Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2922/14.2TBOER.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FILHO DA VÍTIMA
MONTANTE INDEMNIZATÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Para o ser humano, os vínculos familiares constituem base radical, estrutural, da sua identidade e do seu desenvolvimento, o que tem expressão na consagração de disposições jurídicas que protegem a família, nomeadamente os laços entre pais e filhos, podendo dizer-se que a dimensão do ser humano enquanto pai ou filho (em suma, a paternidade/maternidade e a filiação) se alberga na cláusula geral de proteção da personalidade consagrada no art.º 70.º do Código Civil.
II.A morte ou a lesão grave de um pai ou de um filho, comprometendo séria e irremediavelmente essa dimensão essencial da vivência da pessoa, constitui, em regra, um dano direto, a lesão de direito absoluto ou interesse juridicamente tutelado, que, verificados que estejam os restantes pressupostos da responsabilidade civil, merece ser compensado, a título de dano não patrimonial, ao abrigo do disposto nos artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1 do Código Civil.
III.Justifica-se a atribuição da quantia de € 25 000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, ao jovem que, quando tinha 17 anos de idade, viu o seu pai, em consequência de sinistro que lhe causou grave lesão cranioencefálica, ficar em estado semivegetativo, sem o reconhecer nem a ninguém.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 25.6.2014 M.M.F.G. intentou no Tribunal Judicial de Oeiras (atualmente, Instância Local de Oeiras, Secção Cível, da Comarca de Lisboa Oeste) ação declarativa de condenação com processo comum contra TVI, T.I.,S.A., E.Portugal, Lda e AON Portugal – C. de Seguros, S.A..

O A. alegou, em síntese, que em 28.7.2013 o seu pai sofreu um grave acidente quando participava no ensaio geral de um programa televisivo produzido pela 2.ª R. e que iria ser transmitido pela 1.ª R.. As referidas RR. teriam celebrado com a 3.ª R. um contrato de seguro respeitante ao aludido programa. Em consequência do acidente o pai do A. ficou em estado semivegetativo. O A. sofreu e sofre, em consequência do descrito, danos patrimoniais e não patrimoniais, que descreve, e cujo ressarcimento pretende.

O A. terminou formulando o seguinte petitório:

Termos em que deve a presente ação ser aceita julgada procedente por provada em consequência serem as Rés condenadas a pagar ao A. a indemnização global por danos não patrimoniais no valor de €30,000€. ( trinta mil euros)
Devem a 1ª Ré, 2ª Ré e 3ª Ré pagar ao A. o valor total de €4.950,00 (quatro mil novecentos e cinquenta euros) a titulo de indemnização - pelo não pagamento da pensão de alimentos (€2750,00),( dois mil setecentos e cinquenta euros), acrescido do montante de (€2200,00), (dois mil e duzentos euros) relativo a despesas com o vestuário e despesas com actividades extracurriculares desde a data do acidente à presente data.
Devem a 1ª Ré, 2ª Ré e 3ª Ré serem condenadas a pagar o valor de €3.547 (três mil quinhentos e quarenta e sete euros) correspondente às despesas correntes desde a data do acidente até à presente data. Devem as Rés ser condenadas a pagar ao A. indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais no montante global de €34.950,00 (Trinta e quatro mil novecentos e cinquenta euros). As Rés devem ainda ser condenadas no pagamento de todos os juros de mora nos termos legalmente definidos, vencidos e vincendos, até efectivo pagamento, a liquidar.”

Citada, a 1.ª R. contestou alegando que a responsabilidade pelo programa era da 2.ª R., a quem a 1.ª R. o encomendara, “chave na mão”. Mais contrariou a versão do acidente dada pelo A. e impugnou os danos por este alegados. Concluiu pela absolvição das RR. do pedido e requereu a intervenção acessória provocada das Companhias de Seguros Mapfre Seguros Gerais, S.A. e Companhia de Seguros Mapfre (Espanha).

Também a 2.ª R. contestou, impugnando a versão do acidente alegada pelo A. e bem assim os danos invocados e concluindo pela absolvição das RR. do pedido. Mais requereu a intervenção principal provocada de AIG Europe Limited Sucursal em Portugal.
A 3.ª R. contestou, arguindo a sua ilegitimidade processual, por apenas ter atuado como intermediária na celebração de seguros.

Por despacho de 05.3.2015 foi admitida a intervenção acessória provocada de AIG Europe Limited Sucursal em Portugal e de Companhia de Seguros Mapfre (Espanha).

Em 02.9.2015 foi proferido despacho saneador, no qual se absolveu a 3.ª R. da instância, por ser parte ilegítima. Fixou-se o objeto do processo e enunciaram-se os temas da prova.

Realizou-se audiência final e em 08.4.2016 proferiu-se sentença em que se absolveu a 1.ª R. do pedido e se condenou a 2.ª R. a pagar ao A., a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 25 000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 30.6.2014 (data da citação) até integral pagamento.

A 2.ª R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações que culminaram em prolixíssimas conclusões, que se sintetizam na arguição de nulidade da sentença, impugnação da matéria de facto, rejeição do direito do A. a indemnização por danos não patrimoniais e, subsidiariamente, defesa de valor indemnizatório inferior ao fixado pelo tribunal a quo.

A apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente, com revogação da decisão proferida relativamente à matéria de facto (pontos 12 a 15), bem como revogação da decisão condenatória, a qual deveria ser substituída por decisão que absolvesse a R. integralmente.

O A. contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:

1.-O A. viveu com o Pai quase toda a sua vida.
2.-Em conclusão, bem andou o tribunal ao fixar o valor dos danos não patrimoniais com base na equidade nos termos do artigo 496º nº. 4 do C.C., e ao condenar a 2ª Ré a pagar ao A. a quantia total de vinte e cinco mil euros a titulo de indemnização, acrescido de Juros de mora à taxa legal desde 30-14-2014 até integral pagamento, nos termos do artigo 562º e 566º nº. 1 e 3 do C.C., visando compensar o sentimento ( sofrimento do A.).
3.-O tribunal fez uma correcta apreciação dos factos e do direito aplicável.
4.-Não há qualquer fundamento, face à prova produzida para alterar a matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida.
5.-A invocação, pela Recorrente, de que as normas aplicadas na douta decisão, não correspondem à situação referida na douta sentença, não têm qualquer fundamento.
6.-Como nenhuma censura merece a sentença na aplicação que fez do direito.
O apelado terminou pedindo que o recurso fosse julgado improcedente e consequentemente se mantivesse a sentença recorrida.
O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência de nulidade na sentença.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: nulidade da sentença; impugnação da matéria de facto; rejeição do direito do A. a indemnização por danos não patrimoniais; subsidiariamente, defesa de valor indemnizatório inferior ao fixado pelo tribunal a quo.

Primeira questão (nulidade da sentença)
A Constituição da República Portuguesa impõe a fundamentação das decisões judiciais “que não sejam de mero expediente” (art.º 205.º n.º 1).
Tal imposição tem expressão, no direito processual civil, desde logo no n.º 1 do art.º 154.º do CPC: “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.”

Ao nível da sentença, dispõe o CPC que na sua fundamentação o juiz deve discriminar os factos que considera provados e declarar os que julga não provados, analisando criticamente as provas, e deve indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4).

A violação do dever de fundamentação gera a nulidade da decisão (artigos 615.º n.º 1 alínea b) e 613.º n.º 3).

Sendo certo que a mediocridade da fundamentação (pela exiguidade da argumentação apresentada) não se confunde com a respetiva ausência.

A apelante entende que a sentença recorrida carece de fundamentação, por inexistência de indicação da norma jurídica que sustentou a condenação da R. no pagamento ao A. da indemnização de € 25 000,00 por danos não patrimoniais.

Tal asserção, salvo o devido respeito, não corresponde à realidade. Na sentença o julgador indicou quais as normas que, no seu entender, eram aplicáveis na resolução do litígio, ou seja, as dos artigos 483.º, 562.º, 566.º e 805.º do Código Civil.

Nesta parte, pois, improcede a apelação.

Segunda questão (impugnação da matéria de facto)

O tribunal a quo deu como provada a seguinte.

Matéria de facto:

1-M.M.F.G. nasceu em 6 de Novembro de 1995, filho de J.L.dos S.G. e de A.M.F. (fls 20).
2-Em 1997 (fls 26 a 29) foi regulado judicialmente o exercício do poder paternal relativamente ao ora A. – fixando-se uma “prestação de alimentos” mensal de 20.000$00, a pagar pelo pai (a partir de 6-XI-97).
3-Em 1 de Outubro de 2003 a mãe do A. passou a receber “rendimento social de inserção” no valor mensal de 231,60€ (fls 30).
4-Em 3 de Março de 2008 F.L.C. e os pais do ora A. assinaram o “CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO” junto a fls 32 a 39 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – sendo a renda mensal, em Dezembro de 2012, de 413€ (fls 40).
5-Em 1 de Fevereiro de 2013 “Promotora de Informaciones, S.A. (Prisa)” e a interveniente “Mapfre” celebraram o “SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL” junto a fls 303 a 316 e 319 a 344 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
6-Em 23 de Julho de 2013 as ora 1ª e 2ª RR. assinaram o “CONTRATO DE PRODUÇÃO” junto a fls 121 a 134 (cujo teor se dá aqui por reproduzido) – onde se lê:
CLÁUSULA SEXTA.-1.-É da responsabilidade da E.Portugal, Ldª toda a negociação e celebração de contratos com fornecedores dos meios técnicos necessários, cujo custo se encontra incluído no preço do Programa.
2.-São da exclusiva propriedade da E.Portugal, Ldª todos os cenários, construções e adereços utilizados na produção do Programa, podendo dispor dos mesmos conforme entender. (…).”
7-Em 28 de Julho de 2013 encontrava-se em vigor o “SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL GERAL” celebrado entre a 2ª R. e a interveniente “AIG” – junto a fls 221 a 224 (cujo teor se dá aqui por reproduzido).
8-Nenhuma relação contratual foi estabelecida entre a 1ª R. e J. L.dosS.G..
9-J.L.dosS.G., toureiro de profissão, foi convidado a participar no programa “Dança com as Estrelas” – produzido pela 2ª R. e transmitido pela 1ª R..
10-A 2ª R., enquanto produtora do programa, mandou executar todos os cenários e adereços necessários à sua produção.
11-No dia 28 de Julho de 2013, no ensaio geral do programa supra, J.L.dosS.G. sofreu um acidente – caindo de uma plataforma com cerca de 2,5 metros de altura que não tinha corrimão ou qualquer dispositivo de segurança.
12-Devido à queda, J.L.dosS.G. sofreu traumatismo cranioencefálico grave – tendo sido submetido a diversas operações, e encontrando-se hospitalizado desde então, em estado semivegetativo.
13-Em 28-VII-13 o A. tinha grande relação afectiva com o pai.
14-O A. sente enorme sofrimento pelo estado em que o pai – que não consegue reconhecer o próprio filho -, se encontra – e medo pela possibilidade de seu pai nunca vir a recuperar.
15-O A. continua a sofrer pela perda do pai – que, embora vivo, tem poucos momentos de lucidez.
16-A.M.F. tem como únicos rendimentos 231,60€ de R.S.I. (fls 30), e 84,46€ de abono e bolsa do A. (fls 31).
17-Em 12 de Setembro de 2013 o ora A. matriculou-se no 1º ano do Curso Profissional de Técnico de Energias Renováveis (fls 24)
18-O A. vive (actualmente) com a mãe (que sofre de artrite reumatóide).
19-O A. vivia com o pai, e passou a viver com a mãe em Maio de 2013, na sequência de discussão com o pai (relativa ao seu percurso e aproveitamento escolar).

O tribunal a quo enunciou os seguintes.

Factos não provados.
20-A queda deu-se de umas escadas, quando as luzes se apagaram.
21-As 1ª e 2ª RR. sabiam que as escadas teriam de estar devidamente protegidas.
22-As luzes encontravam-se acesas, e a plataforma tinha marcas de segurança, delimitando o seu perímetro.
23-A 2ª R. concebeu e executou (os cenários)
24-visita-o com grande regularidade desde o acidente.
25-ainda hoje não consegue levar uma vida normal
26-Em 28-VII-13 o A. tinha terminado o 12º ano e tinha expectativas de entrar na Universidade – e recebia do pai, que o ajudava a pagar (metade das) despesas com vestuário, actividades extracurriculares e livros, um valor mensal de alimentos de 250€.
27-O A. deixou de receber alimentos do pai em 28-VII-13 – tendo tido dificuldades económicas para fazer face às suas despesas, e têm despesas médias mensais de 645€ (fls 32 a 43).
28-Por força da situação económica da mãe, o A. não pode concorrer às faculdades de ensino superior que pretendia.
29-sendo o pagamento (do Curso Profissional) feito com muito custo e ajuda de familiares.

O Direito.
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

No caso dos autos a apelante insurge-se contra os factos dados como provados sob os n.ºs 12 a 15, entendendo que o ponto n.º 12 deve ter redação diversa e os restantes devem ser julgados não provados.

Quanto ao facto n.º 12, o tribunal deu como provado que “Devido à queda, J.L.dosS.G. sofreu traumatismo cranioencefálico grave – tendo sido submetido a diversas operações, e encontrando-se hospitalizado desde então, em estado semivegetativo.”

A apelante entende que deve dar-se como provado apenas que “Devido à queda, J.L.dosS.G. sofreu lesões graves, tendo sido submetido a diversas operações, encontrando-se hospitalizado desde então.”

Vejamos.

É certo que não foi junta aos autos qualquer documentação médica atinente ao sinistrado. Porém, a verdade é que, ouvida a gravação da audiência de julgamento, verifica-se que a matéria dada como provada pelo tribunal a quo apresentou-se como pacífica, não tendo suscitado qualquer controvérsia ou contraditório por parte dos mandatários das partes a descrição mais detalhada sobre a evolução do pai do A., que foi efetuada pela mãe do A.: esta declarou que logo após o acidente, no Hospital de Santa Maria, o pai do A. ainda falou, tendo perguntado ao A. onde estava a mãe (do A.) e se este tinha roupa. Depois, ainda conseguia comunicar com a mão, apertando a mão do filho para dizer sim ou não, e reconhecendo o filho. Depois foi piorando, deixando de reconhecer o filho e as outras pessoas. É como se fosse um vegetal. É alimentado por uma sonda. É pior do que um bebé. Também o A. declarou que o pai não tem qualquer tipo de interação. A testemunha C.G., companheira do pai do A. à data do acidente e que o visita diariamente confirmou que ele “não reage”. Todos confirmaram que o pai do A. continua internado num estabelecimento da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, a “Unidade Hospitalar Maria José Nogueira Pinto”, na Aldeia do Juzo, em Cascais.
Mesmo em sede de alegações orais, proferidas na audiência final, os exmos mandatários não questionaram minimamente o estado clínico do pai do A..
Ou seja, a única prova produzida acerca do estado de saúde do pai do A., os depoimentos de pessoas que o visitavam ou visitam no estabelecimento onde se encontra internado, aponta no sentido do dado como provado pelo tribunal a quo, sendo certo que não foi produzida qualquer prova em sentido contrário. Assim sendo, considera-se que não há razão para alterar o que foi dado como provado pelo tribunal a quo.

Quanto aos factos 13, 14 e 15, que têm a seguinte redação:
13–“Em 28-VII-13 o A. tinha grande relação afectiva com o pai.”
14–“O A. sente enorme sofrimento pelo estado em que o pai – que não consegue reconhecer o próprio filho -, se encontra – e medo pela possibilidade de seu pai nunca vir a recuperar.”
15–“O A. continua a sofrer pela perda do pai – que, embora vivo, tem poucos momentos de lucidez.”

O factualismo dado como provado decorre, desde logo, do que constitui a experiência normal das coisas. Acresce que tal presunção natural se confirma face ao declarado pelas pessoas ouvidas, em especial o próprio A., a sua mãe, a companheira do pai e também a testemunha A.M., grande amigo do pai do A. e seu colega de lides tauromáquicas. Desses depoimentos resultou que, embora os pais do A. se tivessem separado pouco antes do nascimento do A., o A. sempre conviveu com o pai, mantendo-se muito próximo deste, ao ponto de ter optado por seguir a carreira profissional do pai (toureio a pé) e de, nos dois últimos anos e até mês e meio antes do acidente, ter vivido sobretudo com o pai, para aprender com ele o ofício de toureiro. O facto de um mês e meio antes do acidente o A. ter passado a viver exclusivamente com a mãe, por se ter desentendido com o pai acerca do seu futuro (o pai achava que o filho não tinha vocação para o toureio e o A., aparentemente, discordava), não pode ser considerado, obviamente, como indício de que a ligação afetiva entre os dois desaparecera ou perdera significado. Quanto ao interesse manifestado pelo A. em relação ao pai, após o acidente, foi relevante o depoimento da testemunha R.M., motorista que fora contratado pela E.Portugal, Ldª para conduzir a viatura que a E.Portugal, Ldª pusera à disposição do A. para este poder visitar o pai no hospital. A testemunha confirmou que durante o período de cerca de um ano em que efetuou esse serviço, levou o A. a visitar o pai, durante a época escolar, todas as 6.ªs feiras, sábados e domingos e, fora do período escolar, todos os dias, até a E.Portugal, Ldª ter feito cessar esse serviço. O próprio A. e a sua mãe afirmaram que o A. passou a espaçar as visitas, na sequência de o A. ter ficado privado do uso da aludida viatura, na medida em que o custo das deslocações à Aldeia do Juzo era muito significativo, face às suas parquíssimas possibilidades económicas.

Face ao exposto, mantém-se a decisão de facto.

Terceira questão (direito do A. a indemnização por danos não patrimoniais)
A apelante entende que o A. não tem direito à peticionada indemnização, por respeitar a mero dano reflexo, que a lei apenas reconhece aos familiares no caso de morte da vítima.

Vejamos.

A regra geral que consagra o regime da responsabilidade civil contém-se no art.º 483.º do Código Civil:

Princípio geral
1.-Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
2.-Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.”

Aí se consagra o direito à indemnização daquele que, sendo titular de um direito absoluto ou de um interesse legalmente protegido, nele sofreu lesão contrária ao direito, causada por ação ou omissão, em regra culposa, de terceiro. Por sua vez, o dever de indemnizar cingir-se-á aos danos causados à vítima, nos termos consagrados nos artigos 562.º a 566.º do Código Civil.

Em relação aos danos não patrimoniais, provê o art.º 496.º do Código Civil:

Danos não patrimoniais.
1.-Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2.-Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3.-Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4.-O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”

Prevê-se, assim, em geral, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais suficientemente relevantes, pela sua seriedade, para justificarem a atribuição de uma compensação à vítima (n.º 1 do artigo).

No caso de morte da vítima, o legislador indica os familiares ou equiparados que receberão a indemnização que caberia à vítima pela perda do direito à vida e pelos restantes danos não patrimoniais sofridos ainda em vida (n.ºs 2 e 3).

Por outro lado, o legislador reconhece ainda, no caso de morte da vítima, o direito dos familiares e equiparados a uma indemnização por danos não patrimoniais por eles sofridos (parte final do n.º 4).

Ou seja, nesta norma admite-se a atribuição de indemnização a terceiros, a pessoas que, não sendo embora a vítima do ato lesante, se considera que dada a gravidade do dano (morte) e a sua proximidade para com a vítima, se justifica que recebam uma compensação em nome próprio.

A doutrina e a jurisprudência tradicionalmente consideravam que este preceito, dada a sua história e o seu texto, negava às pessoas nele referidas indemnização por danos não patrimoniais nos casos em que a vítima não falecesse, ainda que padecesse de lesões muito graves e incapacitantes.

Tal conduzia a que o direito se mostrasse indiferente perante situações que, de acordo com o senso comum, justificariam a sua proteção.

António Abrantes Geraldes reagiu contra este estado de coisas, em escritos cuja versão mais recente se mostra vertida em “Temas da responsabilidade civil, II volume, Indemnização dos danos reflexos”, 2.ª edição, Almedina.

Aí se propugnou que, face ao atual contexto normativo e social, a ressarcibilidade de danos não patrimoniais reflexos deve estender-se às pessoas que, fazendo parte do grupo definido no art.º 496.º, vejam gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfiram fortemente na esfera jurídica daqueles. Estaria aqui em causa dano moral por lesão do relacionamento familiar e/ou dano moral por lesão do relacionamento conjugal, cuja relevância se colheria do normativo Constitucional e, bem assim, do direito ordinário.

Tal preocupação, de que se encontrava eco, nomeadamente, em algumas esparsas decisões jurisprudenciais (veja-se as que se encontram publicadas em anexo à obra supra citada) e em alguns escritos doutrinais (vide Vaz Serra, Ribeiro de Faria e Américo Marcelino, referenciados por Abrantes Geraldes, obra citada, páginas 53 e 54) foi fazendo o seu percurso, tendo em 09.01.2014 o STJ, em plenário das secções cíveis, uniformizado a jurisprudência (acórdão n.º 6/2014, publicado no D.R. 1.ª série, n.º 98, de 22.5.2014) nos seguintes termos:
Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave.”

Na fundamentação do acórdão exarou-se que não se tomava posição sobre se os danos aqui tidos em consideração eram danos diretos, próprios dos beneficiários da indemnização, como tal enquadráveis no âmbito de aplicação subjetiva do art.º 483.º, ou se se tratava de danos reflexos, indiretos ou por “ricochete”. Mas admitiu-se que se se considerasse que se tratava de danos reflexos, a sua integração na previsão do art.º 496.º acarretaria uma interpretação extensiva do preceito. Em todo o caso, importaria proceder a uma interpretação atualista dos artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1 do Código Civil, de molde a considerarem-se danos do lesado particularmente graves, que tivessem causado no outro sofrimento muito relevante.

O acórdão logrou obter adesão amplamente maioritária dos exmos conselheiros intervenientes. Tendo alguns deles feito questão de, em declaração de voto, concretizarem o enquadramento dogmático da sua adesão. Assim, os conselheiros Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Lopes do Rego e Alves Velho ajuizaram que no caso dos autos e outros idênticos estava em causa o ressarcimento de danos diretos, sofridos pelo próprio familiar da vítima, enquadráveis na previsão dos artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1, seja por lesão do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade (perspetiva de Maria dos Prazeres Beleza e de Lopes do Rego), in casu no contexto dos efeitos pessoais do casamento, com tutela constitucional direta (art.º 26.º da CRP) e bem assim no plano do direito ordinário (art.º 70.º do Código Civil), seja enquanto lesão de direitos de personalidade (dignidade da pessoa humana, saúde, família) tutelados pela Constituição e pela lei (Alves Velho).

Que dizer?

No referido acórdão aponta-se ordenamentos jurídicos (França, Espanha, Itália) em que, porventura fruto de uma formulação legal da responsabilidade civil mais aberta (neste sentido, cfr. “Danos Não Patrimoniais dos Familiares da Vítima de Lesão Corporal Grave”, de Guilherme Cascarejo, Almedina, 2016, páginas 42, 43, 48) se admite a compensabilidade de danos sofridos por familiares próximos da vítima de lesões muito graves, embora não mortais, por mera aplicação dos princípios gerais da responsabilização civil.
Solução diversa seria a propugnada na Alemanha, em que a concessão de indemnização a familiares de vítimas não mortais apenas seria admitida em situações em que os próprios familiares sofressem danos tidos por relevantes, de gravidade superior à decorrente do “normal risco da vida”, sendo a jurisprudência muito rigorosa na aferição desses critérios, de molde que o ressarcimento não é a regra (acórdão citado, ponto 20). Para esta visão restritiva talvez contribua uma formulação do texto legal definidor da responsabilidade civil mais fechada, semelhante à do nosso Código Civil (neste sentido, Guilherme Cascarejo, obra citada, páginas 50 e 51).

Consideramos que a visão dita tradicional está desajustada face ao espírito e às necessidades atuais.

O ordenamento jurídico tem vindo, paulatinamente, a ser enriquecido com a tutela de direitos subjetivos e de interesses considerados dignos de proteção (conforme realça Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 55). Conforme se salienta no citado acórdão do STJ, “a intensificação dos direitos foi evoluindo intensamente, acompanhada de grande melhoria nas condições de vida” e “uma das vertentes em que isso se manifesta diz respeito à ampliação do leque indemnizatório” (ponto 24 do acórdão).

Conforme se proclama no art.º 1.º da Constituição, a República Portuguesa baseia-se na dignidade da pessoa humana. Esta não se cinge a cada indivíduo em si mesmo, isolado e indiferente aos outros. Pelo contrário, a relação com os outros constitui dimensão fundamental, essencial, da nossa humanidade. Aliás, a solidariedade é um dos vetores essenciais da República (parte final do art.º 1.º da CRP).

Para o ser humano, os vínculos familiares constituem base radical, estrutural, da sua identidade e do seu (ou não) desenvolvimento. Tal tem expressão na consagração de disposições jurídicas que protegem a família, nomeadamente os laços entre pais e filhos. Vide, v.g., os artigos 36.º, 67.º e 68.º da CRP, o art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o art.º 9.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança, e, afinal, todo o Título III do Livro IV do Código Civil.

Podendo dizer-se que a dimensão do ser humano enquanto pai ou filho (em suma, a paternidade/maternidade e a filiação) se alberga na cláusula geral de proteção da personalidade consagrada no art.º 70.º do Código Civil.

Daí que a morte ou a lesão grave de um pai ou de um filho, comprometendo séria e irremediavelmente essa dimensão essencial da vivência da pessoa, constitua, em regra, um dano direto, a lesão de direito absoluto ou interesse juridicamente tutelado, que, verificados que estejam os restantes pressupostos da responsabilidade civil, merece ser compensado, a título de dano não patrimonial, ao abrigo do disposto nos artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1 do Código Civil.

Entendemos, pois, que atualmente a segunda parte do n.º 4 do art.º 496.º do Código Civil não carecerá de interpretação extensiva, a fim de se aplicar a situações como as que temos vindo a tratar. O que se poderá dizer é que atualmente essa previsão começa a não ter utilidade e é até contraproducente, na medida em que, se aquando da publicação do Código Civil se apresentava como forma de alargar o direito de indemnização a pessoas que à partida o não teriam, por não serem consideradas lesadas ou vítimas, isto é, não integrarem os destinatários das previsões dos artigos 483.º n.º 1 e 496.º n.º 1 do Código Civil, hoje em dia, como decorre das considerações supra, a sua proteção pode fazer-se por mera aplicação daquelas previsões (n.º 1 do art.º 483.º e n.º 1 do art.º 496.º). A manutenção da segunda parte do n.º 4 do art.º 496.º acaba por criar a aparência de um obstáculo, de uma restrição ou impossibilidade de ressarcimento que é, afinal, ilusória. Poderá apenas ponderar-se que tal preceito, conjugado com os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo, terá a função de definir, circunscrevendo-as, as pessoas que, em caso de lesão grave de “familiar”, terão direito a indemnização a título de danos não patrimoniais (neste sentido, Abrantes Geraldes, obra citada, páginas 91 e 92).
Revertamos ao caso dos autos.
Provou-se que o pai do A., que no passado exercera uma profissão tão perigosa como é a do toureio tauromáquico, veio a sofrer um grave acidente não no exercício dessa atividade mas sim no decurso de um ensaio num programa televisivo, dando uma queda que lhe causou traumatismo cranioencefálico grave. O pai do A. foi submetido a diversas operações e encontra-se hospitalizado desde então, em estado semivegetativo.
Ou seja, no verão de 2013, quando ainda tinha 17 anos de idade, o A. viu-se privado do convívio com o seu pai, o qual ficou reduzido a um ser inerte, sem interação, permanecendo nesse estado há três anos. A gravidade das lesões sofridas pelo pai do A., a pouca idade do A., a proximidade com o pai que decorre do facto de, apesar de os seus progenitores estarem separados há muito anos, o A. ter vivido com o pai durante dois anos, até pouco antes do acidente, dão a dimensão das consequências que de tudo isto terão advindo para o A., dadas como provadas sob o n.º 14 da matéria de facto.
Do que resulta, inquestionados que estão os restantes pressupostos da responsabilidade civil por parte da 2.ª R. (omissão culposa dos cuidados necessários a prevenir o acidente – ato ilícito e culposo -, de que resultou o acidente e respetivos danos – dano e nexo de causalidade), que deve reconhecer-se o direito do A. a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais por si sofridos em consequência do sinistro que vitimou o seu pai.
A resposta a esta terceira questão é, assim, afirmativa.

Quarta questão (montante da indemnização)
O A. havia peticionado, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 30 000,00.
O tribunal a quo fixou a indemnização em € 25 000,00.
Na fundamentação desse valor exarou-se o seguinte:
Tendo em conta a forte ligação afectiva existente entre A. e seu pai, e considerando também que, apesar de não ter ocorrido o óbito, o pai do A. ficou totalmente incapacitado (talvez de forma irreversível – ponto 12) de manter ou retomar a ligação afectiva com o filho, julga-se adequado fixar o montante indemnizatório em vinte e cinco mil euros – a que acrescerão juros desde a citação.
A apelante defende que seja atribuída indemnização em valor não superior a € 5 000,00. Para tal, alega que o valor fixado pelo tribunal a quo é superior aquele que costuma ser atribuído pelos tribunais aos filhos de vítimas em caso de morte destas e é também superior ao valor previsto na Portaria n.º 377/2008, de 26.5, que fixa os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel, a título de proposta razoável para indemnização do dano corporal, no seu Anexo II - compensações devidas em caso de morte e a título de danos morais aos herdeiros -, que estabelece o limite de € 15.000,00 a atribuir ao filho com idade menor ou igual a 25 anos, em caso de morte dos seus pais, a título de danos morais. Além de que, segundo a apelante, o A. não demonstrou real sofrimento perante a situação do pai, raramente o visitando.

Vejamos.

No que concerne ao valor previsto na Portaria referida pela apelante, após a alteração introduzida pela Portaria n.º 679/2009, de 25.6, tal valor é, atualmente, de € 15 390,00. Trata-se de montante que foi fixado já há alguns anos (junho de 2009). Por outro lado, conforme expressamente consta no n.º 2 do art.º 1.º da Portaria, as disposições nela constantes não afastam o direito à indemnização de outros danos nem a fixação de valores superiores aos propostos.

A lei estipula que a indemnização deverá ser fixada com recurso à equidade, atendendo-se ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.

Levar-se-á em conta também, por força das considerações de certeza do direito e de justiça relativa que subjazem ao art.º 8.º n.º 3 do Código Civil, os montantes indemnizatórios que os tribunais têm fixado.

In casu, quanto à culpabilidade do lesante, é qualificável de negligência grosseira (colocação dos concorrentes em plataforma com 2,5 metros de altura, sem corrimão ou qualquer dispositivo de segurança). A situação económica da 2.ª R., conhecida produtora de programas televisivos, cuja responsabilidade, de resto, está coberta por um seguro, deverá ser considerada, para o efeito destes autos, desafogada. Pelo contrário, a situação económica do A. é muito precária, pois vive com a mãe, que aufere rendimento social de inserção, tendo-lhe sido deferido (ao A.) benefício de apoio judiciário para propor esta ação. Provou-se que o A. tinha grande relação afetiva com o pai, sente enorme sofrimento pelo estado em que o pai se encontra (o pai não reconhece o próprio filho) e tem medo de que este nunca venha a recuperar.

No que concerne à prática dos tribunais, encontra-se, no que respeita à compensação de filhos pela morte dos pais, valores na ordem dos € 30 000,00 (STJ, 29.11.2016, processo 820/07.5TBMCN.P1.S1), € 20 000,00 (STJ, 09.7.2015, processo 1647/13.0TBRG.G1.S1 e STJ, 28.11.2013, processo 177/11.0TBPCR.S1, neste caso filha com 55 anos, pela morte de mãe com 78 anos de idade) e € 25 000,00 (STJ, 14.02.2013, processo 705/10.8TBPFR.P1.S1).

Embora o pai do A. não tenha perdido a vida, a verdade é que está perdido para a vida, como decorre da matéria provada, quase se podendo dizer, com o devido respeito e reserva, que a situação atual é pior do que a morte.

Entendemos, pois, atento tudo o exposto e ponderado, que o valor fixado pelo tribunal a quo não merece censura.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da apelante, que nela decaiu.



Lx, 26.01.2017



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins