Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
42/15.1TNLSB.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I. A notificação do arguido em processo contra-ordenacional para efeitos do artigo 50º do RGCO numa terceira pessoa, constitui uma nulidade;

II. Tal nulidade não pode considerar-se sanada quando o arguido invoca a mesma perante a autoridade administrativa e não obtém da mesma qualquer pronúncia e posteriormente deduz impugnação judicial onde, para além de invocar, de novo, a referida nulidade se pronuncia sobre o mérito da contra-ordenação;

III. O não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da autoridade administrativa constitui uma nulidade insanável.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Nos presentes autos de recurso acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I           Relatório

           Por decisão proferida pelo Comandante da Polícia Marítima do Comando Local do Porto, ao que este recurso interessa, foi aplicada ao arguido, F..., , a coima no valor de 500,00 €, pela prática de infracção de exercício de faina de pesca com arte não autorizada de arrasto de ganchorra rebocada.

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Não se conformando com esta decisão o referido arguido interpôs recurso para o Tribunal Marítimo de Lisboa, suscitando, além do mais, a nulidade do acto de notificação da sua constituição como arguido.

Após ter sido dispensada a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida a 31/07/2015 a sentença de fls. 289 a 309, a qual julgou procedente a referida nulidade e anulado todo o processado referente ao recorrente.

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A Digna Magistrada do Ministério Público, não se conformando com a decisão interpôs recurso para este Tribunal da Relação, nos termos da motivação de fls. 313 a 333, concluindo da seguinte forma: (transcrição)


1. A notificação dirigida ao recorrido F..., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, tendo sido efectuada em pessoa diversa da do notificando sem que a lei o permitisse, enferma de nulidade – artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, aplicável ex vi do disposto no artigo 41.º, n.º 1, daquele Decreto-Lei.


2. Trata-se de uma nulidade dependente de arguição, a qual é susceptível de sanação nos termos consignados no artigo 121.º do CPP.


3. Como flui do disposto no artigo 122.º do CPP, as nulidades tornam inválido, em regra, o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (n.º 1).


4. Todavia, caso se trate de nulidades sanáveis, como sucede no caso em apreço, estabelece-se no artigo 121.º do mesmo Código que as mesmas ficam sanadas se os participantes processuais interessados se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulado se dirigia.


5. Conforme resulta da fundamentação do Assento do STJ n.º 1/2003, publicado no Diário da República, I Série A, de 2003-01-25, a omissão da notificação para audição prevista no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82 implica a nulidade sanável da decisão administrativa condenatória, arguível pelo acusado no acto da impugnação judicial; se esta impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa; todavia, se a impugnação judicial se prevalecer do direito preterido, pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento, a nulidade considerar-se-á sanada (artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP, e 41.º, n.º 1, do RGCO).


6. Foi exactamente isso que ocorreu no caso sub judicio: o recorrido F... veio, em 30-12-2014, apresentar requerimento de defesa no processo (fls. 189-196), em que, perante a entidade administrativa, arguiu a nulidade da notificação que lhe foi efectuada por contacto pessoal na pessoa da sogra (artigos 1.º a 6.º), invocou a prescrição do procedimento contra-ordenacional no que respeita à infracção que lhe era imputada (artigos 7.º a 12.º), negou a prática dos factos que lhe eram atribuídos (artigo 15.º), alegou a desproporcionalidade das coimas a aplicar (artigos 17.º e 18.º) e pediu a final a respectiva absolvição. Por outro lado, requereu apenas que se procedesse à inquirição de uma testemunha, sem indicar o objecto do depoimento, testemunha essa que, aliás, já havia sido inquirida no processo (a fls. 145º e v.º).


7. Seguidamente, o mesmo arguido deduziu, conjuntamente com os demais co-arguidos, impugnação judicial relativamente à decisão administrativa condenatória, no âmbito da qual, para além de continuar a invocar a aludida nulidade de notificação, se prevaleceu do seu direito à defesa, voltando a invocar a prescrição do procedimento contra-ordenacional, a negar a prática dos factos que lhe foram imputados, alegando que os mesmos não se mostram comprovados através dos elementos de prova trazidos ao processo e pedindo a sua consequente absolvição, alegando a desproporcionalidade das coimas aplicadas, que deveriam reduzir-se ao mínimo legal, e invocando que a generalidade dos normativos fundamentadores da decisão condenatória fora interpretada pela autoridade recorrida em desconformidade com múltiplos preceitos constitucionais que cita. Não requereu, à semelhança dos demais co-arguidos, a produção de qualquer prova complementar por parte do Tribunal ad quem, por a não considerar necessária à sua defesa, tendo prescindido, designadamente, de requerer a inquirição da testemunha Paulo Marques, uma vez que a mesma já havia sido inquirida a fls. 145 e v.º do processo. Daí que, inexistindo prova a produzir, viria a impugnação judicial a ser julgada por meio de simples despacho, sem realização de audiência de julgamento.


8. Verifica-se, através do exposto, que o arguido e aqui recorrido F... se prevaleceu plenamente no âmbito da impugnação judicial de exercer o seu direito de defesa, invocando em seu benefício exactamente os argumentos, em termos factuais e jurídicos, que aduzira para sua defesa perante a autoridade administrativa na sequência da invocação da nulidade da sua notificação para efeitos do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82 (cf. fls. 189-196 e fls. 209-232).


9. Todos esses argumentos foram julgados improcedentes relativamente aos demais co-arguidos na douta sentença que julgou a impugnação da decisão administrativa, desatendendo-a, sem necessidade de produção de qualquer prova complementar.


10. Tendo o recorrido F... optado por, na impugnação judicial da decisão administrativa condenatória, para além de invocar a nulidade decorrente da notificação que lhe foi dirigida para efeitos do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, exercer plenamente, conjuntamente com os demais co-arguidos e em total consonância com os mesmos, o seu direito de defesa com a mesma amplitude com que a pretendeu exercer perante a autoridade administrativa, tal determinou a sanação da nulidade em causa, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP.


11. Ao não entender assim, aplicando no caso, com desconsideração da sanação consignada em tal preceito [artigo 121.º, n.º 1, alínea c)], o regime tabelar decorrente do n.º 1 do artigo 122.º do CPP, fez a sentença recorrida errada interpretação das mencionadas disposições legais (erro relativamente à norma no caso aplicável).


12. Deverá, consequentemente, na procedência do presente recurso, ser a decisão recorrida, na parte correspondente, revogada e substituída por outra que, julgando sanada a referida nulidade processual, por aplicação do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP, conheça da impugnação apresentada pelo ora recorrido F..., desatendendo-a nos termos em que foram desatendidas as impugnações dos demais co-arguidos e mantendo, relativamente àquele, a condenação proferida pela autoridade administrativa.

Assim decidindo, farão Vossas Excelências a costumada JUSTIÇA! (fim de transcrição).

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O recurso foi admitido a fls. 334 e o arguido não respondeu ao mesmo.

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Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 343 a 347, alegando, em suma, que a não notificação pela autoridade administrativa do arguido nos termos do artigo 46º do RGCOC constitui uma mera irregularidade sanável pelo decurso do tempo nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal pronunciando-se pela procedência do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº2 do Código de Processo Penal.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir.

II          Fundamentação

           1. O Decreto-Lei n.º 278/87, de 7 de Julho, na redacção resultante dos Decretos-Lei n.º 218/91, de 17 de Junho e 383/98 de 27/11, no seu artigo 16º, estabelece como regime subsidiário, em matéria de recursos, o disposto no Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro, que, por sua vez, no artigo 41º nº 1, quanto ao processamento, remete subsidiariamente para as normas processuais penais.

Nos recursos da sentença proferida em sede de impugnação judicial, o Tribunal da Relação só conhece da matéria de direito (artigo 75º nº 1 do RGCO), salvo no caso de se verificarem os vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, que são de conhecimento oficioso[1], e hão-de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência.[2]

Feita esta ressalva impõe-se, elencar a questão suscitada pelo recorrente Ministério Público, a saber:

 

A notificação do recorrido numa terceira pessoa enferma de nulidade, a qual depende de arguição e deve considerar-se sanada, por o recorrido ter deduzido impugnação judicial e, para além de invocar a referida nulidade, ter exercido em pleno o seu direito de defesa.

Para uma correcta análise da questão e uma visão exacta do que está em causa, vejamos, em primeiro lugar, qual a factualidade que resulta do processo em relação à nulidade invocada pelo recorrido e julgada procedente pelo Tribunal a quo:


1. Em 11/11/2014, o recorrido F..., foi notificado da constituição de arguido e
para o exercício da sua defesa, por contacto pessoal na pessoa de Ludovina Dias, a qual informou o notificante que o mesmo se encontrava a trabalhar na Alemanha;
2. Por decisão de 18/12/2014 foi o arguido condenado na coima de 500€;
3. Tal decisão foi notificada ao recorrido por carta para a mesma morada e foi recebida em 06/01/2015;
4. Em 30/12/2014 o recorrido apresentou um requerimento de defesa ao processo tendo arguido a nulidade da notificação efectuada, a prescrição do procedimento, negado a prática dos factos e a desproporcionalidade da coima aplicada e indicando ainda uma testemunha a inquirir;
5. Em 03/02/2015 o recorrido e os demais co-arguidos vieram interpor recurso da decisão administrativa condenatória alegando basicamente o já anteriormente alegado e não requerendo qualquer prova complementar, tendo o recurso sido decidido por despacho.

2. Sendo esta a factualidade processual dada por assente, vejamos se assiste razão ao recorrente.

Como refere o recorrente Ministério Público nas suas alegações, “(…) o artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82 que não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre” devendo esta possibilidade revestir a, “(…) forma de notificação, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 41.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e do artigo 112.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal” a qual “(…) terá de ser feita, em alternativa, por contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado, ou por via postal registada – artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal”, sendo que a, “(…) notificação por contacto pessoal com o notificando a lei não admite que a mesma seja feita em pessoa diversa daquele, embora com o mesmo residente (artigo 113.º, n.º 1, alínea a), do CPP)”.

Acrescenta a Digna Magistrada que a, “(…) violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal determina a nulidade do acto respectivo quando esta for a sanção processual expressamente cominada na lei. Caso contrário, a sanção será a de mera irregularidade (artigo 118.º do Código de Processo Penal) ” e o “(…) artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, subsidiariamente aplicável ao processo de contra-ordenação, que constitui nulidade dependente de arguição a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, bem como a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade” e conclui que, “A não notificação do arguido F... na sua própria pessoa, para efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, como acto que, no circunstancialismo exposto, deveria reportar-se como sendo legalmente obrigatório, constitui, assim, omissão qualificada por lei como nulidade dependente de arguição”.

Com o devido respeito concordamos com as premissas mas não concordamos com a conclusão.

O recorrente invoca em abono da sua tese, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, publicado no Diário da República, I Série A, de 25 de Janeiro de 2003, no qual se fixou jurisprudência nos seguintes termos: «Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado / notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão / acusação administrativa».

A jurisprudência em questão não se reporta às situações de inexistência de notificação para a defesa, mas apenas às situações em que tal notificação existe mas o seu cumprimento foi ineficiente ou incompleto, o que não é o caso dos autos.

A questão em discussão nos autos diz respeito à fase administrativa do processo de contra-ordenação, na qual foi omissa a notificação ao arguido da sua própria constituição como tal e a possibilidade legal de defesa. Dito de outra maneira, constitui nulidade sanável pela intervenção posterior do arguido na fase de impugnação judicial, a sua não notificação na fase administrativa do processo para deduzir a sua defesa?

A resposta só pode ser negativa.

O que está em causa é a total ausência do direito de defesa na fase preliminar do processo tal como impõe o artigo 50º do RGCO e os artigos 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa e 267º, nº 5, em matéria administrativa.

É verdade que o processo contra-ordenacional não é, nos seus exactos termos, um processo criminal tal como tem vindo a entender o Tribunal Constitucional em variados arestos,[3] mas nunca na perspectiva de omissão total da possibilidade do exercício do direito de defesa, núcleo essencial do direito criminal e contra-ordenacional.[4]

Como se pode constatar da factualidade assente, a decisão da autoridade administrativa é de 18 de Dezembro de 2014 e a notificação ao arguido é efectuada apenas em 6 de Janeiro de 2015. Contudo, apesar de ainda não ter sido notificado da decisão, provavelmente por ter tido conhecimento da mesma pelos co-arguidos, o recorrido veio a 30 de Dezembro de 2014 invocar a arguida nulidade, impugnar por cautela a materialidade invocando a prescrição e indicar uma testemunha.

Sobre este requerimento não recaiu qualquer despacho da autoridade administrativa e, perante tal silêncio, o arguido veio, a 3 de Fevereiro de 2015, juntamente com os demais, recorrer judicialmente da decisão, onde já não indicou qualquer testemunha limitando-se, uma vez mais, a invocar a nulidade e a impugnar a coima nos exactos termos dos demais.

Ora, esta realidade que resulta do processo não a mesma que em termos de conclusões resulta do Assento 1/2003. Como se pode ver da transcrição efectuada pela Digna Magistrada recorrente, o que o Supremo Tribunal de Justiça considera no texto do acórdão, que não na fundamentação, é a seguinte: “A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida "acusação", o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo "acusado", no acto da impugnação (artigos 120.º, n.ºs 1, 2, alínea d, e 3, alínea c, e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa (artigos 121º [120], n.ºs 2, alínea d, e 3, alínea c, e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada (art.s 121.º, n.º 1, alínea c, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações).” Toda a argumentação do Supremo Tribunal de Justiça é desenvolvida no pressuposto que não existiu qualquer intervenção do arguido na fase administrativa, o que não é o caso dos autos.

O Supremo Tribunal de Justiça na fundamentação considera que se perante tal omissão, o arguido impugnar a decisão judicialmente pronunciando-se sobre o objecto do procedimento e, sendo caso disso requerendo diligências, a nulidade considerar-se-á sanada, mas se se limitar a arguir a invalidade o tribunal invalidará a instrução. Mas, nada diz o Supremo Tribunal de Justiça, sobre as situações em que o arguido suscita a nulidade perante a própria autoridade administrativa e ao mesmo tempo invoca um outro conjunto de questões sobre a materialidade incluindo a produção de prova. Nada obstava no caso dos autos que a autoridade administrativa tomasse em conta o requerimento apresentado pelo arguido e suprisse a nulidade invocada na própria fase administrativa do processo (artigo 62º do RGCO).

Com o devido respeito nenhuma das situações invocadas pela Digna Magistrada recorrente ao nível das decisões dos Tribunais de Relação, configura uma situação como a dos autos. Pretender a aplicação ipsis verbis do Assento do Supremo Tribunal de Justiça como faz o recorrente Ministério Público, é omitir a actividade processual desenvolvida pelo arguido ainda na fase administrativa do processo em que suscitou a nulidade e sobre tal requerimento não obteve resposta.

A defender-se esta tese, estaríamos a permitir que a omissão da autoridade administrativa se repercutisse negativamente nos direitos de defesa do arguido. No fundo, o que se permitiria era que a autoridade administrativa é omissa em relação ao seu dever de notificação, volta a ser omissa em relação ao seu dever de pronúncia e, apesar disso, consideramos sanada toda essa actuação em prejuízo do direito de defesa do arguido.

Neste contexto não se pode considerar que o arguido se prevaleceu plenamente no âmbito da impugnação judicial de exercer o seu direito de defesa, já que essa impugnação judicial está contaminada com a omissão anteriormente verificada.

 Não se pode pois considerar sanada a nulidade nos termos do artigo 121º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, tal como preconiza o recorrente Ministério Público.

Mas a nulidade não pode estar sanada pelo que fica dito, mas também porque a mesma é insanável.

Vejamos.

Esta questão da natureza da omissão da notificação para o exercício do direito de defesa, não tem sido pacífica na doutrina, nem na jurisprudência, admitindo vários autores estarmos em presença de uma nulidade insanável.

  Os Juízes Conselheiros Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa consideram que a omissão do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa e a consequente “Não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre parece dever considerar-se uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do nº1 do artº. 119. Com efeito, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada”.[5]Neste sentido ainda que anteriores ao Assento 1/2003 vejam-se Acs. Relação de Évora de 24/03/92 e da Relação do Porto de 07/05/97 e já posterior ao Assento acórdão da Relação de Lisboa de 05/02/2004.[6]

Em sentido contrário, isto é, defendendo a tese do Assento e da não interpretação extensiva da alínea c) do artigo 119º do Código de Processo Penal, veja-se o Juiz Paulo Pinto de Albuquerque e a jurisprudência por si elencada.[7]

Parece-nos que a tese da nulidade insanável é aquela que melhor se adequa à matriz do nosso direito processual penal e contra-ordenacional e às teses sufragadas pela jurisprudência constitucional referidas anteriormente.

Aliás, o próprio legislador, em matéria tributária, consagrou o regime da nulidade insanável ao estatuir no artigo 63º, nº 1 al. c) do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) ao considerar nulidade insuprível a “(…) falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa”.

A consagração legislativa da nulidade insanável em matéria tributária e inexistindo qualquer justificação plausível para tratar diferentemente as demais situações contra-ordenacionais, não vemos como se possa argumentar, como faz Pinto de Albuquerque, que a consagração da excepção, confirma a regra. A regra é a possibilidade do direito de defesa tal como resulta do texto constitucional em matéria criminal extensiva à matéria contra-ordenacional. Esta sim é a regra e a matriz de qualquer processo justo e equitativo.

Um processo justo e equitativo em matéria contra-ordenacional não se compadece com supressão de direitos aos arguidos, em virtude de actuações menos diligentes das autoridades administrativas.

Em resumo e pelas razões referidas, consideramos que o não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da entidade administrativa conduz a uma nulidade insanável.

A nulidade do acto implica que o mesmo é inválido, tal como todos aqueles que estejam na dependência funcional ou seja com todos aqueles que exista nexo funcional,[8] o que nos reconduz à própria notificação omissa e à decisão da autoridade administrativa (artigo 122º do Código de Processo Penal).   

Assim, sem mais considerandos, por desnecessários, nenhuma censura nos merece a sentença recorrida à qual se adere e confirma, improcedendo o presente recurso.

III         Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Sem custas por não serem devidas.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por doze páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 21 de Janeiro de 2016

Antero Luís

João Abrunhosa

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[1]  Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no art.º 410.º/2 CPP.
[2]Por todos veja-se acórdão do STJ proferido no Proc nº 4375 em que foi relator o Conselheiro Raul Borges: «A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma (…)». (www.dgsi.pt)

[3] Veja-se acórdão N.º 537/2011 de 15/11/2011, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110537.html
[4] Neste sentido, entre outros, acórdãos 442/2003 de 7/10/2003 e 278/99 de 05/05/199, no qual se escreve “Ou seja, ressalvado esse núcleo intocável - que impede a prolação da decisão sem ter sido dada ao arguido a oportunidade de "discutir, contestar e valorar" (parecer nº 18/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 16ºvol., pág. 154)- não existe um espartilho constitucional formal que não tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (como, de resto, e ao menos implicitamente, se retira de certos arestos do Tribunal como, v.g., os nºs. 1185/96 e 358/98, publicados no citado Diário, II Série, de 12 de Fevereiro de 1997 e 17 de Julho de 1998, respectivamente)”.
[5] In Contra-Ordenações, Anotações ao regime Geral, 6ª edição, 2011, págs. 380 e 381.  
[6] In CJ XVII, 2, pág. 308 (Évora); Proc. 10308 (Porto) e CJ XXIX, 1, pág. 129.
[7] In Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, Universidade Católica, pags. 210 e 211. 
[8] Neste sentido Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 132.