Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9/18.8GBALM.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
EXAME CRÍTICO DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O que é necessário é que o tribunal explicite o percurso cognitivo que o levou a determinada decisão sobre a matéria de facto e designadamente justifique o convencimento a que chegou, efectuando a avaliação e valoração dos depoimentos ouvidos, dando a conhecer as razões de ciência respectivas.
A lei não obriga a que a fundamentação da decisão indique a concreta prova de cada um dos factos provados e não provados, nem que se proceda à reprodução do teor de cada depoimento prestado, repetindo o que cada testemunha referiu ou descreveu, antes se exigindo que reflicta o processo lógico da formação da convicção do tribunal, de modo a permitir a transparência da sua formação e a aferir se houve ou não valoração ilícita de provas.   
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
        
I.
No processo comum n.º 9/18.8GBALM do Juízo Local Criminal de Almada, Comarca de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido A. , após ter sido acusado da prática, como autor material, de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.°, por referência ao artigo 323°, todos do Código da Propriedade Industrial.
Realizada a audiência, foi decidido condenar o arguido condenar o arguido A. pela prática de um crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos, p. e p. pelo artigo 324.°, por referência ao artigo 323.°, todos do Código da Propriedade Industrial, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,5 (cinco euros e cinquenta cêntimos), no total de 275 € (duzentos e setenta e cinco euros).
Mais foi decidido, considerando o disposto no artigo 109.° do Código Penal, declarar a perda a favor do Estado dos bens apreendidos.
Inconformado com a decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, com os fundamentos constantes da respectiva motivação que aqui se dá por reproduzida e as seguintes conclusões:
“1ª
No livre exercício da convicção do julgador não bastam elementos intraduzíveis e subtis, é necessário e imprescindível que o Tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento facto.

Todavia o Tribunal apenas julgou com base em convicção, com base em suposições na medida em que não teve lugar a produção de qualquer prova uma vez que apenas foram inquiridas duas testemunhas que não presenciaram os factos, entenda-se não presenciaram qualquer venda em concreto.

Efetivamente, não se encontra demonstrado que o arguido e ora recorrente tivesse condições físicas mínimas para vender malas pois que ninguém consegue efectuar tal venda numa feira ser conseguir abrir as mesmas e para abrir 1 mala qualquer pessoa tem de pelo menos fazer uso de 2 mãos o que quanto ao arguido é manifestamente impossível pois que não consegue mexer a mão direita tal como assente no ponto 10.

Todas as dúvidas patentes na matéria de facto e demonstrada pelo recorrente foram solucionadas em seu desfavor não tendo a sentença recorrida efectuado qualquer análise crítica desses fundamentos em concreto uma vez que se limitou a reproduzir o que em teoria é aplicável a todos os casos, não cuidando de com base na matéria para o efeito alegado conhecer ou demonstrar que não assistia razão ao ora recorrente.

Efetivamente, não se encontra demonstrado que o arguido e ora recorrente tivesse sequer condições para abrir e vender qualquer mala.

A sentença recorrida viola o disposto no n.° 2 do art.°410°do C.P.P., a saber: manifesta insuficiência da matéria de facto apurada para alcançar uma decisão justa; contradição insanável entre factos dados como provados e factos dados como não provados; erro notório na apreciação da prova, pois a decisão recorrida, com base nos factos provados jamais poderia imputar-lhe condutas integradoras do crime em causa.

Tendo ficado demonstrada a existência de erro de julgamento quanto ao famigerado que critérios mínimos de razoabilidade e senso comum impunham outra postura. Encontram-se assim violados os artigos 131°, 132°n° 1 e 2 al. h) do CP.

O Tribunal apenas julgou com base em convicção, com base em suposições e em contradição com a prova produzida em audiência, estando incorrectamente julgados todos os pontos dos Factos Provados.

00:02:07: JUIZA: Então e este Sr. tinha produtos contrafeitos. 00:02:11: TESTEMUNHA: Sim tinha várias malas, salvo erro da marca cavalinho, vários tipos, modelos. Com todo o respeito trata- se de uma resposta dada à testemunha resultando assim um depoimento não isento tanto mais que se impunha justificar o porquê de tal conclusão o que não sucedeu nem sequer podia suceder atento o já referido, encontrando-se assim incorrectamente julgados os pontos 5, 6 e 7 na medida em que não foi feita qualquer prova da conclusão de que se trata de produtos contrafeitos.
10ª
É patente que a primeira testemunha não conseguiu afirmar ter visto o arguido a vender malas, limita-se a inferir e só o fez depois de muitas insistências, senão vejamos: 00:02:19: JUIZA: O Sr. em concreto estava nessa feira quando os senhores entraram, onde é que o viram? 00:02:26: TESTEMUNHA: Não me lembro, naquela altura foram feitas várias apreensões, e não me lembro se este Sr. era o que se encontrava á porta do mercado da Charneca. Não lhe sei precisar exactamente.
00:03:15: JUIZA: Então o que se recorda é e um Sr. que estaria cá fora e teria as malas consigo? 00:03:22: TESTEMUNHA: Dra. Não sei precisar se é isso, ok, sei que nesse dia fizemos varias apreensões, eu não me recordo onde é que este Sr. estava, no interior do recinto ou do lado de fora, isso não lhe sei precisar. E não sei se o meu colega saberá.
12ª
00:02:15: JUIZA: Então e viu alguma operação de venda? 00:02:17: TESTEMUNHA: Houve, houve, sim sim. 00:02:20: JUIZA: Do quê em concreto? 00:02:22: TESTEMUNHA: Duma dessas malas. 00:02:28: JUIZA: Então e não identificaram a compradora? 00:02:30: TESTEMUNHA: Não porque depois quando deram a ordem de avanço de cada um para seus alvos, e eles viram que éramos agentes da autoridade gerou se uma grande tensão. 00:02:47: JUIZA: Diga me uma coisa nessa transação viu o dinheiro que foi entregue ao arguido? 00:02:52: TESTEMUNHA: Não consegui visualizar corretamente, não vi.00:03:02: JUIZA: Olhe e tinha, às vezes nas bancas á aqueles valores a quanto estão a vender, a 10€ ou 15€, não havia nada disso? 00:03:12 TESTEMUNHA: Não fazia menção do valor. 00:03:19: JUIZA: Portanto não havia duvida nenhuma, que era este o Sr. Que estava a explorar a banca? 00:03:23: TESTEMUNHA: Não havia duvida nenhuma.
13ª
Resulta claro que também a segunda testemunha não logrou identificar sequer uma venda que tenha sido efectuada pelo arguido tanto mais que o forte aparato policial deveria ter facilitado a identificação de eventual comprador e não o contrário como Tribunal concluiu contra critérios mínimos de razoabilidade e senso comum.
É patente pois atento o alegado a existência de erro notório na apreciação da prova com reflexos nos pontos dos Factos Provados que assim não deveriam ter sido dados como provados uma vez que de tais depoimentos apenas emergem dúvidas sobre o que terá sucedido e que não podem prejudicar o arguido. Em suma, dando por reproduzido o anteriormente alegado e desde logo pela falta de demonstração da existência de dolo e até da falta de consciência da ilicitude o arguido sustenta que a factualidade demonstrada não se afigura suficiente para que seja mantida a respectiva condenação.
14ª
não demonstrando qualquer respeito pelas finalidades que a determinação da medida das penas devem alcançar. Efectivamente, nos termos do disposto nos art.° 369° a 371º e n.° 3 do art.º 71, do C.P., na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.
15ª
É, pois, flagrante a violação do art° 374° n° 2 do CPP pois que a decisão se afigura ilógica, arbitrária, contraditória e violadora das regras de experiência comum. Tendo ficado demonstrada a existência de erro de julgamento encontram-se assim violados os artigos 131º, 132°n° 1 e 2 al. h) do CP.
16ª
O Tribunal apenas julgou com base em convicção, com base em suposições e em contradição com o depoimento efectivo e espontâneo.”
Termina pedindo a sua absolvição.
O M.º P.º respondeu às motivações de recurso, apresentando como conclusão que “o Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente arguido, pelo que sustento na íntegra a sentença recorrida.”
Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, elaborando parecer em que defende ser o recurso de improceder.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.º n.º 2 do C.P.Penal, não tendo o recorrente oferecido resposta ao parecer.
II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Da sentença recorrida consta a seguinte:
“… Factos Provados:
….
1) No dia 17.01.2018, pelas 10h30, no interior do mercado do “Levante”, sito na Charneca da Caparica, o arguido A.  tinha consigo 36 malas de vários tamanhos, cores e modelos que ostentavam a marca “Cavalinho” expostos numa banca.
2) Tais produtos foram apreendidos por militares da GNR no âmbito de operação de fiscalização realizada naquele dia, àquela hora e naquele local.
3) A sociedade “MJLda” é o dono da marca Cavalinho.
4) As malas acima referenciadas e que o arguido vendia ao publico não foram fabricadas pela MJLda, nem sob a sua autorização.
5) Os artigos em causa, não respeitam as normas de etiquetagem, não são fabricados com produtos da mesma qualidade que os da marca Cavalinhos sendo produtos contrafeitos ou imitados.
6) O arguido estava ciente de que os produtos eram contrafeitos ou imitados
7) O arguido quis e representou colocar à venda malas cujas natureza contrafeita conhecia, com o propósito conseguido de com tal conduta obter vantagem patrimonial.
8) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com tal conhecimento
9) O arguido completou o 5.° ano de escolaridade e encontra-se reformado por invalidez.
10) O arguido é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 76%.
11) O arguido é reformado por invalidez, auferindo uma reforma de cerca de 300 euros mensais.
12) Vive em casa arrendada, com a sua companheira, pagando o montante de 50 euros mensais a título de renda.
13) Despende mensalmente em medicamentos o montante aproximado de 100 euros.
 14) O arguido não tem antecedentes criminais.
*
2.2.   Factos não provados:
Não resultou provado que o valor atribuído pelo arguido para venda dos objectos referidos em 1) fosse de 10€.
*
2.3.   Fundamentação:
A convicção do tribunal relativamente à factualidade ínsita nos factos provados assentou na avaliação e ponderação de todos os meios de prova produzidos ou analisados em audiência, os quais foram conjugados entre si, e ponderados com as regras de experiência comum, buscando-se os seus pontos de coerência e concludência.
O arguido não prestou declarações sobre os factos que lhe são imputados.
O Tribunal considerou o print retirado do sítio da internet do Instituto Nacional de Propriedade Industrial para dar como provado que a sociedade MJLda. é a titular da marca “Cavalinho”.
As testemunhas RA e RL descreveram, de forma objectiva e credível, o modo como verificaram que o arguido tinha exposto para venda os objectos identificados na factualidade vertida em 1), bem como as circunstâncias de tempo e lugar em que os factos ocorreram, relatando ainda a primeira testemunha ter visto o arguido a transaccionar uma das malas.
O Tribunal atentou ainda no auto de notícia constante de fls. 3 e 4 e no auto de apreensão de fls. 5.
As referidas testemunhas explicaram ainda o modo como o arguido foi identificado, inexistindo quaisquer dúvidas acerca da sua identidade, sendo também unânimes ao afirmar que na banca não se encontravam quaisquer dizeres donde resultasse que cada mala se encontrava à venda pelo preço de dez euros.
 No que respeita às características dos objectos apreendidos, o Tribunal considerou o relatório pericial de fls. 20, de onde se afere que as malas apreendidas não foram produzidas pela sociedade detentora da marca, razão pela qual os elementos identificativos nas malas não corresponde à usada nos produtos originais, não estando personalizadas, sendo ainda de assinalar que os produtos apreendidos são fabricados em material sintético a imitar o couro, sendo que nas malas da marca Cavalinho é sempre utilizado couro ou tela com acabamento martelado.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, o Tribunal fundou a sua convicção tendo por base as regras da experiência comum, relacionadas com a restante matéria objectiva dada como provada.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal valorou o certificado de registo criminal junto aos autos.
Já quanto às suas condições económicas e sociais, o Tribunal considerou as declarações do arguido prestadas em sede de audiência de julgamento e o atestado médico de incapacidade de fls. 35.”
Em jeito de epílogo, importa mencionar que nas motivações do recurso interposto se mostram feitas, embora algumas vezes de forma genérica e descontextualizada a própria sentença, menções a violação do principio da presunção de inocência, in dubio por reo, depoimentos indirectos, omissão da situação económica, medida da pena.
Tais menções não se mostram transpostas para as conclusões e daí que não constem do elenco das questões a apreciar na presente decisão.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P. (cfr. Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95).
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões suscitadas são:
1. Se a sentença enferma dos vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410º CPP;
2. Se existe erro de julgamento quanto a todos os factos provados;
3. Se houve violação do art.º 374º n.º 2 CPP.
Inicia o recorrente a manifestação da sua discordância da sentença condenatória imputando-lhe a existência dos vícios a que alude o art.º 410º n.º 2 CPP: manifesta insuficiência da matéria de facto para a decisão, contradição insanável entre factos dados como provados e factos dados como não provados e erro notório na apreciação da prova.
Assenta o recorrente a existência de tais vícios no modo como o Tribunal apreciou a prova produzida em julgamento, mormente pela inexistência de qualquer referência a qualquer venda efectuada pelo recorrente e de não se encontrar demonstrado que o arguido e ora recorrente tivesse condições físicas mínimas para vender malas pois que ninguém consegue efectuar tal venda numa feira ser conseguir abrir as mesmas e para abrir 1 mala qualquer pessoa tem de pelo menos fazer uso de 2 mãos o que quanto ao arguido é manifestamente impossível pois que não consegue mexer a mão direita tal como assente no ponto 10.
Vejamos.
O primeiro dos invocados vícios - manifesta insuficiência da matéria de facto para a decisão - encontra-se previsto na al. a) do n.º 2 do art.º 410º CPP e define-se, conceptualmente, como uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. É necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Para se verificar este fundamento é necessário que a matéria de facto provada se apresente como insuficiente para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.
E o vício tem de resultar do próprio texto da decisão recorrida (cfr. art.º 410° n.° 2 do C. P. Penal), não podendo o Tribunal de recurso recorrer a quaisquer outros elementos constantes do processo.
Tem sido este o entendimento seguido pela Jurisprudência – cfr. o Acórdão do STJ de 30.10.97, CJ, ANO V - 1997, tomo III, pág. 220, «a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Tal vício deve resultar do contexto da decisão em si e conjugado com as negras da experiência comum e poder ser detectável por pessoa medianamente dotada».
Ora, analisada a invocação do vício, constata-se que, não só o recorrente para demonstra a sua existência faz recurso a declarações de testemunhas, citando-as, ou seja, fora dos requisitos mínimos de invocação estabelecido pelo art.º 410º CPP, o qual exige que resulte do próprio texto da decisão recorrida, como a leitura dos factos provados e a integração jurídica dos mesmos feita em sede de enquadramento jurídico demonstra cabalmente que a matéria de facto acima descrita, dada como provada, preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do crime e contém todos os elementos necessários à graduação da culpa do arguido.
Na realidade, diferentemente do que parece transparecer da alegação, para o preenchimento do tipo não é necessária a efectivação de uma qualquer venda, apenas se exige que o agente, autor material, detenha o produto contrafeito com a finalidade da venda, ou seja, basta-se com a prática de actos de venda ou de colocação à venda de produtos de maraca contrafeita, como sucede no caso com a respectiva exposição numa banca.
 Por seu lado, a invocada contradição insanável entre os factos provados e não provados - um dos aspectos e integradores do vício previsto na al. b) do n.º 2 do art.º 410º CPP – não se mostra balizada pelo recorrente em que concretos termos essa contradição existe.
O vício da "contradição insanável entre a fundamentação e a decisão" só existe "quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si só ou conjugado com regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal" - Ac. do STJ de 6/10/1999 e 13/10/1999, in "A Tramitação Processual Penal", 1058, Tolda Pinto - ou, ainda segundo acórdão do mesmo STJ, de 2/12/1999, Proc. n.º 1046/99, 5.a Secção, "quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando, simultaneamente, se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão, tendo este vício de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum".
De resto, a simples comparação entre a materialidade provada e a não provada, esta cingida apenas ao aspecto do valor pecuniário dos bens que se encontravam expostos para venda, dificilmente se configuraria qualquer contradição e, muito menos, insanável.
Em matéria de vícios alinha ainda o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova – a que alude a al. c) do n.º 2 do art.º 410º CPP – quanto à autoria dos factos pelo arguido, trazendo a esta discussão e prova do erro citações de depoimentos testemunhais produzidos em audiência.
Como já referia o Ac. S.T.J., de 11-6-1992, in BMJ 418-478, "o erro notório na apreciação da prova, nas condições em que se encontra legalmente previsto e balizado, é, de natureza ou por definição, intrínseco da decisão recorrida, e não deve obter raízes no exterior da mesma.", isto em consonância com o preceito legal invocado do art.º 410º CPP, pelo que o recurso feito às citações dos depoimentos testemunhais não pode ser utilizada com essa finalidade.
Depois, o "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.
Ora, analisado texto da decisão recorrida ou, mais especificamente, conjugando a materialidade fáctica provada e a fundamentação que se lhe segue relativa à formação a convicção pelo tribunal, constata-se que nenhum erro de apreciação da prova existe, muito menos notório.
O recorrente faz decorrer o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, de uma diferente apreciação da prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova. A motivação expressa pelo Tribunal “a quo” é suficiente para habilitar os sujeitos processuais, bem como o Tribunal de recurso, a concluir que as provas a que o Tribunal “a quo” atendeu são todas permitidas por lei de acordo com o preceituado no art. 355º, do CPP, e que o Colectivo seguiu um processo lógico e racional na formação da sua convicção, desta não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras experiência comum na apreciação da prova.
Neste sentido, improcede nesta parte o recurso do arguido.
A segunda questão que pudemos respigar das conclusões apresentadas pelo recorrente mostra-se dirigida a, nas conclusões, todos os factos provados, embora na motivação aponte apenas os 4, 5, 6, 7, e 8 provados; em suma, aos factos integrantes da autoria pelo arguido do crime pelo qual veio a ser condenado.
Em apoio de que não poderia ser o autor de tais factos, manifesta-se o recorrente quanto à inexistência de qualquer venda, à deficiência de que é portador e que não se encontra demonstrado que o arguido e ora recorrente tivesse condições físicas mínimas para vender malas pois que ninguém consegue efectuar tal venda numa feira ser conseguir abrir as mesmas e para abrir 1 mala qualquer pessoa tem de pelo menos fazer uso de 2 mãos o que quanto ao arguido é manifestamente impossível pois que não consegue mexer a mão direita tal como assente no ponto 10.
A primeira nota é que o destaque que o recorrente faz ao facto provado 10 não tem a dimensão declarativa que o mesmo lhe quer imputar. Na realidade, no ponto 10 provado não é dito que o arguido se encontra impedido de utilizar as duas mãos, apenas que “é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global de 76%.”, sem apontar em concreto onde essa incapacidade se reflecte.
No entanto e apesar disso, é do conhecimento e do senso comum que as vendas em ambiente de mercado ou feira não exigem propriamente, ou sempre, a manipulação do produto por parte do vendedor, muito menos do tipo de produto de que estamos a falar, até porque só procurará esse produto, exibido em banca, quem nele estiver interessado e conhecendo previamente a sua funcionalidade.
Acrescentamos ainda que os excertos citados dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiências não diferem do resumo que a esse propósito se mostra inserido na fundamentação da convicção do tribunal e, portanto, não impõem decisão diversa da vertida na sentença recorrida, como prescreve o art.º 412º n.º 3 al. b) CPP.
Ainda neste ponto da impugnação não percebemos a menção feita na conclusão 7ª acerca da violação dos “art.ºs 131º, 132º n.º 1 e 2 al. h) do CP” uma vez que não estamos perante qualquer caso de definição de responsabilidade penal por crime homicídio qualificado.
Idêntica referência se mostra feita na conclusão 15ª, o que nos parece, no mínimo, deslocado.
Cai, assim, o recurso também quanto aos factos impugnados pelo recorrente.
Finalmente, questiona o recorrente que a sentença enferma de violação do art.º 374º n.º 2 CPP, isto com a menção de que a decisão se afigura ilógica, arbitrária, contraditória e violadora das regras de experiência comum.
O preceito citado diz respeito ao dever de a sentença ter, dentre outros requisitos, no seu o conteúdo uma “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
A fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
A sentença só cumpre o dever de fundamentação quando os sujeitos processuais seus destinatários são esclarecidos sobre a base jurídica e fáctica das reprovações contra eles dirigidas. Porém e como vem sendo entendido pela jurisprudência, a lei não vai ao ponto de exigir que, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. O que a Lei diz é que não se pode abdicar de uma enunciação, ainda que sucinta mas suficiente, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.
Como refere acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-03-2008, in www.gde.mj.pt/jstj, com o apoio da jurisprudência do Tribunal Constitucional que cita:
“(…) XIII - Por outro lado, a fundamentação não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, não sendo necessária uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, havendo vários. O que tem de deixar claro, de modo a que seja possível a sua reconstituição, é o porquê da decisão tomada relativamente a cada facto – cf. Ac. do STJ de 11-10-2000, Proc. n.º 2253/00 - 3.ª, e Acs. do TC n.ºs 102/99, DR, II, de 01-04-1999, e 59/2006, DR, II, de 13-04-2006 –, por forma a permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo”.
Ou como se escreveu Acórdão no acórdão do STJ 08-02-2007, in www.gde.mj.pt/jstj:
I - O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.”
Em suma, aquilo que é necessário é que o tribunal explicite o percurso cognitivo que o levou a determinada decisão sobre a matéria de facto e designadamente justifique o convencimento a que chegou efectuando a avaliação e valoração dos depoimentos ouvidos, dando a conhecer as razões de ciência respectivas.
Transpondo os princípios e noções enunciados para o caso dos autos, é verdade que a lei não obriga a que a fundamentação da decisão indique a concreta prova de cada um dos factos provados e não provados, nem que se proceda à reprodução do teor de cada depoimento prestado, repetindo o que cada testemunha referiu ou descreveu, antes se exigindo que reflicta o processo lógico da formação da convicção do tribunal, de modo a permitir a transparência da sua formação e aferir se houve ou não valoração ilícita de provas.   
A convicção a que o Tribunal Colectivo chegou para dar como provados os factos postos em crise pelo recorrente, tal como acima referimos, mostra-se devidamente fundamentada, de forma minuciosa, exaustiva, com enumeração dos elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, e do porquê da relevância/credibilidade que lhe foi atribuída, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente, de acordo com a regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º, do CPP, “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”,
Inexiste qualquer deficiência na fundamentação, pelo que a eventual nulidade não se verifica.
III.
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo arguido A. , mantendo-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.
Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.
Feito e revisto pelo 1º signatário.   
        
Lisboa, 10 de Novembro de 2020.
João Carrola
Luis Gominho