Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5453/2008-8
Relator: CAETANO DUARTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PACTO ATRIBUTIVO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Um contrato de compra e venda, a simples aposição duma inscrição na factura a fixar a competência dum tribunal doutro país não é suficiente para se considerar que foi celebrado um pacto atributivo de competência:
2. Quer à luz do artigo 99º do Código de Processo Civil, quer do regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, este pacto só é válido se for celebrado por escrito ou, pelo menos, confirmado por escrito.
(CD)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

            B…. L.da propôs acção com processo ordinário contra J… L.da pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 39 372,79 e juros vin­cendos sobre € 37 058,67. Alega ter fornecido à Ré diverso equipamento no valor do capital pedido e que a Ré não pagou.

Contestou a Ré, excepcionando a competência internacional dos tribunais portugue­ses e a compensação parcial do seu crédito sobre a Autora no valor de € 4 627,56.

Foi proferido despacho saneador de fls. 81 a 91 em que se julgou improcedente a excepção de incompetência internacional do tribunal e se julgou o pedido da Autora par­cialmente procedente e se condenou a Ré a pagar à Autora € 32 4431,11 e juros sobre esta quantia a contar do trânsito da decisão. Desta sentença vem o presente recurso de apelação interposto pela Ré.

            A Apelante alega, em resumo:

- A facturação na posse da apelante tem uma cláusula, em língua espanhola, onde se menciona que, para dirimir qualquer litígio entre as partes, é competente o tribunal do domicílio da vendedora;

- O domicílio da vendedora, ora Autora/Apelada, é em Albacete, Madrid – Espa­nha e a referida cláusula tem de ser considerada como um pacto atributivo de jurisdição nos termos do artigo 99º do Código de Processo Civil;

- É certo que não há acordo bilateral escrito mas a inclusão da citada clausula importa a confirmação por escrito que a vontade declarada da ora Autora/Apelada é submeter qualquer litígio entre as partes ao tribunal do seu domicílio, ou seja , o do seu domicílio em Albacete;

- Embora se trate duma declaração unilateral da Autora, a mesma foi tacitamente aceite pela Ré, ora Apelante;

- O tribunal competente é pois o de Albacete e não o de Lisboa.

A apelada contralegou, dizendo:

- De acordo com o Regulamento 44/2001 do Conselho da União Europeia de 22.12.2000, que substituiu , entre os estados membros, as Convenções de Bruxelas e de Lugano, exige que o acordo de atribuição de competência seja formulado por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

- Além disso, embora a facturação seja emitida pela casa mãe em Albacete, a ora Apelada tem uma sede em Portugal através da qual angaria clientes e efectua os seus negócios para Portugal;

- E, como a Apelante bem sabe, o pagamento deveria ser feito em Lisboa, na sede da Apelada.

            Corridos os vistos, cumpre decidir.

            Foram considerados provados os seguintes factos:

            - No exercício da sua actividade comercial, a Autora dedica-se à prestação de servi­ços, prospecção e angariação de clientes na área do gesso e seus derivados;

- No exercício e sequência da sua actividade, a Autora forneceu e facturou à Ré os materiais constantes dos documentos de fls. 6 a 11, mediante a contrapartida monetária global de € 37 058,67;

- Parte dos materiais em causa encontravam-se defeituosos;

- A Ré interpelou a Autora diversas vezes para que esta lhe enviasse um extracto detalhado da conta corrente para que a Ré pudesse pagar a quantia em dívida, pois era esse a sua intenção;

- No entanto, a Autora apenas enviou à Ré as notas de crédito dos materiais defei­tuosos, no valor de € 4 627,56, a que se referem os documentos de fls. 27 a 31;

- Assim como, a pedido da Ré, enviou a Autora um fax, constante de fls. 32;

- Apesar disso, o crédito do valor dos materiais defeituosos não foi creditado na conta corrente da Ré;

- A Ré não procedeu ao pagamento do valor dos materiais fornecidos em bom estado, porque a Autora não procedeu ao envio da facturação corrigida.


O âmbito do recurso define-se pelas conclusões do apelante (artigos 684º n.º 3 e 690º n.º 1 do Código de Processo Civil). No presente recurso há que decidir se os tribunais portugueses têm competência internacional para dirimir este litígio.
Acentue-se, desde já, que a decisão, na sua parte substancial não é afectada pelo presente recurso. Se vier a ser considerado o tribunal nacional com competência para deci­dir esta causa, a sentença mantém-se na sua totalidade não se podendo discutir mais o cré­dito da apelada sobre a apelante.
A matéria da competência internacional dos tribunais portugueses vem regulada no artigo 65º do Código de Processo Civil, com ressalva do que se estatui no artigo 99º do mesmo diploma legal quanto à possibilidade de serem celebrados pactos privativos e/ou atributivos de competência. Há que ter ainda em conta, uma vez que estamos perante uma situação que diz respeito a dois países membros da União Europeia, o disposto no Regula­mento (CE) n.º 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil.
As partes não questionam a competência internacional dos tribunais portugueses para decidir este litígio suscitando apenas a questão da existência dum eventual pacto atri­butivo de competência ao abrigo do qual a competência teria sido atribuída aos tribunais espanhóis. Esse pacto consubstanciar-se-ia no facto de as facturas incluírem no seu verso a seguinte inscrição: “Para el enjuiciamento y decision de cualquier litigio derivado de la ejecucion de esta compraventa o de la interpretacion de sus clausulas, a la jurisdicion de los juzgados y tribunales de Madrid capital. Es voluntad expresa de las partes que la presente estipulacion sea aplicable tanto a las compraventas internacionales como a las nacionales”. Curiosamente, a factura em posse da Ré não tem qualquer menção no seu verso mas inclui no rosto a seguinte inscrição: “Renunciando a su fuero próprio, las partes aceptan someteren al juez del domicilio de la vendedora cualquier litigio sobre este contrato.”.
Antes demais, há que analisar a questão de as inscrições não serem iguais e saber se podemos considerar que, no caso de serem válidas, visam o mesmo objectivo. De facto, numa inscrição atribui-se a competência aos tribunais de Madrid e, na outra, aos tribunais do domicílio da vendedora. Se admitirmos que a vendedora é a I…., com sede em Madrid[1], as clausulas, embora com redacção diversa, dizem o mesmo uma vez que o domicílio da vendedora é em Madrid.  Admite-se, por isso, que, apesar da diferente forma de inserção da clausula, as facturas contenham uma inscrição dizendo que as partes atribuem a competência para dirimir litígios resultantes desta compra e venda ao tribunal de domicílio da vendedora que será o tribunal de Madrid.
Aceite a existência da inscrição, há que apreciar a sua validade às luz dos normativos atrás citados. Vejamos primeiro o que dispõe o artigo 99º do Código de processo Civil, na parte que interessa a esta causa:
“ 1 – As partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica”.
3 – A eleição do foro só é válida quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:
a) dizer respeito a um litígio sobre direitos disponíveis;
b) ser aceite pela lei do tribunal designado;
c) ser justificada por um interesse sério de ambas as partes ou de uma delas, desde que não envolva inconveniente grave para a outra;
d) não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
e) resultar de acordo escrito ou confirmado por escrito, devendo nele fazer-se menção expressa da jurisdição competente.
4 – Para os efeitos do número anterior, considera-se reduzido a escrito o acordo constante de documento assinado pelas partes, ou o emergente de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de comunicação de que fique prova escrita, quer tais instrumentos contenham directamente o acordo, quer deles conste clausula de remissão para algum documento em que ele esteja contido.”
Admitindo que a relação controvertida tem conexão com as ordens jurídicas portuguesa e espanhola[2], as partes podiam convencionar a jurisdição competente para dirimir litígios decorrentes deste(s) contrato(s) de compra e venda. Mas tal convenção só é válida se cumprir os requisitos referidos no n.º 3 do preceito citado. Estamos no âmbito de direitos disponíveis, a lei espanhola aceita(rá)[3] esta atribuição de competência, e não se trata da questão da competência exclusiva dos tribunais portugueses. A inclusão da inscrição é feita pela autora pelo que se terá de admitir, da sua parte, um interesse sério em atribuir esta competência aos tribunais espanhóis. O mesmo se poderá dizer quanto à ré na medida em que suscita a questão[4]. Resta-nos o requisito do acordo escrito. É manifesto que a clausula se encontra escrita mas não nos parece possível considerar que haja um acordo escrito pois nada nos permite concluir que a ré aceitou o pacto: o acordo não está assinado pelas partes, a sua inserção é feita por forma a “não ser lido” – no verso ou em letras miúdas no rosto -, não há qualquer troca de cartas ou outros meios de comunicação donde resulte prova escrita do acordo entre as partes. Embora se possa encontrar alguma jurisprudência no sentido de a aceitação tácita de cláusula incluída nos documentos do contrato ser suficiente para validar o pacto, não nos parece que a lei permita tal interpretação: o n.º 4 do artigo 99º do Código de processo Civil é peremptório em exigir prova escrita do acordo e a aceitação tácita do comprador não permite a prova escrita da celebração do m esmo.
Mas, tem de se tomar em conta a actual regulamentação resultante das convenções internacionais em vigor na nossa ordem interna e, em especial, do previsto no Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro de 2000. Este regulamento, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria civil e comercial, estabelece no n.º 1 do seu artigo 2º que “…as pessoas domiciliadas no território dum Estado membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.” E acrescenta o n.º 1 do artigo 3º do mesmo regulamento que “as pessoas domiciliadas no território dum Estado membro só podem ser demandadas perante os tribunais de um outro estão membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo.” Em matéria de contratos, regula a secção 2 cujo artigo 5º estatui que “uma pessoa com domicílio no território de um Estado membro pode ser demandada noutro Estado membro, em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão”, acrescentando que “o lugar de cumprimento da obrigação em questão será , no caso de venda de bens, o lugar num Estado membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou deviam ser entregues.”
Analisando estes preceitos, tem de se concluir pela competência dos tribunais portugueses uma vez que os bens tinham de ser entregues (e foram entregues) no domicílio da ré que se situa em Portugal. Resta analisar o artigo 23º do mesmo regulamento:
“1 – Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado membro, tiverem convencionado que um tribunal ou tribunais de um Estado membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário. Esse pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:
a) por escrito ou, verbalmente com confirmação escrita; ou
b) em conformidade com os usos que as partes estabeleceram entre si; ou
c) no comércio internacional, em conformidade com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial considerado.”
2 – Qualquer comunicação por via electrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à forma escrita.
Não sendo invocados usos estabelecidos entre as partes ou usos do comércio internacional amplamente conhecidos e regularmente observados, há que centrar a atenção no primeiro requisito: a redução a escrito. E aqui, parece-nos que a letra do regulamento é ainda mais restritiva que a do artigo 99º do Código de Processo Civil, acima referida. Basta atentar que se prevê celebração por escrito ou verbal mas com confirmação escrita e o n.º 2 vem admitir uma comunicação por via electrónica que permita um registo duradouro. Esta norma revela que o importante é a existência dum registo escrito duradouro que permita confirmar a existência do pacto. Ora, uma inscrição aposta por uma das partes na factura, em relação à qual a outra parte não se pronuncia, não pode ser considerado um acordo com registo duradouro.
Resumindo:
- num contrato de compra e venda, a simples aposição duma inscrição na factura a fixar a competência dum tribunal doutro país não é suficiente para se considerar que foi celebrado um pacto atributivo de competência:
- Quer à luz do artigo 99º do Código de Processo Civil, quer do regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, este pacto só é válido se for celebrado por escrito ou, pelo menos, confirmado por escrito.

            Termos em que acordam julgar improcedente a apelação, confirmando, na íntegra, a sentença recor­rida.

            Custas pela Apelante.

   Lisboa, 25 de Setembro de 2008

(José Albino Caetano Duarte)

(António Pedro Ferreira de Almeida)

(José Fernando Salazar Casanova)  

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[1] O “se” justifica-se porque há que saber se a vendedora é directamente a I… com sede em Madrid ou a sua agência em Lisboa. Esta questão fica para análise posterior se tal se justificar.
[2] No caso de a vendedora ser a casa mãe da I… e não a sua agência em Portugal.
[3] Pelo menos, a Autora não invocou a falta deste requisito para afastar a validade do pacto pelo que se admite que não há problemas com a aceitação da resolução deste litígio por parte da lei espanhola.
[4] Pode-se questionar a seriedade deste interesse pois uma empresa com sede em Cascais dificilmente tirará benefício de ver o litígio decidido num tribunal a mais de 600 km e de jurisdição estrangeira mas tem de se admitir a seriedade da ré ao defender o pacto.