Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
286/2008-4
Relator: FERREIRA MARQUES
Descritores: FACTOS PESSOAIS
COMINAÇÃO
JULGAMENTO
FALTA
FALTA DE ADVOGADO
PESSOA COLECTIVA
MATÉRIA DE DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1. No processo declarativo comum laboral, se alguma das partes faltar injustificadamente ao julgamento e não se fizer representar por mandatário judicial, consideram-se provados os factos alegados pela outra parte que sejam pessoais do faltoso.
2. Esta cominação importa uma verdadeira confissão ficta dos factos alegados pela outra parte que sejam pessoais do faltoso, uma confissão ligada inilidivelmente por lei à ausência da parte, desde que não justificada, e tanto incorre nesta cominação o réu que seja uma pessoa singular como o réu que seja uma pessoa colectiva ou sociedade.

3. Sendo o demandado uma pessoa colectiva, os factos pessoais que são tidos como provados, são aqueles que respeitam à própria pessoa colectiva ou sociedade, e não aos titulares dos órgãos a quem, materialmente, sejam atribuídos, sendo irrelevante, para este efeito, qualquer substituição verificada quanto a esses titulares, operada entre o momento da prática dos factos alegados e a audiência de julgamento.

4. O que se estabelece no art. 71º, n.º 2 do CPT é o valor probatório de uma conduta processual omissiva da parte que não comparece a julgamento nem se faz representar por mandatário judicial, à semelhança do que sucede nos casos de falta de contestação e de impugnação, não podendo as pessoas colectivas invocar, nestas situações, para afastar as cominações previstas nos arts. 57º, n.º 1 do CPT, 484º, n.º 1 e 490º, n.º 3 do CPC, que os factos alegados pela outra parte, não são factos pessoais dos seus actuais representantes nem foram praticados no exercício da sua representação.
5. Estando em causa na acção a questão de saber se as partes estiveram ou não vinculados por um contrato de trabalho, o juiz não pode dar como provado que “o A. sempre trabalhou para a R. sob a sua autoridade, direcção e fiscalização”, pois a questão a decidir está precisamente dependente do significado real desta expressão que constitui, neste caso, matéria de direito.

(sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I. RELATÓRIO

J…., melhor identificado nos autos, instaurou acção declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra
C…, pedindo que esta seja condenada:
a) a reconhecer que foi contratado como trabalhador subordinado e que, por isso, estão vinculados por um contrato de trabalho por tempo indeterminado, desde 1.01.1992;
b) a pagar-lhe as quantias de € 2.120,30, a título de diuturnidades; € 19496,14, a título de subsídios de férias; € 21 245,01, a título de subsídios de Natal; €12 361,58, a título de subsídios de alimentação, acrescidas respectivamente de juros de mora, desde a data do vencimento até integral pagamento, contabilizando os juros vencidos até á data da propositura da acção em € 20.691,00.
Alegou para tanto e em síntese o seguinte:
Iniciou a sua actividade profissional para a R., em 31/01/1992, formalmente ao abrigo de um contrato de prestação de serviços;
Sempre desempenhou as funções de assessor de imprensa, sob a autoridade, direcção e fiscalização da R.;
Até 27/10/2003 - data em que celebraram, por escrito, um contrato de trabalho por tempo indeterminado - a R nunca lhe pagou quaisquer quantias a título de subsídios de Natal e de férias, subsídios de alimentação, e diuturnidades.

A R., na sua contestação, defendeu-se por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou a incompetência do tribunal, em razão da matéria;
E por impugnação, alegou, em resumo que, no período compreendido entre 1/01/1992 e 27/03/2003, o A. esteve sempre vinculado à empresa por um contrato de prestação de serviços.
            Concluiu pela procedência da excepção invocada e pela sua absolvição da instância ou, se assim não se entender, pela improcedência da lide e pela sua absolvição do pedido.

            A excepção da incompetência material do tribunal, invocada pela R., foi julgada improcedente no despacho saneador.

Saneada o processo, foi designado o dia 3/07/2006 para a audiência de julgamento.
Nessa data, por falta de comparência do A., - falta que foi julgada justificada pelo tribunal – o julgamento foi adiado, tendo a 1ª sessão sido designada para o dia 13/11/2006, e a 2ª sessão para o dia 15/11/2006.
Como no dia 13/11/2006, na hora designada para o início do julgamento, a R. e o seu mandatário não se encontravam presentes, o Mmo juiz a quo, a requerimento do A. e ao abrigo do disposto no art. 71º, n.º 1 do CPT, julgou provados os factos alegados por este que considerou serem pessoais da Ré e consignou na acta esses factos.

            Irresignado, a R. interpôs recurso de agravo deste despacho, tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões:
(…)

            O A., na sua contra-alegação, pugnou pela confirmação do despacho impugnado e pelo não provimento do recurso.

            O Mmo juiz a quo sustentou o despacho impugnado e admitiu o recurso de agravo interposto com subida diferida.
            Seguidamente, foi proferida sentença que julgou procedente a acção e em consequência:
a) Declarou que o A. e a R. estão vinculadas por um contrato de trabalho por tempo indeterminado, desde 1/01/1992;
b) Condenou a R. a pagar ao A. € 2.120,30, a título de diuturnidades; € 19.496,14, a título de subsídios de férias; € 21.245,01, a título de subsídios de Natal; € 12.361,58, a título de subsídios de alimentação.
            c) Condenou a R. a pagar ao A. juros de mora, vencidos e vincendos sobre as referidas quantias até integral pagamento, à taxa legal, sendo os vencidos até à data da propositura da acção no valor de € 20.691,00.

            Inconformada, a R. interpôs recurso de apelação da referida sentença, o qual formulou as seguintes conclusões:
            (…)
            O A., na sua contra-alegação, concluiu pelo não provimento do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
           
            Admitidos os recursos na forma e com o efeito devidos, subiram os autos a esta Relação onde, depois de colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

            As questões que se suscitam nos referidos recursos são as seguintes:
1. Saber se o juiz recorrido podia aplicar à R., no início do julgamento, a cominação prevista no art. 71º, n.º 2 do CPT e, na afirmativa, quais os factos que devia considerar-se abrangidos por essa cominação;
            2. Saber se a decisão que fixou a matéria de facto provada contém juízos de valor e matéria de direito;
            3. Saber se a relação contratual que vincula ambas as partes, desde 1/01/1993, consubstanciou sempre um contrato de trabalho, desde aquela data, e não apenas a partir de 23/10/2003.
           
II. FUNDAMENTOS DE FACTO

A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
(…)

            III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
           
1. Recurso de agravo: falta da R. e do seu mandatário ao julgamento; irregularidade da convocação; caso julgado formal; insuficiência de poderes; factos pessoais da pessoa colectiva.
Comecemos por apreciar, tal como determina o art. 710º, n.º 1 do CPC, o recurso de agravo interposto do despacho proferido no início do julgamento, no qual o Mmo juiz considerou que a R. faltou injustificadamente à audiência de julgamento e não se fez representar por mandatário judicial e, em consequência dessa falta, aplicou-lhe a cominação prevista no n.º 2 do art. 71º do CPT.
A recorrente sustenta que o tribunal não podia aplicar tal cominação.
Alega que o seu mandatário consultou o site, gerido pela Direcção Geral da Administração da Justiça, Habilus, e verificou que nele apenas constava o 2º dia das duas datas designadas para a realização do julgamento (13 e 15/11/2006), tendo ficado convencido que este apenas se iniciaria em 15/11/2006.
Alega ainda que, em 3/7/2006, primeira data designada para a audiência de julgamento, o juiz examinou a “credencial” junta a fls. 89 dos autos e considerou que a mesma era regular e concedia poderes bastantes ao Dr. D… para representar a R., e que a apreciação que então fez dessa credencial constitui caso julgado formal que o tribunal estava obrigado a acatar neste processo.
Finalmente, alega a recorrente que, mesmo que assim se não entenda, deve considerar-se esta situação como uma mera “insuficiência de poderes regularizável”, nos termos do art. 40º do CPC.
            Salvo o devido respeito, a argumentação da recorrente não procede.
            Com efeito, o sistema informático Habilus, gerido pela Direcção Geral da Administração da Justiça, não foi erigido pelo legislador como meio processual próprio para se efectuarem as notificações às partes, aos seus mandatários judiciais e aos demais intervenientes nos processos judiciais.
            As notificações das partes, dos seus mandatários e dos demais intervenientes no processo só podem ser efectuadas nos termos previstos nas normas processuais que regulam esta matéria, estando o modo de notificação dos mandatários judiciais previsto nos arts. 254º e 260º do CPC, aplicável no processo laboral, por força do disposto no art. 23º do CPT. E, no caso em apreço, as partes e os seus mandatário foram regularmente notificados das duas datas designadas para a 1ª (13/11) e 2ª sessão (15/11/2006) do julgamento, nos termos estabelecidos naqueles preceitos, o que, aliás, a recorrente nem sequer põe em causa que tenha sucedido.
Tendo as partes e os seus mandatários sido regularmente notificados em conformidade com as normas processuais em vigor, não faz qualquer sentido a recorrente vir invocar um erro do sistema informático Habilus e sustentar que esse erro equivale a ausência de notificação do seu mandatário e das partes à audiência de julgamento.
            Improcede, igualmente, o segundo argumento invocado.
O caso julgado formal pressupõe a existência, no processo, de uma decisão judicial sobre a relação processual ou sobre determinada matéria de âmbito processual e o trânsito em julgado dessa decisão (art. 672º do CPC). E, em relação à questão da representação da R. em julgamento, impunha que o juiz já se tivesse pronunciado concretamente sobre esta questão e que essa decisão já tivesse transitado em julgado.
            Ora, na acta de 3/07/2006, consta apenas um despacho que determina o adiamento do julgamento, devido à falta de comparência do A., julgada justificada nesse acto. O tribunal não proferiu, nessa data, nem em outro momento, qualquer decisão sobre a representação da R. no processo, ou a declarar que Dr. D… tinha poderes bastantes para a representar, no julgamento, face ao teor da credencial junta a fls. 89 dos autos. Não tendo sido proferida no processo, antes do despacho impugnado, qualquer decisão que se tenha pronunciado em concreto (ou mesmo em termos genéricos) sobre essa matéria, não faz qualquer sentido sustentar, como sustenta a recorrente, que houve violação de caso julgado formal, ao considerar-se, no despacho impugnado, que a CP não estava devidamente representada na sessão de julgamento de 13/11/2006.
Também não faz qualquer sentido sustentar, como sustenta a R., que, a entender-se que não há caso julgado formal e que tal credencial não conferia ao Dr. D… poderes bastantes para a representar em julgamento, deveria considerar-se que se estava perante um caso de insuficiência de poderes, regularizável, nos termos do art. 40º do CPC.
A faculdade de suprimento da falta, insuficiência e irregularidade do mandato, prevista no art. 40º do CPC só é aplicável ao mandato forense, aos casos de intervenção de profissionais do foro em representação das partes, pelo que nada tem a ver com a questão da representação da recorrente em juízo.
            Nos termos do art. 13º, al. f) dos Estatutos da Ré, aprovados pelo DL 109/77, de 25/3, quem representa a recorrente em juízo é o Presidente do Conselho de Gerência e este não se encontrava presente na audiência de julgamento do dia 13/11/2006.
Ora, tendo a R. faltado injustificadamente a essa audiência e não se tendo feito representar por mandatário judicial, o juiz recorrido procedeu bem ao aplicar-lhe a cominação prevista no art. 71º, n.º 2 do CPT.
Sustenta, finalmente, a recorrente que os efeitos da cominação indevidamente aplicada não são aqueles que constam do despacho recorrido que deu como confessados todos os factos articulados pelo A. e que considerou prejudicada a produção da prova oferecida pela Ré.
Alega a recorrente que a cominação do art. 71º, n.º 2 do CPT só vale para factos pessoais e todos os constantes da petição não o são até porque a R. é uma pessoa colectiva. No que diz respeito às pessoas colectivas – diz a recorrente - para que tal cominação funcione torna-se necessário que estejam em causa factos pessoais dos seus representantes, praticados no exercício da representação e tendo os mesmos poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira, como tem decidido a jurisprudência.
Também, nesta parte, não assiste razão à recorrente.
O art. 71º, n.º 2 do CPT actualmente em vigor corresponde ao art. 89º, n.º 3 do CPT de 1981, tendo a norma actual deixado de consagrar o efeito cominatório pleno que naquela se previa, ou seja, a condenação no pedido (dando seguimento à orientação seguida na reforma do CPC de 1995), passando, em seu lugar, a estabelecer um efeito cominatório semi-pleno, ou seja, a considerar provados os factos alegados pela parte presente no julgamento que sejam pessoais do faltoso.
Segundo este preceito, no processo declarativo comum laboral, se alguma das partes faltar injustificadamente ao julgamento e não se fizer representar por mandatário judicial, consideram-se provados os factos alegados pela outra parte que sejam pessoais do faltoso.
Esta cominação importa uma verdadeira confissão ficta dos factos alegados pela outra parte que sejam pessoais do faltoso, uma confissão ligada inilidivelmente por lei à ausência da parte, desde que não justificada, e tanto incorre nesta cominação o réu que seja uma pessoa singular como o réu que seja uma pessoa colectiva ou sociedade.
Sendo o demandado uma pessoa colectiva, os factos pessoais que são tidos como provados, são aqueles que respeitam à própria pessoa colectiva ou sociedade, e não aos titulares dos órgãos a quem, materialmente, sejam atribuídos, sendo irrelevante, para este efeito, qualquer substituição verificada quanto a esses titulares, operada entre o momento da prática dos factos alegados e a audiência de julgamento.
Segundo a tese da recorrente, a cominação prevista no art. 71º, n.º 2 do CPT só se aplicaria, sendo o faltoso uma pessoa colectiva, se os factos alegados pela outra parte fossem pessoais dos próprios representantes da pessoa colectiva que, na altura do julgamento, ainda fossem os titulares dos seus órgãos representativos. Caso contrário, se, entretanto, se tivesse verificado qualquer substituição na titularidade desses órgãos, não só não poderia ser pedido o depoimento de parte daquela pessoa colectiva ou sociedade, como ficaria impune a sua falta injustificada à audiência.
Esta interpretação levaria a que, sendo uma das partes (autor ou réu) uma pessoa singular, todos os factos alegados pela outra parte seriam, em princípio, considerados pessoais daquela, mas estando em causa uma pessoa colectiva, apenas poderiam ser considerados provados os factos alegados pela outra parte que tivessem sido materialmente praticados pelos seus representantes legais que ainda o fossem no momento da realização do julgamento, ficando, assim, fora do âmbito da cominação todos os factos praticados por anteriores representantes da pessoa colectiva, caso tivesse havido mudança de representantes entre a data da prática dos factos e o julgamento do litígio. A pessoa colectiva (entidade empregadora da pessoa singular) e o seu mandatário podiam, nesse caso, faltar à audiência de julgamento, não lhe podendo ser aplicada a referida cominação, mas a pessoa singular (o trabalhador) não o podia fazer, sob pena de se considerarem confessados os factos alegados pela pessoa colectiva que fossem pessoais daquela. De igual forma, a pessoa singular não teria a faculdade de obter o depoimento de parte da pessoa colectiva, que, pelo contrário, poderia naturalmente conseguir esse efeito em relação à contraparte.
E, no entanto, a pessoa colectiva, apesar da substituição dos seus representantes, continuou a manter a sua identidade, e continuou vinculada ao contrato celebrado com aquele trabalhador. Faz algum sentido esta desigualdade entre as partes? Obviamente que não. Estar-se-ia desta forma, ao fim e ao cabo, a dar às entidades colectivas um expediente fácil de frustrarem quer o direito da parte contrária de provocar a sua confissão, quer o objectivo com que a lei impôs às partes o ónus de comparência no julgamento, dificultando a tarefa do julgador que se veria impossibilitado de obter os esclarecimentos de que necessitasse[1].
Nas modernas organizações empresariais acentuou-se o carácter impessoal das relações entre o trabalhador e o empregador. Nas empresas de média e grande dimensão, sejam sociedades por quotas ou sociedades anónimas, o trabalhador e o empregador, muitas vezes, nem sequer se conhecem pessoalmente, ou mesmo que se conheçam, não têm qualquer contacto directo entre si no decurso da relação de trabalho. No âmbito destas organizações, as ordens são transmitidas através de uma estrutura hierárquica, mais ou menos extensa e complexa em função da dimensão da empresa, que por vezes reveste carácter multinacional, recebendo cada trabalhador as suas orientações do seu imediato superior hierárquico, face ao seu concreto posicionamento na escala hierárquica.
E o legislador tem perfeito conhecimento desta realidade e, apesar de ter consciência dela, não estabeleceu, nos CPT de 1981 e de 1999, qualquer distinção entre pessoas singulares e pessoas colectivas, nem impôs qualquer restrição em relação aos factos pessoais das pessoas colectivas.
Portanto, os factos pessoais a que se refere o art. 71º, n.º 2 do CPT são os da parte, seja pessoa singular ou colectiva e não, no caso desta última, os dos titulares dos órgãos que em concreto os praticam.
O vício mais grave da tese sustentada pela recorrente encontra-se na confusão feita entre a individualidade física das pessoas que, a cada momento, são titulares dos órgãos de uma pessoas colectivas e a própria pessoa colectiva em si, e na ignorância dos princípios da teoria das pessoas colectivas e dos seus órgãos.
Ao entrarem em relação com terceiras pessoas, os titulares dos órgãos de uma pessoa colectiva que actuem nessa qualidade não estão a exercer qualquer direito seu em nome próprio, assim como não assumem, pessoalmente, qualquer vinculação. Enquanto actuarem como órgãos da colectividade, os actos que praticarem são actos da pessoa colectiva (e não actos seus) e os direitos e obrigações que deles derivarem entram imediatamente na esfera jurídica desta última.
Por outro lado, sendo a pessoa colectiva parte num determinado processo, sendo seu o direito ou a obrigação que nele está a ser discutido, estando o titular do órgão a litigar sobre uma relação jurídica de que não é sujeito, só faz sentido interpretar a expressão “factos pessoais”, como factos da pessoa colectiva, para os efeitos do art. 554º do CPC. No mesmo sentido se deve ler a mesma expressão, para a aplicação do n.º 3 do art. 490º do CPC, não podendo as pessoas colectivas alegar, para afastar a cominação prevista neste preceito, que os factos alegados não são pessoais dos seus representantes.
O que se estabelece no art. 71º, n.º 2 do CPT é o valor probatório de uma conduta processual omissiva da parte que não comparece a julgamento nem se faz representar por mandatário judicial. Ao dizer “consideram-se provados”, este n.º 2, à semelhança do que sucede com os n.ºs 1 e 3 do art. 490º do CPC, com o n.º 1 do art. 484º do mesmo diploma e com o art. 57º, n.º 1 do CPT, está a atribuir àquela conduta processual omissiva um valor probatório equivalente ao de uma confissão (confissão judicial ficta). O mesmo sucede nos casos de falta de contestação e de impugnação, não podendo as pessoas colectivas invocar, nestas situações, para afastar as cominações previstas nos arts. 57º, n.º 1 do CPT, 484º, n.º 1 e 490º, n.º 3 do CPC, que os factos alegados pelo autor, não são factos pessoais dos seus actuais representantes nem foram praticados no exercício da sua representação.
Finalmente, no que respeita à suposta matéria de excepção, a recorrente não identificou quais os artigos da sua contestação onde alegou matéria integradora de defesa por excepção. E não o fez porque, efectivamente, tal articulado, salvo no que respeita à invocada incompetência material do tribunal (julgada improcedente no despacho saneador, já transitado em julgado) não contem matéria que integre defesa por excepção, mas tão somente defesa por impugnação.
O despacho recorrido não merece, assim, qualquer reparo.

2. Recurso de apelação: matéria de facto e matéria de direito; qualificação da relação contratual, no período compreendido entre 1/10/1993 e 23/10/2003.
Debrucemo-nos, agora, sobre o recurso de apelação que a R. interpôs da sentença.
Neste recurso, a R. não impugna a valoração que o tribunal atribuiu à matéria de facto provada, não questiona a subsunção desses factos ao direito, nem contesta as ilações jurídicas daí extraídas pelo tribunal, antes se limita a impugnar, nas conclusões 1ª a 13ª, o despacho proferido no início da audiência de julgamento, que lhe aplicou a cominação prevista no art. 71º, n.º 2 do CPT, invocando os fundamentos que já tinha invocado no recurso de agravo e sustentando que tal cominação não lhe é aplicável.
Todos esses fundamentos já foram apreciados e julgados improcedentes, pelo que o despacho impugnado que decidiu aplicar-lhe a referida cominação deve manter-se, nessa parte, como dissemos atrás.
A apelante alega ainda, neste recurso, que a decisão da matéria de facto, nos seus n.ºs 2, 3, 6, 7, 45 e 56 não é constituída por factos, mas sim por juízos de valor ou conceitos de direito, que não podem ser levados em consideração, tendo concluído que também por esta razão a sentença recorrida deve ser revogada. Isso sucede – diz a recorrente - com a expressão "prestação de serviços" (no n.º 2), com o vocábulo "ininterruptamente" (no n.º 3), com a expressão "trabalhou para a Ré sob a autoridade, direcção e fiscalização" (no n.º 6) com as palavras "assessor de imprensa" (no n.º 7), a expressão "em regime de isenção de horário" (no n.º 45) e com toda a matéria que consta no n.º 56.
Desde já se adianta que, nesta parte, assiste razão à apelante, em relação à matéria que consta no n.º 6, onde foi dado como provado que “O A. sempre trabalhou para a Ré sob a sua autoridade, direcção e fiscalização” e em relação à matéria descrita no n.º 56, no qual foi dado como provado que “Nos termos dos acordos de empresa da Ré, designadamente o celebrado entre a Ré e o SINDEFER e outros publicado no BTE 29/99 (cláusulas 46°, 47°, 56° e 64° ) o valor da diuturnidade deve ser incluído na retribuição de férias, no subsídio de férias e no subsídio de Natal”.
Mas já não lhe assiste razão em relação aos demais pontos impugnados, como iremos ver de seguida.
A distinção entre o que se entende por matéria de direito e por matéria de facto constitui uma das questões de maior complexidade de todo o direito processual civil e laboral.
Se em determinadas situações, conseguimos integrar de imediato uma determinada afirmação no campo da matéria de direito (v.g. má fé, abuso de direito, culpa, justa causa, imprevidência, diligência do bom pai de família) ou no campo da matéria de facto (v.g. trabalho, actividade), já, com alguma frequência, se nos suscitam sérias dúvidas quanto ao estabelecimento de uma linha de demarcação entre os dois terrenos confinantes, nos casos em que as expressões têm, simultaneamente, um sentido técnico-jurídico, de onde o legislador retira determinados efeitos, e um significado vulgar e corrente, facilmente captado pelas pessoas comuns (v.g. consentimento; pagar; despedimento verbal; trabalhar por conta, sob as ordens e instruções; foi admitido ao serviço; trabalho extraordinário, horário de trabalho, isenção de horário de trabalho, etc.).
Se em relação a determinadas expressões, é possível concluir, com segurança, que constituem matéria de facto ou matéria de direito, muitas vezes, defrontamo-nos com expressões de integração dúbia ou com expressões que ora se inserem no campo dos factos, ora nos surgem como categorias puramente jurídicas, consoante o contexto em que se integram. Estas dificuldades de delimitação são extensíveis aos juízos de valor, que tanto integram normas jurídicas, como, por vezes, se situam no plano dos factos[2].
Não é, por isso, despicienda a opção que o juiz tiver que tomar quanto à integração de determinada expressão ou afirmação no campo da matéria de facto ou na matéria de direito, já que dela pode depender o sucesso ou insucesso da pretensão deduzida pelo autor.
Numa aproximação à questão colocada, podemos já antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção[3].
Se o thema decidendum da acção, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente e localizado no significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, insusceptível de ser incluída na base instrutória, de ser objecto de instrução (arts. 508º, n.º 1, al. e), 511º, n.º 1. 513º, 522º, n.º 2, 577º, n.º 1, 623º, n.º 1 e 638º, n.º 1 do CPC) ou de integrar a decisão sobre a matéria de facto (arts. 646º, n.º 4 e 653º, n.º 2 do CPC).
Se pelo contrário, o objecto da acção não girar à volta da resposta exacta que se dê às afirmações feitas pela parte, parece-nos que as referidas expressões (pagar, despedimento verbal; trabalhar por conta, sob as ordens e instruções; foi admitido ao serviço; horário de trabalho; isenção de horário de trabalho; trabalho extraordinário; prestação de serviços, etc.) e outras de cariz semelhante, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção de meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efectua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se dos textos legais.
Estando em causa nesta acção a qualificação jurídica da relação contratual que vinculou ambas as partes, entre 1/01/1992 e 27/10/2003, ou seja, a questão de saber, se nesse período, as partes estiveram ou não vinculados por um contrato de trabalho, o juiz recorrido não podia, no n.º 6 da decisão da matéria de facto, dar como provado que “O A. sempre trabalhou para a R. sob a sua autoridade, direcção e fiscalização”, pois a questão a decidir está precisamente dependente do significado real desta expressão.
O mesmo sucede em relação à matéria do n.º 56, onde o juiz se limita a enunciar uma conclusão jurídica que resulta directamente das cláusulas 46ª, 47ª, 56ª e 64º do AE celebrado entre a R. e o SINDEFER, publicado no BTE 29/99 e que apenas deve figurar na fundamentação de direito da sentença.
A matéria descrita nos n.ºs 6 e 56º deve, assim, considerar-se não escrita e, consequentemente, ser eliminada da decisão da matéria de facto, tal como determina o art. 646º, n.º 1 do CPC.
O mesmo já não sucede:
Em relação à expressão “contrato de prestação de serviços” que consta no n.º 2, uma vez que o juiz, nesta parte, se limitou a transcrever a denominação que as partes atribuíram ao acordo que as mesmas celebraram no início da relação contratual que mantiveram entre 1/01/1992 e 27/10/2003, denominação essa que não vincula o tribunal na qualificação jurídica da relação contratual (art. 664º do CPC);
Em relação à expressão “ininterruptamente” que consta no n.º 3, uma vez que se trata de um termo vulgar, de uso corrente na linguagem comum - que significa sem interrupção, sem paragem, de forma constante – e facilmente captado pelas pessoas comuns;
Em relação à expressão “assessor de imprensa” que consta no n.º 7, não só porque não está em causa, nesta acção, a categoria profissional do recorrido, mas também porque as funções concretas por ele desempenhadas na empresa se mostram descritas, de forma pormenorizada, no n.º 17 da matéria de facto;
E em relação à expressão “isenção de horário de trabalho” que consta no n.º 45, uma vez que a restante matéria de facto contida neste número a desenvolve e concretiza, dela resultando que o A. estava obrigado a estar na empresa todos os dias, de segunda a sexta-feira, embora não tivesse uma hora de entrada e de saída, pré-estabelecida.

            Muito embora, a matéria descrita nos n.º 6 e 56 deva ser considerada não escrita, por ser constituída por matéria de direito, essa eliminação não determina, de modo algum, a revogação da sentença recorrida, uma vez que da restante matéria de facto provada resulta que o A. esteve sempre, desde 1/10/1992, integrado na estrutura organizativa da empresa e juridicamente subordinado à Ré.
            Com efeito, o A. trabalha, ininterruptamente, para a R., desde 1/01/1992 (isto é, há mais de 16 anos); desempenhou sempre e em idênticas condições as mesmas funções na empresa (as funções descritas no n.º 13 da matéria de facto provada), tanto no período compreendido entre 1/10/1992 e 27/10/2003 como posteriormente a esta data, de acordo com as ordens e orientações do respectivo Chefe de Gabinete ou do Chefe de Divisão, bem como do Conselho de Gerência e respectivo Presidente (cfr. n.ºs 9 a 39 da matéria de facto provada); essas ordens eram, por vezes, transmitidas através de despachos manuscritos em documentos de trabalho da R., conforme se refere nos exemplos mencionados nos n.ºs 22 a 39 da matéria de facto provada, dos quais resulta que a R. conformava o modo de execução da actividade do A., fazendo correcções em textos por este elaborados e determinando a incorporação das correcções na versão final desses textos, ou dando indicações concretas sobre o conteúdo dos textos a elaborar pelo A. (cfr. doc. n.º 28 anexo à p.i.); o A. esteve sempre obrigado, tanto antes como depois da celebração do contrato de trabalho (em 27/10/2003), a estar todos os dias na empresa, de 2ª a 6ª feira, embora nunca tenha tido hora de entrada e de saída do trabalho pré-estabelecida, por estar isento de horário de trabalho (cfr. n.º 45 da matéria de facto provada); sempre desempenhou a sua actividade num gabinete da R. que partilhava, por vezes, com outros trabalhadores da empresa, utilizando instrumentos de trabalho que lhe eram fornecidos por esta; sempre gozou férias, todos os anos, sendo as mesmas previamente autorizadas pelo seu chefe directo – A... e C...; auferiu sempre uma retribuição certa, paga mensalmente, fixada em função do tempo dispendido no trabalho e não em função do resultado desse trabalho, (cfr. n.ºs 40 a 42 da matéria de facto provada), retribuição essa que também lhe era paga nos seus períodos de férias.
Aliás, a apelante não impugnou a forma como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto provada atrás descrita, não questionou a subsunção dessa matéria de facto ao direito, nem pôs em causa as ilações jurídicas que o tribunal dela extraiu, designadamente, na parte em que concluiu que o A. sempre trabalhou juridicamente subordinado à Ré, tanto no período entre 1/01/1992 e 23/10/2003, como no período posterior esta data, pelo que também, por esta razão, se deve manter inalterada a sentença recorrida, nessa parte.
Improcedem, assim, as conclusões de ambos os recursos interpostos pela recorrente.

IV. DECISÃO

Em conformidade com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recursos de agravo e de apelação interpostos pela recorrente e confirmam-se o despacho e a sentença impugnados.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 2 de Abril de 2008


        
         Ferreira Marques
         Maria João Romba
         Paula Sá Fernandes
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[1] Cfr. neste sentido Maria dos Prazeres Beleza, Parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, 1988, Tomo 3, pág. 51 e segs.
[2] Acerca dos juízos de valor da lei substantiva e o apuramento dos facto na acção cfr. Antunes Varela, RLJ, Ano 122º, pág. 209 e segs. e CJ, Ano 1995, Tomo IV, pág. 5.
[3] Como refere Anselmo de Castro, “a linha divisória entre o facto e o direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é um juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, in Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Vol. III, pág. 270.