Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26585/21.0T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
COMPETENCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECISÃO PARCIALMENTE REVOGADA
Sumário: I - Intentada pelo progenitor ação de regulação das responsabilidades parentais relativa à menor sua filha, alegando que a mesma se encontra ilicitamente retida na Polónia junto da mãe, dando ainda conta de ter feito um pedido de regresso de menor perante as Autoridades Administrativas Centrais, importa convocar o disposto nos artigos 8.º a 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
II - Não sendo caso para considerar que a decisão do mérito da causa (a regulação do exercício das responsabilidades parentais) está dependente do julgamento de outra já proposta, atinente ao processo (eventualmente pendente nos tribunais polacos) desencadeado no seguimento da apresentação do pedido de regresso, o certo é que, nos presentes autos, a apreciação do pressuposto processual da competência (internacional) dos tribunais portugueses se encontra “dependente” do julgamento desse processo.
( Sumário da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
J… intentou contra K… a presente ação com processo especial de regulação das responsabilidades parentais relativamente à filha de ambos, T…, pedindo ao tribunal que:
a) Se julgue competente para conhecer o pedido de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nos termos dos artigos 2.º, n.º 11, al. b), 8.º e 10.º, al. a), do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, e também do artigo 3.º da Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980); e
b) Designe dia e hora para a Conferência a que alude o artigo 35.º do RGPTC.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- O Requerente tem nacionalidade portuguesa, cf. doc. 1 em anexo;
- A Requerida tem nacionalidade polaca, cf. doc. 2 em anexo;
- O Requerente e a Requerida conheceram-se em 2015 tendo vivido em condições análogas às dos cônjuges desde agosto de 2016 até ao passado mês de junho de 2021;
- O Requerente e a Requerida têm uma filha em comum, com 1 ano de idade, nascida a …de setembro de 2020, tendo sido registada com nacionalidade portuguesa e depois também com nacionalidade polaca, cf. doc. 3 em anexo;
- Após o nascimento da filha de ambos, o Requerente e a Requerida mantinham uma vida conjugal normal, na casa do Requerente, em Lisboa;
- A Requerida trabalhou em Portugal desde 2016, tendo-se despedido em abril de 2021;
- Como o Requerente se encontrava em teletrabalho, acedeu ao pedido daquela no sentido de irem passar uma temporada à Polónia, acompanhados da filha, para que os avós maternos pudessem conhecer e conviver com a neta;
- Tendo sempre ficado acordado que regressariam a Portugal assim que o Requerente tivesse de retomar o trabalho presencial, provavelmente a partir do último trimestre do ano de 2021 ou, o mais tardar, no início do ano de 2022;
- Pouco tempo após chegarem à Polónia, mais concretamente a S…, cidade em que vivem os pais da Requerida, em casa dos quais ficaram hospedados, a dinâmica familiar foi alterada e começaram a surgir muitas discussões e incompatibilidades entre o Requerente, a Requerida e a mãe da Requerida;
- O Requerente teve de regressar a Portugal em junho de 2021 para tomar a vacina contra a Covid-19, só lhe tendo sido possível regressar à Polónia em 30 de julho, numa viagem iniciada de carro, ficando a filha na Polónia cerca de 35 dias;
- Durante este período, a Requerida esteve com a filha em casa dos pais desta, sendo que o Requerente manteve sempre o contacto quer através de mensagens, quer através do contacto por videochamada;
- No entanto, quando regressou à Polónia, em 3 de agosto de 2021, a mãe da Requerida não permitiu que o Requerente ficasse na sua casa e impediu-o de ver a filha nesse dia;
- A partir de então o Requerente passou a ser sucessivamente impedido de ver e de estar com a filha, tendo a Requerida recusado voltar para Portugal;
- Por alturas de setembro / outubro passados, a Requerida deixou de responder às mensagens nem aos pedidos deste para poder ver a filha;
- A menor está ilicitamente retida pela Requerida, na Polónia, apesar da residência habitual da menor ser em Lisboa, o que configura uma retenção ilícita de criança, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, e também do artigo 3.º da Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças (Convenção de Haia de 1980);
- O Requerente viu-se na necessidade de recorrer aos mecanismos legais à sua disposição para ver a situação regularizada, designadamente através do pedido de regresso de menor junto das Autoridades Administrativas Centrais, uma vez que não parece haver qualquer possibilidade de diálogo, cf. doc. 15 em anexo;
- É urgente a intervenção do Tribunal no que diz respeito à regulação das responsabilidades parentais da menor…, sendo este competente, designadamente nos termos do artigo 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro de 2003, devendo ser fixado desde já o regime provisório com as seguintes cláusulas:
Cláusula 1ª (Guarda)
A menor … fica à guarda e a residir habitualmente com o pai.
Cláusula 2ª (Exercício das Responsabilidades Parentais)
1. A menor… fica confiada à guarda do Pai e a viver com este, sendo o exercício das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da mesma, exercidas em comum por ambos os progenitores, nos termos definidos por lei no artigo 1906.º, n.º 1 e n.º 6, ex vi artigo 1912.º, n.º 1, todos do Código Civil.
2. O exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente da menor …. caberão ao Pai, nos termos também melhor definidos no referido art.º 1906.º n.º 3, ex vi 1912.º, n.º 1, todos do Código Civil.
Cláusula 3ª (Regime de Visitas)
Enquanto a menor… não falar, deverá ser estabelecido o regime de visitas supervisionadas da Mãe à filha, em local a designar pelos técnicos da ATE.
A menor não poderá sair de Portugal Continental sem o consentimento expresso do pai.
Cláusula 4ª (Despesas)
Os alimentos serão suportados na proporção de 1/2 para cada um dos progenitores, nos seguintes termos:
a) A Mãe prestará a título de alimentos à menor a quantia de € 250,00 (duzentos e cinquenta. euros) devendo para o efeito entregar mensalmente ao Pai, até ao dia 5 de cada mês, através de transferência bancária para a conta à Ordem titulada pelo mesmo, com o IBAN PT50 …15 8.
b) Todas as despesas médicas e medicamentosas da menor…, serão suportadas pelos progenitores em partes iguais, na parte não comparticipada pelos sistemas de saúde e seguros de que a menor é beneficiária.
Cláusula 5ª (Atualização da Pensão de Alimentos)
A pensão de alimentos ora indicada é atualizada anualmente com base na taxa de inflação do ano civil imediatamente anterior, segundo dados do INE.
Cláusula 6ª (Reembolso das Despesas Suportadas)
O progenitor que realizar as despesas a que se refere a Cláusula 4ª, deverá apresentar os respectivos documentos comprovativos ao outro progenitor, o qual deverá liquidar essas despesas no prazo de 8 (oito) dias a contar da data da apresentação dos comprovativos das mesmas.
Juntou 15 documentos, designadamente, como doc. 15, uma cópia de Requerimento / Pedido dirigido à Direção-Geral de Reinserção de Serviços Prisionais Gabinete Jurídico e de Contencioso / Autoridade Central Portuguesa, assinado por si e pela sua Advogada, datado de 01-11-2021 (documento do qual não consta qualquer comprovativo de ter sido apresentado).
Após, foi proferido o seguinte despacho (recorrido) com o seguinte teor:
“Veio J… requerer a regulação das responsabilidades parentais da sua filha menor,…, contra a Progenitora desta, K…, alegando, em súmula, que:
- viajou com a Progenitora e a menor para a Polónia para aí “passar uma temporada” pretendendo regressar a Portugal;
- que após estarem na Polónia, devido a conflitos familiares, a Requerida e a sua família impedem-no de ver a menor;
- que a Requerida se recusa a regressar a Portugal.
O Requerente já diligenciou pelo pedido de regresso da menor a Portugal, por considerar que a sua permanência na Polónia consubstancia uma retenção ilícita da mesma, pois não tem o seu acordo.
O Progenitor requer a fixação de um regime provisório da guarda consigo e ainda que seja atribuída natureza urgente aos presentes autos.
Compulsado o teor do requerimento inicial verifica-se que a menor não está em Portugal neste momento. A sua permanência na Polónia, com a Progenitora, que na óptica do Requerente é ilícita, não foi apreciada pelas autoridades competentes, que no caso, serão os Tribunais da Polónia. Até que tal situação seja apreciada, este Tribunal não poderá determinar qualquer providência em relação à criança, pois se a permanência da menor na Polónia for considerada legítima, então a sua residência habitual é a Polónia e é naquele país que as suas responsabilidades parentais terão de ser reguladas.
Consideramos que existe uma questão prejudicial, a apreciação da legitimidade da permanência da menor na Polónia, que impõe a suspensão destes autos até que aquela questão seja decidida, o que prejudica os pedidos formulados pelo Progenitor quanto à fixação de um regime provisório de regulação das responsabilidades parentais, bem como quanto à atribuição de natureza urgente a estes autos.
Face ao exposto, ao abrigo do disposto no artigo 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil, determino a suspensão destes autos até que seja apreciada a questão da legitimidade da permanência da menor na Polónia pelas autoridades competentes.
Notifique.”
Inconformado com este despacho, veio o Requerente interpor recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A. O Recorrente após a apresentação do Pedido e Regresso de Menor junto das Autoridades Administrativas Centrais apresentou a presente Ação de Regulação das Responsabilidades Parentais no Estado da Residência Habitual da menor – o Estado Português – cf. disposto nos artigos 8.º, n.º 1, e 10.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27 de novembro, e do artigo 3.º da Convenção de Haia de 1980 que regula os Apectos Civis sobre Rapto Internacional de Crianças.
B. Face à ação apresentada, o Tribunal a quo decidiu suspender a instância alegando a existência de causa prejudicial com o fundamento de que, o objecto da causa, está dependente da apreciação da legitimidade da permanência da menor na Polónia pelos Tribunais Polacos, o que obsta à análise do pedido formulado pelo Requerente, ora Recorrente, impondo, a suspensão dos autos até que a questão seja decidida.
C. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo decidiu mal ao proferir despacho de suspensão da instância, na medida em que o Tribunal a quo deveria ter-se declarado competente para efeitos da fixação da Regulação das Responsabilidades Parentais, não obstante a menor estar na Polónia, bem como ordenar o regresso da criança, nos termos do disposto nos artigos 8.º, n.º 1, 9.º n.º 1, 10.º e, 11.º, n.º 8 do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27 de novembro, e do artigo 3.º do Regulamento de Haia de 1980.
D. Tal decisão que também exigiria o regresso da criança atentos os elementos de conexão ao território português para aferir da sua residência habitual, teria força executória, garantindo-se não apenas o regresso da criança, como a prossecução dos autos para efeito da decisão definitiva de Regulação das Responsabilidades Parentais.
E. A existência de um pedido de regresso de menor ilicitamente retida na Polónia, s.m.o., não pode ser considerada «causa prejudicial» na Ação de Regulação de Responsabilidades Parentais, mas sim um elemento probatório que permitiria ao Tribunal a quo declarar-se internacionalmente competente nesta matéria e ordenar o regresso da menor a Portugal junto das autoridades polacas.
F. Pelo exposto, não se verifica sequer a existência de qualquer fundamento para que os Tribunais Portugueses não se considerem internacionalmente competentes para dirimir esta questão, cf. resulta dos já referidos artigos 8.º, n.º 1, 9.º n.º 1, 10.º, e 11.º, n.º 8 do Regulamento (CE) 2201/2003 de, 27 de novembro, e do artigo 3.º da Convenção de Haia de 1980.
G. Estando em causa a regulação urgente e provisória das responsabilidades parentais e a retenção ilícita da menor, os factos estão efetivamente numa relação de dependência, cuja separação é impossível, havendo solicitado um pedido de regresso de menor apresentado junto das autoridades Administrativas Centrais e uma ação de regulação das responsabilidades parentais, o Estado Português, concretamente o Tribunal a quo têm o dever de se julgar internacionalmente competente, e não aguardar que a sua competência seja aferida por exclusão, ou seja, pela declaração de incompetência dos Tribunais Polacos – o que até poderá nunca acontecer.
 H. Ou seja, o Tribunal a quo não se pode colocar numa situação de dependência face a uma decisão de um Tribunal de um Estado Terceiro, na medida em que o Estado Português tem competência internacional nesta matéria como ficou claramente demonstrado.
I. Acresce que, o pedido de regresso de menor não se encontra ainda em estado avançado que pudesse de alguma forma justificar junto dos Tribunais portugueses decidir suspender a instância, com o fundamento em causa prejudicial – inexistente – quando são, competentes internacionalmente, nos termos já indicados, e as decisões a proferir em ambos não são incompatíveis, inexistindo por isso qualquer prejudicialidade.
J. Pelo que, a decisão que ora se recorre, é igualmente nula, por violação de lei nos termos do disposto no art.º 615.º n.º 1 alínea d) primeira parte, do CPC.
K. Termos em que deverá considerar-se procedente a presente Apelação e em consequência deverá ser revogada a decisão ora em recurso, declarando-se a inexistência de questão prejudicial e passando a declarar-se competente o tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores para o conhecimento desta acção.
Foi apresentada alegação de resposta pelo Ministério Público, em que defende ser acertada a decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos:
1. A 11.11.2021 J… instaurou ação especial de regulação das responsabilidades parentais contra K… em favor da filha …, nascida a …..2021.
2. Invocou o ora recorrente que a 17.04.2021 se deslocou para a Polónia com a progenitora e a criança.
3. Que desde tal data ambas não regressaram a Portugal.
4. Que a 04.11.2012 requereu à direção geral de reinserção e serviços prisionais o pedido de regresso da criança.
5. Requereu, então, que o Tribunal se considerasse competente para conhecer do pedido de regulação do exercício das responsabilidades parentais e designasse dia para a conferência.
6. O Tribunal a folhas 47 proferiu despacho a suspender a instância por considerar existir uma questão prejudicial, nomeadamente a legitimidade da permanência da menor na Polónia.
7. O artigo 8.º, n.º 1 do regulamento n.º 2201/2003, de 27 de Novembro estabelece que os tribunais de um Estado-Membro serão competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse estado membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
8. Esta regra geral cede perante a regra do artigo 10.º do regulamento n.º 2201/2003, de 27 de Novembro, que estabelece a competência em caso de rapto da criança, nomeadamente que os tribunais do Estado-membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da retenção ilícita mantêm-se competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado Membro.
9. No entanto, e uma vez que no caso dos autos ainda não foi apreciada a questão de a retenção ser considerada ilícita, existindo tal questão pendente, prejudicial para a fixação da regulação do exercício das responsabilidades parentais, os autos têm de ser suspensos até ser proferida tal decisão, nos termos do artigo 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
10. Pelo exposto, o despacho recorrido não merece qualquer censura ou reparo, devendo o mesmo ser mantido na integra.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se não devia ter sido determinada - com fundamento em causa prejudicial - a suspensão da instância.
Factos provados
Além dos factos descritos no relatório supra, encontram-se já provados os seguintes factos:
A menor … nasceu em … de 2020, sendo filha do Requerente J…, de nacionalidade portuguesa, e da Requerida K…, de nacionalidade polaca – docs. 1, 2 e 3 juntos com o requerimento inicial.
Da suspensão da instância
Na decisão recorrida considerou-se que a instância devia ficar suspensa até ser decidida a questão da legitimidade da permanência da menor na Polónia, questão a resolver no processo - que foi considerado causa prejudicial - da competência dos tribunais da Polónia, pois se a permanência da menor nesse país viesse a ser considerada legítima, então a sua residência habitual seria aí, sendo nos tribunais polacos que haveria de ser regulado o exercício das responsabilidades parentais.
O Apelante discorda, argumentando, em síntese, que o Tribunal a quo deveria ter-se declarado competente para conhecer da causa, não obstante a menor estar na Polónia, e ordenar o regresso da criança.
Apreciando.
Preceitua o art. 272.º, n.º 1, do CPC, invocado na decisão recorrida, que “(O) tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”
Face aos factos alegados pelo Requerente (carecidos de comprovação mormente quanto à pendência de processo de regresso da criança), podemos estar perante uma situação de “retenção ilícita” de uma criança, importando convocar o disposto nos artigos 8.º a 11.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (posto que tanto Portugal como a Polónia são Estados membros da União Europeia).
A regra geral em matéria de responsabilidade parental encontra-se consagrada no art. 8.º, n.º 1, aí se prevendo que os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal. No entanto, esta regra encontra-se ressalvada no n.º 2 do mesmo artigo, aí se prevendo que é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9.º, 10.º e 12.º. Em particular, o art. 10.º, sob a epígrafe “Competência em caso de rapto da criança”, estabelece que:
“Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e:
a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou
b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições:
i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso desta às autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida,
ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado nenhum novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i),
iii) o processo instaurado num tribunal do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas ter sido arquivado nos termos do n.º 7 do artigo 11.º,
iv) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre a guarda que não determine o regresso da criança.”
Assim, à partida, assiste razão ao Requerente quando defende a competência internacional dos tribunais portugueses, no tocante à regulação do exercício das responsabilidades parentais, mas não já quando, na sua alegação recursória, considera que também são competentes para apreciarem o pedido de regresso da criança. Neste particular, tendo em atenção o disposto no art. 11.º do referido Regulamento CE) n.º 2201/2003, mostra-se acertado o entendimento plasmado na decisão recorrida, no sentido de a competência caber aos tribunais da Polónia.
O problema reside, pois, em saber se, perante os factos alegados pelo Requerente, em particular a notícia de um tal processo atinente à retenção ilícita da filha, poderá estar “comprometida” a competência dos tribunais portugueses e se tal justifica a suspensão da instância.
Numa situação próxima, a Relação de Lisboa, no acórdão de 15-12-2011, proferido no proc. n.º 265/10.0TMLSB-B.L1-6, disponível em www.dgsi.pt, já se pronunciou em sentido afirmativo, como se alcança do respetivo sumário :
“I - A competência jurisdicional internacional constitui, a par dos conflitos de leis (reguladas pelas normas de conflitos dos arts. 25 a 65 do C. Civil e cada vez mais em instrumentos internacionais) e a do reconhecimento de sentenças estrangeiras, um complexo de normas que visam prover à disciplina das situações da vida internacional
II -Relacionando as normas dos arts. 12º, 13º e 16º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 26 de Outubro de 1980 e aprovada pelo Decreto nº 22183, de 11 de Maio, poder­se-á afirmar que, logo que autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tome a decisão de não fazer regressar a criança ao seu local de origem, então essas autoridades assumem de imediato o poder de tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia.
É que não regressando os menores ao local de origem, é evidente que haverá que colmatar a situação decorrente, fazendo intervir as autoridades do Estado requerido para definirem a nova condição do menor.
III- Portanto, embora os mecanismos da Convenção Relativa à Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores para promover o regresso imediato dos menores aos lugares de onde foram retirados ilicitamente sejam de natureza cautelar, configurando um procedimento expedito, sem que se possa discutir do fundo da questão, o certo é que podem influir, como se viu, na questão da determinação da competência internacional do tribunal.
Assim, a decisão proferir nesse processo cautelar pode modificar ou destruir o fundamento ou a razão de ser da presente questão.
IV- Preceitua o art. 279º, nº 1 do C.P.C. que "o Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado ".
É esta a solução que se impõe.”
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, não nos parece rigoroso afirmar que a decisão do mérito da causa – a regulação do exercício das responsabilidades parentais – está dependente do julgamento de outra já proposta, atinente ao (eventual) processo desencadeado no seguimento da apresentação de requerimento / pedido cuja cópia foi junta como doc. 15. Tão só a apreciação do pressuposto processual da competência (internacional) dos tribunais portugueses se encontra “dependente” do julgamento desse (hipotético) processo.
Portanto, embora não se possa considerar que o processo (eventualmente) despoletado pelo Requerente através de requerimento cuja cópia juntou como doc. 15 configure propriamente uma causa prejudicial, a sua pendência poderá constituir motivo justificado para a suspensão da instância, na presente ação, em virtude da possível repercussão na competência dos tribunais nacionais.
Sucede que, como já fomos afirmando, não está ainda comprovada nos autos a pendência de um tal processo, pois o Requerente não juntou documento comprovativo da efetiva apresentação do pedido de regresso da sua filha, tão pouco tendo sido ouvida a Requerida para se pronunciar a esse respeito ou dizer o que tiver por conveniente, não se podendo mesmo descartar a possibilidade de ter sido também instaurada por esta, na Polónia, ação relativa à responsabilidade parental, o que poderá configurar uma situação de litispendência (cf. art. 19.º do referido Regulamento).
Nos termos do n.º 2 do art. 34.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09, aplicável por força do art. 43.º do mesmo diploma legal, antes de o juiz decidir a respeito do exercício das responsabilidades parentais, pode ordenar as diligências que considere necessárias. No presente processo, seja por via desse preceito, seja ao abrigo de princípios basilares do processo civil (cf. artigos 3.º, 6.º e 986.º, n.º 2, do CPC e artigos 12.º e 33.º, n.º 1, do RGPTC), entendemos que, antes de tomar posição quanto à questão da suspensão da instância, se impõe (i) notificar o Requerente para comprovar nos autos a apresentação do requerimento cuja cópia juntou como doc. 15 e informar sobre o estado do aludido processo (atinente ao regresso da criança a Portugal), (ii) bem como proceder à citação da Requerida, a fim de esta se poder pronunciar sobre o requerimento inicial.
Só em função do que vier a ser apurado será oportuno decidir se os autos devem prosseguir, com a convocação de conferência de pais ou não, avaliando então se é caso para determinar a suspensão da instância. Tanto basta para que tenhamos de concluir que procedem, mas apenas em parte, as conclusões da alegação de recurso, ao qual deverá ser concedido parcial provimento, nos termos acima referidos.
O Requerente ficou em parte vencido, não logrando ver atendida inteiramente a sua pretensão, tirando proveito imediato do recurso, na medida em que se irá revogar o despacho recorrido e determinar, por ora, que a presente ação prossiga a sua tramitação, pelo que é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
*
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, determinando-se, em substituição, que a presente ação prossiga a sua tramitação com a realização das diligências necessárias para habilitar o Tribunal recorrido a tomar posição sobre as questões da competência internacional e da suspensão da instância, designadamente:
a) A notificação do Requerente para comprovar a apresentação do requerimento cuja cópia juntou como doc. 15 e informar sobre o estado do processo que esteja (eventualmente) pendente nos tribunais polacos atinente ao regresso da sua filha (…) a Portugal;
b) A citação da Requerida, com convite expresso para se pronunciar sobre a questão da competência dos tribunais portugueses e a suspensão da instância motivada pela pendência daquele processo.
Mais se decide condenar o Requerente / Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 10-03-2022
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira