Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
744/11.1TBFUN-D.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PROVA
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PRAZO DE APRESENTAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE DOCUMENTO
ARTIGO 423º
Nº 3
DO CPC
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. O art.º 423º do CPC regula tão só e apenas o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório;
II. Ele não invalida que a junção dos mesmos documentos possa ser ordenada pelo juiz ao abrigo dos poderes inquisitoriais previsto no art.º 411º do CPC;
III. É, aliás, essa possibilidade que afasta eventuais objecções de inconstitucionalidade, por violação da garantia do processo equitativo (fair trial), da norma do nº 3 do art.º 423º do CPC;
IV. As circunstâncias que tornam admissível a apresentação de documentos depois dos 20 dias que antecedem a audiência final têm de ser alegadas e provadas pela parte que pretende a junção do documento;
V. A impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência;
VI. A necessidade de apresentação deve surgir de uma circunstância posterior, ou seja, de uma circunstância que ocorra depois do vigésimo dia anterior à audiência final;
VII. O grau dessa necessidade não tem de ser significativo, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova;
VIII. A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa, e consistirá, na generalidade dos casos, na revelação de factos instrumentais, complementares ou concretizadores;
IX. É passível de taxa sancionatória excepcional a conduta do recorrente que imputa à mesma decisão impugnada de forma manifestamente infundada plúrimos vícios – nulidade, falta de fundamentação, inconstitucionalidade – dando azo a um desnecessário acréscimo de complexidade do recurso com o consequente desperdício dos meios alocados ao tribunal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
NO RECURSO DE APELAÇÃO NESTES AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA ENTRE MG… CONTRA VP… e mulher CN…

I – Relatório

A Autora intentou, em 20FEV2011, acção declarativa pedindo se decretasse a resolução do contrato de arrendamento do U-…, …, Funchal, que havia celebrado com os Réus em 14JUN2010, cedendo-lhes aquela fracção para actividade de restauração, pelo prazo de cinco anos com início em 1AGO2010, pela renda mensal de 800 €, porquanto os Réus deixaram da pagar as rendas desde SET2010, bem como a condenação dos Réus a pagar-lhe as rendas vencidas e indemnização de igual montante pela indevida utilização do locado até à sua entrega.
Os Réus contestaram e deduziram reconvenção alegando que, com o consentimento da Autora, realizaram, de MAI a JUL2010, todas as obras de finalização do tosco do espaço locado (betumagem, pavimentos, cerâmica, pinturas), no valor de 130.159,11 €, tendo ficado acordado que esse valor seria compensado com o valor das rendas e condomínio; a Ré não instalou, nem autorizou que se processe à instalação de um sistema de extracção de gases, impedindo os Réus de no locado prepararem e servirem refeições, causando-lhes um prejuízo de 850 € diários; por via de estarem impossibilitados de servir refeições não conseguem cumprir os objectivos do contrato com o fornecedor de café, pelo que terão de devolver o prémio de 11.500 € que deste receberam; veem-se forçados a confeccionar as refeições noutro local, com custos de confecção e transporte acrescidos; e tiveram danos morais; além de que a Autora litiga de má-fé. Pedem, assim, a improcedência da acção e a condenação da Autora a pagar-lhes: o valor das obras realizadas no locado; indemnização de 850 € diários por cada dia de laboração sem sistema de extracção de gases desde 1AGO2010 até à colocação de tal equipamento, e correspondentes juros; indemnização por danos morais nunca inferior a 2.000 €; indemnização, a liquidar, que cubra os custos acrescidos de confecção e transporte de refeições; indemnização, a liquidar mas nunca inferior a 10.000 €, por litigância de má-fé. E, ainda, a imposição de sanção pecuniária compulsória.
Durante a audiência de julgamento, realizada em 11OUT2017, a Autora prestou depoimento e declarações de parte durante o qual afirmou: «que, tendo sido informada pelos Réus de que era necessário instalar um sistema de extracção de gases no restaurante, sugeriu que as máquinas fossem instaladas na fracção ao lado, que lhe pertence, sendo que foi a própria quem pagou as máquinas e a instalação, ficando apenas a faltar a ligação entre essas máquinas e o estabelecimento locado, ligação essa que não foi feita porque, ao que ouviu dizer, o réu não quis fazer a ligação».
Na sequência dessa declaração o advogado da Autora requereu a junção do documento na posse da Autora comprovativo do pagamento das máquinas que afirmara.
Os Réus opuseram-se a tal junção por extemporânea.
Foi, então, proferido o seguinte despacho:

«Nos termos do artigo 423º, nº 3, do Código de Processo Civil, é admissível, para além do limite temporal do nº 2, a junção de documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.-
O artigo 516º, nº 6, do mesmo código, estabelece que a testemunha, antes de responder às perguntas que lhe sejam feitas, pode consultar o processo e exigir que lhe seja mostrado determinado documento que nele exista ou apresentar documentos destinados a corroborar o seu depoimento. Só são recebidos e juntos ao processo os documentos que a parte respectiva não puder ter oferecido.---
Os documentos em causa referem-se a factos que a parte relatou, nomeadamente ao pagamento pela própria parte das máquinas e da instalação relativa ao sistema de extracção no locado.---
Esse pagamento não foi alegado nos articulados por qualquer das partes e surgiu na sequência do depoimento da parte.---
Assim sendo, e porque o tribunal considera que a apresentação dos documentos surgiu em virtude e na sequência do depoimento da parte e não havia necessidade da junção em momento anterior, nomeadamente no momento dos articulados ou no momento em que as partes foram notificadas para apresentar prova, porque o facto concreto do pagamento pela Autora da instalação do equipamento em causa não foi alegado, da conjugação de todos estes preceitos entende-se que a apresentação do documento, neste momento, é admissível.---
Por conseguinte, admite-se a junção aos autos do documento em causa, devendo a secretaria diligenciar no sentido de fornecer cópia à parte contrária.» ---

No decurso da mesma audiência prestou depoimento DC… o qual no decurso do mesmo se socorreu de documento na sua posse para avivamento da memória.
Pelo advogado da Autora foi então requerida a junção do documento utilizado pela testemunha – licença de utilização do prédio onde prédio que integra o locado, «porque não pode haver qualquer dúvida de que se a loja em causa não tivesse condições para ser bar e restaurante seguramente a câmara do Funchal não teria concedido a respectiva licença de utilização, é de todo o interesse que o documento em poder da testemunha seja junto aos autos».
Foi então proferido o seguinte despacho:

«Com os mesmos fundamentos constantes do despacho que se deu anteriormente nesta sessão de audiência de julgamento, admite-se a junção aos autos do documento.---
Concede-se o requerido prazo de 10 (dez) dias para a pronúncia do Réu quanto ao documento e uma vez que nada resulta da audiência nem nada é invocado no sentido de que possa haver inconveniente grave no prosseguimento da audiência, a audiência prosseguirá sem prejuízo do prazo concedido para a pronúncia dos Réus quanto ao documento.» ---

Inconformados com tais despachos apelaram os Réus concluindo por padecerem os despachos recorridos, de uma assentada, dos vícios de nulidade, falta de fundamentação, erro de julgamento e inconstitucionalidade.
Não houve contra-alegação.

II – Questões a Resolver

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da nulidade;
- da falta de fundamentação;
- do erro de julgamento;
- da inconstitucionalidade.

III – Fundamentos de Facto

A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito

A admissão de um documento decretada por despacho judicial não constitui, manifestamente, uma nulidade processual.
Com efeito, desde há muito que se encontra consolidado o entendimento de que a reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos e não por meio de arguição de nulidade do processo.

É também manifesto que os despachos impugnados não padecem de vício de falta de fundamentação uma vez que se encontra clara e perfeitamente expressa a razão de ser da decisão proferida: entender-se que a apresentação dos documentos se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior, no caso, e de terem sido utilizados por declarantes para corroborar as suas afirmações.

Se tal fundamento corresponde a uma acertada aplicação da lei é outra questão, do domínio do erro de julgamento e já não do domínio da fundamentação; e é ela a verdadeira questão do recurso, que passaremos a analisar.

O actual regime da prova através de documentos mantém a maioria dos seus traços essenciais que já vinham do anterior CPC. Assim, os documentos devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (art.º 523º, nº 1, do CPC; art.º 423º, nº 1, do NCPC), na prestação de depoimento de parte esta pode socorrer-se de documentos para responder às perguntas (art.º 561º, nº 2, do CPC; art.º 461º, nº 2, do NCPC); igualmente as testemunhas podem apresentar documentos destinados a corroborar o seu depoimento, só sendo recebidos e juntos aos processo os documentos que a parte respectiva não pudesse ter oferecido (art.º 638º, nºs 6 e 7 do CPC; art.º 516º, nºs 6 e 7 do NCPC).
Onde os dois diplomas divergem é nas consequências da não apresentação do documento com o articulado em que são alegados os factos correspondentes.
No anterior CPC permitia-se que os documentos fossem incondicionalmente apresentados até ao encerramento da discussão em 1ª instância, embora a parte fosse sujeita a multa não provando que não tinha podido oferecer o documento com o articulado (art.º 523º, nº 2).
No NCPC os documentos só podem ser incondicionalmente apresentados até 20 dias da data da audiência final, embora o apresentante fique sujeito a multa se não provar que os não pode oferecer com o articulado; depois daquele limite temporal (20 dias antes da audiência) só são admissíveis os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento e aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (art.º 423º, nºs 2 e 3).

Este regime mais restritivo de admissão de documentos a partir do vigésimo dia anterior à audiência final constitui, em nosso modo de ver, uma alteração legislativa contraproducente, quer porque não é apta a alcançar o resultado pretendido quer porque, fundamentalmente, contende com princípios estruturantes do processo judicial.

Visou-se com tal alteração legislativa, segundo o expresso na correspondente exposição de motivos, disciplinar a produção de prova, assegurando-se o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios. Ou seja, pretendia-se eliminar a possibilidade de retardar o encerramento da discussão da causa mediante a apresentação de documentos em plena audiência de julgamento, levando à necessidade de conceder prazo à parte contrária para se pronunciar sobre o documento.
Mas ao eliminar essa possibilidade (que o legislador não demonstrou que fosse um expediente dilatório de uso relevante, e que a nossa experiência não identifica como tal) o legislador veio criar maiores dificuldades e constrangimentos processuais do que aqueles que pretendeu afastar.
Em vez da sumária alegação, prova e decisão sobre a verificação do fundamento para a não aplicação da multa, tem agora o tribunal de se confrontar com as questões da contagem do prazo de ‘20 dias antes da data em que se realize a audiência final’ (da data inicialmente marcada, da data em que efectivamente se realizou, da data da 1ª sessão ou de diversas sessões se a elas houver lugar?) e com a dedução de incidentes de alegação e demonstração de que a apresentação não foi possível em momento anterior ou de que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior (e como definir essa necessidade e a sua causa), e a consequente dedução do correspondente procedimento incidental[1], bem como a proliferação de recursos quanto à aplicação desse regime[2].
Por outro lado a inadmissibilidade de apresentação de prova documental depois dos 20 dias que antecedem a data da audiência final contende com a garantia do processo equitativo decorrente do art.º 20º, nº 4, da Constituição da República e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a garantia de processo equitativo (‘fair trial’) coloca o tribunal sob o dever de levar a cabo um exame aprofundado dos pedidos, fundamentos e provas aduzidos pelas partes; e se se reconhece uma larga margem de apreciação aos legisladores e tribunais nacionais para estabelecerem as regras de admissibilidade e apreciação das provas, não se deixa de afirmar que as restrições à apresentação de provas não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, antes têm de ser consistentes com a exigência de julgamento equitativo e que sempre se deve exigir que o procedimento na sua globalidade, incluindo os aspectos relativos à admissibilidade das provas, seja equitativo[3]. E nesse sentido haverá de interpretar-se, também, o disposto no art. 20º, nº 4, da Constituição da República por força do disposto no art.º 16º, nº 2, do mesmo diploma.
A regra da não admissão de prova documental após o vigésimo dia anterior à audiência final, baseada apenas nesse limite temporal, pode, assim, levantar questões de conformidade com o princípio do processo equitativo (em particular quando o documento cuja junção se pretende seja relevante para o apuramento dos factos).
Se as primeiras apontadas situações se situam no campo das opções legislativas que, ainda que contraproducentes ou incorrectas, devem os tribunais respeitar, já o mesmo não acontece no caso da última referida situação, por estarem em causa direitos fundamentais, devendo os tribunais interpretar os normativos em causa em conformidade com os direitos fundamentais ou, mesmo, recusar a aplicação dos mesmos.

Segundo o n.º 3 do art.º 423º do CPC, após o vigésimo dia anterior à audiência final a parte só é admitida a apresentar documento cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Desde logo haverá de ter em conta que o referido art.º 423º regula tão só e apenas a possibilidade de apresentação de documentos pelas partes; ou seja, o direito que assiste às partes de fazerem juntar ao processo documentos, independentemente da sua pertinência, da sua relevância e da apreciação do seu valor probatório.
Tratando-se as apontadas circunstâncias de excepções à regra da proibição de apresentação de documentos, sendo por conseguinte constitutivas da possibilidade dessa apresentação, têm as mesmas de ser alegadas e demonstradas pela parte que requer a junção do documento depois de ultrapassado aquele limite temporal.
A impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência, que será aquela para que aponta o art.º 487º do CCiv – a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso[4].
Já a junção ter-se tornado necessária em virtude de ocorrência posterior se afigura de mais problemática definição, designadamente por ser susceptível de abranger plúrimas e diversificadas situações.
De qualquer forma essa circunstância é integrada por um elemento factual bem definido: a necessidade de apresentação deve surgir de uma circunstância posterior, ou seja, de uma circunstância que ocorra depois do vigésimo dia anterior à audiência final. O normativo em causa não é susceptível de aplicação se a necessidade de apresentação do documento já se verificava anteriormente àquela data.
Continuando na tentativa de definir o conteúdo do conceito legal em causa – necessidade em virtude de ocorrência posterior – dir-se-á que o grau dessa necessidade não tem de ser significativo, uma vez que da economia do preceito legal não se descortina uma especial intenção de reforçada excepcionalidade; não é necessário que o documento cuja junção se pretende seja o único (ou principal) meio de prova, bastando que a apresentação do documento se revele útil como meio de prova. Nesse sentido afigura-se-nos ocorrer equivalência entre necessidade e utilidade.
A ocorrência posterior deve ser relacionada com a dinâmica do desenvolvimento do próprio processo, designadamente tendo em vista a dialéctica que se desenvolve durante o processo de produção de prova no julgamento da causa (relativamente a alterações factuais exteriores ao processo a forma adequada de as tornar relevantes é a dedução de articulado superveniente, não se levantando aí qualquer problemática quanto à possibilidade de com esse articulado se apresentarem os correspondentes documentos). E nesse conspecto haverá de ter em conta o regime legal relativamente ao apuramento dos factos relevantes.
As partes apenas estão adstritas à alegação dos factos essenciais (artigos 5º, nº 1, 552º, nº 1, al. d), e 572º, al. c), do NCPC); mas o tribunal, para além desses, pode considerar os factos instrumentais e complementares ou concretizadores que resultem da discussão da causa (art.º 5º, nº 2, do NCPC). Ora será aquando da revelação desses factos decorrentes da produção de prova na audiência que poderá surgir a necessidade, no apontado sentido de utilidade, de confirmação desses factos mediante prova documental. E a essa situação se reportará, na generalidade dos casos, o conceito de ocorrência posterior.

Apreciando em concreto as situações em causa nos autos:

Os Réus alegaram, com facto essencial de excepção que invocam, que estavam impedidos de usar o locado porquanto a Autora não havia procedido à instalação de um sistema de extracção de gases. Competiria aos Réus a prova desse facto; mas assiste também à Autora a faculdade de fazer contraprova. No exercício dessa faculdade a Autora afirmou ter mandado proceder a expensas suas à instalação do sistema de extracção de gases. Esse depoimento, que é uma ocorrência posterior, fez surgir a utilidade da sua comprovação por documento, em particular a factura/recibo pela execução desses trabalhos.
Os Réus alegaram, mais genericamente, que o imóvel arrendado não se encontrava apto para os fins do arrendamento. No exercício da sua faculdade de contraprova a Autora indicou testemunha que no seu depoimento referiu ter sido concedida licença de utilização ao imóvel de que o arrendado constitui fracção autónoma, atribuindo a essa fracção autónoma uma utilização para bar e restauração. A invocação dessa licença de utilização é uma ocorrência posterior que fez surgir a utilidade da sua apresentação.
Do que decorre estarem, no caso, preenchidos os requisitos do art.º 423º, nº 3, do NCPC para a admissibilidade da junção dos apontados documentos, não se descortinando erro de julgamento nas decisões que ordenaram a respectiva junção.

Mas ainda que tal se não verificasse, ainda assim não estava excluída de todo a possibilidade de junção de tais documentos, uma vez que para além do direito/ónus das partes a apresentarem documentos, impende sobre o juiz o poder/dever de, quantos aos factos que lhe é lícito conhecer – factos notórios, essenciais alegados, instrumentais, complementares e concretizadores desses - promover todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (art.º 411º do NCPC). Não estaria, pois, descartada a possibilidade de ser ordenada a junção desses documentos por o juiz da causa entender que os mesmos se mostravam relevantes para o julgamento da causa (sendo que essa actividade do juiz corresponde, em nosso modo de ver, ao uso legal de um poder discricionário, pelo que das correspondentes decisões não cabe recurso – art.º 630º, nº 1, do CPC).
Vem esta consideração a propósito da questão da constitucionalidade da solução normativa estabelecida no nº 3 do art.º 423º do NCPC, na sequência do que acima foi expendido, e para afirmar que é esse poder inquisitorial do juiz que faz em abstracto (e sem prejuízo de apreciação casuística) de contraponto às eventuais áreas de iniquidade eventualmente originadas pelo nº 3 do art.º 423º do NCPC, afastando as objecções de legitimidade constitucional.
Por seu turno os Recorrente invocam a inconstitucionalidade da interpretação normativa aplicada no caso por violação dos artigos 20º, 204º e 205º da Constituição.
Ocorre, porém, que não específica a violação da lei constitucional que invoca, sendo que lhe competia, até pela gravidade do vício invocado, que explicitasse minimamente como se consubstanciaria a infracção imputada.
Por outro lado o tribunal não vislumbra qualquer vício de constitucionalidade nessa interpretação normativa; até porque, como explicitou, o que lhe poderia suscitar dúvidas de constitucionalidade era a interpretação normativa contrária à que foi seguida.


V – Da Taxa Sancionatória Excepcional

Litigar em Juízo é um acto de enorme significado ético e de grande relevância social.
O direito de litigar em juízo, quer como demandante quer como demandado, deve ser exercido dentro de determinados limites circunscritos por deveres de conduta, em particular os deveres de cooperação, boa-fé processual e correcção (cf. artigos 7º, 8º e 9º do CPC - anteriormente artigos 266º, 266º-A e 266º-B). Limites esses impostos pela natureza pública do processo civil, pois que para além dos interesses privados (individuais, egoísticos e antagónicos) das partes na estratégia processual e na resolução do litígio prevalece o interesse público da pacificação social e correcta administração da justiça, com equitativa e igualitária alocação dos parcos recursos disponíveis e adequada celeridade.
O acesso à justiça enquanto direito constitucionalmente consagrado tem fundamentalmente a ver com a não discriminação nesse acesso e a inexistência de áreas imunes à jurisdição, e já não tanto com a possibilidade de introdução em juízo; no que a esta possibilidade respeita ela deve ser exercida com parcimónia, sob pena de a pretexto do generalizado exercício individualizado de um direito se estar no fundo a aniquilar colectivamente a eficácia e utilidade desse mesmo direito.
A utilização do aparelho judiciário deve ser reservada, por um lado, a matérias de relevo social e não a minudências ou meras questiúnculas, para cuja resolução se mostram mais adequadas outras formas de controlo e regulação social. Por outro lado, porque no encadeado de actos lógica e cronologicamente organizados que constitui o processo judicial se exige que os intervenientes se limitem à prática de actos inteligentes e não impertinentes e/ou dilatórios e ainda que esses actos sejam praticados de boa-fé, com sentido de cooperação institucional para com a descoberta de verdade e a proporcionada e segura celeridade na administração da Justiça, nele devem ser apenas levantadas questões com fundamento sério e não caprichosas.
Na esteira, aliás, do vetusto princípio geral de direito segundo o qual ‘de minimis non curat praetor’.
E tal parcimónia deve ser tanto maior quanto maior for o grau de hierarquia dos tribunais utilizados, porque igualmente maior é o custo e a escassez dos recursos. Com efeito, tendo em vista a eficiência do sistema de recursos, com os meios humanos e materiais de que o país dispõe e pode suportar, os tribunais superiores não podem ser chamados a reapreciar as decisões da primeira instância só porque elas não satisfazem os interesses da parte vencida, por ‘dá cá aquela palha’, ‘a torto e a direito’, para protelar o trânsito da decisão, ou, simplesmente, tentar a sorte de uma decisão mais favorável.
Ao direito ao recurso corresponde um dever de diligência no uso desse meio processual sendo exigível às partes que se abstenham da interposição de recurso para os quais não tenham fundamento sério. Devendo, em princípio, considerar-se que um recurso não apresenta fundamento sério, conduzindo à sua manifesta improcedência quando:
a) é meramente dilatório ou baseado em distorção factual;
b) as posições expressas são contrárias à jurisprudência estabilizada;
c) as posições expressas não têm suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios consolidados ou se baseiam em argumentos patentemente ilógicos e contraditórios ou em raciocínios objectivamente carentes de sustentabilidade;
d) as posições expressas, ainda que se não possam dizer manifestamente infundadas, se referem as questões menores, a verdadeira minudências sem relevância substancial para a solução do litígio.
Quem não respeita esse dever de parcimónia deve ser sancionado.
E não se argumente que esse dever de parcimónia constitui uma ilegítima restrição do direito de acesso à justiça ou da defesa intransigente dos direitos ou expectativas das partes, pois que o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem faz apelo a esse dever aquando da apreciação da admissibilidade das queixas a ele dirigidas (cf. Bock v. Alemanha, 19JAN2010, Queixa 22051/07 e Korolev v. Russia, 1JUL2010, Queixa 25551/05).
No caso da legislação portuguesa essa sanção está configurada como um pagamento adicional, correspondendo ao custo da sobrecarga do sistema a que deu azo através de uma taxa sancionatória excepcional (artº 531º do NCPC).

O presente recurso afigura-se-nos como um dos casos em que a parte não agiu com a prudência ou diligência devidas ao imputar aos despachos recorridos os vícios de nulidade, falta de fundamentação e inconstitucionalidade, na medida em que, nessa parte, o recurso se afigura baseado, conforme o acima exposto, em fundamentos sem suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios consolidados e na ausência de especificação de fundamentos, e por isso manifestamente infundado, dando azo a um desnecessário acréscimo da complexidade do recurso, com o consequente desperdício dos, já escassos, meios alocados ao este tribunal superior; estando, assim, preenchidos os pressupostos legais para a aplicação de taxa sancionatória excepcional.
Tratando-se, porém, de uma sanção importa, antes da sua aplicação que se ofereça à parte possibilidade de defesa.


VI – Decisão

Termos em que, na total improcedência da apelação se decide indeferir a arguição dos vícios de nulidade, falta de fundamentação e inconstitucionalidade dos despachos recorridos e confirmar integralmente os mesmos.

Custas pelos Apelantes.

Concede-se aos Apelantes o prazo de 10 dias para se pronunciarem quanto à aplicação de taxa sancionatória excepcional.

Lisboa, 25SET2018

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga

[1] - cf. acórdão da Relação de Lisboa de 22OUT2014 (proc. 681/13.5TTLSB.L1-4).
[2] - de que este recurso é exemplo.
[3] - cf., e.g., acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 18JUN2002 (Wierzbicki c. Polónia, queixa 24541/94) e 15JUN2004 (Tamminen c. Finlândia, queixa 40847/98).
[4] - que, sem prejuízo de se ir paulatinamente acrescendo o grau do que se entende ser a diligência devida, a experiência empírica dos nossos muitos anos de judicatura nos ensina não ser sociologicamente muito elevada.