Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
501/20.4T8OER.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL COMUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A notificação judicial avulsa tem como objectivo a transmissão de uma determinada mensagem ao seu destinatário e, embora se assuma como um acto judicial, não se inscreve em qualquer processo judicial pendente.
2. Por esse motivo, a actividade judicial existente no âmbito de uma notificação judicial avulsa visa unicamente a efectivação dessa notificação, não existindo qualquer conflito de interesses a resolver.
3. Não sendo necessário apreciar a relação jurídica entre as partes, a competência para efectuar a notificação pretendida recairá sobre os tribunais comuns, face à sua competência residual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I. RELATÓRIO
1. A [ Serviços Sociais da Administração Pública ] intentou a presente notificação judicial avulsa requerendo a notificação de B [ Luís …..] , por incumprimento contratual, nos termos do disposto nos arts. 1083º e 1084º, ambos do CC.
2. Na sequência de tal pedido, foi proferido o seguinte despacho.
“Atenta a qualidade jurídica do A, bem como a relação jurídica subjacente ao pedido, declaro este Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciar da viabilidade em da diligência solicitada e, consequentemente, para a executar, o que determina, dada a natureza liminar do presente despacho, o indeferimento liminar da pretensão deduzida (cfr. artigos 256.º, 99.º, n.º 1, 590.º, n.º 1, 576.º, n.ºs 1 e 2, e 278º, n.º 1, alínea a), todos do C.P.C.)”.
3. O Ministério Público, em representação de Serviços Sociais da Administração Pública, nos termos do art. 4º, nº 1, al. b) e 9º, nº 1, al. a) do Estatuto do Ministério Público, recorreu dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
“a) No âmbito da actividade do requerente foram celebrados vários contratos de arrendamento comercial pelos extintos Serviços Sociais da Presidência do Conselho de Ministros ( doravante SSPCM) como é o caso do contrato em crise nos presentes autos, no qual o arrendatário B sucedeu por trespasse, tendo o ora requerente solicitado a notificação judicial avulsa quanto a este, por incumprimento contratual, nos termos do disposto nos artigos 1083.ª e 1084.º, ambos do C.C.
b) A celebração dos contratos comerciais supra-referidos não teve por base quaisquer poderes de autoridade, tratando – se de um simples arrendamento comercial acordado entre dois sujeitos jurídicos, pese embora o arrendatário tivesse natureza pública.
c) Incumbe aos Tribunais Administrativos e Fiscais julgar os litígios que constam do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, designadamente na alínea e), referentes a questões de validade de actos pré- contratuais e interpretação, validade e execução de contractos administrativos ou de quais outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, o que manifestamente não tem correspondência com a realidade dos presentes autos.
d) Por seu turno, a alínea e) do n.º 1 do ETAF na sua actual redacção continua a deixar de fora da competência dos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a contratos celebrados por órgãos da Administração Pública e submetidos a um regime de direito privado que não tenham sido celebrados nos termos da legislação da contratação pública. 
e) A M. mª Juiz não deveria ter indeferido a notificação judicial avulsa uma vez que esta possui um teor autónomo, na qual não se discute o teor da relação jurídica sub judice, requerendo – se tão somente que se dê conhecimento a alguém de determinado facto juridicamente relevante.- veja – se neste sentido o Acórdão da  TRL de 03.04.2014, proferido no âmbito do processo n.º 4/14.4T2MFR.L1-2.
f) Aos Tribunais Judicias incumbe o julgamento de todas as causas cujo conhecimento a lei não atribua a outras espécies de tribunais e aos Tribunais Administrativos, o que manifestamente é a situação que ora nos ocupa. cfr artigos 211.º e 212.º da CRP, 40.º da LOSJ e artigo 4.º, n.º 1 do ETAF, a contrario sensu”. 
II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a única questão submetida a recurso é a aferir da competência do tribunal judicial para ordenar a notificação judicial avulsa requerida.
III. APRECIAÇAO DO RECURSO
Face ao teor das alegações e considerando que os factos são os que resultam do relatório, passemos a apreciar as questões suscitadas.
Prende-se a questão dos autos com a competência material para apreciação do pedido de notificação judicial avulsa efectuado nos autos.
Entendeu a decisão recorrida que o tribunal judicial não é competente, considerando a qualidade jurídica do A. e a relação jurídica subjacente ao pedido.
Antes de analisar tal questão, importa relembrar que a notificação judicial avulsa tem como objectivo a transmissão de uma determinada mensagem ao seu destinatário e, embora se assuma como um acto judicial, não se inscreve em qualquer processo judicial pendente.
A opção por este meio de comunicação tem particular relevância nos casos em que se pretende extrair consequências jurídicas da reacção (ou da ausência desta) do notificando, como será o caso em que se pretende ver definido o momento a partir do qual se poderá exercer determinado direito.
Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 290, em anotação ao art. 256º, “A existência de um interesse processual é decorrência de uma opção do legislador de facultar a qualquer interessado o recurso a este instrumento processual, mesmo que porventura a transmissão de uma comunicação ao requerido pudesse ser alcançada com o uso de meios extraprocessuais que, de todo o modo, não assumem a natureza, nem a segurança que rodeia a notificação avulsa”.
Por esse motivo, a notificação judicial avulsa é um acto-fim e independente, já que toda a actividade judicial é exercida com vista à notificação, “diferenciando-se das notificações relativas a processos pendentes, sendo estas actos-meios e dependentes, na medida em que servem de instrumento ou de meio num processo em curso” (loc. cit., pág. 291). Neste sentido, vide ainda Professor Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 238 e vol. II, págs. 586 a 588 e Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Processo Civil, vol. I, pág. 485.
Ainda assim, a notificação judicial avulsa está sujeita a um determinado formalismo, patente nos arts. 256º e 257º do CPC, dos quais resulta a necessidade de um requerimento, sobre o qual recairá um despacho (cfr. art. 256º, nº 1 do CPC).
Por outro lado, nos termos do art. 79º do CPC, as notificações avulsas são requeridas no tribunal em cuja área resida a pessoa a notificar.
No que se refere à competência em razão da matéria, questão em análise nos autos, importa recordar que, nos termos do art. 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por outro lado, decorre do art. 64º do CPC, que os tribunais judiciais são competentes para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo que, nos termos conjugados dos arts. 1º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, e 144º nº 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Por seu turno, o art. 4º do ETAF estabelece quais as causas que competem aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, excluindo desta jurisdição algumas situações plasmadas nos seus nºs 3 e 4.
Tal como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência, a competência material do tribunal afere-se em função das normas atributivas de competência, como o citado art. 4º do ETAF, mas também em função da relação jurídica subjacente ao direito invocado, tal como ela é delimitada na petição inicial, bem como pelo pedido efectuado ao tribunal.
No caso dos autos, estamos perante um pedido de notificação efectuado por uma entidade que faz parte da Administração Pública com vista a uma comunicação nos termos dos arts. 1083º e 1084º do CC e tendo por base um contrato de arrendamento comercial anteriormente celebrado, relativo a um prédio pertencente aos SSAP e para a prossecução de actividade de gelataria e posteriormente de snack-bar.
Ora, e tal como bem se salienta nas alegações apresentadas pelo apelante, a celebração de tal contrato comercial não emerge de quaisquer poderes de autoridade dos SSAP, sendo irrelevante a natureza pública destes serviços, na medida em que se trata de um contrato em que aqueles assumem a natureza de particulares.
Acresce que não existe qualquer conflito de interesses a resolver pela notificação solicitada, a qual se limitará à comunicação relativa à resolução do aludido contrato de arrendamento. Isto é, e tal como se já se expôs, a actividade judicial existente no âmbito de uma notificação judicial avulsa visa unicamente a efectivação dessa notificação.
Como se diz no Ac. TRL de 08-06-2017, proc. 235/15-1T8MFR.L1, relator Francisca Mendes, “É certo que o acto não deverá ser ordenado se a notificação for ilegal ou imoral. Mas não cumpre ao Tribunal apreciar a relação jurídica e proceder à sua qualificação com vista a dirimir um conflito de interesses”.
Por esse motivo, e tal como decidido neste aresto e ainda na decisão do TRL de 01-07-2009, proc. 368/09.9YRLSB-1, relator José Augusto Ramos, Ac. TRL de 28-10-2010, proc. 1086/10.5T2AMD.L1-8, relator Caetano Duarte e no Ac. TRL de 03-04-2014, proc. 5/14.4T2MFR.L1-2, não sendo necessário apreciar a relação jurídica entre as partes, a competência para efectuar a notificação pretendida recairá sobre os tribunais comuns, face à sua competência residual.
Face à clareza de raciocínio do aludido acórdão do TRL de 03-04-2014, permitimo-nos aqui reproduzi-lo, quando diz “A pretensão deduzida em juízo pela ora recorrente não respeita a qualquer conflito de interesses a resolver nem se discute qualquer relação jurídica. Estamos perante um processo extrajudicial e a pretensão da recorrente é tão só a de dar conhecimento de certo facto ao requerido.
(…)
Ora, os tribunais judiciais são a regra dentro da organização judiciária, gozando de uma competência não discriminada, sendo os restantes tribunais a excepção, com a respectiva competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Assim sendo, face à regra do carácter residual da competência dos tribunais comuns, de acordo com as normas legais supra referidas a este respeito, consistindo a pretensão dos autos, simplesmente, em se requerer que se dê conhecimento de certo facto ao notificando, não sendo processualmente exigido que, subjacente a tal notificação preexista sequer uma relação jurídica entre a requerente e o notificando, a competência material para proceder à requerida notificação judicial avulsa pertence ao tribunal recorrido”.
Aqui chegados, importa ainda esclarecer que, caso se entenda que deve ser efectuada uma análise prévia quanto ao conteúdo da notificação peticionada por forma a apurar a relação jurídica subjacente e, por essa via, determinar o tribunal competente, sempre se concluiria pela competência dos tribunais judiciais para o efeito.
Na verdade, está em causa um contrato de arrendamento e a notificação da sua resolução, sendo claro, do seu teor, que a sua apreciação não se insere em qualquer dos casos previstos no art. 4º do ETAF.
Donde, e considerando a regra do carácter residual da competência dos tribunais comuns e ainda que a pretensão trazida a juízo radica, unicamente, na comunicação de um determinado facto ao notificando, tem de se concluir que a competência material para proceder à requerida notificação judicial avulsa pertence ao tribunal recorrido.
Daqui resulta que assiste razão ao apelante, devendo a decisão recorrida ser revogada, reconhecendo-se a competência material do tribunal recorrido para apreciar e decidir da requerida notificação judicial avulsa.
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que ordene a requerida notificação.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 19 de Maio de 2020
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano