Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4628/13.0TTLSB.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
AUDIÊNCIA DE PARTES
AUSENCIA DO MINISTERIO PUBLICO
TRANSACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. Numa ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, constituído mandatário pelo prestador da atividade, o MºPº não tem de estar presente na audiência de partes.

II. O interesse que permeia a Lei n.º 63/2013, de 27.8, é o do trabalhador no reconhecimento da laboralidade do seu contrato, e não o da comunidade na perseguição de todas as situações em que possa haver indícios de falsos recibos verdes.

 III. Na tentativa de conciliação o prestador da atividade e o credor podem pôr fim, por acordo, à ação, mormente estando aquele, que também é advogado, devidamente patrocinado, não obstante o MºPº, que intentou a ação, não ter estar presente.

       (Elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Autor (adiante, por comodidade, designado abreviadamente por A.): AA.

Ré (adiante designada por R.): BB, SA.

O MºPº intentou a presente ação na sequência de visita inspetiva da ACT, entendendo esta autoridade existir um verdadeiro contrato de trabalho – e não de prestação de serviços – entre o advogado Dr. AA e a R., nomeadamente pela pertença a esta dos meios e instrumentos de trabalho, a observação de um horário diário para a prestação da atividade e o pagamento de uma retribuição mensal certa, tendo o prestador da atividade a categoria de técnico jurídico e recebendo instruções da Drª CC. Pediu a declaração de nulidade do contrato de prestação de serviços formalmente celebrado pelas partes e o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado.

A R. contestou, esgrimindo que foi o A. quem recusou celebrar um contrato de trabalho subordinado e propôs um convénio de prestação de serviços, que as partes quiseram celebrar, como inequivocamente resulta da clausula 1ª, n.º 5, e celebraram, sendo que o A. nunca reclamou junto da R. para ser considerado subordinado, pelo que a denuncia na ACT é abusiva; impugnou os factos alegados pelo A., nomeadamente a existência de um local determinado para a prestação da atividade, de um horário fixo, dever de assiduidade, e que lhe fossem dadas quaisquer ordens ou instruções; e que existe abuso de direito da parte do A., pelo que, a não ser absolvida quanto à existência do contrato de trabalho, a sua existência não relevará para a invocação de despedimento ilícito.

O A. apresentou articulado próprio, subscrito por advogados constituídos, em que defendeu que as partes aceitaram a existência de uma verdadeira relação de trabalho subordinada, duradoura, não obstante a formalização através de um designado “contrato de prestação de serviços” (isto porque a R., indevidamente, queria convencionar um contrato a termo certo, aliás sem fundamento legal, que o A. rejeitou); e alegou factos suscetiveis de indiciar a laboralidade do contrato.

Saneados os autos foi designado dia para audiência de discussão e julgamento o dia 02-06-2014 pelas 9.30 horas, teve a mesma lugar estando presentes o A. e a R e os respetivos mandatários, mas não o DM do MºPº.

Tentada a conciliação, A. e R.  transigiram nos seguintes termos:

“1º - O autor desiste do pedido e a ré aceita pagar ao autor uma compensação pela cessação do contrato de prestação de serviços no valor de 40.000,00 € (quarenta mil euros).

2º - Tal quantia será paga no prazo de cinco dias através de transferência bancária para o NIB do autor de que a ré já tem conhecimento e contra a entrega da respectiva factura/recibo.

3º - As custas serão suportadas em partes iguais, prescindindo das custas de parte”.

O Mmo Juiz lavrou então o seguinte despacho:

Verifiquei a capacidade das partes e a legalidade do acordo nos termos do disposto no artº 52º, nº 2 do C.P.T. Custas nos termos acordados.

Dê-se conhecimento ao Ministério Público da presente transacção.

Fixo o valor da causa em 40.000,00 € (quarenta mil euros), nos termos do artigo 186º-Q nº 2 do C.P.T.

Registe e notifique.

*

O MºPº insurgiu-se contra esta decisão e recorreu, concluindo:

(…)

*

Contra-alegou a R., pedindo a improcedência do pedido, afirmando, embora sem formular conclusões, que 

(…)


*

Cumpre decidir.

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FUNDAMENTAÇÃO

A questão suscitada, considerando que o objecto dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 684/3, 660/2 e 713, todos do Código de Processo Civil, consiste em saber se pode haver transação na novel ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

*

Factos provados: os referidos na fundamentação.

*

*

Tendo na sua origem movimentos de cidadãos, a Lei n.º 63/2003, de 27.8, que instituiu o procedimento em causa, propôs-se combater a “utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado”.

O interesse subjacente foi, pois, pese embora o laconismo da Lei, desprovida de declarações preambulares, o dos trabalhadores.

Aditou esta lei ao diploma que rege o regime processual as contra-ordenações laborais e da segurança social, um art.º, com o n.º 15.º -A, nestes termos:

Procedimento a adotar em caso de utilização indevida do contrato de prestação de serviços

1 — Caso o inspetor do trabalho verifique a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, nos termos descritos no artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.

2 — O procedimento é imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral.

3 — Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

4 — A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.»

E ao Código de Processo do Trabalho aditou um capítulo (VIII) ao título VI do livro I (art.º 5º), com os art.º 186-K a 186-R., destarte:

«Artigo 186.º -K

Início do processo

1 — Após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º -A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para intentar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.

2 — Caso o Ministério Público tenha conhecimento, por qualquer meio, da existência de uma situação análoga à referida no n.º 3 do artigo 2.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, comunica-a à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), no prazo de 20 dias, para instauração do procedimento previsto no artigo 15.º -A daquela lei.

Artigo 186.º -L

Petição inicial e contestação

1 — Na petição inicial, o Ministério Público expõe sucintamente a pretensão e os respetivos fundamentos, devendo juntar todos os elementos de prova recolhidos até ao momento.

2 — O empregador é citado para contestar no prazo de 10 dias.

3 — A petição inicial e a contestação não carecem de forma articulada, devendo ser apresentados em duplicado, nos termos do n.º 1 do artigo 148.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

4 — O duplicado da petição inicial e da contestação são remetidos ao trabalhador simultaneamente com a notificação da data da audiência de julgamento, com a expressa advertência de que pode, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentar articulado próprio e constituir mandatário.

Artigo 186.º -M

Falta de contestação

Se o empregador não contestar, o juiz profere, no prazo de 10 dias, decisão condenatória, a não ser que ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias ou que o pedido seja manifestamente improcedente.

Artigo 186.º -N.º

Termos posteriores aos articulados

1 — Se a ação tiver de prosseguir, pode o juiz julgar logo procedente alguma exceção dilatória ou nulidade que lhe cumpra conhecer ou decidir do mérito da causa.

2 — A audiência de julgamento realiza -se dentro de 30 dias, não sendo aplicável o disposto nos n.os 1 a 3 do artigo 151.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

3 — As provas são oferecidas na audiência, podendo cada parte apresentar até três testemunhas.

Artigo 186.º -O

Audiência de partes e julgamento

1 — Se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los.

2 — Frustrando-se a conciliação, inicia-se imediatamente o julgamento, produzindo-se as provas que ao caso couberem.

3 — Não é motivo de adiamento a falta, ainda que justificada, de qualquer das partes ou dos seus mandatários.

4 — Quando as partes não tenham constituído mandatário judicial ou este não comparecer, a inquirição das testemunhas é efetuada pelo juiz.

5 — Se ao juiz parecer indispensável, para boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência, suspende a audiência na altura que reputar mais conveniente e marca logo dia para a sua continuação, devendo o julgamento concluir -se dentro de 30 dias.

6 — Finda a produção de prova, pode cada um dos mandatários fazer uma breve alegação oral.

7 — A sentença, sucintamente fundamentada, é logo ditada para a ata.

8 — A sentença que reconheça a existência de um contrato de trabalho fixa a data do início da relação laboral.

9 — A decisão proferida pelo tribunal é comunicada à ACT e ao Instituto da Segurança Social, I. P.

Artigo 186.º -P

Recurso

Artigo 186.º -Que

Valor da causa e responsabilidade pelo pagamento das custas

...

Artigo 186.º -R.

Prazos

….

A questão em apreço merece ser ponderada do ponto de vista formal, tendo em atenção a sua letra, e materialmente, sopesando os seus fins e os interesses envolvidos.

Formalmente, dispõe o n.º 1 do art.º 186-O que “se o empregador e o trabalhador estiverem presentes ou representados, o juiz realiza a audiência de partes, procurando conciliá-los”.

Isto significa, como o recorrente reconhece, que o MºPº não tem de estar presente.

Ora, como na interpretação da lei se há-de presumir “que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (art.º 9º, n.º 3, do Código Civil), não pode acompanhar-se – salvo se acompanhada de uma sólida argumentação material – a afirmação do recorrente de que ao prever apenas a participação do trabalhador e do empregador na audiência de partes a lei incorreu numa omissão.

Mais. Do texto da lei retiram-se dois corolários: (1) o de que partes são o empregador e o prestador da atividade (pois são eles que são convocados para a audiência de partes, que é aquela em que se visa conciliar autor e réu, cfr. art.º 54/2, 55, 51, 52 e 53, todos do CPT), e não, portanto, o MºPº, ou a autoridade administrativa; e (2) que nessa audiência as partes podem definir os termos do acordo, como prevê em termos gerais o art.º 53/1, não se tratando de uma pura adesão [é certo que (i) há casos em que a liberdade das partes está limitada, como no caso do processo especial de acidentes de trabalho, o que porém resulta dos termos do mesmo e dos interesses específicos em causa, sendo portanto uma exceção e não a regra; e que (ii) o juiz mesmo na audiência de partes do processo comum não desempenha um papel passivo, devendo assegurar-se da equidade do acordo]. Mas a regra é que se há tentativa de conciliação as partes podem contribuir para o resultado final, não se cingindo a uma mera aceitação acrítica de uma proposta (note-se, aliás, que nem teria muito sentido convocar as partes para uma audiência, neste processo, se o seu fim só pudesse ser a adesão do credor da atividade à tese da existência de trabalho; pelo menos não teria utilidade chamar o trabalhador, que seria espetador passivo).

Vejamos agora os aspetos materiais.

A ocasio que esteve subjacente à lei, como vimos, foi a iniciativa de cidadãos (mesmo depois da sua entrada em vigor a imprensa noticiou que movimentos, vg os “Precários Inflexíveis”, pediram audiência à ACT no intuito de se agilizar a aplicação da lei).

Isto mostra, nada da lei apontando noutro sentido, que o interesse que se visa proteger é o de quem efetivamente presta trabalho subordinado, e não qualquer interesse do aparelho do Estado (vg na cobrança de contribuições para a segurança social ou de impostos).

Também aqui não se acompanha o recorrente quando afirma, sem precisar os termos, que defende a legalidade e a ordem pública: é certo que há um interesse da comunidade em reprimir os falsos recibos verdes, como deverá sempre existir interesse comum sempre a Assembleia da Republica aprova uma lei, geral e abstrata. Mas o que importa saber é se tal interesse é de ordem pública, isto é, se integra os superiores interesses da comunidade (como referia o Prof. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., 34), de tal forma que constitui um limite geral ao princípio da autonomia privada. Um exemplo talvez ajude a clarificar a distinção: é certamente do interesse público, dos cidadãos, a punição dos criminosos (poderíamos evocar a defesa de Kant, a partir do imperativo ético, da execução do ultimo criminoso mesmo quando se dissolvesse uma sociedade); mas tal não é de ordem pública, quer dizer não faz parte dos princípios fundamentais, e por isso o Estado não atua sem a iniciativa dos cidadãos em todos os casos de crimes não públicos.

Pois bem: não resulta de lado algum da lei que a averiguação da natureza do contrato de prestação de atividade seja um interesse fundamental da comunidade, que se imponha qualquer que seja o caso, e nem resulta de qualquer outro lado do sistema jurídico. O que se imporia, e de forma evidente, a ter tal relevância.

Embora a lei não seja – sem prejuízo do disposto no art.º 9/3 do Código Civil, supra referido – especialmente clara, parece dever concluir-se que o MºPº não está sujeito a propor a ação quando tal lhe é participado pelo inspetor da Autoridade das Condições de Trabalho se esse magistrado entender que inexiste qualquer contrato de trabalho, não obstante o disposto no art.º 186-K do CPT, sob pena de perda da autonomia e objetividade que lhe assistem.

Qual a razão de ser, então, da sua intervenção? Cabe-lhe garantir a efetividade do direito, a sua concretização, na medida em que não se pode exigir a um trabalhador precário que defenda os seus direitos, sujeito à espada de Damocles da cessação dos seus rendimentos (aliás, a lei nem o exige, e bem, a trabalhadores com contrato de trabalho, e de aí o prazo de prescrição de um ano a contar da cessação do contrato, previsto no art.º 337/1 do Código do Trabalho, sabido como é que a subordinação e o temor da perda da fonte de rendimentos podem ser inibitórios).

A partir do momento em que o trabalhador se mostra devidamente patrocinado nada impede que decida os seus interesses, cabendo ao MºPº uma intervenção de cariz acessório.

No caso, o prestador da atividade é um advogado experiente, devidamente patrocinado, cujo contrato com a R. cessou. Está, pois, perfeitamente habilitado a defender-se capazmente e a gerir os seus interesses da forma como entender.

Não se vislumbra qualquer interesse relevante para a Lei n.º 63/2013, na prossecução da ação, ainda por cima estando a relação entre as partes finda.

Improcede, pois, o recurso.

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DECISÃO

Pelo exposto, o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a decisão recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 24 de setembro de 2014

Sérgio Almeida

Ferreira Marques

Maria João Romba

Decisão Texto Integral: