dos factos concretos integrantes dos pressupostos a que aludem as alíneas do art.º 20.º, n.º 1, do CIRE.
- As alíneas a) e b) – tal como a al.ª g) – do n.º 1 deste dispositivo legal reportam-se a situação de incapacidade generalizada de cumprimento das obrigações pelo devedor.
- Se, após produção das provas, não resultam apurados factos que permitam demonstrar esse quadro de generalizada incapacidade de cumprimento de obrigações, apenas se conhecendo a dívida face ao demandante e nada se sabendo quanto ao activo do devedor, então não pode concluir-se pela existência de qualquer dos factos-índice daquelas alíneas desse dispositivo legal, o que afasta qualquer presunção de insolvência.
- Só mediante a prova pelo credor de algum daqueles factos-índice se forma presunção de insolvência, a dever ser ilidida pelo devedor, que só então pode passar a suportar o ónus da prova da sua solvência.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

*

I – Relatório:

“I...”, com sede na ...,
intentou a presente acção declarativa com processo especial (de insolvência) contra
M..., residente na ...,
pedindo que a R. seja declarada em estado de insolvência, bem como o reconhecimento do crédito da A., no montante de € 21.958,98, e graduação respectiva, no lugar que lhe competir.

Alegou, para tanto, em síntese:
- dedicar-se a A. ao comércio de vestuário, tendo vendido à R. diversas mercadorias, no valor total de € 18.930,93, que a mesma não pagou, tendo-se furtado ao cumprimento, pelo que a dívida se mantém – acrescem juros de mora, fixados na petição em € 3.028,05 – ante a manifesta incapacidade da devedora para pagar;
- ter a R. pendente contra si uma execução, com o valor de € 30.248,55, e encontrar-se numa situação financeira que a impede de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas;
- encontrar-se vencido há mais de um ano o crédito da A., tendo a R., em grave situação económico-financeira, acumulado dívidas que determinam encontrar-se insolvente;
- ter tal R. suspendido de forma generalizada as seus pagamentos e incumprido obrigações para com a A. que, pela sua dimensão e circunstâncias de incumprimento, revelam claramente a impossibilidade de satisfazer as obrigações;
- mostrando-se, por isso, preenchidos os requisitos do art.º 20.º, n.º 1, al.ªs a) e b), do CIRE.
Determinada a citação da R., não foi conseguida a sua citação, por não se ter logrado apurar o seu paradeiro, nem a audição de algum parente ou pessoa com ela relacionada.
Dispensada a audição da R. (art.º 12.º do CIRE), foi designada data para audiência de discussão e julgamento, a que se reporta o art.º 35.º do CIRE, onde foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, após o que se procedeu à produção da prova.
Foi depois proferida sentença – datada de 17/12/2014 –, julgando a acção improcedente, com a consequente absolvição da R. do pedido.

Inconformada, recorreu a A., apresentando alegação e formulando as seguintes
Conclusões:
«(…)

12) Por seu turno, o Douto Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
− A Requerida deixou de pagar o crédito da Requerente como os créditos de outros credores, os quais se viram forçados a desencadear os competentes meios e procedimentos judiciais para tentarem ser ressarcidos.
−Da lista pública de execuções consta pendente contra a Requerida uma execução movida por Investments 2234 Lic., no Juiz 2 do Juízo de Execução de Sintra da Comarca da Grande-Lisboa Noroeste (Proc. 3587/04.5PCAMD), com o valor de € 30.248,55.
−A Requerida encontra-se em grave situação económica-financeira.
− A Requerida tem um passivo exigível e acumulou dívidas de uma forma tal que se conclui, inequivocamente, a impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações assumidas.
− A crise da Requerida é de tal forma grave, séria e notória que a sua apresentação à insolvência há muito deveria ter sido promovida.
− A Requerida suspendeu de forma generalizada os seus pagamentos.
− A Requerida encontra-se em situação de inviabilidade económica.
13) São estes factos aliás não provados, os quais por se considerar incorrectamente julgados, que motivam a impugnação da decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo, nos termos e para os efeitos do artigo 640º do Código de Processo Civil.
14) A final, concluiu o Douto Tribunal a quo pela total improcedência da acção instaurada pela Requerente, ora Recorrente.
15) Ora, no presente recurso, a Recorrente pretende demonstrar e concluir que a Douta Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo enferma de erro de interpretação dos factos e de direito, os quais impõem sempre a sua total procedência e não a improcedência como ficou decidido.
16) Com o aliás muito e devido respeito, não se nos afigura correcta a decisão ora posta em crise, quer no que respeita à apreciação da matéria de facto, quer no que concerne à aplicação do Direito.
17) A Douta Sentença não fez, salvo o devido respeito, correcta aplicação do direito aos factos e não tomou em consideração toda a matéria relevante, bem como, por outro lado, se algumas das normas legais fossem aplicadas e interpretadas correctamente conduziriam, necessariamente a decisão diferente da tomada pelo Douto Tribunal a quo.
18) Como se procurará demonstrar, o Tribunal a quo, ao decidir nos termos em que decidiu, levou a um claro erro de julgamento, atendendo à matéria de facto dada como não provada na aliás Douta Sentença e sempre se inferiria decisão diferente da adoptada na questão em crise.
19) Efectivamente, e com base nos factos declarados pela testemunha e atento tudo quanto foi carreado para os autos, impunha-se uma decisão diferente, uma vez que, perante todo este conspecto fáctico é de deduzir uma outra decisão, que não, a proferida pela Douta Sentença.
20) Desde logo, foi desprezada pelo Douto Tribunal a quo a situação de muito precária solvabilidade financeira da Requerida, a qual a impede de honrar os compromissos assumidos válida e plenamente com credores, não relevante o facto de dever ser a própria Requerida, nos termos da Lei, a apresentar-se à insolvência, e não um credor que se viu na impossibilidade de receber o que lhe era devido.
21) Não relevou ainda, no entender da Requerente, ora Recorrente, a total impossibilidade de citação da Requerida, o que mostra cabalmente a fuga aos compromissos que assumiu e é um claro sinal de suspensão generalizada de pagamentos e da situação de inviabilidade económica.
22) Perdoará certamente o Douto Tribunal a crueza da seguinte expressão, mas não pode um devedor passar entre os pingos da chuva, como se nada fosse, e ficar um credor a arder, com o prejuízo dobrado de não receber o valor de tudo aquilo que forneceu, tendo, para mais, esse fornecimento sido solicitado, livre e espontaneamente, pelo devedor.
23) Há aqui, pois, um flagrante erro de julgamento e erro quanto à decisão ora posta em crise, que não deixará, estamos em crer, de ser reconhecida pelo Douto Tribunal ad quem, por forma a demonstrar que a Douta Sentença efectuou uma errada interpretação da prova produzida, cujas consequências se traduziram numa errada e injusta decisão, a qual colide, ostensivamente, com os mais elementares princípios da livre apreciação da prova e do Direito.
24) Na motivação descrita na Douta Sentença proferida pelo Douto Tribunal a quo é dito que “face à ausência de outra prova produzida e na medida em que não ficou demonstrada a existência de uma execução movida por outro credor (por não ter sido junto qualquer documento e por o tribunal ter pesquisado oficiosamente na lista pública disponível na internet e não ter conseguido confirmar esse facto), ficou, pois, por demonstrar o incumprimento generalizado das suas dívidas ou qualquer outro dos factos alegados a respeito da situação económica da Requerida”.
25) Ora, desde já, e no que à lista pública de execuções diz respeito, é verdade que, actualmente, não consta qualquer registo relativo à Requerida. Todavia, não é menos verdade que também actualmente, a dita lista pública contem apenas 109201 registos, os quais não são, nem por sombras, o número de execuções actualmente pendentes.
26) Mais, o próprio aplicativo de pesquisa CITIUS, no campo respeitante à consulta do Registo Informático de Execuções não é absolutamente rigoroso.
27) Mas a verdade é que mesmo à data de hoje, no Registo Informático de Execuções, in CITIUS, surge a informação relativa a um processo executivo pendente movido contra a Requerida, aqui Recorrida, aliás, tudo conforme documento n.º 1, que agora se junta e aqui se considera integralmente reproduzido para todos os devidos efeitos legais.
28) Ora, está assim bom de ver, com o devido respeito, que mal andou o Douto Tribunal a quo na apreciação que fez dos factos, quando afirma que pela impossibilidade do conhecimento outros procedimentos movidos contra a Requerida e conhecimento de outros credores, se via impedido de admitir o incumprimento generalizado das dívidas e a situação económica da Requerida.
29) É certo que apenas a Requerida saberá, com rigor, quanto e a quem deve.
30) Mas, da nossa parte, sabemos que deve cerca de € 20.000,00 a um credor e cerca de € 30.000,00 a outro, ou seja, cerca de € 50.000,00, e não havendo na Lei um critério definido quanto ao valor no qual se considera em insolvência, uma pessoa singular ou colectiva, releva o critério do valor do activo e do passivo.
31) Ora, quanto ao activo, nada sabemos, desde logo, porque a Requerida não foi citada, por manifesta impossibilidade de localização, conforme aliás reconheceu o Douto Tribunal a quo.
32) Assim, teremos de recorrer ao disposto na Lei, nomeadamente o artigo 3º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o qual dispõe que “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
33) E conforme ensinam LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado – Ed. Quid Juris), “de há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos”.
34) E continuam: “com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante”.
35) Repare-se que o Douto Tribunal a quo deu como provado a existência de um crédito da Requerente, ora Recorrente, crédito esse consubstanciado em facturas vencidas, de valores nominais relativamente baixos, os quais totalizam, somando, um valor considerável.
36) Estamos a falar de facturas de valores de cerca de € 200,00, € 300,00, € 600,00, entre outras, que a Requerida não conseguiu ou não quis pagar.
37) Ora, o artigo 3º do CIRE que aqui abordamos deverá ser lido conjuntamente com o artigo 20º do mesmo diploma legal, o qual elenca factos enunciadores ou indicadores da situação de insolvência.
38) Primeiro atente-se no artigo 12º do CIRE, o qual transpira o seguinte: no caso da dispensa de audição do devedor, deixa de se verificar o efeito cominatório semi-pleno, competindo ao requerente demonstrar a situação de insolvência do devedor, nomeadamente por se verificar algum dos factos previstos no artigo 20º.
39) Ora, somos inevitavelmente levados a pensar que bem fácil é quando é o devedor que se apresenta à insolvência, ao invés de um credor que está claramente lesado nos seus interesses.
40) Todavia, como também sabemos, e como, aliás, referem na mesma referência bibliográfica LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, “raramente o credor ou outro legitimado disporá de elementos fiáveis que lhe permitam proceder à avaliação do acervo patrimonial do devedor”. É aliás o devedor quem está efectivamente em condições de o poder demonstrar.
41) Só que no caso em apreço, o devedor (a Requerida) esfumou-se, sendo-lhe desconhecido o actual paradeiro.
42) Pelo que, coube ao credor (a Requerente) tentar fazer prova da referida situação de insolvência.
43) Ora, provou-se que foi incumprido pela Requerida o pagamento fraccionado da dívida; provou-se que se desconhece o paradeiro. Todavia, para o Douto Tribunal a quo não ficou provado que a Requerida estivesse impossibilitada de cumprir com as suas obrigações, desde logo porque não fez a Requerente, ora Recorrente, prova de que tenha desencadeado um procedimento executivo de cobrança.
44) Ora, a verdade é que tal procedimento de cobrança existiu: é o processo executivo n.º .../13.3T2SNT, o qual correu termos, sem que a Requerente tivesse obtido o ressarcimento do crédito, pelo Juiz ... do Juízo de Execução de Sintra (Comarca da Grande Lisboa-Noroeste).
45) Mas mesmo que tal procedimento não tivesse existido, não bastaria a junção aos autos, como se fez, da documentação respeitante e esclarecedora do crédito da Requerente?
46) Aliás, tão esclarecedora que o Douto Tribunal a quo deu como facto provado tais documentos e que não obstante as sucessivas e inúmeras diligências da Requerente, nunca procedeu a Requerida ao pagamento da quantia em dívida.
47) Ora, não diz o artigo 20º, número 1 do CIRE, na alínea b) que a verificação da falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, é causa de pedido de declaração de insolvência?
48) A este propósito, LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA dizem que “o estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, de fazer a demonstração efectiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência”.
49) Pelo que, “uma vez que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-indice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, o requerente deve então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada” (idem).
50) Ora, foi o que a Requerente, ora Recorrente fez quando juntar as facturas que corporizam o crédito.
51) Pelo que, cremos, estava mais que demonstrada, pela Requerente, ora Recorrente, a situação de insolvência da Requerida.
52) Aliás, vai mais longe o Ac. do Tr. Relação de Évora de 25.10.2007, in CJ, 2007, IV, pág.259: “Caberá então ao devedor, se não estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto de corporiza a causa de pedir”.
53) Só que no caso concreto, a devedora não deve ter estado muito interessada, aliás, não é de agora, porque já há largos anos se desconhece o paradeiro.
54) A verdade é que a Requerente, ora Recorrente carreou para os autos factos mais que evidentes da situação de insolvência da Requerida, pelo que não pode conformar-se com a decisão ora proferida pelo Douto Tribunal a quo, o qual se apenas atentou no inicialmente peticionado e carreado para o processo, então, no limite, deveria, desde logo, ter indeferido liminarmente a petição inicial ou, mais uma vez no limite, convidar a Requerente a aperfeiçoar a peça, o que aliás, estipula o artigo 27º do CIRE.
55) Não o fazendo, estamos em crer, que considerou cabais os argumentos/documentos apresentados pelo que deveria, com o devido respeito, ter decidido no sentido da procedência da acção.
56) E conforme o Ac. do STJ de 14.11.2006, dgsi.pt, p.p. 06 A 3271, “a lei pretende que a situação de insolvência do Requerido seja devidamente investigada e escalpelizada, independentemente dos factos alegados pelo Requerente. Pois que o que está em causa não são apenas interesses particulares mas também interesses de ordem pública atinentes ao normal e salutar funcionamento do comércio jurídico, e ao saneamento do mercado, pretendendo-se dele expurgar as empresas ou pessoas singulares económica ou financeiramente inviáveis e evitar que nele pululem devedores sistematicamente relapsos”.
57) “Tudo em benefício da transparência e da moralização do tráfego jurídico comercial” (Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 01.07.2008, Proc. 0822074).
58) Nessa medida, e por tudo isto deverá, salvo melhor e mais ajuizada opinião, o Venerando Tribunal modificar a decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo, no sentido da total procedência do peticionado pela Requerente, ora Recorrente.».
Juntando um documento, pugna pela procedência do recurso, com modificação da decisão recorrida, a ser substituída por outra que ordene a procedência do pedido de insolvência.

***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, sendo ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime/efeito fixado.
A convite do Relator a Apelante veio esclarecer que as normas que considera violadas na decisão em crise são as seguintes: art.ºs 3.º, 20.º, 23.º e 26.º do CIRE.
Nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso:

Sendo o objecto dos recursos delimitado pelas respectivas conclusões, pressuposto o objecto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do NCPCiv. – está em causa na presente apelação saber se:
a) É admissível a junção de documento em sede de alegação recursória;
b) Se foi devidamente impugnada a decisão de facto e, caso o tenha sido, se deve ser alterada;
c) Se está verificado o requisitório de que depende a declaração de insolvência da R...

***

III – Fundamentação:
A) Factos Provados:

Na 1.ª instância foi considerada provada a seguinte factualidade:
«1. A Requerente Ideiatex - Representações Têxteis, Lda. é uma sociedade comercial que tem como objecto social o comércio, importação, exportação e representação de têxteis, artigos de vestuário, calçado, marroquinaria, bijutaria e complementos, comércio de comissões, consignações e conta própria.
2. A Requerida M... nasceu no dia 5 de Novembro de 1968 e é casada.
3. No exercício da sua actividade, a Requerente forneceu à Requerida diversas mercadorias/fornecimentos têxteis, pelas quais emitiu as seguintes facturas;
- FT 1100109235, emitida em 22.08.2011 e vencida na data de 21.09.2011, com o valor de € 1.928,64;
- FT 1100109236, emitida em 22.08.2011 e vencida na data de 21.09.2011, com o valor de € 1.557,18;
- FT 1100110131, emitida em 10.09.2011 e vencida na data de 10.10.2011, com o valor de € 1.851,15;
- FT 1100110495, emitida em 14.09.2011 e vencida na data de 14.10.2011, com o valor de € 665,43;
- FT 1100111090, emitida em 24.09.2011 e vencida na data de 24.10.2011, com o valor de € 1.244,76;
- FT 1100111915, emitida em 06.10.2011 e vencida na data de 05.11.2011, com o valor de € 220,17;
- FT 1100112523, emitida em 12.10.2011 e vencida na data de 11.11.2011, com o valor de € 1.803,18;
- FT1100112524, emitida em 12.10.2011 e vencida na data de 11.11.2011, com o valor de € 282,90;
- FT 1200102651, emitida em 09.03.2012 e vencida na data de 08.04.2012, com o valor de € 1.792,11;
- FT 1200102652, emitida em 09.03.2012 e vencida na data de 08.04.2012, com o valor de € 313,65;
- FT 1200102653, emitida em 09.03.2012 e vencida na data de 08.04.2012, com o valor de € 3.828,99;
- FT 1200102654, emitida em 09.03.2012 e vencida na data de 08.04.2012, com o valor de € 456,33;
- FT 1200102655, emitida em 09.03.2012 e vencida na data de 08.04.2012, com o valor de € 548,58;
- FT 1200103164, emitida em 16.03.2012 e vencida na data de 15.04.2012, com o valor de € 606,39;
- FT 1200103273, emitida em 18.03.2012 e vencida na data de 17.04.2012, com o valor de € 380,07;
- FT 1200104052, emitida em 26.03.2012 e vencida na data de 25.04.2012, com o valor de € 1.166,04;
- FT 1200104841, emitida em 12.04.2012 e vencida na data de 12.05.2012, com o valor de € 285,36,
no valor total de € 18.930,93.
4. A Requerida, não obstante sucessivas e inúmeras diligências e tentativas efectuadas pela Requerente, nunca procedeu ao pagamento da quantia em causa.
5. A Requerida nunca deixou de admitir a existência da quantia em dívida, tendo chegado a solicitar um plano de pagamento com amortização faseada, o qual apenas cumpriu parcialmente em relação a facturas anteriores.».

E foram julgados não provados os seguintes factos:
«A. A Requerida deixou de pagar o crédito da Requerente como os créditos de outros credores, os quais se viram forçados a desencadear os competentes meios e procedimentos judiciais para tentarem ser ressarcidos.
B. Da lista pública de execuções consta pendente contra a Requerida uma execução movida por I..., no Juiz ... do Juízo de Execução de Sintra da Comarca da Grande-Lisboa Noroeste (Proc. nº.../04.5PCAMD), com o valor de € 30.248,55.
C. A Requerida encontra-se em grave situação económica- financeira.
D. A Requerida tem um passivo exigível e acumulou dívidas de uma forma tal que se conclui, inequivocamente, a impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações assumidas.
E. A crise da Requerida é de tal forma grave, séria e notória que a sua apresentação à insolvência há muito deveria ter sido promovida.
F. A Requerida suspendeu de forma generalizada os seus pagamentos.
G. A Requerida encontra-se em situação de inviabilidade económica.».

B) Da (in)admissibilidade de junção de documento com a alegação recursória:
A Recorrente juntou um documento com a sua alegação de recurso, sem que, porém, tenha formulado qualquer requerimento de junção nesse sentido e sem, assim, motivação para tal junção nesta altura.
Ora, como é consabido, a junção de documentos no decurso do processo – também, naturalmente, na fase posterior à decisão em 1.ª instância – tem de ser requerida e na fase de recurso é excepcional ([1]), pelo deve a parte alegar/motivar no sentido de demonstrar que a junção é admissível (ante os parâmetros legais dos art.ºs 651.º e 425.º, ambos do NCPCiv.) e que é útil/pertinente.
Porém, a Apelante limitou-se a juntar um documento com a sua alegação recursória, como se tal junção fosse livre, sem, por isso, formular qualquer requerimento de junção e sem, em concreto, mostrar a sua admissibilidade e a sua utilidade/pertinência tendo em conta o objecto da causa.
E dispõe o art.º 651.º, n.º 1, do NCPCiv. que: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Enquanto que o mencionado art.º 425.º do mesmo Cód. estabelece: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
No caso dos autos, não mostra – nem sequer alega – a Recorrente que não pudesse ter junto o documento agora apresentado anteriormente à decisão proferida em 1.ª instância, para que ali houvesse sido considerado.
Nem mostra, de modo algum, que a junção apenas se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Com efeito, alegado, ab initio, que a R., em grave situação económico-financeira, acumulou dívidas que determinam estar insolvente, com suspensão generalizada dos seus pagamentos e incumprimento de obrigações, revelador da impossibilidade de satisfazer os seus compromissos, e tendo, por consequência, o Tribunal recorrido emitido pronúncia sobre a factualidade correspondente, concluindo por não se ter provado que estivesse pendente contra a R. execução movida por Investments 2234 Lic., no Juiz 2 do Juízo de Execução de Sintra da Comarca da Grande-Lisboa Noroeste (Proc. nº.../04.5PCAMD), com o valor de € 30.248,55, só pode concluir-se que poderia, e deveria, a ora A./Apelante ter produzido, oportunamente, em 1.ª instância a prova documental de tal factualidade atinente à existência de processo(s) executivo(s) contra a aqui R./Apelada.
Podia mesmo, em atitude prudente, com vista a demonstrar a factualidade que alegava, ter-se munido de certidão judicial extraída daqueles autos de execução, para junção aos presentes autos, no tempo adequado, a fim de permitir que essa prova documental inequívoca fosse admitida e valorada pelo Tribunal a quo, o que, porém, não fez.
Assim, é manifesto, salvo o devido respeito, que nem é caso de impossibilidade de junção anteriormente à decisão proferida em 1.ª instância, nem ocorre junção apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância ([2]).
Donde que seja inadmissível a junção pretendida, que haverá, por isso, de ser indeferida, com desentranhamento do documento, como a final se decidirá.

C) Da impugnação da decisão de facto:
Não se conforma a Apelante com a decisão da matéria de facto no concernente aos factos – todos eles – dados como não provados.
Trata-se, pois, de impugnação da decisão de facto tendo por objecto a seguinte matéria (toda julgada não provada):
1.º - A R. deixou de pagar os créditos de outros credores, os quais se viram forçados, tal como a A., a desencadear os competentes meios e procedimentos judiciais para tentarem ser ressarcidos;
2.º - Da lista pública de execuções consta pendente contra a R. uma execução movida por Investments 2234 Lic., no Juiz 2 do Juízo de Execução de Sintra da Comarca da Grande-Lisboa Noroeste (Proc. nº.../04.5PCAMD), com o valor de € 30.248,55;
3.º -  A R. encontra-se em grave situação económica-financeira;
4.º - A R. tem um passivo exigível e acumulou dívidas de uma forma tal que se conclui, inequivocamente, a impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações assumidas;
5.º - A crise da R. é de tal forma grave, séria e notória que a sua apresentação à insolvência há muito deveria ter sido promovida;
6.º - A R. suspendeu de forma generalizada os seus pagamentos;
7.º - A R. encontra-se em situação de inviabilidade económica.
Com referência a tal objecto fáctico da impugnação, deve, desde logo, notar-se que a matéria dos pontos 3.º a 7.º supra enunciados não configura verdadeira matéria de facto a que houvesse de responder-se em sede de decisão de facto e que houvesse de verter-se na parte fáctica da sentença.
Com efeito, do que aí se trata é de matéria conclusiva ou valorativa, como tal assente em juízos de valor que não deveriam constar dessa parte fáctica da decisão proferida.
Com efeito, os juízos conclusivos devem caber na parte referente à matéria de direito, por não constituírem factos concretos, só estes últimos devendo ser objecto de prova e de um juízo probatório de provado ou não provado.
Assim, nesta perspectiva, é patente, salvo o devido respeito, que não têm contudo factual os convocados segmentos referentes a “grave situação económica-financeira”, “passivo exigível e dívidas”, “impossibilidade de cumprir a generalidade das obrigações assumidas”, “crise de tal forma grave, séria e notória”, “a apresentação à insolvência há muito deveria ter sido promovida”, “suspendeu de forma generalizada os seus pagamentos” e “encontra-se em situação de inviabilidade económica”.
Antes se tratando de conclusões ou juízos de valor a dever ser extraídos dos concretos factos provados.
Por isso, nem sequer, se bem vemos, deveria o Tribunal recorrido ter respondido a esta matéria em sede de decisão de facto, matéria que deveria ter sido objecto de apreciação apenas na parte de direito da decisão recorrida, em sede de juízo de aplicação do direito aos factos apurados.
Donde que, não se tratando de factos, mas de conclusões jurídicas – que só podem ser obtidas mediante a aplicação das normas jurídicas a convocar aos factos a considerar –, não seja admissível a respectiva impugnação no âmbito do recurso da decisão de facto, pois que não pode atacar-se matéria de direito no campo da decisão de facto.
Na impugnação da decisão de facto só cabem as respostas a factos concretos, aqueles – e só eles – que devem ter assento na parte fáctica da sentença, sejam os “factos julgados provados”, sejam os “que se julga não provados” (cfr. os n.ºs 3 e 4 do art.º 607.º do NCPCiv.).
As conclusões jurídicas, a extrair dos factos, mediante a aproximação entre estes o quadro jurídico aplicável – a “indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes” (n.º 3 daquele art.º 607.º) – de molde a concluir pela decisão do caso, mediante a verificação do preenchimento, ou não, do programa normativo aplicável, de molde a fazer emergir a respectiva estatuição normativa, que iluminará a justiça do caso concreto, já configuram, por sua vez, etapa posterior à fixação dos factos, traduzindo o juízo normativo substantivo sobre estes, que irá desembocar na “decisão final” (dispositivo), que deve encerrar a sentença (vide ainda o n.º 3 citado).
Em suma, não pode admitir-se a impugnação da decisão de facto quanto aos ditos segmentos/ pontos 3.º a 7.º, improcedendo as conclusões em contrário da Apelante.
Restam os pontos 1.º e 2.º também supra aludidos, referentes, essencialmente, ao não pagamento pela R. dos créditos de outros credores – que teriam também desencadeado procedimentos judiciais tendentes ao respectivo ressarcimento – e à existência de uma execução pendente contra tal R. (o Proc. nº.../04.5PCAMD, com o valor exequendo de € 30.248,55).
Ora, a Apelante pretendia demonstrar a existência desta concreta execução através do documento apresentado com a sua alegação recursória, não convocando qualquer outro elemento probatório para o efeito.
Por isso, não podendo admitir-se a junção desse documento – a única prova convocada neste particular –, tem a impugnação de improceder quanto a tal ponto 2.º.
Já quanto ao remanescente ponto 1.º, atinente ao não pagamento a outros credores e seus procedimentos judiciais para ressarcimento, definido assim o objecto fáctico da impugnação e sabido o sentido decisório pretendido nesta parte, cabe indagar, finalmente, quanto ao respectivo objecto probatório, as concretas provas convocadas para procedência da impugnação recursória.
Ora, a Apelante limita-se a defender, muito vagamente, que os factos declarados pela testemunha e tudo quanto foi carreado para os autos, impunham uma decisão diferente, uma vez que, perante todo este conspecto fáctico é de deduzir uma outra decisão, que não a proferida.
Cabe, por isso, perguntar: a que matéria de depoimento se reporta a Recorrente? Referiu-se a testemunha inquirida a tal alegado não pagamento a outros credores e respectivos procedimentos judiciais para ressarcimento? Ou nada referiu sobre isso?
Cabia, naturalmente, à impugnante, a fim de fundamentar a impugnação recursória, fundamentar tal impugnação, indicando os fundamentos pelos quais pede a alteração de decisão, especificando os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (cfr. art.ºs 639.º, n.º 1, e 640.º, n.º 1, al.ª b), ambos do NCPCiv.).
Mais. Invocando prova gravada – depoimento testemunhal –, cabia-lhe, para além de justificar a relevância probatória desse meio de prova (o que obrigaria a explicitar as razões pelas quais conferia força probatória bastante ao depoimento produzido quanto à específica factualidade em questão, mostrando, para além do mais, em que sentido depôs a testemunha e por que merece o seu depoimento credibilidade), “sob pena de imediata rejeição”, “indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso” (art.º 640.º, n.º 2, al.ª a), do NCPCiv.), para não cair em inconsequente inconformismo.
Ora, a Apelante não o fez, nem nas conclusões do seu recurso, nem na antecedente alegação recursória, termos em que só pode nesta parte rejeitar-se a impugnação.
De nada serve, assim, invocar ter sido “desprezada a situação de muito precária solvabilidade financeira” da R., a impedi-la “de honrar os compromissos assumidos válida e plenamente com credores”, ter sido desvalorizada a circunstância “de dever ser a própria Requerida, nos termos da Lei, a apresentar-se à insolvência, e não um credor que se viu na impossibilidade de receber o que lhe era devido”, o que nada ajuda a fazer luz sobre aquilo que ora importa, a dita concreta factualidade a que o Tribunal a quo respondeu negativamente.
Nem, pelas mesmas razões, invocar “a total impossibilidade de citação da Requerida”, que mostraria “a fuga aos compromissos que assumiu e é um claro sinal de suspensão generalizada de pagamentos e da situação de inviabilidade económica”.
Tal nunca poderia mostrar, de per si, a pretendida matéria de “outros procedimentos movidos contra a Requerida e conhecimento de outros credores”, reconhecendo mesmo a Apelante que, “quanto ao activo, nada sabemos”.
Conclui-se, pois, pela falência da intentada impugnação da decisão de facto, não podendo acolher-se as conclusões em contrário da Recorrente, assim subsistindo inalterado o quadro fáctico da sentença.

D) Da (in)verificação do requisitório da declaração de insolvência 
Ancorada na sua impugnação da decisão de facto, que pretendia ver julgada procedente, a Apelante pugna pela procedência também da impugnação de direito, do modo a ver ser provido o seu recurso e alterada a decisão recorrida, com decretação da visada insolvência da contraparte.
Assim, a impugnação recursória de direito dependia, desde logo, da procedência da impugnação de facto.
Ora, como visto, esta improcede, mantendo-se inalterado o quadro fáctico da sentença, seja, pois, quanto a factos provados, seja quanto aos não provados.
O que logo motiva a improcedência da impugnação de direito.
Com efeito, na sentença recorrida pode ler-se neste particular:
«No caso da audição do devedor tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º, deixa de se verificar o referido efeito cominatório semi-pleno, competindo ao requerente demonstrar a situação de insolvência do devedor, nomeadamente, por se verificar algum dos factos-índice previstos no mencionado artigo 20.º.
Com efeito, o artigo 20.º, n.º 1 do CIRE, elenca várias situações que indiciam a situação de insolvência do devedor, assumindo no caso presente, face ao alegado pelo Requerente, relevância as previstas nas alíneas a) e b) do referido preceito, na medida em que apenas foi alegado pela Requerente que, em face do crédito que dispõe sobre a Requerida e que não foi objecto de execução, e por existirem dívidas perante outros credores e a situação económica da Requerida não permitir o seu pagamento, deve concluir-se ter a mesma incorrido na situação de insolvência.
Simplesmente, e mesmo que se considerasse tal alegação suficiente a preencher os mencionados requisitos, resulta dos autos não ter a Requerente logrado demonstrar que os factos por si alegados a respeito da situação económica da Requerida correspondessem à real situação da mesma, nomeadamente, por não ter demonstrado que a mesma tenha incumprido com outras obrigações perante outros credores de forma a concluir se ter dado o aludido incumprimento generalizado do cumprimento das suas obrigações vencidas, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
Com efeito, não ficou provado que a Requerida tenha deixado de pagar à generalidade dos seus credores e que estes se tenham visto forçados a desencadear os competentes meios judiciais, não tendo sequer ficado demonstrada a existência de uma execução pendente contra a Requerida, ou qualquer outro elemento acerca da sua situação económica-financeira.
Acresce que os factos provados relativos ao crédito de que a Requerente é titular, e muito embora se tenha provado ter sido incumprido o pagamento fraccionada acordado e não ser conhecido o paradeiro da Requerida, face à ausência de qualquer outra factualidade, não permitem concluir que a mera falta de cumprimento desta obrigação implique, pelo seu montante ou circunstâncias do incumprimento, a impossibilidade da mesma em satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.».
Concordamos que da factualidade que vem provada – a única de que nos podemos socorrer – apenas pode ter-se por verificada a existência do crédito da A. sobre a R., o montante (no valor total de € 18.930,93), exigibilidade e vencimento deste, e a ausência da devedora em paradeiro desconhecido.
A A. invoca nos autos mostrar-se preenchido o requisitório do art.º 20.º, n.º 1, al.ªs a) e b), do CIRE.
Ora, segundo o art.º 3.º, n.º 1, do CIRE, “ É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.

E o art.º 20.º do mesmo CIRE dispõe (quanto ao que aqui importa):
“1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida (…), verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;

(…)”.

No caso dos autos, apenas se apurando, como dito, a existência do crédito da A., os seus montante (de € 18.930,93), exigibilidade e vencimento, e a ausência da devedora em paradeiro desconhecido, indemonstrada fica uma situação de generalizada suspensão do pagamento das obrigações vencidas ou de incumprimento de obrigação(ões) que, ante o seu montante ou circunstâncias do inadimplemento, revele a impossibilidade do devedor de satisfação pontual da generalidade das suas obrigações.
Nada mostra, com efeito, indemonstrada a existência de outras dívidas, uma situação de generalizada suspensão de pagamentos.
Por outro lado, o montante da demonstrada dívida face à credora aqui A., ascendendo a € 18.930,93, também, de per si, não permite concluir pela generalizada impossibilidade de satisfação pontual das obrigações.
E, quanto às circunstâncias do inadimplemento, a ausência da R. em parte incerta também não é bastante para revelar, sem mais, a sua impossibilidade de satisfazer a generalidade das suas obrigações.
De notar ainda que, diversa da apresentação do devedor à insolvência (art.º 18.º do CIRE) é a da acção de insolvência intentada por outrem – como in casu –, podendo qualquer credor requerer a declaração de insolvência de um seu devedor (art.º 20.º, n.º 1, do CIRE).
Para tanto, terá o credor de alegar factualidade idónea a demonstrar algum dos factos índice elencados nas diversas al.ªs (de a) a h)) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.
Que se trata de um ónus alegatório do A./devedor logo resulta do disposto no art.º 23.º, n.º 1, do CIRE, segundo o qual o pedido de declaração de insolvência se faz “por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida …” ([3]).
Assim, dúvidas não restam de dever o requerente da insolvência expor os factos que consubstanciam/fundamentam o seu pedido, devendo, pois, “fundamentar o pedido com base nos elementos de que disponha para que se possa concluir no sentido de que o devedor se encontra em situação de insolvência (artigo 3.º)” ([4]).
Note-se que o credor requerente da insolvência do seu devedor não está dispensado de oferecer logo, com a petição, os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor e que lhe permitiram concluir pela situação de insolvência do mesmo (art.º 25.º, n.º 1, do CIRE).
Que o legislador não pretende acções de insolvência com pedidos infundados logo o mostra o preceito do art.º 22.º do CIRE, estabelecendo a responsabilidade civil do credor/requerente que actue com dolo na dedução de tais pedidos infundados.

Bem se compreende, assim, que, por sua vez, o art.º 27.º do CIRE estabeleça um dever de apreciação liminar da petição de insolvência, determinando que o juiz:
a) Indefira liminarmente o pedido quando seja manifestamente improcedente;
b) Conceda ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais.
Perante este enquadramento legal, patente resulta que a lei alude, invariavelmente, ao incumprimento generalizado das obrigações do devedor, à impossibilidade de satisfação da generalidade das suas obrigações, ao incumprimento generalizado de dívidas (aludidos art.ºs 18.º, n.º 3, 20.º, n.º 1, a), b), e g), iii, do CIRE).
O pressuposto é sempre, pois, quanto à esfera do devedor, o de um quadro generalizado, um incumprimento generalizado, uma patologia, assim, geral (de afecção geral/generalizada), sem o que não se justifica a insolvência.
Por isso, quando se trate da invocação de incumprimento de uma só obrigação – ou um número diminuto/restrito delas –, tal inadimplemento tem de conter em si a virtualidade de demonstrar aquele quadro generalizado, a situação de impossibilidade do devedor satisfazer a generalidade das suas obrigações.
Quer dizer, em qualquer caso tem de ser alegado, para depois poder ficar demonstrado – é a partir dos factos alegados que poderá depois fazer-se a prova –, que se trata de situação, não com carácter isolado, fortuito ou acidental – como tal não paralisante – mas com foros de generalidade, de inadimplemento generalizado.
Donde que, no caso de invocação de incumprimento de uma só obrigação, a lei determine que se atenda ao montante da obrigação incumprida e às circunstâncias desse incumprimento, de molde a que de um desses elementos, ou da conjugação de ambos, resulte aquela especial debilidade, traduzida na impossibilidade generalizada de pagamentos, no incumprimento generalizado de dívidas.
Sem esta situação generalizada não pode partir-se para a insolvência, que não pode ser decretada na falta dela.
Bem se compreende, pois, que, em condições de normalidade, seja diferente o não pagamento, pelo devedor, de uma dívida e o inadimplemento generalizado das suas dívidas.
Na primeira hipótese não será caso, por regra, de se requerer a insolvência, enquanto no segundo já o será.
Como já dito, o ónus de alegar cabia, quanto aos pressupostos da declaração de insolvência – factos integrantes da causa de pedir da acção –, à aqui A./Apelante.
E esta observou tal ónus, motivo pelo qual os autos prosseguiram até que foi proferida decisão final.
Nesta, porém, não demonstrados, após produção de provas, os pressupostos invocados, não vingando, apesar de alegado, um quadro de impossibilidade de cumprimento pela demandada das suas obrigações vencidas, restava julgar improcedente a acção.
E, concluindo-se – também agora – pela inexistência de factualidade que permita dar por verificada a invocada suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas da R. (al.ª a) do n.º 1 do dito art.º 20.º), ou um quadro revelador da sua impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (al.ª b) do mesmo n.º 1), resta confirmar o julgamento da 1.ª instância.
E nem se diga – salvo o devido respeito – que caberia à demandada, neste quadro, demonstrar que não se verificam os pressupostos de decretamento da insolvência, pois não se vê, nem a Apelante o mostra, onde possa encontrar-se fundamento para inversão do ónus da alegação e prova nesta matéria ([5]).
Improcedem, pois, as conclusões em contrário da Apelante.

***

IV – Sumariando (cfr. art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Cabe ao credor requerente da acção de insolvência do seu devedor a alegação e prova dos factos concretos integrantes dos pressupostos a que aludem as alíneas do art.º 20.º, n.º 1, do CIRE.
2. - As alíneas a) e b) – tal como a al.ª g) – do n.º 1 deste dispositivo legal reportam-se a situação de incapacidade generalizada de cumprimento das obrigações pelo devedor.
3. - Se, após produção das provas, não resultam apurados factos que permitam demonstrar esse quadro de generalizada incapacidade de cumprimento de obrigações, apenas se conhecendo a dívida face ao demandante e nada se sabendo quanto ao activo do devedor, então não pode concluir-se pela existência de qualquer dos factos-índice daquelas alíneas desse dispositivo legal, o que afasta qualquer presunção de insolvência.
4.- Só mediante a prova pelo credor de algum daqueles factos-índice se forma presunção de insolvência, a dever ser ilidida pelo devedor, que só então pode passar a suportar o ónus da prova da sua solvência.

***

V – Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:
a) Não admitir a junção do documento apresentado pela Apelante com a sua alegação de recurso;
b) Ordenando, por isso, o seu desentranhamento e entrega à parte apresentante, ficando cópia no seu lugar;
c) Julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela A./Apelante.
Esta vai ainda condenada, como parte apresentante de documento não admitido, em multa, pelo mínimo legal, pelo incidente anómalo provocado (art.º 7.º, n.ºs 4 e 8, do Reg. Custas Processuais, na sua actual redacção).

Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.


Lisboa, 16/04/2015

José Vítor dos Santos Amaral (Relator)           
Regina Almeida (1.ª Adjunta)                                              
Maria Manuela Gomes (2.ª Adjunta)


([1]) Sobre o tema, mormente as subjacentes razões de superveniência, cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pags. 83 e seg..  

([2]) Cfr., sobre os requisitos de admissibilidade de prova documental em fase recursória, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 184-185. 

([3]) No mesmo sentido aponta também o disposto no art.º 342.º, n.º 1, do CCiv..

([4]) Cfr. Ana Prata e outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, Almedina, Coimbra, 2013, p. 93, Autores que ali acrescentam que o requerente não devedor deve apresentar “o(s) facto(s), de entre os indicados no artigo 20.º, que fundamenta(m) o pedido”.

([5]) Como vem sendo entendido, ao demandante credor cabe, em geral, a alegação e prova dos factos-índice previstos no art.º 20.º, n.º 1, do CIRE, criando, uma vez feita essa prova, uma presunção de insolvência, presunção esta que, uma vez consubstanciada, caberá ao demandado devedor ilidir, competindo-lhe na oposição alegar e provar a sua solvência – cfr. art.º 30.º, n.ºs 3 e 4, do CIRE, bem como, na doutrina, Ana Prata e outros, op. cit., ps. 86 e seg. e 109, e, na jurisprudência, ente outros, o Ac. Rel. Coimbra, de 08/05/2012, Proc. 716/11.6TBVIS.C1 (Rel. Artur Dias), em www.dgsi.pt.