Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23592/17.0T8LSB-A.L1
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: TRANSPORTE AÉREO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONEXÃO
CONVENÇÃO DE LUGANO
CONVENÇÃO DE MONTREAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Numa acção em que é pedida indemnização ao abrigo do Regulamento (CE) nº261/2004, pelo cancelamento de um voo num contrato de transporte aéreo celebrado entre cidadãos não nacionais, residentes no Chile e uma transportadora com domicílio na Suíça, sendo o local de partida Lisboa e o local de destino S. Paulo, com escala em Zurique, é internacionalmente competente para julgar a causa o Tribunal Português onde foi intentada acção, por o aeroporto de partida ter conexão com a prestação da obrigação contratual, nos termos do artigo 5º nº1 da Convenção de Lugano II de 16/09/1988.
2. Não é aplicável ao caso a Convenção de Montreal de 28/05/1999 por a acção ser intentada ao abrigo do Regulamento (CE) nº261/2004 e não ao abrigo do artigo 19º desta convenção, nem é aplicável o Regulamento (UE) nº 1215/2012, por a ré não ter domicílio num Estado Membro da União Europeia
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO.

V… e O…, por si e em representação do seu filho menor N…, todos com nacionalidade estrangeira e residentes no Chile, intentaram contra S…, com sede na Suíça, acção declarativa com processo comum, alegando, em síntese, que adquiriram bilhetes para os voos operados pela ré, com os nºs Lx2085 e Lx92, do dia 11/06/2016, com partida de Lisboa, escala em Zurique e chegada a S. Paulo, Brasil no dia 12/06/2016, mas o voo Lx92 foi cancelado pela ré sem que os autores fossem informados com aviso prévio de duas semanas, tendo acabado por embarcar no voo Lx7092 para S. Paulo, onde chegaram com mais de 3 horas de atraso em relação à hora inicialmente prevista, pelo que, ao abrigo do artigo 5º nº1 c) e 7º nº1 c) do Reg. (CE) nº261/2004, têm direito a uma indemnização de 600,00 euros cada, num total de 1 800,00 euros, que a ré não pagou.   
Concluíram pedindo a condenação da ré a pagar uma indemnização a cada um dos autores no valor de 600,00 euros, no total de 1 800,00 euros, acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação e até integral pagamento.
A ré contestou arguindo a excepção de incompetência internacional, alegando que a causa de pedir da acção consiste no cancelamento do voo Lx92, com origem em Zurique e destino em S. Paulo, não havendo assim elementos de conexão com Portugal, pois o contrato de transporte foi celebrado com a ré, que tem sede na Suíça, sem intervenção da sua representação portuguesa, os passageiros têm nacionalidade alemã e peruana e residência no Chile e o transporte tinha partida na Suíça e chegada no Brasil, pelo que a acção deveria ter sido proposta na Suíça, local da administração principal da ré e local do aeroporto de partida, ou então no Brasil, local do aeroporto do destino e onde se verificou o alegado incumprimento da obrigação, resultando o julgamento dos factos em Portugal num grave prejuízo para o exercício do direito de defesa da ré e sendo os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer a causa. Por impugnação, alegaram não ser devida a reclamada indemnização, face às circunstâncias e legislação que invocam.
Concluiu pedindo a absolvição da instância, ou, se assim não se entender, a absolvição do pedido.  
Foi proferido despacho que determinou a notificação dos autores para se pronunciarem quanto à matéria da excepção de incompetência internacional e para esclarecerem com quem estabeleceram a relação contratual de transporte aéreo.
Os autores responderam opondo-se à excepção, por ter sido em Lisboa que se iniciou a viagem e onde ocorreram os factos geradores da indemnização. Mais esclareceram que estabeleceram a relação contratual com a S…, que é a única que opera os voos, já que nenhuma sucursal o faz.
Após os articulados, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de incompetência internacional, fixando o objecto do litígio, os factos assentes e os temas de prova.
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Inconformada, a ré interpôs recurso e alegou, formulando conclusões com as seguintes argumentos:
- Pretendendo a autora obter indemnização pelo cancelamento do voo Lx92 com partida em Zurique e chegada em S. Paulo, deve ser esta causa de pedir a determinar a competência internacional do tribunal.
- O contrato foi celebrado no estrangeiro, entre cidadãos estrangeiros e uma companhia aérea com sede no estrangeira e o voo tinha como destino país estrangeiro (Brasil).
- Por força do artigo 59º do CPC, na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses prevalecem sobre a lei portuguesa os regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.
- Para o efeito releva o Reg. (CE) 1215/2012, cuja regra geral, do artigo 4º, é a de que são competentes os tribunais do Estado Membro onde o réu tem o seu domicílio, acrescentando o artigo 63º que, no respeitante a sociedades ou outras pessoas colectivas, se considera domicílio o lugar onde tenha sede social, administração central ou estabelecimento principal, pelo que, sendo a sede social da ré recorrente em Basileia na Suíça, os tribunais deste Estado Membro têm competência para julgar o caso dos autos.  
- Nem o facto de a recorrente ter uma sucursal em Portugal tem qualquer relevância, uma vez que não teve intervenção na celebração do contrato em apreço.
- O artigo 7º do Regulamento 1215/2012 estabelece alternativa ao foro acima referido, ao prever que em matéria contratual as pessoas domiciliadas num Estado Membro podem ser demandadas no Estado Membro onde a obrigação foi ou deve ser cumprida, clarificando que no caso de prestação de serviços é o local onde os serviços foram ou devam ser prestados, sendo, no caso dos autos, em Zurique ou S. Paulo, respectivamente o local de partida e o destino do voo cancelado.
- Conclui-se que, por força dos artigos 59º CPC e 8º nº4 da CRP, o Reg. 1215/2012 não atribui competência aos tribunais portugueses, mas antes aos tribunais suíços, ou aos tribunais brasileiros.
- A mesma conclusão se retira do DL 39/2002 de 27/11, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Convenção de Montreal, a qual estabelece, no seu artigo 33º, que a acção por danos emergentes de contrato aérea internacional deve ser intentada, à escolha do autor, no Estado Parte onde se situe a sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou daquele onde tenha sido celebrado o contrato, ou no Estado Parte do local do destino.
- São assim alternativamente competentes os tribunais suíços ou os tribunais brasileiros, sendo que a apreciação dos factos por um tribunal português em vez de um tribunal brasileiro ou suíço resultaria num grave prejuízo para o exercício do direito de defesa da ré.
- Mesmo que se considere que o aeroporto de partida como o local onde deve ser cumprida a obrigação, sempre seria o aeroporto de Zurique e não o de Lisboa.
- Também não resulta do artigo 62 c) do CPC a competência dos tribunais portugueses, porque não se pode concluir que o direito dos autores apenas se possa efectivar por meio de acção proposta em Portugal, nem que constitua para os autores uma dificuldade apreciável a propositura da acção noutro país, não sendo Portugal o país mais próximo do local da sua residência.
- Verifica-se assim a excepção dilatória de incompetência internacional nos termos do artigo 278º do CPC, que determina a absolvição da instância.
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Não há contra-alegações.
A questão a decidir é a de saber se o tribunal é ou não internacionalmente competente.   
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FACTOS.
Os factos a considerar são os que constam no relatório do presente acórdão.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
Com a presente acção, os autores, com nacionalidades estrangeiras e com residência no Chile, pretendem a condenação da ré, sediada na Suíça e com quem contrataram um transporte aéreo, a pagar-lhe uma indemnização por cancelamento de um voo e consequente atraso ao local de destino, sendo o local de partida Lisboa, o local de destino S. Paulo, Brasil, com uma escala em Zurique e sendo o voo cancelado o que ligava Zurique a S. Paulo.
Os autores baseiam o seu pedido no Regulamento (CE) 261/2004 de 11/02/2004, que prevê a responsabilidade da transportadora no caso de recusa de embarque, cancelamento de voo e atraso do voo.
Havendo, na relação jurídica apresentada pelos autores, diversos elementos de conexão com diferentes ordens jurídicas, haverá que apreciar qual o tribunal internacionalmente competente para julgar a causa.
Por força dos artigos 8º da CRP e 59º do CPC, os tribunais portugueses têm competência internacional quando se verifiquem os elementos de conexão previstos nos artigos 62º e 63º do CPC, sem prejuízo dos regulamentos europeus e de outros instrumentos internacionais.
No caso, existem três instrumentos internacionais cuja aplicação poderá ser discutida nos autos.
São eles o Regulamento (UE) nº1215/2012 de 12/12/2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, a Convenção de Montreal de 28/05/1999 para a unificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional (que vigora em Portugal, tendo sido aprovada pelo DL 39/2002 de 27/11, vigora na União Europeia desde 28/06/2004 e também no Brasil, por via do decreto 59100 de 2006) e a Convenção de Lugano II de 16/09/88, relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (assinada pela Comunidade Europeia, Dinamarca, Islândia, Noruega e Suíça, estando transposta para a nossa ordem jurídica pelo decreto nº52/91 de 30/10).
A convenção de Montreal prevê, no seu artigo 19º, a responsabilidade da transportadora “pelo dano resultante de atraso no transporte aéreo de passageiros, bagagens ou mercadorias (…)” e, no artigo 33º, fixa como tribunal competente, à escolha do autor, o do “território de um dos Estados Partes, seja perante o tribunal da sede da transportadora, do estabelecimento principal desta ou do estabelecimento em que tenha sido celebrado o contrato, seja perante o tribunal do local de destino”.
Como atrás se referiu, os autores baseiam o seu pedido no Regulamento nº261/2004, no seu artigo 5º nº1 c), nos termos do qual “em caso de cancelamento de um voo os passageiros em causa têm direito a (…) receber da transportadora aérea operadora indemnização nos termos do artigo 7º (…)” e no seu artigo 7º nº1 c), o qual estatui que “em caso de remissão para o presente artigo, os passageiros devem receber uma indemnização no valor de (…) 600 euros em todos os voos não abrangidos pelas alíneas a) e b)”.
A previsão dos artigos 5º e 7º do Regulamento nº261/2004 difere do quadro jurídico previsto nos artigos 19º e 29º da Convenção de Montreal, por força dos quais as indemnizações são sempre compensatórias e não punitivas (exigindo assim a prova de danos efectivos) e onde se atende apenas aos atrasos e não a cancelamentos ou recusa de embarque como no Regulamento nº261/2004.
Sendo assim, a causa de pedir da presente acção integra as referidas disposições legais do Regulamento nº261/2004 e não a previsão do artigo 19º da Convenção de Montreal, não sendo esta convenção aplicável para a determinação da competência internacional do tribunal na presente causa (cfr. neste sentido ac. STJ de 3/10/2019, p. 262/2018, em www.dgsi.pt e ac. TJUE de 9/07/2009, processo nºC-204/08, ainda no âmbito do Regulamento (CE) nº44/2001 de 22/12/2000).      
Quanto ao Regulamento nº1215/2012, estabelece o mesmo, no seu artigo 4º nº1, uma regra geral de competência, segundo a qual “… as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”, permitindo, porém, no artigo 5º, que possam ser demandadas nos tribunais de outro Estado Membro “nos termos das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”, entre as quais se prevê, no artigo 7º nº1, sob a epígrafe de “competências especiais”, a possibilidade de serem demandadas “em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”.
Sucede que, nos presentes autos e de acordo com os critérios do artigo 63º do Regulamento nº1215/2012, o domicílio da pessoa demandada situa-se na Suíça, que não é Estado Membro da União Europeia.
Deste modo, não é igualmente aplicável aos autos o Regulamento nº1215/2012, concluindo-se ser aplicável a convenção de Lugano II (cfr neste sentido ac. RL de 16/05/2019, p. 14445/18, em www.dgsi.pt).  
Com efeito, a convenção de Lugano II – que, conforme se referiu, vigora na União Europeia, em Portugal e na Suíça – contem regras, nos seus artigos 2º nº1, 3º e 5º nº1, que são iguais aos artigos 4º nº1, 5º e 7º nº1, respectivamente, do Regulamento nº1215/2012.
Ou seja, por força do artigo 2º nº1 da convenção de Lugano II, o demandante pode optar entre demandar a transportadora no Estado Parte onde esta tem o seu domicílio (que no caso dos autos seria na Suíça), ou então, tratando-se de responsabilidade contratual e por força dos artigos 3º e 5º nº1 da mesma convenção, demandá-la no Estado Parte onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deva ser cumprida.
No contrato de transporte aéreo, discutindo-se em que local se deve considerar como o do cumprimento da obrigação, é jurisprudência do TJUE que o mesmo será o do aeroporto de partida ou o aeroporto do destino, ambos com conexão com os serviços prestados pelo contrato, o que não acontece com o aeroporto de uma escala, face à forma indivisível e unitária como tais serviços são prestados, concluindo-se, portanto, que poderá o demandante optar por qualquer destes dois territórios, de partida ou de destino da viagem (cfr. ac. TJUE de 9/07/2009, p. C-204/008, em interpretação das normas do então vigente Regulamento (CE) 44/2001, cujas normas de competência nesta matéria eram iguais às do actual regulamento (UE) nº1215/2012 e às da convenção de Lugano II).
Não sendo de atender o local de passagem do aeroporto de escala, ao contrário do que defende a ré recorrente, podiam os autores optar, como fizeram, pelo território do aeroporto de partida, em Lisboa, o qual tem conexão com o contrato celebrado nos termos do artigo 5º nº1 da convenção de Lugano II.
Improcedem, assim, as alegações de recurso, sendo o tribunal competente em razão da nacionalidade.
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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirma-se o despacho recorrido.     
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Custas pela apelante.
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2020-01-23
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate
António Santos