Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1802/20.7S3LSB.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: FURTO
CRIME PARTICULAR
CRIME SEMI-PÚBLICO
INIMPUTABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário: - O crime de furto poderá ser de natureza pública, semi-pública ou particular;
- Em caso de furto em estabelecimentos comerciais, o crime terá natureza particular apenas nas situações subsumíveis ao art.º 207º nº 2 do Código Penal;
- A “recuperação imediata” referida no preceito pressupõe que o bem esteja em perfeitas condições para ser comercializado;
- Tal não acontece quando o agente destrói ou danifica a caixa ou involucro em que se armazena o bem ainda que dano ou destruição não afecte o produto propriamente dito;
- Havendo informação nos autos que o agente padece de cleptomania compete ao Tribunal, se mais ninguém o tiver feito ou requerido oportunamente, diligenciar por realização de perícia com vista a determinar se a doença foi relevante na comissão dos factos típicos e ilícitos
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – Relatório
O Ministério Público junto do Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 1 – apresentou-se, em 26.11.2021, a recorrer perante este Tribunal da Relação da sentença por aquele proferida em 27.10.2021 e mediante a qual foi absolvida a arguida AC, com os sinais nos autos, da prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do Cód. Penal.
Para tanto formulou as seguintes conclusões recursais:
“1ª Nos presentes autos, a arguida AC foi submetida a julgamento e absolvida da acusação contra ela formulada pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1 do Cód. Penal. 
2ª Esta sentença absolutória não pode, a nosso ver, colher aplauso, dado que a prova produzida em audiência, conjugada com a prova documental e testemunhal, impunha que se desse como provada toda a matéria de facto descrita na acusação relacionada com tal crime, com a consequente condenação do arguido.
3ª As razões da discordância relativamente à sentença recorrida prendem-se com a verificação de erro notório da apreciação da prova e contradição insanável entre factos provados, não provados e fundamentação da matéria de facto (artigo 410.º, n.º 2, alíneas c) e b) respectivamente, do Cód. de Processo Penal), bem como com a discordância relativamente à decisão proferida sobre a matéria de facto provada.
4ª Na douta sentença recorrida, a Mmª Juiz considerou provado sob o ponto 9., o seguinte facto: “O creme de rosto foi apreendido.”
5ª Em sede de matéria de facto não provada, a Mmª Juiz considerou, por sua vez: “Em virtude da actuação da arguida, o creme ficou impossibilitado de ser posto, novamente, à venda.”
 6ª Na fundamentação da matéria de facto, fez ainda constar a Mmª Juiz: “Conjugou-se a prova testemunhal com o teor do auto de notícia de fls. 3 a 6, auto de apreensão de fls. 7, auto de exame e avaliação de fls. 8 (…)”.
7ª Desde logo, exige a normalidade da vida e o saber da experiência que se conclua que o creme apreendido nos autos se encontra impossibilitado de ser posto novamente à venda. De facto, um objecto apreendido não pode ser posto à venda, já que, não pode ser devolvido sem todas as cautelas legais (artigos 178º, 185º, 186º do Cód. de Processo Penal, 109º do Cód. Penal). 
8ª Assim sendo, resulta evidente que o tribunal a quo deu como não provado algo que se revela evidente ter acontecido, fazendo-o de uma forma ilógica, arbitrária e notoriamente violadora das regras da experiência comum. 
9ª Acresce que, mesmo que assim não se entenda, a Mmª Juiz fundamenta a decisão no sentido de entender provado que o creme foi apreendido no auto de apreensão e de exame e avaliação, ao mesmo tempo que dá como não provado que aquele creme ficou impossibilitado de ser posto à venda.  
10ª Deste modo, a douta sentença incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, n.º 1, alínea c) do Cód. de Processo Penal, assim como em contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410º, n.º 1, alínea b) do Cód. de Processo Penal. Tais vícios poderão ser ultrapassados com recurso ao próprio texto da decisão recorrida e às regras da experiência, sem necessidade de reenvio do processo para novo julgamento (artigos 426.º, n.º 1 e 431.º, al. b) do Cód. de Processo Penal). 
11ª Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que a Mmª Juiz julgou incorrectamente a prova produzida ao incluir na matéria de facto não provada o facto de o creme ter ficado impossibilitado de ser posto à venda.
12ª Na verdade, com relevância para a decisão a proferir sobre este ponto da matéria de facto dado como não provado, impondo que o mesmo fosse dado como provado, podemos enumerar a seguinte prova produzida em audiência de julgamento e coligida nos autos: [] no dia 18/10/21, na audiência de julgamento, o depoimento da testemunha policial CC, num total de 5.44 minutos, quando perguntada, refere:
1.40 “O creme estava na posse da D. AC, quando cheguei D. AC mostrou o creme que tinha consigo, estava dentro do saco. Eu própria lhe perguntei se pretendia efectuar o pagamento uma vez que tinha danificado a caixa e a senhora na altura disse que não tinha dinheiro para efectuar o pagamento porque tinha um problema de saúde.”
3.40 “Foi a funcionária que verificou o valor então do creme que é o que consta nos autos, não me recordo do valor, e, entregou-nos um talão com o valor do creme”.
3.51 “No entanto, o mesmo foi apreendido.”
3.52 Mmª Juiz “Relativamente ao creme acabou por apreender porque na altura em que chega ainda está na posse da arguida?
4.00 Agente CC “A caixa em si não estava porque tinha sido deixada no expositor, mas o creme sim ainda estava na posse da arguida”
4.59 Mmª Juiz “Depois está aí o auto de apreensão, não é assim?” 5.02 Agente CC “Sim, o auto de apreensão está aqui.”
[em seguida, na audiência de julgamento, o depoimento da testemunha MLS, num total de 9.54 minutos, quando questionada, respondeu: 
1.40 “Abordei a senhora e disse que a senhora tinha que pagar a embalagem que estava danificada e a senhora na altura disse que não tinha dinheiro para pagar, mas que tinha que ir a casa para pagar. Eu disse que não seria possível e que teria de chamar a autoridade e foi o que eu fiz.”
4.45 MP “O creme era o quê, bisnaga, boião?” “Era boião.” 
4.47 MP “Esse boião depois foi encontrado onde?” “No saco da senhora.” 
4.59 MP “Foi entregue à polícia?” “Foi a polícia, eu não mexi no saco da senhora.”
8.17 Mmª Juiz “Quando diz pagar a embalagem danificada é o valor correspondente ao produto?” 
8.21 Mmª Juiz “Não há possibilidade de pagar só a embalagem, é o produto?” “Não, não.”
8.40 Mmª Juiz “… a senhora tenta pôr o produto numa prateleira?” “Sim, sim. Voltou para trás e larga o produto, o vidro, na prateleira, foi aí que deduzi que seria um roubo e então tem de pagar a embalagem que está danificada.”
13ª Contrariamente ao que refere a Mmª Juiz na douta sentença, resulta evidente do depoimento destas testemunhas que o creme foi apreendido pela PSP na posse da arguida, fora da sua caixa, de onde tinha sido retirado pela arguida, recusando-se aquela a pagar o valor do mesmo.
14ª Resultou ainda do depoimento da agente policial conjugado com o auto de apreensão constante a fls. 7 dos autos e com a guia de entrega de fls. 66 e toda a prova documental dos autos que o boião de creme apreendido ainda se encontra apreendido nos autos!
15ª Efectivamente, as testemunhas não mencionaram expressamente que o creme ficou impossibilitado de ser colocado à venda, mas a testemunha afirmou directamente quando questionada pela Mmª Juiz, que não havia qualquer possibilidade de pagar só a embalagem, teria de pagar o preço do produto.
16ª Acresce que, decorre da normalidade da vida que, ao ser apreendido pela polícia e mantendo-se apreendido até à presente data, aquele creme ficou impossibilitado de ser colocado à venda, pelo que aquele facto deveria ter sido dado como provado. 
17ª Não obstante, cumpre salientar que a douta sentença, ao dar como provados os factos descritos sob os pontos 1 a 15, não merece qualquer censura. 
18ª De facto, conforme resulta da matéria de facto dada como provada na douta sentença, o facto de a arguida subtrair um creme de rosto marca Clarins, no valor de 87,50 euros do interior da perfumaria D do Centro Comercial C integra a prática de um crime de furto.
19ª Ora, resultando da matéria de facto provada que a arguida retirou do expositor onde se encontrava um creme de rosto, retirando aquele da embalagem e colocando-o no saco que transportava, fazendo menção de abandonar a loja no que foi impedida pela funcionária da loja, dúvidas não subsistem que apenas a acção desta funcionária impediu a consumação dos intentos da arguida.
20ª Acresce ainda que, considerando que a prova da intenção do agente decorre da prova dos elementos objectivos do crime, constata-se que a arguida sabia que creme não lhe pertencia e, ainda assim, quis fazê-lo seu, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade. 
21ª Assim sendo, encontrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto na forma tentada, não restam dúvidas que a arguida deveria ser condenada pela prática dos mesmos. 
22ª Contudo, a Mmª Juiz veio afirmar que se encontram verificados os pressupostos do artigo 207º, n.º 2 do Cód. Penal, sendo certo que, não se pode aceitar que esteja preenchida a condição da recuperação imediata de tal objecto prevista naquela norma legal (neste sentido, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datado de 22-02-2017, proferido no processo n.º 118/15.5PEGDM.P1 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-01-2021, proferido no processo n.º 2269/19.8PYLSB.L1-3, disponíveis em dgsi.pt)
 23ª Efectivamente, o bem subtraído teria de estar em perfeitas condições para que pudesse ser de novo e imediatamente posto à venda, o que, manifestamente, não sucede na situação dos autos, designadamente porque o mesmo ainda se encontra apreendido (cfr. fls. 7 e 66 dos autos). 
24ª Pelo exposto, atendendo a todos os elementos supra expostos, não restam dúvidas de que a conduta da arguida integrou os elementos objectivos e subjectivos do crime por que veio acusada, pelo que, a Mmª Juiz deveria tê-la condenado em conformidade. 
 25ª No que respeita à opção pela aplicação de uma pena de prisão, segundo determina o artigo 70º do Cód. Penal o tribunal apenas dará preferência à pena não privativa da liberdade quando aquela realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
26ª As finalidades da punição são, como se diz no artigo 40º, nº 1, do Cód. Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
27ª No caso dos autos, as necessidades de prevenção geral são elevadas, considerando o sentimento de insegurança e o abalo na consciência jurídica comunitária resultantes da prática constante de furtos em estabelecimentos comerciais. 
28ª Face à factualidade provada na douta sentença sob o artigo 15, aquela foi condenada por 9 crimes de furto praticados entre 2008 e 2019, os quais foram objecto de cúmulo jurídico, tendo sido aplicada à arguida a pena de 4 anos de prisão suspensa na sua execução, por decisão transitada em julgado a 15/06/2020. Os factos dos autos datam de 15/09/2020, escassos meses após a aplicação daquela pena suspensa. 
29ª Tais elementos permitem concluir que, no caso da arguida, as necessidades de prevenção especial são tão prementes como as de prevenção geral, nomeadamente face à total ausência de crítica da arguida quanto à sua actuação, que se limitou a declarar não se recordar dos factos.
 30ª No que respeita ao crime preenchido pela conduta da arguida, o crime de furto na forma tentada, é punido com pena até 3 anos de prisão, especialmente atenuada (artigos 203º, n.º 1 e 23º, n.º 2 do Cód. Penal). Assim, nos termos do disposto nos artigos 41º, n.º 1 e 73º, alíneas a) e b) do Cód. Penal, a pena de prisão aplicável à arguida terá de se situar entre um mês e dois anos de prisão.
31ª Por seu lado, de acordo com o disposto no artigo 71º do Cód. Penal, a determinação da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa e das exigências de prevenção, ponderando-se todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente exemplificadas no n.º 2 do mesmo artigo.
32ª Na situação dos autos, cumpre salientar que, a ilicitude se afigura mediana, a intensidade do dolo elevada, resultando do relatório social elaborado à arguida nos autos que, apesar de padecer de cleptomania, aquela revela falta de crítica quanto à prática criminosa, sobressaindo a autojustificação, desvalorização e minimização da dos ilícitos praticados.
33ª No caso dos autos, sendo elevadas as exigências de prevenção geral e muito significativas as exigências de prevenção especial, tendo em conta a moldura penal abstracta referida, a pena de nove meses de prisão, afigura-se suportada pela medida da sua culpa, considerando a favor da arguida o valor diminuto do objecto furtado. 
34ª No que respeita à inaplicabilidade do instituto da suspensão da execução da pena, quanto às circunstâncias da prática do crime valem as considerações que se expenderam supra a propósito dos antecedentes criminais da arguida e das circunstâncias e postura assumida perante a prática dos factos.
35ª Não obstante, cumprirá salientar a prática destes factos no decurso de uma outra pena suspensa com regime de prova, mantendo ainda a arguida postura acrítica para a prática criminosa e as circunstâncias favoráveis à continuação criminosa mencionadas no relatório social do qual resulta a ausência de inversão comportamental ou ressocialização da mesma com a pena suspensa que se encontra a cumprir.
 36ª Tais elementos implicam que o juízo de prognose a favor da reinserção social da arguida não possa ser realizado neste caso, pelo que, aquela deverá cumprir a pena de forma efectiva. 
37ª Assim sendo, com base em todos os critérios legais acima expostos e naqueles que V. Exas. certamente suprirão, a arguida deverá cumprir pena de prisão efetiva pela prática do crime de furto simples na forma tentada que cometeu. 
Nestes termos, Vossas Excelências, melhor decidindo, farão a (a)costumada Justiça.”
Ao assim recorrido veio responder a arguida sustentando que:
“1.º O recorrente considera que se verificou um erro notório na apreciação da prova, uma vez que considera que o Douto Tribunal deu como provado o ponto 9. “O creme de rosto foi apreendido.”
2.º Sendo que em sede de matéria dada como não provada veio desde logo indicar que o referido creme de rosto ficou impossibilitado de ser colocado à venda.
3.º Na verdade, e analisando a questão gramatical verifica-se que não existe qualquer erro na apreciação da prova por parte do Douto Tribunal uma vez que o facto de o creme de rosto ter sido apreendido não é condição sine qua non para que o mesmo se encontre em condições de ser vendido.
4.º Conforme consta na Douta Sentença: “De seguida, a arguida introduziu o boião do creme num saco que trazia consigo e abandonou a caixa do mesmo, danificada, num expositor. Nessa altura, a arguida foi abordada pela funcionária da loja MLS, que a impediu de abandonar a loja, conforme planeava.”
5.º - Na prática, sem a referida caixa o creme de rosto não é vendável num estabelecimento comercial, uma vez que a mesma é como que um elemento integrante do próprio creme,
6.º Pelo que em momento algum estamos perante um em erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, n.º 1, alínea c) do Cód. de Processo Penal, assim como em contradição entre a fundamentação e a decisão, nos termos do artigo 410º, n.º 1, alínea b) do Cód. de Processo Penal.
7.º Considera o recorrente, de forma abstracta, que o Tribunal “julgou incorrectamente a prova produzida ao incluir na matéria de facto não provada o facto de o creme ter ficado impossibilitado de ser posto à venda.”
8.º Entendemos que diferente do alegado pelo Recorrente, é claro e evidente que sem a caixa onde se encontrava o creme de rosto inserido, o mesmo jamais poderá ser vendido ao público.
9.º Em conformidade, as próprias testemunhas e funcionárias do estabelecimento comercial em questão, MLS e MCT referiram de forma expressa   inequívoca que a caixa onde se encontrava o creme estava estragada.
10.º O recorrente equaciona dúvidas abstractas, sem qualquer suporte em face dos depoimentos prestados em sede de audiência pelo pelas testemunhas, MLS e MCT.
11.º Em face de tais depoimentos é que o Tribunal fundou a sua convicção, a qual fundamentou, de forma exaustiva, clara e precisa, na douta sentença, inexistindo, assim, qualquer dúvida que fundamente a absolvição do arguido em relação à prática do crime de furto.
12.º O arguido invoca a nulidade da sentença, pela mesma padecer de todos os vícios a que alude o disposto no art.º 410.º do CPP.
13.º Sempre se dirá que a sentença objecto do presente recurso se encontra devidamente fundamentada, nela sendo enumerados os factos provados e não provados, feita uma exposição suficiente e concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, indicadas e examinadas criticamente as provas com base nas quais o Tribunal formou a sua convicção.
14.º O Recorrente considera que o Tribunal, na pena concreta a aplicar, não atendeu a um conjunto de circunstâncias, como sejam, o tempo decorrido sobre os factos, prevenção especial e geral, factualidade e antecedentes criminais.
15.º Salvo o devido respeito, só por manifesto lapso, é que o recorrente refere no seu recurso que o Tribunal não atendeu a tais circunstâncias para fixar a medida da pena em que absolveu a arguida.
16.º Pode ler-se na douta sentença que “Quanto aos antecedentes criminais do arguido, teve o tribunal em conta o teor do certificado do registo criminal daquele junto aos autos”
17.º Face ao exposto e atendendo aos argumentos aduzidos em supra, entende-se que a decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos
18.º Entende-se que a decisão recorrida deverá ser mantida nos seus precisos termos e o recurso ser declarado improcedente.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicável, requer-se mui respeitosamente a v. Exas. Venerandos Desembargadores da Relação de Lisboa se dignem a admitir e dar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.” (nota do relator só por lapso se escreveu “dar provimento ao recurso” já que dos termos do mesmo resulta óbvio que se pretende a improcedência da pretensão do Ministério Público).
Os autos subiram a esta Relação e na mesma o Digno Procurador Geral Adjunto lavrou parecer onde se limitou a referir que acompanhava a motivação do recurso.
Por razões documentadas nos autos e que, grosso modo, respeitam a questões de saúde do primitivo relator, os autos foram redistribuídos por ordem da Veneranda Presidente deste Tribunal tendo sido distribuídos ao actual relator em 06.01.2023.
Os autos foram a vistos e à conferência.
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II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do Código do Processo Penal).
“As conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objecto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras.” (Pereira Madeira, in Henriques Gaspar e outros - Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1299).
No caso concreto, analisadas as conclusões recursais, as questões a decidir são:
- a alteração da matéria de facto nos termo do art.º 412º do C.P.P.;
- a verificação dos vícios de erro notório da apreciação da prova e contradição insanável entre factos provados, não provados e fundamentação da matéria de facto (artigo 410.º, n.º 2, alíneas c) e b) respectivamente, do C.P.P.);
- a questão da correcta subsunção jurídica dos factos;
- a questão da escolha e medida da pena.
Para efeitos da decisão destas questões recordemos os factos provados, os não provados e a sua fundamentação (transcrição):
Assim:
“1. No dia 15 de Setembro de 2020, pelas 17h15, a arguida dirigiu-se à loja D, no Centro Comercial C, sita na R. (…), em Lisboa, pertencente à sociedade (…), com o intuito de se apoderar de quaisquer objectos que aí encontrasse com valor económico. 
2. Ali chegada, e em execução de tal desígnio, a arguida retirou do expositor em que se encontrava, a fim de ser vendido: 1 creme de rosto da marca Clarins, no valor de €87,50. 
3. Acto contínuo, a arguida retirou o boião do creme do interior da respectiva caixa de cartão, danificando-a. 
4. De seguida, a arguida introduziu o boião do creme num saco que trazia consigo e abandonou a caixa do mesmo, danificada, num expositor.
5. Nessa altura, a arguida foi abordada pela funcionária da loja MLS, que a impediu de abandonar a loja, conforme planeava.
6. A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar do artigo supra mencionado, com vista a fazê-lo seu, bem sabendo que este não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu legítimo dono, apenas não logrando consegui-lo por motivos alheios à sua vontade.
7. Mais sabia, a arguida, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 
 Mais se provou que:
8. O estabelecimento referido em 1. encontrava-se em funcionamento e aberto ao público.
9. O creme de rosto foi apreendido.
10. Consta do relatório social elaborado pela DGRSP a propósito da arguida que do apurado destaca-se um trajecto de vida instável a nível pessoal e profissional, acentuado nos últimos anos.
AC tem aderido ao acompanhamento técnico por parte destes serviços de reinserção social e ao acompanhamento em consulta de psiquiatria, conforme previsto no Plano de Reinserção Social concebido para a medida probatória que se encontra a cumprir. Destaca-se como positiva a frequência por parte da arguida de um curso de formação profissional, através do IEFP, procurando com isso manter-se activa.
Constata-se, no entanto, que, dois anos e meio decorridos de acompanhamento de AC, não há evidência de melhoria das lacunas que a mesma apresentava à partida, na medida em que, independentemente da compulsividade associada à doença de que padece (cleptomania) e algum sofrimento associado, o mecanismo de pensamento da mesma é revelador de falta de crítica em relação aos ilícitos praticados, sobressaindo a autojustificação, desvalorização e minimização dos mesmos.
Tais mecanismos e distorções cognitivas assumem-se como um forte factor de risco, como se pode constatar do número crescente de ocorrências criminais atrás elencadas, razão pela qual se conclui, pelo menos por ora, que a medida probatória que a arguida se encontra a cumprir não parece estar a conduzir a uma inversão comportamental nem à ressocialização da mesma.
11. A arguida é divorciada e vive sozinha em casa de família.
12. Ao nível de habilitações literais concluiu uma licenciatura.
 13. Tem um filho maior de idade.
14. É beneficiária do rendimento social de inserção e frequenta um curso do IEFP recebendo uma bolsa de €250,00 mensais, passe e subsídio de alimentação no valor de €4,77 diários.
15. Consta do certificado de registo criminal do arguido que o mesmo já foi julgado e condenado no âmbito do:
a. Processo n.º 465 (…) do 2º Juízo de competência criminal, por decisão transitada em julgado em 31-10-2008, pela prática de um crime de furto qualificado, por factos ocorridos em 29-03-2008, numa pena de 60 dias de multa à taxa diária de €6,00, pena esta julgada extinta pelo cumprimento.
b. Processo n.º 193 (…) do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Cascais, por decisão transitada em julgado em 22-03-2013, pela prática de um crime de furto na forma tentada, numa pena de 180 dias de multa à taxa diária de €6,00, substituída por trabalho a favor da comunidade, por factos ocorridos em 19-02-2013, pena julgada extinta por prescrição.
c. Processo n.º 274 (…) do 3º Juízo de Competência Criminal do Tribunal da Comarca de Almada, por decisão transitada em julgado em 15-09-2013, pela prática de um crime de furto, na pena 180 dias de multa à taxa diária de €5,00, pena esta já julgada extinta pelo cumprimento, por factos praticados em 18-02-2011.
d. Processo n.º 1648 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Lisboa – Juízo Local de Pequena Criminalidade – Juiz 3, por decisão transitada em julgado em 12-09-2013, pela prática de um crime de furto, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de €5,00, já julgada extinta pelo cumprimento, por factos praticados em 12-09-2013.
e. Processo n.º 313 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real Vila Real – Juízo Local Criminal, por decisão transitada em julgado em 17-05-2017, pela prática de um crime de furto, na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por factos ocorridos em 08-05-2014, pena esta já julgada extinta.
f. Processo n.º 1034 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Lisboa – Juízo Local Criminal – Juiz 11, por decisão transitada em julgado em 10-07-2017, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 10 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, por factos ocorridos em 19-08-2015.
g. Processo n.º 1077 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Lisboa – Juízo Local Pequena Criminalidade - Juiz 4, por decisão transitada em julgado em 15-11-2018, pela prática de um crime de furto, na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução pelo período de 3 anos.
h. Processo n.º 962 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Lisboa – Juízo Local Pequena Criminalidade – Juiz 1, por decisão transitada em julgado em 10-01-2019, pela prática de um crime de furto, na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita a regras de conduta.
i. Processo n.º 1427 (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Oeiras – Juízo Local Criminal – Juiz 2, por decisão transitada em julgado em 18-12-2019, pela prática de dois crimes de furto, na pena de 24 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regras de conduta.
 j. As penas referidas em g), h) e i) foram objecto de cúmulo jurídico e a arguida condenada na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, transitada em julgado em 15-062020, sujeita a regras de conduta
 Matéria de facto não provada
1. Em virtude da actuação da arguida, o creme ficou impossibilitado de ser posto, novamente, à venda. 
 Fundamentação da matéria de facto
(…)
 A arguida limitou-se a dizer que não se lembrava bem da situação em causa nos autos e que tem problemas de cleptomania, fazendo tratamento.
A convicção do Tribunal no que respeita à matéria de facto que resultou provada, resulta do depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento que relataram os factos de que tinham conhecimento de uma forma objectiva e esclarecedora. 
No que respeita à matéria de facto não provada tal resulta da circunstância de a prova produzida não ter permitido ao Tribunal formar a sua convicção quanto à mesma.
De facto, as testemunhas MLS e MCT, funcionárias do estabelecimento comercial onde os factos ocorreram não se pronunciaram sobre a mesma, sendo que a 1ª daquelas testemunhas o que disse foi que a caixa onde estava o creme estava estragada.
Ora, esta afirmação, por si, não permite concluir que o creme em causa nos autos ficou impossibilitado de ser posto à venda, motivo pelo qual se considerou não provada tal facto.
No que respeita à situação pessoal da arguida atendeu-se às declarações que quanto a estes factos prestou bem como ao teor do relatório social. 
Conjugou-se a prova testemunhal com o teor do auto de notícia de fls. 3 a 6, auto de apreensão de fls.7, auto de exame e avaliação de fls.8, talão de fls.12 e auto de visionamento e fotogramas de fls.56 a 60. 
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, teve o tribunal em conta o teor do certificado do registo criminal daquele junto aos autos.”
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III – Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos art.º 368º e 369º ex-vi art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Como referido a primeira questão a tratar é a da impugnação da matéria de facto.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: uma, através dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal; a outra através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No segundo caso a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art.ºs 412.° do Código do Processo Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.”
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto "não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, e o tribunal de recurso em matéria de exame crítico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas".(cfr. Ac STJ 7/6/06, proc. 06P763, www.dgsi.pt ).
De facto, "o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal "a quo" tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova pode exibir perante si "
Assim a impugnação ampla da matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.°, n.3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ªinstância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.° do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412° do C.P.P (…)” ( Ac. RC de 3/10/00, CJ., ano 2000, t. IV, pág. 28).
Analisando, quer as motivações, quer as conclusões de recurso, constatamos que o recorrente indica de facto passagens de onde pretende retirar matéria probatória para alterar a matéria de facto.
Acontece, com o devido respeito, que aquilo que o recorrente pretende ver alterado já está na matéria de facto assente, senão vejamos:
O recorrente pretende que se dê como assente que a arguida retirou o creme da caixa, o que está provado e que se dê como provado que a caixa ficou danificada, o que está provado.
A discordância é na afirmação dada como não provada que “Em virtude da actuação da arguida, o creme ficou impossibilitado de ser posto, novamente, à venda”.
A questão é que tal afirmação não é um facto tout cour mas antes uma conclusão a extrair a partir de factos.
Na verdade, para se concluir ou não pela impossibilidade de um bem ser posto à venda ter-se-á de afirmar a qualidade do bem, as suas características e o porquê do mesmo não poder ser de novo colocado no mercado.
Acontece que isto é feito não por via da impugnação da matéria de facto mas sim por via da análise dos factos assentes e, se necessário, com recurso a regras de experiência.
Assim, e por esta via não há que alterar a matéria de facto.
O recorrente sustenta ainda a existência dos vícios de erro notório na apreciação da prova e contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e respectiva fundamentação.
Vejamos.
O art.º 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
A apreciação destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque envolve apenas a análise do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Apenas as regras de experiência comum podem servir de critério de aferição da sua existência.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, corresponde, genericamente, à afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário, vale por dizer, quando se considera provado e não provado o mesmo facto, ou quando se dão como provados factos antagónicos ou quando esse antagonismo intrínseco e inultrapassável se estabelece na fundamentação probatória da matéria de facto, ou entre a fundamentação e a decisão, a ponto de se tornar evidente, a partir da simples leitura do texto que dessa fundamentação deveria resultar decisão oposta àquela que foi tomada.
«Para os fins do preceito (al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência. As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma» (Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739).
Verificar-se-á sempre que «(…) no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito» (Ac. do STJ de 12.03.2015, processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.9.2017, proc. 596/12.4JABRG.G2.S1; de 5.09.2018, proc. 2175/11.4TDLSB.L1.S1, de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1, de 25.09.2019, proc. 60/2017.5 JAFAR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt ).
Pode, pois, existir contradição insanável, não só, entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a decisão (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 325).
«A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja suprível pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. (…) A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados («provado que disparou», «não provado que disparou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal, ou vice-versa.
Por vezes a contradição surpreende-se até no modo como se apresenta a fundamentação da matéria de facto, quando essa fundamentação resulta contraditória com a solução de facto encontrada.» (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, cit., 2.ª ed., 2016, a págs. 1274-1275, em anotação ao artigo 410.º).
O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77).
«Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º).
«É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341).
«O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de 06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, in http://www.dgsi.pt ).
Comecemos, pois, por este último vício – erro notório na apreciação da prova.
O Tribunal deu como assente que a arguida retirou do expositor em que se encontrava, a fim de ser vendido, um creme de rosto da marca Clarins, no valor de €87,50 e que, acto contínuo, a arguida retirou o boião do creme do interior da respectiva caixa de cartão, danificando-a. 
Subsequentemente guardou o boião de creme no saco que trazia consigo e deixou a caixa danificada no local.
Ao mesmo tempo o Tribunal refere que não está provado que o creme ficou impossibilitado de ser posto, novamente, à venda. 
Ora, resulta das regras da experiência que os consumidores adquirem os produtos em embalagens fechadas. O dano da embalagem é tido como sinal de uma mercadoria corrompida ou danificada sendo esta a prática comercial estabelecida e a qual é assumida como facto notório, isto é como facto que não escapa à generalidade das pessoas.
É tão óbvio que assim é que é a própria arguida a referir na conclusão 8ª da sua resposta que “é claro e evidente que sem a caixa onde se encontrava o creme de rosto inserido, o mesmo jamais poderá ser vendido ao público.”
Assim sendo, como é, segue-se que o facto não provado (mesmo aceitando que o facto não provado é, de facto, um facto e não uma conclusão a retirar de factos) não pode subsistir como, como refere o Ministério Público em sede recursal o mesmo não tem suporte probatório e atenta contra as regras da experiência comum.
Neste sentido não pode subsistir o facto não provado passando a constar do elenco dos factos provados.
Prejudicado fica o conhecimento da mencionada contradição entre a matéria provada e a não provada pois que radica nos mesmos factos e procura os mesmos fins.
Dito isto cumpre saber se se mostra correcta a subsunção jurídica operada.
O Tribunal a quo, na análise que faz, menciona que estão presentes os elementos objectivos e subjectivos do tipo mas que falta a condição objectiva de procedibilidade
Refere-se na decisão posta em crise: “Contudo, falta de uma condição de procedibilidade. De facto, resulta da matéria de facto provada que a arguida retirou de retirou do expositor em que se encontrava, a fim de ser vendido: 1 creme de rosto da marca Clarins, no valor de €87,50. Acto contínuo, a arguida retirou o boião do creme do interior da respectiva caixa de cartão, danificando-a.  De seguida, a arguida introduziu o boião do creme num saco que trazia consigo e abandonou a caixa do mesmo, danificada, num expositor.  Nessa altura, a arguida foi abordada pela funcionária da loja MLS, que a impediu de abandonar a loja, conforme planeava. Mais resulta que o estabelecimento onde os factos ocorreram encontrava-se aberto ao público e em funcionamento e que o objecto em causa nos autos foi apreendido. 
Dispõe o art.207º nº2 do C.Penal que no caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis ou animais expostos de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas. 
No caso sub judicie, tendo a conduta ocorrido em estabelecimento comercial durante o período de abertura ao público, relativamente a coisa móvel exposta, de valor diminuto e que foi recuperado de imediato, era necessário que tivesse sido deduzida acusação particular o que não ocorreu.”
Ora, como referido a embalagem estava danificada e o artigo não poderia ser, de novo, colocado em venda.
 A recuperação imediata dos bens furtados prevista no art.º 207.º, n.º 2, do CP, e necessária para preencher aquele requisito, exige que os mesmos se encontrem no seu estado original, o que não acontece se os mesmos se encontram parcialmente danificados e impróprios para venda sendo que a ausência de tal estado não permite a afirmação que existiu a recuperação do bem qua tale (neste sentido vide Ac. da Rel. do Porto de 22.02.2017, proc. 118/15.5PEGDM.P1, acessível em www.dgsi.pt).
Assim sendo, o crime cometido não tem, ao contrário do sustentado, natureza particular mas sim semi-pública havendo legitimidade do Ministério Público em prosseguir a acção penal.
O Ministério Público não impugna a subsunção jurídica dos factos. Na verdade, tirando a questão da condição objectiva de procedibilidade, concorda com a mesma e também este Tribunal se revê na mesma.
O recorrente sustenta, na sequência do seu raciocínio, que a arguida deverá ser condenada numa pena de prisão e que esta deve ser efectiva pois dado o passado criminal da arguida é patente que só esta serve os fins do artº 40º do Código Penal não existindo fundamento para a suspensão da pena nos termos do art.º 50º do mesmo código.
É neste particular que se diverge.
Quer o Tribunal a quo, quer o recorrente assumem que a arguida é imputável. Está dado como assente que “A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente (…)”. Contudo, em sede de fundamentação deixa-se expresso que a arguida frequenta “(…) consulta de psiquiatria (…) dois anos e meio decorridos de acompanhamento de AC, não há evidência de melhoria das lacunas que a mesma apresentava à partida, na medida em que, independentemente da compulsividade associada à doença de que padece (cleptomania) e algum sofrimento associado, o mecanismo de pensamento da mesma é revelador de falta de crítica em relação aos ilícitos praticados, sobressaindo a autojustificação, desvalorização e minimização dos mesmos.
Tais mecanismos e distorções cognitivas assumem-se como um forte factor de risco, como se pode constatar do número crescente de ocorrências criminais atrás elencadas, razão pela qual se conclui, pelo menos por ora, que a medida probatória que a arguida se encontra a cumprir não parece estar a conduzir a uma inversão comportamental nem à ressocialização da mesma.”
Ou seja a arguida, afirma-o o Tribunal padece de uma doença mental, a cleptomania e tal doença pode ter como consequência a incapacidade de avaliar os actos no momento da prática ou a incapacidade de agir de acordo com essa determinação.
E é aqui que existe uma contradição entre a matéria provada e a fundamentação.
Este Tribunal não consegue superar a contradição pois que para que se saiba se a arguida é ou não, no caso, imputável ou inimputável, haverá que proceder a uma perícia.
Na verdade, se a arguida for imputável haverá que condenar a mesma pela comissão do crime.
Caso contrário haverá que conhecer da sua perigosidade e, em caso da mesma existir, determinar a absolvição e execução de uma medida de segurança ou, caso a perigosidade não exista, absolver pura e simplesmente.
Porque assim é é que haverá que alterar a matéria de facto nos termos sobreditos e, mantendo os factos provados, ordenar o reenvio parcial dos autos para que haja lugar à realização de uma perícia psiquiátrica de molde a determinar se arguida padecia, no momento dos factos, de doença de índole mental, designadamente cleptomania, a qual a impedisse de compreender o alcance dos seus actos ou de se determinar de acordo com tal compreensão e, em caso afirmativo, se se verifica uma situação de perigosidade de repetição de condutas como aquela em apreço.
Outrossim, dependendo do resultado da perícia, proceder à determinação e quantificação da pena, caso a arguida seja imputável, ou em caso de inimputabilidade conhecer da sua perigosidade e, em caso da mesma existir, determinar a absolvição e execução de uma medida de segurança ou, caso a perigosidade não exista, absolver pura e simplesmente.
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IV - Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação em:
a) Julgar parcialmente provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente:
a. Retirar do elenco dos factos não provados o facto “Em virtude da actuação da arguida, o creme ficou impossibilitado de ser posto, novamente, à venda.”
b. Inserir o mesmo facto no elenco dos factos provados;
c. Declarar que a arguida, por via dos factos agora tidos como assentes cometeu factos típicos e ilícitos subsumíveis ao disposto nos art.º 22º, 23º e 203º, todos do Código Penal;
d.Eliminar o segmento dos factos provados onde consta “A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente”
e. Ordenar, nos termos do disposto no art.º 426º nº 1 do C.P.P.,  o reenvio parcial do processo à 1ª instância, reenvio este restrito apenas ao conhecimento da imputabilidade ou inimputabilidade da arguida, devendo o Tribunal a quo, além do que considerar conveniente, ordenar a realização de perícia médico legal com vista a determinar se arguida padecia, no momento dos factos, de doença de índole mental, designadamente cleptomania, a qual a impedisse de compreender o alcance dos seus actos ou de se determinar de acordo com tal compreensão e, em caso afirmativo, se se verifica uma situação de perigosidade de repetição de condutas como aquela em apreço.
f. Outrossim, ordenar que, dependendo do resultado da perícia, se proceda à determinação e quantificação da pena, caso a arguida seja imputável, ou em caso de inimputabilidade conhecer da sua perigosidade e, em caso da mesma existir, determinar a absolvição e execução de uma medida de segurança ou, caso a perigosidade não exista, absolver pura e simplesmente.
b) Sem custas.
Notifique
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos Juízes Adjuntos.

Lisboa e Tribunal da Relação, 25 de Janeiro de 2023
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Alfredo Gameiro Costa
Rosa Vasconcelos