Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5011/2004-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: DIREITO À IMAGEM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. Os direitos de personalidade são direitos inatos, inalienáveis e irrenunciáveis, dada a sua essencialidade relativamente à pessoa, da qual constituem o núcleo mais profundo. O direito à imagem é um dos direitos fundamentais de personalidade, protegidos civilmente, mas também, e desde logo, reconhecidos como tal na Constituição. Efectivamente, deriva do art. 26º, nº 1, da Constituição da República, que a todos os cidadãos é reconhecido o direito à sua imagem. Por seu turno, estatui o art. 79º, nº 1, do C. Civil que o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela.
2. Estando em causa direitos fundamentais, não pode colher o argumento de que quem autorizou a divulgação da sua imagem para um programa, legitimou a utilização da mesma ainda que para fins ligados ao mesmo programa. Não sendo esse o alcance normal do consentimento prestado, cabia à ré pedir novo consentimento para utilização das ditas imagens. Qualquer mínima dúvida sobre a extensão e alcance do consentimento prestado obrigava a ré a diligenciar sobre a obtenção de novo consentimento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório.
1. L, intentou contra a R, SA, com sede em Lisboa, acção declarativa de condenação, com processo comum, sob a forma sumária, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 2.500.000$00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento e bem assim a pagar-lhe a indemnização que vier a liquidar-se em execução de sentença quanto aos danos futuros e previsíveis decorrente das verbas imprescindíveis a suportar o custo dos tratamentos neurológicos a que o Autor tenha de ser submetido em resultado das lesões decorrentes do uso abusivo da imagem do Autor pela Ré.
Alegou para o efeito, em síntese, que participou voluntariamente numa reportagem feita pela Ré, em 30 de Junho de 1998, à entrada do Hospital Miguel Bombarda e que abordou diversos aspectos dos Serviços de Saúde Mental, julgando que a sua aparição na televisão se destinava tão só a um trabalho jornalístico sobre saúde mental; a Ré, contra a vontade do A. e sem o seu consentimento, utilizou a sua imagem para a feitura de um "spot" publicitário ao seu programa “Portugalmente”, manipulando o uso da imagem do Autor que é doente do foro psicológico, o que motivou uma queixa à Alta Autoridade para a Comunicação Social, julgada procedente.
Mais invocou que a descrita conduta da ré lhe provocou danos não patrimoniais, já que depois da passagem do aludido "spot" passou a ser reconhecido nos lugares públicos, o que lhe provocou grande constrangimento e agravamento do seu estado de saúde, impossibilitando-o ainda de prestar serviços na cozinha do Hospital onde trabalhava e determinando a necessidade de se submeter a tratamentos neurológicos futuros.
Citada, a Ré R, SA, apresentou contestação na qual pediu a improcedência da acção e a intervenção acessória de "Astrolábio - Produção de Televisão, SA" na qualidade de produtora do programa "Portugalmente", do qual fazem parte as imagens do A, a quem a Ré encomendou a série como produto acabado, alegando que caso venha a ser condenada no pagamento dos créditos reclamados lhe assiste direito de regresso contra aquela por força do contrato entre elas celebrado.
Defendeu ainda ser falso que não tenha sido obtido o consentimento do A para a utilização das imagens ou que a autorização dada não cobrisse todas as utilizações do programa previstas no contrato. Aceitou que utilizou algumas das imagens contidas no programa genericamente intitulado "Portugalmente", que lhe foi entregue pela "Astrolábio", para fazer o anúncio da próxima edição do mesmo programa, sustentando que a utilização de excertos para anunciar e divulgar o programa cabe no âmbito da autorização que o titular da imagem deu para a captação, utilização e emissão de todo o programa. Impugnou a existência e a extensão dos danos invocados.
Proferido despacho a admitir o chamamento da Astrolábio - Produção de Televisão, SA a título de interveniente acessório e citada aquela, veio a mesma apresentar contestação.
Negou qualquer responsabilidade relativamente aos anúncios de programação do programa “Portugalmente”, quer na respectiva concepção e composição audiovisual, quer na definição da sua emissão, conforme emerge das cláusulas 3ª e 8ª constantes do contrato celebrado com a Ré. Sustentou, porém, não existir qualquer violação por parte da Ré do direito à imagem do A já que este dera o seu consentimento expresso para a utilização da gravação da sua imagem no programa, tornando a mesma do domínio público.

Corridos os normais termos processuais, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a ré Radiotelevisão Portuguesa, SA, a pagar ao autor, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de € 2 493,99, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até ao pagamento e absolveu a ré do mais que era pedido (fls.175 a 183).

Inconformada, recorreu a ré, então já transformada em Rádio e Televisão de Portugal SGPS, SA.
Alegou e, no final, formulou as seguintes conclusões:
1. O Meritíssimo Juiz “a quo” esqueceu, por completo, a mais importante e objectiva das provas produzidas e que é a prova documental materializada na cassete vídeo que contém a transcrição do programa e do “spot” de promoção do “Portugalmente”;
2. Do exame do “spot” de promoção do programa “Portugalmente”, e da sua conjugação com o próprio programa em si mesmo, é patente que no “spot” se trata de uma imagem instantânea, sem som e sem sequer ser directa e perfeitamente identificável com a pessoa do Recorrido, retirada de entre as obtidas e gravadas pela Astrolábio para o programa com o conhecimento e autorização do Recorrido para serem divulgadas na emissão da Recorrente;
3. Ao autorizar a gravação e divulgação da sua imagem num programa de televisão - que é o mais – o titular do direito à imagem também autoriza a sua utilização na promoção ao mesmo programa – que é o menos – sob pena de tal recusa constituir abuso de direito, tal como é consagrado no art. 334º do Código Civil;
4. Tendo decidido como decidiu, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 515º do C. P. Civil e praticou a nulidade prevista na alínea d) do art. 668º do mesmo C. P. Civil.
Terminou pedindo a procedência do recurso e a sua absolvição de todo o pedido.

O recorrido contra alegou, pedindo a manutenção da sentença recorrida.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Matéria de Facto.
2. A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. No dia 30 de Junho de 1998, num dia de convívio entre doentes e pessoal no Hospital Miguel Bombarda, mais concretamente na Festa dos Santos Populares, foi feita uma reportagem à entrada do aludido Hospital.
2. A reportagem aludida em 1) abordou vários aspectos dos serviços de saúde mental.
3. O Autor participou voluntariamente na reportagem aludida em 1) e 2).
4. O Autor frequentou desde Fevereiro de 1998 um curso de formação na Unidade de Reabilitação, no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa.
5. A Ré "RTP" utilizou a imagem do Autor numa montagem destinada à divulgação do programa "Portugalmente".
6. Essa utilização da imagem do Autor foi feita sem este ter sido ouvido para o efeito.
7. O Autor é um doente do foro psicológico.
8. Depois da passagem da montagem aludida em 5), o Autor teve um agravamento da sintomatologia, sendo submetido a um tratamento mais intenso.
9. A recolha das imagens e a elaboração do programa de televisão intitulado "Portugalmente" e do qual fazem parte as imagens do Autor, não foi feita pela Ré mas pela "Astrolábio — Produção de Televisão, SA".
10. A quem a Ré encomendou a série como produto acabado.
11. A chamada "Astrolábio - Produção de Televisão, SA", diligenciou para que as gravações bem como a sua posterior emissão fossem devidamente autorizadas, quer pela administração do Hospital Miguel Bombarda, quer pelos intervenientes nas mesmas - pacientes e pessoal do Hospital.

O Direito.
3. Vistas as conclusões da alegação da recorrente, a primeira questão de que cumpre apreciar, traduz-se em saber se a sentença é nula, nos termos do art. 668º nº1, al. d) do CPC.
Defende a recorrente que, atento o poder/dever consagrado no art. 515º do CPC, se impunha ao tribunal recorrido que tivesse em consideração não só os factos dados como provados, bem como os factos que resultam comprovados da cassete-vídeo, objecto de visionamento na audiência, e da qual consta a gravação integral do programa em causa e do “spot” de promoção do Portugalmente, sob pena da prática da dita nulidade.
E acrescenta que, “com efeito, de tal prova documental resulta que a imagem do Recorrido utilizada no “spot” de promoção tem uma duração “relâmpago”, de cerca de um segundo, sem permitir que possa ser identificada, quer por qualquer telespectador comum quer mesmo por uma pessoa das relações do Recorrido, como sendo uma imagem do autor.
Nos termos do disposto no art. 668º nº 1, al. d) do CPC, no segmento que ora interessa considerar, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando exista omissão de pronúncia.
E é entendimento pacífico que a omissão de pronúncia se circunscreve à omissão de questões em sentido técnico, questões de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido. A invocação de um facto ou a produção de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal se não tenha pronunciado não constitui omissão de pronúncia para efeitos do disposto no preceito legal citado.
Como ensina Alberto dos Reis, "...são na verdade coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão." (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 143)
E importa desde já realçar que, face ao teor do art. 668º do CPC, não se incluem, entre as nulidades da sentença, o chamado erro de julgamento, em qualquer das suas vertentes – erro na interpretação e aplicação do direito, injustiça da decisão ou erro na construção do silogismo judiciário.
Ora, o que a recorrente invoca para fundamentar a nulidade arguida é que o tribunal recorrido, por virtude do estatuído no art. 515º do diploma citado, devia ter considerado ainda provados diversos factos que, no seu dizer resultariam da cassete-vídeo apresentada e visualizada em audiência. Ou seja, invoca tão-somente um (eventual) erro na apreciação da prova, o que não constitui, como se disse, fundamento da invocada nulidade da sentença.
Acresce que, podendo esses factos ter sido concretamente alegados pela ré na contestação, designadamente a eventual impossibilidade de identificação do autor no dito “spot”, não o foram. Pelo contrário, a ré, na contestação, reconheceu que utilizara algumas imagens do dito programa, referindo-se-lhes como “simples excertos”, mas não invocou que nesses o autor não era reconhecível.
Improcede, pelo exposto, a dita nulidade da sentença.

A segunda questão colocada no recurso traduz-se em saber se, tendo o autor dado autorização para a recolha e exibição da sua imagem num dado programa televisivo - "Portugalmente" -, essa imagem pode depois ser utilizada, sem novo consentimento, numa montagem destinada à divulgação do mesmo programa.
Invoca a ré/recorrente que, tendo o autor/recorrido dado autorização para ser filmado no âmbito de um programa destinado a ser divulgado na sua emissão, o mesmo, enquanto titular do direito à sua imagem, também autoriza a sua utilização na promoção ao mesmo programa.
Sem razão.
O direito à imagem é um dos direitos fundamentais de personalidade, protegidos civilmente, mas também, e desde logo, reconhecidos como tal na Constituição, que os autonomizou no capítulo I do Título II consagrado aos Direitos, Liberdades e Garantias Pessoais.
Os direitos de personalidade são direitos inatos, inalienáveis e irrenunciáveis, "dada a sua essencialidade relativamente à pessoa, da qual constituem o núcleo mais profundo" (cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, pág. 215). Impõem-se, por definição, ao respeito de todas as pessoas, sendo, nesse sentido, direitos absolutos.
Efectivamente, deriva do art. 26º, nº 1, da Constituição da República, que a todos os cidadãos é reconhecido o direito à sua imagem. Por seu turno, estatui o art. 79º, nº 1, do C. Civil que "o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela...".
Ora, no caso aqui em análise, ficou provado que o autor/apelado aceitou ser filmado no âmbito de uma festa que decorreu no Hospital Miguel Bombarda e deu o seu consentimento para que as imagens recolhidas, no que respeitava à sua pessoa, fossem difundidas no programa “Portugalmente” exibido num dos canais da ré.
Posteriormente, esta, sem novo consentimento do autor, utilizou uma das imagens do autor num spot destinado à divulgação do mesmo programa.
Como invoca o autor, as imagens recolhidas foram-no num determinado contexto e com uma finalidade precisa. O consentimento foi, portanto, prestado numa determinada perspectiva, com um objectivo concreto, não sendo legítimo exigir que o autor tivesse representado que as imagens recolhidas pudessem ser posteriormente utilizadas para qualquer outra finalidade, ainda que acessória, relativamente ao dito programa.
E estando em causa direitos fundamentais, não pode colher o argumento da recorrente no sentido de que quem autorizou a divulgação da sua imagem para um programa, legitimou a utilização da mesma para fins ditos de menor exposição, ligados ao mesmo programa.
Pelo contrário. Não sendo esse o alcance normal do consentimento prestado, cabia indubitavelmente à ré pedir novo consentimento para utilização das ditas imagens, tanto mais que, como é sabido, a apresentação das imagens fora do contexto em que foram gravadas, mesmo que em passagem curta, pode resultar deturpadora. E, nesta matéria, qualquer mínima dúvida sobre a extensão e alcance do consentimento prestado obrigava a ré a diligenciar sobre a obtenção de novo consentimento.
Improcede, pelo exposto, o núcleo central da argumentação da recorrente, impondo-se negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida

Decisão.
4. Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 22 de Setembro de 2005.
(Maria Manuela Santos e G. Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)