Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3793/16.0T8BRR.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
REGISTO DE TACÓGRAFO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECUSRSO PENAL
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: 1. Está suficientemente descrito o elemento subjetivo quando a decisão condenatória pela prática de contra-ordenação menciona que a arguida não agiu com a diligência devida nomeadamente por não ter organizado a actividade de transporte, que desenvolve, de forma a que os condutores levassem consigo as folhas do registo de tacógrafo.
2. Não pode ser sancionada por analogia a conduta a que a lei não comina expressamente sanção, sob pena de violação do princípio da legalidade.
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

Recorrente: AAA – Transportes de Mercadorias, Lda.
Recorrida – Juízo do Trabalho do Barreiro do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, qualquer confirmou a decisão condenatória da ACT.
A recorrente impugnou judicialmente a decisão administrativa de condenação pela prática de factos integradores de duas contra-ordenações previstas nos arts. 25º, nº 1, al. b), da Lei nº 27/10, de 30.8, conjugado com o art.º 15/7 do Regulamento CE n.º 3821/85, de 20.12, alterado pelo Regulamento CE n.º 561/06, de 15.3, entendendo que o veículo pesado de mercadorias com a matrícula 63-06-VR, ao serviço da arguida, no dia 08 de Abril de 2015, não dispunha os discos/diagramas referentes aos últimos 28 dias e o veículo pesado de mercadorias com a matrícula 81-19-LG, ao serviço da Arguida, no dia 29 de Outubro de 2015, não dispunha os discos/diagramas referentes aos últimos 28 dias, tendo a arguida agido com negligência.
Porém, o Tribunal a quo negou provimento ao recurso e manteve a condenação pela prática de duas contra-ordenações previstas nos arts. 25º, nº 1, al. b), da Lei nº 27/10, de 30.8, conjugado com o art.º 15/7 do Regulamento CE n.º 3821/85, de 20.12, alterado pelo Regulamento CE n.º 561/06, de 15.3., na coima única de € 3.000,00.

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Inconformada, a arguida recorreu para este Tribunal da Relação de Lisboa, formulando afinal estas conclusões:     

A) A recorrente alegou: “Em primeiro lugar importa fazer notar que da decisão ora impugnada não constam nem resultam os elementos essenciais referentes à imputação à arguida da infracção de que esta vem acusada, o que determina – como se verá – a sua invalidade e consequente inadmissibilidade.

B) Analisando a decisão condenatória – a qual apresenta o valor de acusação logo que recebida em juízo –, facilmente se constata que a descrição dos factos imputados e a respectiva forma de imputação à arguida se revela por demais insuficiente, conforme resulta da análise e esclarecimento que na presente impugnação é feita relativamente a cada um desses factos e às circunstâncias em que os mesmos ocorreram, deficientemente apreciados pelo ACT ao longo do processo.

C) Desde logo e por outro lado, porquanto a infracção contra-ordenacional, para ser punida, pressupõe a imputação do facto ao agente a título de dolo ou negligência.

D) Com efeito, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência” (cfr. art.º 8.º, n.º 1, do RGCOC), ou seja, a imputação e punição dos factos contra-ordenacionais exigem um nexo de imputação subjectiva numa destas duas modalidades.

E) Ora, os factos vertidos na decisão/acusação e atrás descritos, não levam, de per si, a integrar a conduta da arguida na previsão das contra-ordenações em causa, em termos que determinem a punibilidade da mesma, conforme resulta aliás da conduta da Arguida descrita na presente impugnação.

F) Na realidade, na decisão/acusação impugnada são alegados tão-somente – e ainda que de forma insuficiente e deficiente – factos materiais, factos objectivos e de puro resultado, sem que sejam alegados quaisquer factos concretos tendentes a demonstrar a forma de imputação – que, aliás não existe nem objectiva nem subjectivamente – dolosa ou negligente à arguida.

G) Factos esses que se encontram omitidos na decisão ora impugnada.

H) Com efeito, apesar do seu carácter meramente social, a censura ou advertência visada pelas normas com base nas quais aquela Inspecção pretende sustentar a prática das infracções em causa, supõe sempre e também uma imputação subjectiva.

I) Ora, para que pudesse ser submetida a julgamento – e neste viesse a ser condenada ou absolvida, assim se fazendo justiça – seria necessária a prova, para além dos factos referidos na decisão/acusação, que a arguida tivesse pretendido ou representado como possível a realização do facto integrador das contra-ordenações e, não obstante, tivesse actuado sem o cuidado e diligência a que está obrigada, o que, sempre se dirá, não sucedeu in casu.

J) Esta seria, pois, a situação que, em termos fácticos, teria de ser alegada e provada por forma a configurar – pelo menos – a negligência.

K) A qual foi, todavia, omitida da decisão/acusação.

L) Ao invés, a decisão ora impugnada apenas faz referência ao resultado, fazendo assentar a imputação da arguida no que ao nexo de subjectividade respeita em meros conceitos de direito, vagos e não consubstanciados em factos – que a decisão/acusação não nem descreve nem prova.

M) O direito contra-ordenacional não se basta, porém, com a mera responsabilidade objectiva – a qual, conforme infra se procurará demonstrar, é inexistente no caso em apreço – , antes assentando no primado da culpa do arguido.

N) Na decisão/acusação faltam assim elementos essenciais – o dolo ou a negligência – para a verificação da contra-ordenações imputadas à arguida.

O) Pelo que, não resulta da mesmas – do modo como estão deduzidas – a imputação à arguida de todos os elementos constitutivos do tipo legal das contra-ordenações por que está acusada, e necessários para, em sede de julgamento, vir a ser aplicada à mesma uma coima.

P) Acresce ainda que – diversamente do que acontece em sede de processo civil – em processo penal não há lugar a qualquer despacho de convite ao aperfeiçoamento da acusação.

Q) Nestes termos, e pelos fundamentos supra expostos, a acusação/decisão ora impugnada deverá ser rejeitada por V. Exa., Meritíssimo Juiz, e, em consequência, ser determinado o oportuno arquivamento dos autos.”

R) Sucede que, como já atrás se alegou, também no domínio contra-ordenacional vigora o princípio da tipicidade.

S) E, na esteira dos seus corolários “nullum crime nulla poena sine lege stricta”, “nullum crime nulla poena sine lege certa”,

T) Não entende a ora Recorrente estar a ser sancionada por algo não previsto por lei, pois não existe lei expressa e certa a prever e punir a não apresentação do formulário anexo à Decisão 2007/230/CE.

U) Não se encontrando previsto na lei a obrigatoriedade de apresentação das mencionadas folhas de registo, não é legalmente permitida a sua punição.

37) Não pode a recorrente conformar-se com a alegada interpretação extensiva na douta sentença, criadora de nova norma jurídica sancionatória para comportamento anteriormente, e actualmente, não punido por lei.

38) A sentença enferma de erro notório grosseiro na apreciação da prova, artº 410º nº 2 al. a) e c) do CPP.

Remata que “considerando que do processo constam todos os elementos de prova e que deverá ser dada como provada nova matéria de facto, deverá a decisão da 1.ª Instância ser modificada como acima explicitado, o que se requer, nos termos do art.º 431.º do Código Penal”.

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Contra-alegou o MºPº, pedindo a improcedência do recurso e concluindo:

1. A sentença recorrida encontra-se fundamentada de facto, estando descritos os factos dados como provados de forma suficiente e com recurso à factualidade já descrita na decisão administrativa;

2. A sentença deu como provado o facto que fundamenta a imputação subjectiva da infracção;

3. A sentença fundamentou, de direito, a aplicação da infracção à ora recorrente, uma vez que tendo esta conhecimento de que deveria fazer dotar os motoristas ao seu serviço dos registos de condução dos 28 dias anteriores ou apresentar justificação para a sua ausência, o não fez.

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O DM do MºPº colocado neste Tribunal da Relação de Lisboa defendeu a improcedência do recurso.

Não houve resposta ao parecer.

Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 60º do Regime Processual das Contra-Ordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e 412.º do Código de Processo Penal. Neste caso, cumpre apurar da leitura do art.º 25º/1-b) da Lei 27/2010 se extrai a obrigatoriedade dos motoristas se fazerem acompanhar do formulário, ou se, pelo contrário, nem mesmo por interpretação extensiva, que diz a recorrente é manifesta e legalmente inadmissível, há sanção, e se os factos descritos na acusação são suficientes para suportar a condenação da R..

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A – Factos provados:

1. A arguida tem o NIF … e dedica-se à actividade do transporte rodoviário de mercadorias.

2. No dia 08 de Abril de 2015 pelas 09.00 horas, … conduzia o veículo tipo pesado de mercadorias, com a matrícula …, nas portagens da Ponte Vasco da Gama, sentido S-N, no Montijo.

3. O condutor … conduzia o veículo identificado ao serviço da arguida.

4. Na data e hora identificada supra, o condutor do veículo foi sujeito a uma operação de fiscalização pela Guarda Nacional Republicana.

5. No momento da fiscalização o condutor não se fazia acompanhar das folhas de registo dos 28 dias anteriores ao dia da fiscalização.

6. O condutor trazia consigo, apenas, o diagrama do dia da fiscalização.

7. No dia 29 de Outubro de 2015, pelas 11.00 horas, …conduzia o veículo tipo de pesados de mercadorias, com a matrícula …, na Rotunda de acesso à A2 do IC 21, no Barreiro.

8. A condutora conduzia o referido veículo identificado ao serviço da arguida.

9. Na data e hora identificada supra a condutora do veículo foi sujeita a uma operação de fiscalização da GNR.

10. No momento da fiscalização a condutora não se fazia acompanhar das folhas dos dias 07, 08, 20, 21, 23, 26 e 27 de outubro de 2015.

11. A arguida não organizou a actividade de transporte, que desenvolve, de forma a que os condutores levassem consigo as folhas do registo de tacógrafo, não agindo com a diligência devida.

12. A arguida foi condenada em contra-ordenação muito grave em 30 de Novembro de 2015, no âmbito do processo 221400181, com uma coima de €3.060,00, pela violação do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 25.º da Lei n.º 27/2010 de 30 de Agosto, praticada em 30 de Janeiro de 2014.

13. A arguida não agiu com a diligência a que está obrigada.

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14. A arguida não tinha conhecimento que os referidos trabalhadores circulavam com as viaturas sem as folhas de registo do tacógrafo relativas à actividade dos últimos 28 dias, sendo certo que tinham dado instruções aos referidos motoristas para o fazerem.

14. Os motoristas tinham conhecimento que tinham que circular trazendo consigo as folhas de registo do tacógrafo relativas à actividade dos últimos 28 dias.

15. A arguida deu formação aos trabalhadores, como dá a todos os seus trabalhadores.

16. Na referida formação é expressamente ministrado que os trabalhadores têm de ser portadores dos 28 dias anteriores.

17. Para além disso, é-lhes dada uma ordem concreta no sentido de terem que ser portadores dos referidos 28 discos.

18. A formação é ministrada pela Dra. … que se encontra habilitada para o efeito.

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B – De Facto

A recorrente afirma que recorre da matéria de facto ao terminar as conclusões.

Contudo, não o faz e nem se vislumbra fundamento legal para tal, atento o disposto no art.º 51, n.º 1, da Lei 107/1009.

Cingir-nos-emos, pois, às questões de Direito.

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C – De Direito

ii Da falta do elemento subjectivo

Dispõe o art.º 15 da Lei n.º 107/2009, de 14.09, regime processual das contraordenações laborais e da segurança social (RPCLS), sob a epígrafe Elementos do auto de notícia, da participação e do auto de infracção, que

1 – O auto de notícia, a participação e o auto de infracção referidos nos artigos anteriores mencionam especificadamente os factos que constituem a contra-ordenação, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foram cometidos e o que puder ser averiguado acerca da identificação e residência do arguido, o nome e categoria do autuante ou participante e, ainda, relativamente à participação, a identificação e a residência das testemunhas.

2 – Quando o responsável pela contra-ordenação seja uma pessoa colectiva ou equiparada, indica-se, sempre que possível, a sede da pessoa colectiva e a identificação e a residência dos respectivos gerentes, administradores ou directores. 3 – No caso de subcontrato, indica-se, sempre que possível, a identificação e a residência do subcontratante e do contratante principal”.

Estipula por seu turno o art.º 25, concernente à “Decisão condenatória” administrativa que:

1 – A decisão que aplica a coima e ou as sanções acessórias contém:

a) A identificação dos sujeitos responsáveis pela infracção;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

2 – Da decisão consta também a informação de que:

ii) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos dos artigos 32.º a 35.º; b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso os sujeitos responsáveis pela infracção, o Ministério Público e o assistente, quando exista, não se oponham, mediante simples despacho.

3 – A decisão contém ainda a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão.

4 – Não tendo o arguido exercido o direito de defesa nos termos do n.º 2 do artigo 17.º e do n.º 1 do artigo 18.º, a descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão é feita por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infracção.

5 – A fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaborados no âmbito do respectivo processo de contra-ordenação.

Conjugando o art.º 15 com o n.º 4 do art.º 25 resulta claramente que, não tendo o arguido exercido o direito de defesa antes da prolação da decisão administrativa, esta é feita, no capitulo atinente à descrição dos factos imputados, das provas, e das circunstâncias relevantes para a decisão, por simples remissão para o auto de notícia, para a participação ou para o auto de infracção. Ora, como a lei apenas exige que o auto contenha especificadamente

- os factos que constituem a contra-ordenação,

- o dia, a hora,

- o local

- as circunstâncias em que foram cometidos;

é óbvio que a decisão administrativa, não se defendendo antes o arguido, não tem de conter a descrição do elemento subjetivo, e até, pior do que isso, não a pode ter se o auto a não contiver, visto ser a mesma decisão administrativa prolatada, nesta parte, por remissão. Repare-se que a lei não diz que o decisor administrativo poderá decidir remissivamente, mas sim que o fará, o que significa que não é uma mera faculdade mas um comando a que caberá dar aplicação.

O que se compreende atenta a natureza dos interesses em jogo e a necessidade de simplificação na tramitação processual do direito de mera ordenação social, cujo elemento subjectivo, sob pena de disfuncionalidade, não pode ter um peso que se pareça com o direito processual penal.

No caso, a arguida só se pronunciou na fase administrativa quanto a um dos casos.

De todo o modo, mesmo que se pretenda que a defesa do arguido impõe a descrição do elemento subjetivo, desde que o arguido se possa defender cabalmente, a falta de descrição apertis verbis do tipo  subjectivo não acarreta necessariamente a absolvição da arguida. Tanto assim é que, nos termos do n.º 4 do art.º 39 “O juiz fundamenta a sua decisão, tanto no que respeita aos factos como no que respeita ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção, podendo basear-se em mera declaração de concordância com a decisão condenatória da autoridade administrativa” (sublinhado nosso; veja-se a diferença do n.º 5 em que o juiz, em caso de absolvição, tem de indicar porque não considera provados os factos ou porque não constituem uma contra-ordenação). Se pode remeter para a decisão da autoridade administrativa, que por sua vez pode remeter para o auto e este não tem de conter a descrição do tipo subjectivo, é porque tal descrição não é elemento essencial.

No caso depreende-se perfeitamente que a arguida foi sancionada a título de negligencia, já que da matéria de facto assente consta que: 11. A arguida não organizou a actividade de transporte, que desenvolve, de forma a que os condutores levassem consigo as folhas do registo de tacógrafo, não agindo com a diligência devida; 13. A arguida não agiu com a diligência a que está obrigada.

Assim, a sentença está suficientemente fundamentada no que concerne ao elemento subjectivo do tipo, improcedendo esta questão.

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ii) Do sancionamento da conduta dos autos

Diz a sentença recorrida que “o veículo melhor descrito nos autos estaria isento das obrigações mencionadas nos termos do art.º 2.º al. g) da Portaria n.º 222/2008 de 5 de Março. Mas para tanto, haveria que exibir o formulário constante do anexo à Decisão citada supra, por forma a que o agente autuante pudesse constatar, e isto de acordo com os critérios definidos na lei, sobre a regularidade ou irregularidade da não exibição dos discos de tacógrafo por parte do condutor”. Invoca a Decisão da Comissão de 12 de abril de 2007, referindo que “é igualmente indiferente à lei que o veículo ou o motorista não careça de os ter em sua posse por integrar uma das situações excluídas por lei, pois, para essas situações, prevê a Decisão da Comissão de 12 de Abril de 2007 a existência de um formulário relativo às disposições em matéria social no domínio das actividades de transporte rodoviário e a qual prevê, no seu considerando (1) que, “Nos termos da Directiva 2006/22/CE, a Comissão elaborará um formulário electrónico, que possa ser imprimido, destinado a ser utilizado quando o condutor tiver estado em situação de baixa por doença ou de gozo de férias anuais, ou quando tiver conduzido outro veículo, isento da aplicação do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.º 3821/85 e (CE) n.º 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho”.

Prossegue que “não é despiciendo reiterar o teor da norma contra-ordenacional aqui em questão, a saber, o art.º 25.º, n.º 1, al b), da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, e a qual prevê que constitui contra-ordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, (i) das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efectuados, (ii) que o condutor esteja obrigado a apresentar. A pergunta que se coloca é: o condutor do veículo inspeccionado (ii) estava obrigado a apresentar (i) as folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efectuados? E a resposta só pode ser negativa pois provou-se que o condutor conduzia um veículo isento de tal obrigação.

A segunda questão é: o condutor do veículo inspeccionado estava obrigado a apresentar o formulário constante do anexo a que se refere a Decisão 2007/230/CE ao agente autuante quando solicitado? A resposta só pode ser positiva, pois só assim é que o agente autuante tem a possibilidade de apurar, de acordo com os critérios estabelecidos na lei, sobre qual a real situação do veículo e do seu condutor. Porém, a lei é de todo omissa (pelo menos em sede de aparência) quanto às consequências da falta de apresentação do anexo a que se refere a Decisão 2007/230/CE. Não prevê qualquer sanção ou responsabilidade contra-ordenacional. Ora, prevê o art.º 2.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC) que só será punido como contra-ordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática.

A terceira questão fundamental à boa decisão da causa é: O legislador ao não punir de forma expressa a omissão de apresentação do formulário anexo à Decisão 200/230/CE perante os agentes fiscalizadores criou uma lacuna legal a qual não pode de todo ser integrada sob pena de colisão com o já exposto art.º 2.º do RGCOC? A resposta só pode ser negativa”.

Esta é, pois, a questão decisiva: a falta de sanção expressa é, de alguma maneira, ultrapassável?

Defende a douta decisão que sim:

“Cabe chamar à colação o art.º 9 do Código Civil (CC), que genericamente regula a matéria de interpretação da lei, estabelecendo, como principal linha de rumo, que tal interpretação deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Interpretar uma lei do que fixar o seu sentido e o alcance com que ela deve valer, ou seja determinar o seu sentido e alcance decisivo (cfr. Parecer do CC da PGR n° 92/81 de 8/1/1981) ou, como refere Manuel de Andrade, o escopo final a que converge todo o processo interpretativo é de pôr a claro o verdadeiro sentido e alcance da lei. A correcta interpretação da lei, neste caso concreto, mediante uma interpretação extensiva, permite-nos concluir que o bem jurídico tutelado pela norma contra-ordenacional é, como já foi dito, o regular exercício da acção inspectiva por parte dos agentes autuantes, a qual fica prejudicada não só quando os condutores dos veículos inspeccionados não disponibilizam os registos obrigatórios tal como definidos por lei, como também quando estes não lhes facultam o formulário anexo à Decisão 2007/230/CE. Simas Santos e Leal Henriques, in Código Penal Anotado, 2a edição, pag. 93 ao dizerem que "O limite máximo da interpretação da lei penal é o "sentido literal possível" dos termos linguísticos utilizados na redacção do texto legal ... Toda a interpretação que exceda este sentido literal possível... deixa de ser interpretação para se converter em criação do direito por via judicial ou doutrinal”. E, certo é que o exposto no art.º 25.º n.º 1 al b) da Lei n.º 27/2010 de 30 de Agosto só faz sentido se abranger também a obrigação de apresentação do formulário constante do anexo mencionado supra pois, caso contrário, bastava a qualquer motorista afirmar que o veículo em causa estava isento, não cumprindo o dever de apresentação de um documento definido pela lei como o próprio para provar o regime de excepcionalidade a que aqui a Arguida procura alcançar. Seria uma norma vazia de conteúdo. É essa a intenção do legislador, assim como a finalidade deste diploma. Posto isto, teremos de salientar que refere o art.º 551.º n.º 1 do Código de Trabalho que o empregador é responsável pelas contra-ordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respectivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos. Ou seja, o legislador previu a possibilidade de uma contra-ordenação praticada por um trabalhador ser imputada à entidade patronal, como é o nosso caso concreto. E mais, da decisão condenatória resultam todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito contra-ordenacional em questão, sendo certo que o facto de a Arguida dar a respectiva formação aos seus trabalhadores na matéria aqui em estudo não exclui a sua responsabilidade no dever de exibir os registos de tacógrafos sempre que estes sejam solicitados por uma autoridade”.

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Não estamos seguros, porém, de que seja assim.

Decidiu recentemente esta Relação, num caso semelhante (Procº 2010/16.7T8BRR, relatora Manuela Fialho, sendo adjunto o ora relator) que:

“Assumiu-se na sentença que, por força do art.º 2º/g) da Portaria 222/2008 de 5/03, o veículo descrito nos autos estava isento das obrigações ali mencionadas. Ora, a contraordenação imputada à arguida foi a prevista no art.º 25º/1-b) da Lei 27/2010, de 30/08, lei esta que estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Directiva n.º 2006/22/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, alterada pelas Directivas n.º 2009/4/CE, da Comissão, de 23 de Janeiro, e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de Janeiro. De acordo com a norma tipificadora, constitui contraordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, (b) de cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efetuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar. Vigora em matéria contraordenacional o princípio da legalidade de acordo com o qual só será punido como contraordenação o facto descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática (art.º 2º do DL 433/82 de 27/10, aplicável ex vi art.º 549º do CT). Por outro lado, constitui contraordenação laboral o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito de relação laboral e que seja punível com coima (Artº 548º do CT). Ora, evidenciando a sentença que o veículo reportado nos autos estava isento das obrigações cujo incumprimento é pressuposto do facto típico, não vemos como, sem mácula para o indicado princípio da legalidade, sancionar a arguida pela contraordenação que lhe foi imputada. Refere a sentença que uma Decisão da Comissão de 12/04/2007 previu a obrigação de um formulário relativo às disposições em matéria social no domínio das atividades de transporte rodoviário, a qual no seu considerando (1) consigna que, “Nos termos da Directiva 2006/22/CE, a Comissão elaborará um formulário eletrónico, que possa ser imprimido, destinado a ser utilizado quando o condutor tiver estado em situação de baixa por doença ou de gozo de férias anuais, ou quando tiver conduzido outro veículo, isento da aplicação do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.º 3821/85 e (CE) n.º 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho”. E conclui que o condutor estava obrigado a apresentar o formulário a que se reporta tal Decisão por ser essa a única forma de o agente autuante poder apurar qual a real situação do veículo e do seu condutor.

Discordamos de uma tal conclusão. Efetivamente a referida Decisão estabeleceu, tendo como destinatários os Estados Membros, um formulário a preencher pelo empregador nos casos de condução de veículo não abrangido pelo Regulamento (CE) nº 561/2006. Tal instrumento é obrigatório para os Estados Membros conforme emerge de quanto se dispõe no art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Contudo, da existência do formulário a preencher para estes específicos casos não decorre diretamente a instituição de uma qualquer contraordenação, situação que carece de lei instituidora. É, aliás, a própria sentença que assume que a lei é omissa quanto às consequências de não apresentação do anexo a que se refere a Decisão, visto não prever qualquer sanção ou responsabilidade contraordenacional. Todavia, vem a concluir que não estando punida a omissão em causa, há uma lacuna que tem que ser integrada por via interpretativa. Cumpre antes de mais salientar que a interpretação extensiva não serve a integração de lacunas. Esta é regulada pela analogia. E, em matéria de qualificação criminal ou contraordenacional não é permitido o recurso à analogia (art.º 1º/3 do CP), situação que constituiria violação expressa do já mencionado princípio da legalidade. Na verdade, em matéria de direito sancionatório público aplicam-se, no essencial, as garantias vigentes no direito penal, especialmente aquelas que se prendem com a segurança, certeza, confiança e previsibilidade, estando fora de causa a interpretação analógica e, bem assim, a extensiva sempre que da mesma resultem questionadas aquelas garantias. Assim, se do art.º 25º/1-b) da Lei 27/2010 – norma tipificadora – não consta a menção à obrigação de apresentação do formulário referido na citada Decisão, não pode o intérprete decidir pela respetiva inclusão no tipo legal ou partir do pressuposto que é intenção do legislador a respetiva inclusão.

(…) Não estando a conduta tipificada pelo mencionado art.º 25º/1-b) – que, repete-se, traduz a contraordenação imputada ab initio -, não há contraordenação, devendo, pois, a arguida ser absolvida”.

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Afigura-se-nos ser este o caso dos autos. Está em causa o sancionamento da falta de apresentação do formulário, já que quanto às folhas o veículo estava isento, como a sentença recorrida refere. Porém, reconhecida a existência da lacuna não pode a mesma ser preenchida por via de interpretação extensiva – ou não seria lacuna -, e nem por analogia, atento o princípio da legalidade.

O que acarreta a procedência do recurso.

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III – DECISÃO

Pelo exposto o Tribunal julga procedente o recurso e revoga a decisão recorrida, absolvendo a recorrente dos ilícitos pelos quais foi condenada nos autos.

Não são devidas custas.

Lisboa, 28 de junho de 2017     

Sérgio Almeida

Celina Nóbrega