Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18910/19.0T8SNT.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
USO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - Não estando sujeita ao princípio da irredutibilidade da retribuição, a prestação por isenção de horário de trabalho pode ser modificada ou suprimida pelo empregador desde que se modifique ou cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição.
II – Utilizando o Autor a viatura que lhe estava atribuída para uso profissional e pessoal, constitui-se a mesma numa vantagem patrimonial, presumindo-se a sua natureza retributiva (art.º 249º nº 3), incumbindo à Ré a prova de que, apesar de autorizar o Autor a usar o veículo aos fins-de-semana e férias, tal se resumia a uma atitude de mera tolerância.
(Elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
AAA, intentou a presente acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra:
BBB pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe
a) O montante já vencido de €34.259,46, acrescido dos diferenciais que se vencerem mensalmente até integral pagamento à razão de:
- €518,19 pagos em 12 meses do ano; e
- €303,79 pagos 14 vezes por ano;
b) Os juros contados desde o vencimento das quantias liquidadas e os que se vierem a vencer até integral pagamento.
Para tal alega que, no âmbito de uma relação laboral, que teve o seu início em Janeiro de 2001, no âmbito da qual veio a desempenhar funções para várias empresas do Grupo PT, auferiu ao longo dos anos várias componentes retributivas. A partir de Abril de 2016 deixou de lhe ser atribuído o veículo automóvel e consequentemente o cartão de combustível, a Via Verde e estacionamento. A partir de Janeiro de 2017, a Ré diminuiu-lhe o pagamento do subsídio de isenção horário de trabalho.
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Foi realizada audiência de partes não sendo possível a sua conciliação.
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Citada, a Ré contestou, argumentando desde logo com a iliquidez do valor da causa quanto ao montante de juros e impugnando os factos alegados pelo Autor.
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O Autor respondeu à excepção deduzida e ampliou o pedido para o montante global de €37.299,79.
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Foi admitida a ampliação do pedido.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia.
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Foi proferido despacho saneador, que conheceu da validade e regularidade da instância.
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Foi dispensada a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
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Foi proferida sentença que julgou “parcialmente procedente a presente ação e, consequentemente:
-Condena-se a Ré no pagamento ao Autor
a) da quantia de €20.493,68 (vinte mil quatrocentos e noventa e três euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde 28/11/2019 até integral pagamento, referente ao Cartão Galp e Via Verde no montante mensal de €125,00 (cento e vinte e cinco euros); à diferença da prestação pecuniária mensal de €43,19 (quarenta e três euros e dezanove cêntimos; e à diferença do subsídio de isenção de horário de trabalho no montante de €304,86 (trezentos e quatro euros e oitenta e seis cêntimos), este pago 14 vezes por ano, e que se venceram até dezembro de 2019, bem como os montantes que a este títulos se venceram desde 1/01/2010, também acrescidos de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde os respetivos vencimentos até integral pagamento;
b) montante que se se apurar em sede liquidação de sentença, referente à retribuição em espécie constituída pela utilização pessoal de um veículo automóvel, com o valor anual de renda financeira de €15.000,00, de que o Autor ficou privado desde abril de 2016 em diante, devendo o montante apurado até 28/11/2019 ser acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4%, até integral pagamento e as retribuições que se forem vencendo desde essa data, acrescidas de igual taxa de juro desde o respetivo vencimento até integral pagamento.”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo nas suas alegações que
(…)
O Exmo Procurador-Geral Adjunto, junto deste tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir
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II – Objecto
Considerando as conclusões de recurso apresentadas, que delimitam o seu objecto, cumpre decidir
- se o tribunal a quo errou ao julgar a matéria de facto quanto aos pontos impugnados;
- se a prestação recebida pelo Autor atinente à isenção de horário de trabalho pode ser reduzida;
- se o veículo atribuído ao Autor, o cartão Galp Frota e a Via Verde constituem retribuição;
- se o tribunal a quo errou na determinação do valor do veículo para efeitos de retribuição devida ao Autor.
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III – Fundamentação de Facto
A – Matéria de Facto Provada
São os seguintes os factos provados
1. O A. foi admitido ao serviço da empresa do Grupo (…)  denominada (…), com sede na Rua (…), com a categoria de Técnico Informático Sénior.
2. Consta do documento junto a fls. 45 que, a 23 de Outubro de 2002, foi decidido pela (…). atribuir ao Autor uma viatura de serviço “nos moldes e normas em vigor…”
3. Por contrato de Cessão de Posição Contratual celebrado no dia 1 de Janeiro de 2009, entre a (…)  o Autor e a empresa também (…)  denominada (…), o Autor passou a estar ao serviço desta empresa sendo reconhecida a sua antiguidade reportada à data da sua admissão na (…)  ( 1/1/2001 ), mantendo a categoria profissional de Técnico de Sistemas Informáticos Sénior de Nivel 4.
4. Com o seguinte “Quadro Retributivo”
a) Retribuição base no valor mensal de €2.852,43;
b) Subsídio de refeição de €6,00 por cada dia de prestação de trabalho de duração de pelo menos 4 horas;
c) Plano de Saúde PT ACS Corporativo I;
d) Isenção de horário de trabalho na percentagem de 19% do salário base, pago 14 vezes por ano;
e) Seguro de Vida com a capitalização anual de €4.330,14;
f) Telefone fixo até ao limite anual de €398,13;
g) Telemóvel até ao limite anual de €714,22;
h) Via Verde até ao limite anual de €250,00;
i) Cartão de combustível da Galp Frota até ao limite anual de €2.830,00;
j) Viatura com valor anual de renda financeira, mais serviços no valor de €28.000,00.
5. Em 6 de Março de 2011, a empresa (…), fixou o valor
- do Cartão de combustível da Galp Frota para o limite anual de €2.800,00;
-da renda financeira para €15.000,00.
6. Nessa data atribuiu ao Autor estacionamento gratuito.
7. A (…)., passou, entretanto, a denominar -se (…), mantendo o mesmo número de pessoa colectiva.
8. Por Acordo de Cessão de Posição Contratual, celebrado em 1 de Abril de 2014, entre a então (…) e (…), o Autor e a (…)., o Autor passou a trabalhar para esta última empresa sendo reconhecida a sua antiguidade reportada à data da sua admissão na (…) a 1/1/2001.
9. Nessa altura foi reclassificado, passando a ter a categoria profissional de Consultor, de nível 5, reportada a 1 de Março de 2012.
10. Nessa data foi diminuído o valor do Cartão Galp e da Via Verde, que passaram a ter, no seu conjunto, o valor anual de €1.500,00.
11. Ao Autor foi atribuindo um acréscimo na retribuição mensal de €94,33.
12. A PT passou a pagar a título de isenção de horário de trabalho o valor correspondente a 21% da retribuição de base, pago 14 vezes por ano.
13. Por Acordo de Cessão de Posição Contratual, assinado em 1 de Janeiro de 2015 entre a (…), o Autor e a (…) e (…)., o Autor regressou a esta última empresa, sendo reconhecida a sua antiguidade reportada à data da sua admissão na (…)  (1/1/2001), bem como a categoria de Consultor de Nível 5.
14. A sua retribuição base mensal fixada era de €2.903,30.
15. Consta da alínea c) 4.ª do referido acordo de cessão da posição contratual que “São feitas cessar todas as restantes prestações pagas pelas Primeira Contraente ao Terceiro Contraente aplicando-se o sistema remuneratório e compensatório da Segunda Contraente
16. A 1 de janeiro de 2015 pela (…) e (…)., foram atribuídos ao Autor os, por aquela denominados, meios de trabalho:
a) Plafond anual integrado do Cartão Galp Frota e via verde no montante de €1.500,00/ano;
b) Utilização de estacionamento;
c)Equipamento móvel;
d) viatura de serviço com possibilidade de utilização pessoal (VUP) no valor de €15.000,00, em ALD.
17. Com entrada em vigor a 1/11/2015, o Autor e a Ré celebraram um acordo de Isenção de Horário de Trabalho, “(…) na modalidade referida na alínea a) do n.º 1 art.º 219.º do Código do Trabalho, clª 68.º n.º 2 do ACT aplicável, sem sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho (…)
18. Consta da clausula 4:ª do acordo de Isenção de Horário de trabalho que a mesma (…) durará por tempo indeterminado podendo ambos (as)os Contraentes, a todo o tempo, pôr fim à mesma, sem necessidade de invocação de motivo, através de comunicação escrita, dirigida ao (à) outro (a), com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data em que produzirá efeitos
19. Foi atribuído ao Autor, com efeitos a 1/11/2015, uma “prestação pecuniária mensal no valor €94,33, a título adicional remuneratório, paga 12 vezes ao ano
20. Por novo Acordo de Cessão de Posição Contratual, assinado em 1 de Novembro de 2015 entre a (…) e (…)., o Autor e a ora R., (…), também do Grupo (…), o Autor passou a trabalhar para esta última empresa, sendo reconhecida a sua antiguidade reportada à data da sua admissão na (…)  (1/1/2001), bem como a categoria de Consultor de Nível 5.
21. O Autor manteve a retribuição mensal base de € 2.930,00.
22. Consta da alínea d) 4.ª do referido acordo de cessão da posição contratual que “são feitas cessar todas as restantes prestações pagas pelas Primeira outorgante ao Terceiro outorgante aplicando-se o sistema remuneratório e compensatório da segunda outorgante”.
23. Com entrada em vigor a 11 de Novembro de 2015 foram atribuídos ao Autor os, por a Ré denominados, meios de trabalho:
-Plafond anual integrado do Cartão Galp Frota e via verde no montante de €1.500,00/ano;
-Viatura de serviço com possibilidade de utilização pessoal (VUP) no valor de €15.000,00, até ao fim do respectivo ALD;
- Utilização de estacionamento;
- Equipamento móvel
- Utilização de estacionamento;
- Remuneração adicional de €94,33 paga 12 meses por ano.
24. Por carta sem data, mas recebida pelo Autor em 25 de Fevereiro de 2016, este foi informado pela R. de que, a partir de 1 de Abril desse ano, deixava de ter atribuídos o Cartão Galp Frota, estacionamento e viatura matricula 42-LR-80.
25. A partir de 1de Janeiro de 2017 a Ré reduziu a Remuneração Adicional de € 94,33 para € 51,14.
26. Por carta datada de 31 de Outubro de 2016, a Ré comunicou ao Autor que o pagamento efetuado a titulo da isenção de horário de trabalho baixava a partir de 1 de Janeiro de 2017 passando a ser pago o valor de 10,5 %.
27. Justificou tal redução referindo que: “No quadro da atual política de compensações da Empresa, a prestações pecuniárias, além do vencimento base de que beneficia encontram-se sobrevalorizadas tendo em consideração o enquadramento das funções desempenhadas na estrutura organizativa da empresa (…).
28. Em Janeiro de 2009 o Autor auferia, para além da retribuição base, no montante de €2.767,70, diuturnidades no montante de € 91,00 e € 761,12 de isenção de horário de trabalho.
29. O Autor não estava sujeito aos limites máximos de duração de trabalho.
30. Nem à observância de obrigatoriedade do início e términus da prestação de trabalho.
31. Entre Maio de 2017 e Março de 2019, o Autor, porque estava numa equipa com processos mais complexos, esteve num regime particular de registo dos tempos de trabalho, ficando apenas obrigado a efectuar dois registos – de entrada e términus – enquanto a maioria dos trabalhadores estava sujeito a efectuar quatro registos – dois de entrada e dois de saída em ambos os períodos trabalho.
32. O Autor está sujeito a um horário do tipo 8L01 – ou seja, a horário sujeito ao regime de IHT.
33. Por isso não gozava das faculdades concedidas a outros trabalhadores dos Departamentos das empresas onde esteve inserido que beneficiam de gozo de saldos, caso os seus tempos de trabalho mensais sejam superiores aos do seu tempo de trabalho normal.
34. Esses gozos de saldos, verificada essa condição, traduzem-se na possibilidade do trabalhador ter direito à dispensa mensal de um dia ou de dois meios dia, um em cada quinzena, sem perda de remuneração.
35. O Autor não usava a faculdade de gozo de saldos.
36. A atribuição de viatura automóvel para uso pessoal e profissional não seguiu um padrão uniforme até 2012, uma vez que cada uma das empresas que compunham o Grupo PT definia as suas próprias regras.
37. Cada uma fixava o valor de aquisição das viaturas, quer do combustível e da via verde.
38. O plafond da última viatura, matrícula (…), atribuída ao Autor em 2011, foi de € 15.000,00.
39. O ALD da viatura atribuído ao Autor tinha cessado em 2015, tendo sido dada a possibilidade de a adquirir pelo respetivo valor residual, que o Autor exercitou.
40. O combustível (cartão Galp) e a Via Verde, constituem benefícios associados e indissociáveis à atribuição da viatura. Aditado conforme decisão infra.
41.A Ré instituiu com efeitos a 1 de Abril de 2016, uma nova politica de atribuição de VUP´s, que passou a beneficiar apenas os cargos de Administrador, os Directores de 1ª e 2ª linha e os trabalhadores que necessitem da viatura para o exercício das suas funções e, quanto a estes, apenas para esses efeitos. Aditado conforme decisão infra.
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B – Matéria de Facto Não Provada
São os seguintes os factos não provados
Da petição inicial: 3.º, parte final.
Da contestação: 50.º, 51.º, 54.º, 55.º, 58.º, 63.º, 64.º, 77.º, 78.º, 79.º e 80.º.
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IV – Apreciação do Recurso
1. Impugnação da Matéria de Facto
(…)
Em face do exposto, consideramos que estão demonstrados os factos indicados pelo recorrente, passando a constar da matéria de facto provada que “O combustível (cartão Galp) e a Via Verde, constituem benefícios associados e indissociáveis à atribuição da viatura”, e que “A Ré instituiu com efeitos a 1 de Abril de 2016, uma nova politica de atribuição de VUP´s, que passou a beneficiar apenas os cargos de Administrador, os Directores de 1ª e 2ª linha e os trabalhadores que necessitem da viatura para o exercício das suas funções e, quanto a estes, apenas para esses efeitos.”
Procede, pois, o recurso nesta parte.
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2. Da redução do valor da IHT
Pretende a recorrente seja considerada licita a redução do valor da IHT, argumentando que nem deixou de pagar o valor da IHT, antes reduzindo tal valor, nem o Autor deixou de estar sujeito a essa isenção, e que a redução resultou de um acordo que foi entregue ao Autor em Outubro de 2016. Considera que a redução do referido valor é legítima porquanto a atribuição de IHT não decorre do próprio contrato de trabalho, como se comprova pelos vários contratos de trabalho celebrados pelo Autor e juntos autos, e cuja percentagem não se manteve inalterada, dado ser em 2009 de 19%  passando para 21%, em 2014. Acrescenta que o Autor, em 1/11/2015, quando aceitou a cedência da sua posição contratual à (…), subscreveu um novo Acordo de IHT (documento nº 5) onde acordou e aceitou que qualquer das partes, ele e a (…), poderia por termo a esse regime de prestação de trabalho, desde que fosse respeitado o prazo de aviso prévio de 15 dias. Argumenta ainda que o legislador de 2003 conferiu à Contratação Colectiva a faculdade de, não só alargar o âmbito da atribuição de IHT, como definir a sua retribuição.
A primeira instância considerou ilegal a diminuição do valor pago a título de IHT.
É a seguinte a sua fundamentação: “Resta então analisar se a diminuição do subsídio de isenção de horário também se traduz numa violação do principio da irredutibilidade da retribuição, na medida em que a Ré, a partir de janeiro de 2017, deixou de pagar ao Autor o montante correspondente a 21% da retribuição base e passou a pagar somente 10,5%.
(…)
Ora, nos presentes autos não foi discutida a existência de uma efetiva isenção de horário e a inerente penosidade que justifica o pagamento do respetivo subsídio.
Não só o Trabalhador não alegou que tal montante lhe fosse pago sob essa denominação sem que estivesse sujeito ao respetivo regime, como a Ré demonstrou que, de facto, o Autor não estava sujeito aos limites máximos de duração de trabalho nem à observância de obrigatoriedade do início e términus da prestação de trabalho, estando sujeito ao que na Ré se identifica como horário tipo 8L01, ou seja, horário sujeito ao regime de IHT.
Importa, então, aquilatar da legalidade da redução do subsídio de isenção de horário de trabalho.
Da matéria de facto apurada não consta a razão pela qual a isenção de horário de trabalho foi acordada entre as partes de molde a verificar se ocorreu alguma alteração nas funções do Autor, e respetivo exercício, que justificasse a diminuição do subsídio que, segundo o acordado, iria compensar a penosidade deste tipo de horário.
Logo, mantendo-se o regime de isenção de horário de trabalho, não tendo a Ré demonstrado um novo acordo, com a redução da respetiva compensação, a diminuição do subsídio terá, neste caso, que ser abrangida pelo princípio da irredutibilidade.
Entende a Ré que, uma vez que ficou acordado com o Autor que o regime de IHT podia cessar a todo o tempo, desde que fosse concedido um aviso prévio, então poderia, por maioria de razão, a qualquer altura, diminuir o respetivo subsídio.
Esquece-se a Ré que fazer cessar o regime de isenção de horário de trabalho tem efeitos sinalagmáticos, a Ré deixa de pagar o subsídio e o Autor passa a ter um horário de trabalho e sempre que ultrapassar o seu horário normal terá que auferir a compensação devia por trabalho suplementar. Logo, é mais que evidente que, sendo exigido ao Autor que exerça as suas funções a desoras, a Ré terá que pagar o montante que acordou, montante esse que não pode ser alterado unilateralmente pela Ré, sem que ocorram alterações nos respetivos fundamentos, ficando tal alteração sempre sujeita à concordância do Autor.
E estando em causa um acordo firmado entre as partes, a mesma não pode ser derrogada por um instrumento de regulação coletiva.
Em suma, é certo que a Ré pode legitimamente fazer cessar a isenção de horário de trabalho, não pode é manter o mesmo regime e decidir não pagar o respetivo subsídio, ou como na situação em apreço, alterar unilateralmente o respetivo subsídio.
É que o entendimento de que a isenção do horário de trabalho possa ser suprimida, sem que isso implique violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, significa que o empregador, pelo facto de acordar esse regime com o trabalhador, não fica para sempre obrigado mantê-lo, podendo fazê-lo cessar, passado este a ter um horário de trabalho, com as legais consequências e deixando de receber o respetivo subsídio.
Assim, considera-se que o Réu tem que manter o pagamento da quantia acordada com o Autor, enquanto os fundamentos que levaram ao acordo de isenção de horário de trabalho firmados entre ambos se mantiverem.
Na medida em que, segundo o acordado entre as partes, o valor a pagar pela Ré correspondia 21% da retribuição base, ou seja €609,70, e a Ré passou a pagar o montante correspondente a 10,5% da retribuição base que corresponde a 304,84, na medida em que tal subsídio era pago 14 vezes ao ano, encontra-se em dívida de 1 de janeiro de 2017 e 21 de dezembro de 2019 a quantia de €13.413.84(304,86x44).
Apura-se assim um valor global em dívida no montante de €20.493,68.
Atento o pedido formulado pelo Autor, na medida em que o mesmo não quantificou os juros vencidos, a Ré apenas vai condenada nos juros de mora vencidos e vincendos desde 28/11/2019, data em que foi intentada a ação, até integral pagamento.”
Com interesse para a decisão resulta provado que
- o Autor foi admitido ao serviço do (…) – em 1 de Janeiro de 2001;
- passou a gozar de isenção de horário de trabalho em 1 Janeiro de 2009, quando celebrou o contrato de cessão de posição contratual com a (…)  e a (…)
- com entrada em vigor a 1/11/2015, o Autor e a Ré celebraram um acordo de Isenção de Horário de Trabalho, “(…) na modalidade referida na alínea a) do n.º 1 art.º 219.º do Código do Trabalho, clª 68.º n.º 2 do ACT aplicável, sem sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho (…);
- consta da clausula 4:ª do acordo de Isenção de Horário de Trabalho que a mesma (…) durará por tempo indeterminado podendo ambos (as)os Contraentes, a todo o tempo, pôr fim à mesma, sem necessidade de invocação de motivo, através de comunicação escrita, dirigida ao (à) outro (a), com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data em que produzirá efeitos”;
- foi atribuído ao Autor, com efeitos a 1/11/2015, uma “prestação pecuniária mensal no valor €94,33, a titulo adicional remuneratório, paga 12 vezes ao ano”;
- a partir de 1 de Janeiro de 2017 a Ré reduziu a Remuneração Adicional de €94,33 para € 51,14;
- por carta datada de 31 de Outubro de 2016, a Ré comunicou ao Autor que o pagamento efectuado a titulo da isenção de horário de trabalho baixava a partir de 1 de Janeiro de 2017, passando a ser pago o valor de 10,5 %;
- justificou tal redução referindo que: “No quadro da atual politica de compensações da Empresa, as prestações pecuniárias, além do vencimento base de que beneficia encontram-se sobrevalorizadas tendo em consideração o enquadramento das funções desempenhadas na estrutura organizativa da empresa (…);
- em Janeiro de 2009 o Autor auferia, para além da retribuição base, no montante de €2.767,70, diuturnidades no montante de €91,00 e €761,12 de isenção de horário de trabalho;
- o Autor não estava sujeito aos limites máximos de duração de trabalho, nem à observância de obrigatoriedade do início e términus da prestação de trabalho;
- entre Maio de 2017 e Março de 2019, o Autor, porque estava numa equipa com processos mais complexos, esteve num regime particular de registo dos tempos de trabalho, ficando apenas obrigado a efectuar dois registos – de entrada e términus – enquanto a maioria dos trabalhadores estava sujeito a efectuar quatro registos – dois de entrada e dois de saída em ambos os períodos trabalho;
- o Autor está sujeito a um horário do tipo 8L01 – ou seja, a horário sujeito ao regime de IHT;
- por isso não gozava das faculdades concedidas a outros trabalhadores dos Departamentos das empresas onde esteve inserido que beneficiam de gozo de saldos, caso os seus tempos de trabalho mensais sejam superiores aos do seu tempo de trabalho normal;
- o Autor não usava a faculdade de gozo de saldos;
- esses gozos de saldos, verificada essa condição, traduzem-se na possibilidade do trabalhador ter direito à dispensa mensal de um dia ou de dois meios dia, um em cada quinzena, sem perda de remuneração.
Analisemos a legislação aplicável aos factos, que remonta ao Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei 99/2003 de 27 de Agosto.
No Código do Trabalho de 2003 a isenção de horário de trabalho está regulada nos artigos 177º (Condições de isenção de horário de trabalho) artigo 178º (Efeitos da isenção de horário de trabalho).
No Código do Trabalho de 2009, a isenção do horário de trabalho está regulada nos artigos 218º (Condições de isenção de horário de trabalho), 219º (Modalidades e efeitos de isenção de horário de trabalho) e art.265º (Retribuição por isenção de horário de trabalho).
No ACT aplicável – BTE 20/2013 – a cláusula 68º prevê que “Retribuição especial por isenção de horário de trabalho
1- A retribuição especial por isenção de horário de trabalho é fixada através de acordo a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador.
2- O trabalhador isento de horário de trabalho tem direito a uma retribuição especial, que não deve ser inferior à retribuição correspondente a 10,5 % da retribuição base mensal e diuturnidades, salvo no caso previsto no número seguinte.
3- Quando se trate de isenção de horário de trabalho com observância dos períodos normais de trabalho, o trabalhador tem direito a uma retribuição especial, que não deve ser inferior a 4 % da retribuição base mensal e diuturnidades.”
A lei prevê, entre o mais, que trabalhadores que exerçam trabalhos que, pela sua natureza, só possam ser efectuados fora dos limites dos horários normais de trabalho, ou que exerçam regularmente a actividade fora do estabelecimento, sem controlo regular da hierarquia, possam ser isentos de horário de trabalho.
Como ensina Monteiro Fernandes “[A] isenção, implicando por parte do trabalhador uma “renúncia” à compensação por trabalho suplementar, confere-lhe o direito a receber, regularmente, uma retribuição especial, nas condições indicadas pelo art. 265º CT.[1]
Cumpre atentar que a isenção de horário de trabalho constitui um benefício do empregador e não um direito do trabalhador, já que para este traduz-se numa penosidade, pela sua não submissão aos períodos de trabalho diário e semanal estabelecidos, implicando a não fixação do início e do tempo do período normal de trabalho diário e dos intervalos de descanso e, portanto, uma certa imprevisibilidade na distribuição dos tempos de trabalho, a qual é determinada pelo empregador segundo as suas conveniências. Assim, a isenção de horário de trabalho constitui uma prerrogativa da entidade patronal, que se insere no quadro dos poderes de gestão e organização da empresa, exigindo a concordância do trabalhador (cfr. art.º 177º nº1 do CT/2003 e 218º nº 1 do CT/2009), embora não seja exigida também a concordância deste para lhe pôr fim.
Como se afirma no Ac. desta Relação de 17-12-2008 – Proc. 8807/2008-4 - “A isenção de horário de trabalho constitui um desenvolvimento transitório da relação de trabalho e o seu complemento remuneratório visa compensar o trabalhador pela penosidade resultante de uma menor auto-disponibilidade, ou seja, pela incomodidade que resulta do facto de não poder beneficiar da regra da previsibilidade da duração e distribuição do tempo de trabalho.
Refere Francisco Liberal Fernandes[2],“Embora os efeitos que a lei associa à isenção de horário de trabalho constituam direitos e expectativas do trabalhador (….), a respectiva concessão não confere qualquer direito à respectiva manutenção. Só não será assim se o regime de isenção integrar o conteúdo do contrato individual de trabalho; neste caso, a respectiva supressão constitui uma modificação substancial da relação laboral, pelo que o trabalhador goza do direito a rescindi-la unilateralmente, com justa causa ”.
E lê-se em acórdão desta Relação
I - Por regra, o trabalho suplementar e a isenção de horário de trabalho são, pela sua natureza, desenvolvimentos transitórios da relação contratual de trabalho, que retiram à retribuição daquele trabalho e à retribuição especial de isenção de horário, o carácter de regularidade ou de habitualidade que, nos elementos componentes da retribuição, cria no trabalhador expectativas normais de ganho, destinadas a satisfazer necessidades permanentes e periódicas.
II - Constituem, regra geral, situações reversíveis que podem cessar por iniciativa da entidade patronal, deixando o trabalhador, com essa cessação, de ter direito ao respectivo suplemento.
III - Nos casos em que a isenção de horário de trabalho foi estabelecida por acordo das partes na data da celebração do contrato e o subsídio de IHT representa 70% do salário mensal do trabalhador e é pago 14 meses por ano, já não podemos afirmar que se trata de um desenvolvimento transitório ou secundário da relação de trabalho, mas sim de um elemento essencial dessa relação, que não pode cessar da forma preconizada pela recorrida, por constituir uma receita fundamental do orçamento do trabalhador e por conferir a este, atenta a forma como foi estabelecido, a justa expectativa do seu vencimento.” (sic Ac Rel. de Lisboa de 18-10-2000 – Proc. 0079504).
Como se escreve no Ac. da Rel. do Porto de 15/12/2003, (in www.dgsi.pt, proc. 0242109), “Na verdade, a doutrina e a jurisprudência [Cfr. Abílio Neto, in Contrato de Trabalho, 10.ª edição, págs. 371 e 372, Francisco Liberal Fernandes, in Comentário às Leis da Duração do Trabalho e do Trabalho Suplementar, 1995, págs. 72 a 76 e António Menezes Cordeiro, in Isenção de Horário, Subsídios para a Dogmática Actual do Direito da Duração do Trabalho, 2000, págs. 89 a 92 e as referências da jurisprudência citados por todos os Autores] têm entendido que a situação de isenção do horário de trabalho, prevista nos Art.ºs 13.º e 14.º, ambos do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de Setembro, com o seu regime próprio de prestações, é reversível, estando na disponibilidade do empregador a sua manutenção, só não sendo assim quando as partes o tenham clausulado no contrato individual de trabalho. Isto é, a vontade do trabalhador, no sentido da manutenção do regime da isenção, só é relevante se e quando tal regime tenha sido inserido no contrato respectivo; neste caso, a retirada do regime, por iniciativa do empregador, carece sempre da concordância do trabalhador. Mas, fora destas situações, o regime é reversível, embora o empregador fique constituído na obrigação de pagar a retribuição especial devida pela prestação de trabalho suplementar, quando ele ocorrer, como aconteceu na hipótese vertente.
A retirada do regime de isenção do horário de trabalho não significa diminuição de retribuição, existindo apenas alteração das prestações de cada uma das partes. É que, na verdade, sendo tal regime excepcional, a sua retirada coloca as partes numa execução normal do contrato de trabalho e, se ocorrer trabalho suplementar, terá de ser pago com os acréscimos legais. Mas existindo isenção do horário de trabalho, o trabalhador recebe o suplemento, mas presta trabalho em número de horas superior às que decorrem do cumprimento horário normal.”
Não há no procedimento adoptado pela R. violação da garantia da irredutibilidade (art.º 21º nº 1 al. c) da LCT ou art.º 122º al. d) do CT) porque o subsídio de isenção de horário é uma retribuição específica, contrapartida de uma situação funcional reversível, que não está abrangida por aquela garantia. Como é generalizadamente reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, a irredutibilidade da retribuição não é impeditiva da supressão de certas atribuições patrimoniais conexas com determinadas condições específicas do modo de prestação de trabalho, quando essas condições específicas sejam também elas suprimidas. É o que acontece com inúmeras prestações que são contrapartida de situações laborais reversíveis, e que, se bem que frequentemente, pelo carácter regular e periódico com que são pagas, possam ser qualificadas como complementos retributivos, só são devidas enquanto a situação específica de que são contrapartida se verificar (a menos que, por terem sido contratualmente estabelecidas, não haja acordo das partes quanto à eliminação da parcela retributiva correspondente a essa especificidade). É o caso, por exemplo de subsídios de turno, de isenção de horário de trabalho, de risco, de transporte de valores, etc…[3]
Do exposto decorre, tal como decidido no Ac. desta Relação de 25/10/2000[4], que “I – [R]sultando o regime de isenção de horário de trabalho do próprio contrato de trabalho e não duma fixação unilateral do mesmo determinada pela entidade patronal, só um novo acerto de vontades das duas partes poderá pôr-lhe termo.
II - Nestes casos - e sejam quais forem as razões invocadas para uma tal alteração do contrato - a entidade patronal não pode unilateralmente fazer cessar o regime de isenção de horário praticado pelo trabalhador, nem pode retirar o correspondente suplemento retributivo.
Escreve ainda Francisco Liberal Fernandes que "Em termos de eficácia temporal, o regime subsiste enquanto perdurarem os fundamentos objectivos que lhe deram origem — ocorrendo a respectiva caducidade caso aqueles deixem de verificar-se, como, por exemplo, se o trabalhador mudar de funções e passar a desempenhar outras organizadas em regime normal, ou a entidade empregadora extinguir a actividade ou o cargo exercido ou modificar a organização do tempo de trabalho, ou verificando-se o respectivo termo, se o regime foi estabelecido temporariamente —, sem prejuízo de, mediante aviso prévio, a entidade patronal lhe poder pôr fim (art.º 218, n.º 1, e 217, n.º 1, a contrario)." E acrescenta que "(...) se a isenção do horário constituir uma cláusula essencial do contrato de trabalho — qualificação só possível de determinar casuisticamente através da interpretação do respectivo conteúdo e da análise das circunstâncias em que o mesmo foi adoptado ou é executado —, a respetiva supressão por causas não objectivas pode, em caso de oposição do trabalhador, constituir uma modificação substancial das condições de trabalho, susceptível de conferir àquele o direito de resolver o contrato com justa causa (art.º 394, n.º 2, alínea b))." [5]
Nas demais situações, a isenção de horário de trabalho é, por natureza, uma situação reversível, podendo cessar por iniciativa unilateral da entidade patronal.
Vem entendendo a jurisprudência que a retribuição especial por isenção de horário de trabalho, embora tenha “natureza retributiva, não se encontra submetida ao princípio da irredutibilidade da retribuição, podendo o empregador suprimi-la, quando os pressupostos que estiveram na base da sua atribuição deixarem de se verificar.”[6]
Outros acórdãos do STJ se pronunciaram sobre o princípio da irredutibilidade da retribuição quando se discutem situações em que está em causa a remuneração especial por isenção do horário de trabalho.
Acórdão de 04-05-2011 - Recurso n.º 1907/07.0TTLSB.L1.S1
III - O princípio da irredutibilidade da retribuição não incide sobre a globalidade da retribuição, mas apenas sobre a retribuição estrita, ficando afastadas as parcelas correspondentes a maior esforço ou penosidade do trabalho, a situações de desempenho específicas ou a maior trabalho.
IV - A irredutibilidade salarial não impede, assim, a diminuição ou a extinção de certas prestações complementares, o que pode verificar-se na exacta medida em que os condicionalismos externos que conduziram à sua atribuição se modifiquem ou sejam suprimidos.
Acórdão de 23-09-2009 - Recurso n.º 3843/08
XI - O subsídio de isenção de horário de trabalho, pese embora tenha o carácter de retribuição, não está abrangido pelo princípio da irredutibilidade da retribuição, pois corresponde à contrapartida do modo específico de execução do trabalho e como tal está absolutamente dependente do exercício de funções no regime de isenção de horário de trabalho, regime esse que não tem a ver directamente com a categoria profissional que é atribuída ao trabalhador, mas sim com a submissão do trabalhador a um específico esquema temporal de prestação laboral, sendo a sua remuneração apenas devida enquanto perdurar a situação em que assenta o seu fundamento.
Portanto, não estando sujeita ao princípio da irredutibilidade da retribuição, a prestação por isenção de horário de trabalho pode ser modificada ou suprimida pelo empregador desde que se modifique ou cesse a situação específica que esteve na base da sua atribuição.
In casu, as partes celebraram em 01-11-2015 um acordo escrito de isenção de horário de trabalho, do qual consta a possibilidade de ambos os contraentes, a todo o tempo, porem fim ao acordo, sem necessidade de invocação de motivo, e desde que cumprido o pré-aviso que previra (ponto 18 dos factos provados).
Afirma a recorrente que, se pode o mais pode o menos. Ou seja, se pode fazer cessar o acordo de isenção de horário de trabalho sem ter de invocar um motivo para o efeito, pode diminuir a sua retribuição sem o justificar. No entanto, as situações, na verdade, não são comparáveis, pois quando faz cessar o acordo, o trabalhador também deixa de executar o seu trabalho fora do plano horário definido para a sua categoria profissional. Mas quando o empregador diminui a retribuição sem que haja uma redução proporcional da actividade do trabalhador, estão em causa garantias básicas do trabalhador como a da retribuição.
Ora, nada resulta da matéria de facto que nos leve a concluir que ocorreu qualquer modificação ou supressão das condições em que são prestadas as funções do trabalhador, mormente que ocorreu uma diminuição das funções por si exercidas, ou qualquer outra situação atinente ao exercício dessas funções, que pudesse justificar a redução comunicada pela Ré. Esta justificou essa redução referindo que: “No quadro da atual política de compensações da Empresa, a prestações pecuniárias, além do vencimento base de que beneficia encontram-se sobrevalorizadas tendo em consideração o enquadramento das funções desempenhadas na estrutura organizativa da empresa (…) – ponto 27 dos factos provados.
Mas esta não é uma fundamentação legítima do ponto de vista legal, para a modificação dos termos que foram acordados quanto à isenção de horário de trabalho, pois correspondendo tal retribuição especial à contrapartida do modo específico de execução do trabalho, apenas pode ser modificada quando se alterarem os pressupostos objectivos ou subjectivos dessa prestação, o que não aconteceu no presente caso.
Consequentemente, o recurso não merece provimento nesta parte, mantendo-se a sentença recorrida.
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3. Viatura – cartão Galp – Via Verde – se constituem prestações pecuniárias e em espécie sujeitas ao princípio da irredutibilidade da retribuição
Defende a recorrente que a reversão destes benefícios é legítima, porquanto nem toda a retribuição está sujeita ao princípio da irredutibilidade da retribuição, e a viatura automóvel de cuja utilização exclusiva e pessoal o Autor beneficiou, não tem suporte no seu contrato de trabalho, para além de que os factos demonstram que o Autor beneficiou da sua utilização em regime de exclusividade e que a Ré tolerava a sua utilização para fins pessoais até ao ano de 2015, ou seja até final do ALD.
É a seguinte a fundamentação da sentença: “De facto, como resultou provado, desde 2002 até dezembro de 2016 que todas as empresas do grupo (…)  atribuíram ao Autor um veículo de serviço, não tendo a Ré sequer questionado a utilização do mesmo por parte do trabalhador para fins pessoais, pelo que estamos face a uma contrapartida periódica que, ainda que não tenha sido acordada no início da relação laboral, acabou por ser prestada durante 14 anos. Logo, necessariamente que esta prestação se enquadra no conceito de retribuição em espécie na medida em que visavam remunerar o Autor, e se traduzia na concessão da utilização de um veículo automóvel, nas várias vertentes que um cidadão comum utiliza uma viatura na sua vida pessoal, deixando, portanto, o Autor de ter o encargo com a compra do veículo automóvel.
(…)
Ora a Ré nada alegou que integrasse uma situação de mera liberalidade ou mera tolerância. Aliás, em bom rigor, nem sequer põe em causa que a atribuição do veículo não correspondesse a uma componente retributiva do Autor, fazendo apenas alusão ao facto de que as várias empresas do Grupo (…)  tinham estruturas remuneratórias distintas.
Igualmente se considera retribuição o montante que a Ré suportava com a utilização pessoal do veículo, por parte do Autor, seja a título de combustível, seja com portagens, que teremos que considerar como uma prestação regular, na medida em que, ainda que esteja sujeita a um plafom anual, corresponde a prestações em espécie que vão sendo prestadas ao longo do ano.
No que concerne ao estacionamento, apesar do Autor ter atribuído um determinado valor ao mesmo, o certo é que nada se provou a respeito, desconhecendo-se em que é que se traduzia o estacionamento gratuito, podendo-se até admitir que se tratava de um privilégio não quantificável, bastando para tal que a sua cessação não acarretasse um encargo para o Autor. Logo, não se pode enquadrar o estacionamento no conceito de retribuição.
Ora como resultou provado, a partir de abril de 2016, o Autor deixou de ter direito à viatura que lhe estava atribuída, sendo no caso irrelevante que o Autor tivesse mantido a sua utilização, tal como a alega a Ré, na medida em que, como se apurou, passou a fazê-lo já como seu proprietário. A partir dessa data deixou também de ter direito ao cartão Galp e à via verde.
Logo, com a eliminação destas componentes retributivas a Ré violou o princípio da irredutibilidade da retribuição, prevista à data no artigo 129.º, nº d) do Código do Trabalho, consequentemente, fica a mesma obrigada a continuar a efetuar essas prestações, importando, tal como peticiona o Autor, contabilizar os montantes já vencidos. (…)”
Vejamos
Nos termos do CT “Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito como contrapartida do seu trabalho” (cfr. art.º 258º nº1) E “A retribuição compreende a retribuição base e todas as prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie” (nº2). “Presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador” (nº3)
Do conceito legal apenas se excluem as meras liberalidades que não correspondem a um dever do empregador imposto por lei, por instrumento de regulamentação colectiva, por contrato individual ou pelos usos da profissão e da empresa, e aquelas prestações cuja causa determinante não seja a prestação da actividade pelo trabalhador ou uma situação de disponibilidade deste para essa prestação, prestações que tenham, pois, uma causa específica e individualizável, diversa da remuneração da disponibilidade para o trabalho.
Vem sendo entendimento jurisprudencial, nomeadamente do STJ, que “[A] atribuição de uma viatura automóvel ao trabalhador para uso total constitui uma vantagem de natureza económica (correspondente ao valor que ele, até essa data, normalmente despendia com a sua própria viatura), tem natureza regular e periódica, uma vez que dela podia usufruir todos os dias e deve-se considerar parte integrante da retribuição, nos termos do artigo 258.º do Código do Trabalho.[7] Ou, ao invés, “[R]esultando provado que a utilização da viatura de serviço, em termos de uso total, constituía mera tolerância ou liberalidade do empregador, não pode concluir-se pela sua natureza retributiva.” [8]
No presente caso, não restam dúvidas em como o Autor utilizava a viatura que lhe estava atribuída para uso profissional e pessoal, constituindo-se tal viatura numa vantagem patrimonial, e, nos termos do disposto no art.º 249º, mormente do seu nº 3, presumindo-se a sua natureza retributiva. A Ré não fez prova de que, apesar de autorizar o Autor a usar o veículo aos fins-de-semana e férias, tal se resumia a uma atitude de mera tolerância. De notar que o que resulta do ponto 23 dos factos provados é o resultado de uma determinação da Ré e não de um acordo entre as partes.
O mesmo se diga em relação ao cartão Galp Frota e à Via Verde.
Ao retirar ao Autor a viatura, o cartão Galp Frota e a Via Verde, a Ré violou o princípio da irredutibilidade da retribuição.
Soçobra, portanto, o recurso, nesta parte.
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4. Valor de Utilização da Viatura
Insurge-se a recorrente contra a alínea b) do segmento decisório da sentença, alegando que o benefício de utilização de viatura não equivale, nunca, ao encargo financeiro mensal relativo ao pagamento do seu preço de aquisição, antes e só à concreta vantagem patrimonial que a atribuição da viatura proporciona ao trabalhador, atendendo à específica utilização que por ele era feita, como é até reconhecido expressamente na sentença, com a alusão a um Acórdão da Relação de Lisboa, pelo que não se compreende esse segmento decisório, que terá forçosamente que ser revogado.
É a seguinte a fundamentação da sentença: “ainda que se tenha apurado que tal prestação corresponde à utilização de uma viatura cuja renda financeira, em ALD, era no valor de €15.000,00, o certo é que nada mais se tendo apurado quanto a tal questão, seguindo-se o entendimento constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.02.2012, de que “(…) 2. A atribuição ao trabalhador de um veículo automóvel, para uso total, incluindo na sua vida privada, representa para ele uma manifesta vantagem de natureza económica cujo valor não se deve confundir com o valor que a entidade empregadora despende com tal viatura.”. É que como se refere no mesmo acórdão “(…) o valor da prestação retributiva resultante da atribuição de uma viatura para uso profissional e para uso pessoal é o que resulta do benefício económico da sua utilização em proveito próprio, mas esse valor não se pode confundir com o valor que a entidade empregadora despende com tal viatura. Em nossa opinião, o valor da referida retribuição em espécie é o correspondente ao benefício económico obtido pelo trabalhador, por via do uso pessoal ou particular da viatura, nele não se podendo incluir o uso profissional (ou seja o benefício obtido com o seu uso ao serviço da entidade empregadora). Destinando-se a viatura, não apenas ao uso pessoal, mas também ao uso profissional, o valor mensal do benefício económico da prestação em espécie, proporcionada ao apelante, nunca podia, neste caso, equivaler, por exemplo, ao valor mensal do custo do aluguer de viatura idêntica e das despesas com ela relacionadas, já que desse custo advinha também vantagens económicas para a sua entidade empregadora (pela sua utilização em serviço), vantagens essas cujo valor, manifestamente, não pode deixar de excluir-se do referido custo, para se apurar o valor exacto da retribuição em espécie.
Ora, como o próprio Autor alega, a viatura em causa não era apenas para seu uso pessoal, pois tratava-se de uma viatura de serviço, pelo que o valor da renda em ALD não traduz o benefício auferido do Autor, como o mesmo pretende.
Assim, ainda que esteja demonstrado o direito do Autor, e que este tenha formulado um pedido líquido, não é viável calcular o valor da retribuição em espécie, relegando-se tal quantificação para incidente de liquidação.”
Os recursos, em particular, são meios processuais que se destinam, nas palavras de Alberto dos Reis, “a obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento[9]
Em face da fundamentação da sentença, que vai ao exacto encontro da fundamentação do recurso quanto a esta questão, no que em nada colide com o segmento decisório em causa – “b) montante que se se apurar em sede liquidação de sentença, referente à retribuição em espécie constituída pela utilização pessoal de um veículo automóvel, com o valor anual de renda financeira de €15.000,00, de que o Autor ficou privado desde abril de 2016 em diante, devendo o montante apurado até 28/11/2019 ser acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4%, até integral pagamento e as retribuições que se forem vencendo desde essa data, acrescidas de igual taxa de juro desde o respetivo vencimento até integral pagamento.” – apenas podemos concluir pela falta de interesse em agir, pois o direito que o recorrente pretende fazer valer não está carecido de tutela.
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V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por BBB mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Lisboa, 15-12-2022
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Duro Mateus Cardoso
Albertina Pereira

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[1] Direito do Trabalho, 16ª edição, pág., com referência ao actual CT, mas com inteira aplicação ao caso.
[2] iComentário às Leis da Duração do Trabalho e do Trabalho Suplementar, Coimbra Editora, 1995, pág. 73.
[3] Acórdão  de 09-04-2008 – Proc. 318/2008.
[4] Processo 0077674.
[5] O trabalho e o tempo: comentário ao Código do Trabalho", edição electrónica, 2018, p. 258.
[6] Sumário do acórdão do STJ de 01-03-2018 - Processo 606/13.8TTMATS.P1.S2.
[7] Sic Ac. STJ de 25-06-2015 – Proc. 1256/13.4TTLSB.L1.S1 – vide ainda Ac STJ de 30-04-2014 – Proc. 714/11.00TTPRT.P1.S1.
[8] Sic Ac STJ de 26-05-2015 – Proc. 373/10.7TTPRT.P1.S1.
[9] CPC anotado, Vol V, pág. 212.