Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3132/13.1TALRS.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
ACUSAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/26/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - Só com a apresentação pelo Ministério Público ao tribunal dos autos provenientes da autoridade administrativa estamos perante uma situação semelhante ou equivalente à prolação de uma acusação.

II - Sendo este o valor que a lei atribui à apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz, isto significa que os factos descritos na decisão condenatória da autoridade administrativa são factos a comprovar nessa fase jurisdicional.

III - E, só com a imputação concreta, traduzida em factos, é possível o exercício do contraditório e, por isso se impunha saber não só quais as obras em concreto que os peritos da C.M. entendiam que a proprietária devia realizar, como o custo das mesmas, sobretudo porque em face dos parcos rendimentos da requerida, facilmente se poderia estar perante a figura do abuso de direito, no âmbito de pretensões de condenação de senhorios de prédios urbanos a realizar obras determinadas pela Câmara Municipal, cujo valor orçamentado exceda em muito o valor da renda paga pelo inquilino.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª. Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO.


No processo à margem identificado, do 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Loures a requerida,
O..., impugnou judicialmente a decisão proferida pela Câmara Municipal de Odivelas, de 27 de Maio de 2013, que a condenou no pagamento de uma coima no valor de € 1.000,00, pela prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelo artigo 98º, n.º 1, alínea s) e n.º 4, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro.

Dessa impugnação judicial resultou a Decisão ora em recurso, e que se transcreve:

Pelos fundamentos expostos, indeferindo a nulidade do procedimento administrativo invocada pela arguida, julga-se a acusação integralmente procedente, por provada, e em consequência, mantendo-se a decisão administrativa, condena-se a arguida O... pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida no artigo 98º, n.º 1, alínea s) e n.º 4, por referência ao artigo 89º, n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, na coima de € 1.000,00 (mil euros),

Condena-se ainda a arguida nas custas, nestas se incluindo uma UC de taxa de justiça (artigo 93º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

                                              ***
Inconformada, a requerida, veio interpor recurso da referida sentença, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 213 a 226 com as seguintes:

Conclusões (que se transcrevem).

A. NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA

1. Porém, a decisão administrativa não contemplou qualquer dos factos alegados pela arguida nos factos provados ou nos não provados nem tão pouco se pronunciou acerca das invalidades invocadas, ou seja, ignorou por completo a defesa apresentada, de facto e de direito

2. Salvo o devido respeito, a factualidade e o direito invocado na defesa pela ora Recorrente é relevante para a apreciação da contra-ordenação em causa, pelo que, não podiam deixar de ter sido apreciadas pela autoridade administrativa, sob pena de nulidade nos termos da alínea c) do n.° 1 do artigo 379.° do Código de Processo Penal (doravante designado apenas de “CPP”).

3. Estamos assim perante uma manifesta omissão de pronúncia face à violação do dever processual da entidade administrativa se pronunciar sobre todas as questões, sejam de facto ou de direito, suscitadas pela Arguida no âmbito do procedimento contra-ordenacional.

4. O Tribunal a quo interpretou a norma do artigo 379.°, n.° 1, alínea c), da forma seguinte: “Porém, é entendimento deste Tribunal que não é aplicável às decisões das autoridades administrativas o disposto no artigoo 379.º n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, pelo que, a falta de pronúncia sobre os argumento invocados pela defesa não constitui qualquer nulidade” (realces nossos).

5. Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo, com a interpretação no sentido referido, violou claramente o disposto no artigo 58.°, n.° 1, alínea b) do RGCO, 374.º n.° 2 e 379.°, n.° 1, alínea c) do CPP (estes aplicáveis ex vi do artigo 41.°, n.° 1 do referido RGCO).

6. Destarte, entende a Recorrente que a norma do artigo 379.°, n.° 1, alínea c) é aplicável às decisões administrativas, pelo que, podia e devia o Tribunal a quo declarado a nulidade da decisão administrativa por falta de pronúncia.

7. Em consequência desta incorreta interpretação o Tribunal a quo até reconheceu a omissão de pronúncia da autoridade administrativa, mas aplicou erradamente o direito, e assim violou 58.°, n.° 1, alínea b) do RGCO, 374.º, n.° 2 e 379.º, n.° 1 alínea a) do CPP (estes aplicáveis ex vi do artigo 41.°, n.° 1 do referido RGCO, devendo ter interpretado nos termos supra expostos, e em consequência, deve o Tribunal ad quem declarar a nulidade da decisão judicial, determinando o reenvio do processo à autoridade administrativa, para que possa ser suprida na decisão dessa mesma autoridade a nulidade que lhe foi apontada

B. IMPUTAÇÃO OBJETIVA DA INFRAÇÃO

8. Nesta parte, o Tribunal a quo condenou a Arguida pela prática de uma contra- ordenação prevista e punida no artigo 98.°, n.° 1, alínea s) e n.° 4, por referência ao artigo 89.°, n.° 2, ambos do RJUE.

9. Aqui, e salvo o devido respeito por opinião em sentido contrário, o Tribunal a quo, uma vez mais interpretou incorretamente os normativos no artigo precedente, senão vejamos:

10. A imputação da infração está condicionada à verificação dc determinados pressupostos, como sendo (a) vistoria prévia; (b) existência de más condições de salubridade do edifício; (c) determinação por um acto administrativo legal e válido quais as obras que em concreto se tem de realizar;

11. Quanto ao primeiro pressuposto, a entidade administrativa, tal como resulta dos factos provados na douta decisão, elaborou o Auto de Vistoria constantes do processo n.° 8301 /D, pelo que, nesta parte não se vislumbra quaisquer vícios da decisão recorrida.

12. Sucede que, e para verificação do segundo e terceiros pressuposto da infração (supra referidos como (b) e (c)), a entidade administrativa ao notificar a Recorrente do ato administrativo que impunha a realização de obras, limitou-se a transcrever na integra as descrições genéricas sobre o estado do imóvel constantes do auto de vistoria.

13. Por sua vez, o Tribunal a quo, na sua motivação afirma que “a descrição efectuada no auto de notícia quanto às anomalias verificadas e a notificação para a realização das obras necessárias à sua eliminação são, não só claramente apreensíveis para qualquer cidadão comum, como resultou provado que a arguida, que foi notificada com fotocopia do auto, bem entendeu quais os defeitos a reparar (..)“ (realces nossos).

14. Ora, tal entendimento, salvo o merecido respeito, não poderá ser acolhido, porquanto, as anomalias verificadas constante do Auto de Vistoria de fls., e que foram posteriormente notificadas por meio do aludido ato administrativo, são de conteúdo genérico e conclusivo não contendo uma fundamentação precisa de facto tal como determina o artigo 125.° do CPA.

15. Destarte, e não percamos de vista que a notificação do referido ato administrativo constitui um elemento objetivo da infração imputada, e a autoridade administrativa mandou levantar o auto de notícia, pensando que aquele ato era válido.

16. No caso dos presentes autos, o ato administrativo mencionado, determina, para além do mais, que “serve o presente para notificar V. Exa. A proceder de forma legal no prazo de 60 dias, a contar da data de recepção do presente ofício, à realização de obras necessárias expressas no Auto de Vistoria, de que se junta copia, de forma a que sejam corrigidas as anomalias verificadas com vista a que a habitação possua as condições necessárias de segurança e habitabilidade” (realces nossos)

17. Sucede que, e como a Recorrente já salientou no recurso da decisão administrativa, o Auto de Vistoria que deu origem aos presentes autos de contra- ordenação enferma de falta de identificação/descriminação das patologias a reparar e da absoluta falta de identificação/descriminação das obras de reparação a executar, porquanto procede a descrições genéricas do estado do imóvel, tal como resulta das suas alíneas a) a g) do Ponto 2, e que o Tribunal a quo deu como provado (cfr. ponto 4 da decisão recorrida).

18. Ora, do Auto de Vistoria não resulta quais as reparações que em concreto tinha a Recorrente de realizar, porquanto, as menções aí vertidas são de caráter conclusivo, e como determina o artigo 89.°, n.° 1 e 2 do RJUE, “1- As edificações devem ser objeto de obras de conservação (...), devendo o proprietário, (..) realizar todas as obras necessárias à manutenção”

19. Cabe, por ora, questionar, quais as obras necessárias para ultrapassar as ditas patologias? Nada é dito!

20. É por demais evidente que a descrição genérica e conclusiva das patologias assacadas não permite proceder à subsunção dos mesmos na conduta típica.

21. Mais, nem se diga como ao Tribunal a quo que “a arguida bem sabia quais as obras que tinha de realizar, não as tendo realizado, na sua totalidade quer por falta de dinheiro, quer por entender que algumas das reparações não eram de realizar por não haver nada a reparar”(realces nossos).

22. A arguida tanto mais que não sabia quais as obras a realizar que, apenas efetuou algumas reparações no 2010, as quais, não se provaram ser aquelas que supostamente a Câmara Municipal tinha imposto através do seu ato administrativo

23. Tanto mais que, do ponto 14. da matéria provada, resulta que “a intervenção [ em 2010] consistiu no desentupimento da caleira do tubo, o qual estava na origem de infiltrações pelo telhado e substituição da trave mestra do mesmo (telhado), a qual apresentava deformação”.

24. Ora, ao confrontar a ordem emanada da entidade administrativa, através do aludido ato administrativo, não se vislumbra qualquer referência à reparação realizada pela arguida, ou mesmo às anomalias para se corrigir, porquanto esta apenas realizou reparações que, na sua perspetiva, podia e deviam ser realizadas, e não quaisquer outras.

25. Portanto, o ato administrativo que é elemento objetivo do tipo de contra ordenação é inválido, por carecer de fundamentação de facto, e por isso o Tribunal a quo andou mal, ao não atender aos normativos dos n.° 2 e 4 do artigo 90.° do RJUE, e condenar a Recorrente, uma vez que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito contra-ordenacional e assim determinar a absolvição da Recorrente.

C. AUSÊNCIA DE ILICITUDE

26. Da matéria provada resulta que “Atualmente a arguida recebe rendas relativas ao imóvel destes atos nos seguintes valores: € 36,00 do 1.º andar direito; € 166,00 do rés-do-chão esquerdo, € 175,00 da loja e € 285, 00 do 1.º andar esquerdo” (cfr. ponto 17 da matéria de facto provada)

27. Por sua vez, em sede de motivação o Tribunal a quo fundou a sua convicção no teor da participação de fls.3, Auto de Vistoria de fls. 6/7 e documentos de fls. 5, 6/9, 11, 23/28, 62, 65, 170/176 e 177/181, em conjugação com os depoimentos prestados em audiência de julgamento nos seguintes termos: “(...) a testemunha Rui Almeida (..) declarou ainda que as obras não foram feitas porque a arguida não tinha dinheiro: afirmou ainda que a arguida foi ‘falar” com a Camara para pedir financiamento para a obras, não tendo obtido resposta favorável e que, por isso, dirigiu-se a alguns bancos à procura de financiamento, o que também não conseguiu. Exibiu (e foram juntos aos autos a fls. 177/181) orçamentos de 2007 e de 2008, para obras, queforam fornecidos à arguida por alguns dos seus inquilinos” realces nossos).

28. Mais à frente, “conclui este Tribunal do teor deste depoimento que a arguida bem sabia quais as obras que tinha que realizar, não as tendo realizado, na sua totalidade, quer por falta de dinheiro, quer por entender que algumas das reparações não eram de realizar por não haver nada a reparar (realces nossos).

29. Dos orçamentos juntos a fls. 177 a 181, nota-se que em 2007, para apenas realizar uma pintura exterior e interior, era necessário despender quantias acima dos € 30.000,00 (trinta mil euros), a que acresce o valor do IVA, e em 2008, esse valor era aproximadamente de € 25.000,00 (vinte cinco mil euros), a que acresce o IVA.

30. Ora, da matéria provada, a Recorrente, à data da audiência e discussão de julgamento, recebia rendas, pela totalidade dos locados a quantia de € 662,00 (seiscentos e sessenta e dois euros), ilíquida, a qual se destina ainda ao sustento da sua vida privada e familiar.

31. Portanto, é patente no caso dos presentes autos que existe uma desproporção grave, entre o rendimento liquido obtido pela Recorrente com base nas rendas recebidas e o custo das obras necessárias a repor as condições de salubridade do locado, o que consubstancia uma situação de abuso de direito a exigir ao proprietário a execução e pagamento das respetivas obras ainda que determinada pela Câmara Municipal.

32. Igualmente neste sentido, diversos arestos, entre os quais o do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Proc. n.° s 06B1 103 e 06A4404) ou, do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA (Proc. n.° 1275/2006-6 e 4848/07-7), e ainda do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (Proc. n.° 0534208)14.

33. Na mesma ordem de ideias, as conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade a que, segundo ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA há que atender para determinar os limites do direito impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, evidenciam, pelo contrário, que seria altamente iníquo sujeitar os senhorios, ao fim de décadas de rendas congeladas que os impediram de obter rendimentos que, entre outras aplicações, lhes possibilitassem assegurar a manutenção dos prédios em normal estado de conservação, a ter de suportar custos anormalmente elevados de reparações extraordinárias a fim de assegurar, a inquilinos que continuam, após um descongelamento altamente condicionado, a pagar rendar irrisórias, notoriamente insuficientes para, em prazo razoável permitir a recuperação do capital investido nessas obras.

34. Daqui resulta que, e atendendo aos mais elevados cânones da hermenêutica jurídica, devia o Tribunal a quo, ter aplicado corretamente o direito, concluindo pela aplicação do disposto no artigo 334.° do Código Civil ex vi artigo 31.°, n.° 1, “in fine” do Código Penal, e determinar a falta de ilicitude da conduta da Recorrente.

35. Ao invés, o Tribunal recorrido aplicou o direito à factualidade provada do modo seguinte: “(...) inexistindo qualquer factualidade que consubstancie uma qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa prevista na ordem jurídica portuguesa. (..)“ (realces nossos).

36. Com efeito, e como supra demonstrámos, andou mal o Tribunal a quo ao não aplicar o instituto do abuso direito à factualidade provada, nomeadamente quando conclui que: “a arguida bem sabia quais as obras que tinha de realizar, não as tendo realizado (..)por falta de dinheiro (...).“(realces nossos).

37. Destarte, impõe-se a questão: como podia a arguida realizar obras que (i) desconhecia quais seriam, (ii) não tinha dinheiro para as realizar, e (iii) não tinha obtido financiamento junto da Câmara Municipal (autoridade administrativa), bem como da Banca Comercial?

38. Assim, e de harmonia com o disposto no artigo 412.°, n.° 2, alínea c) do CPP, houve um claro erro, pelo Tribunal a quo, na determinação da norma aplicável, devendo ter sido aplicada aos presentes autos o disposto no artigo 334.° do Código Civil ex vi artigo 31.°, n.° 1, “in fine” do Código Penal, e determinar a falta de ilicitude da conduta da Recorrida.

D. MEDIDA DA COIMA

39. A coima em questão afigura-se manifestamente excessiva e desproporcional.

40. As circunstâncias supra mencionadas - a falta de concretização das obras a realizar, ordenada pela autoridade administrativa; a ausência de uma omissão ilícita e culposa; a inexistência de antecedentes — tal como provado — constituem fatores a ter em conta na graduação da medida da pena concretamente a aplicar que não foram atendidos pelo Tribunal a quo.

41. Pelo que, o Tribunal a quo, no limite devia ter aplicado uma coima nunca superior a € 500,00 (quinhentos euros), em conformidade com o disposto no artigo 18.° do RGCO, conjugado com o disposto no artigo 98.°, n.° 4 do RJUE.

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:

1— ARGUIDA SER ABSOLVIDA DA INFRAÇÃO DE QUE VEM ACUSADA OU, AINDA QUE ASSIM NÃO SE ENTENDA,

II — DEVE SER DECLARADA A NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA, OU SUBSIDIARIAMENTE,

III — REDUZIR A COIMA PARA O SEU LIMITE MÍNIMO (€ 500,00) FAZENDO-SE, ASSIM, A COSTUMADA E NECESSÁRIA JUSTIÇA.

                                                 ***

                          O Mº.Pº respondeu na 1ª Instância, conforme consta de fls. 231 a 236 dos autos, concluindo que a decisão administrativa e o auto de vistoria não padece de qualquer vício e a sentença fez correcta interpretação do direito, devendo por isso manter-se.

                                            ***

Neste Tribunal a Ex.m.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu parecer em concordãncia com a resposta do Mº.Pº. na 1ª. Instância e, no sentido da improcedência do recurso.

           
Cumpridos os vistos, procedeu-se a conferência.

Cumpre conhecer e decidir.

II-MOTIVAÇÃO.

O Tribunal da Relação conhece apenas da matéria de direito (art. 75º, nº 1 do Dec. Lei nº 433/82 de 27 de Outubro, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, previstas no art. 410º, nºs 2 e 3 do C. Processo Penal.

Tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso, as questões a decidir, são balizadas pelas conclusões do recurso. Assim é entendimento unânime, que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).

No caso, as questões a decidir, prendem-se com:

- nulidade da decisão administrativa por omissão de pronúncia em violação do artº. 58º - 1 b) do R.G.C.O.C. e 374 nº. 2 e 379-1 c) do C.P.P. (ex vi do artº.41-1 do R.G.C.O.C.)

- falta dos necessários elementos objectivos da infracção, aludidos na norma do artº. 90 do RJUE

-  erro sobre a ilicitude; agindo a recorrente, alegadamente, sem culpa

- a excessiva e desproporcional medida da coima aplicada.

***

Antes de prosseguir com a análise das questões colocadas, vejamos a factualidade constante dos autos, que a decisão recorrida considerou provados:

(transcreve-se)

1- No dia 6 de Fevereiro de 2009, pelas 11h30, no n.º xx do prédio sito na Rua xxx, freguesia da Pontinha, município de Odivelas, área desta comarca, os fiscais municipais verificaram que a arguida não deu cumprimento ao acto administrativo para o qual fora regularmente notificada, através do através do Oficio nº 9256, de 11 de Abril de 2007;

2- Em concreto, não tendo procedido à realização das obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança e salubridade da habitação correspondente ao 1.º andar direito e do exterior do prédio, descritas no Auto de Vistoria constante do processo n.º 8301/D.

3- No dia 22 de Fevereiro de 2006 foi realizada vistoria ao prédio referido em 1. a fim de se verificar as condições de segurança e salubridade, tendo sido elaborado o auto de vistoria constante do processo n.º 8301/D e cuja fotocópia se encontra junta a fls. 6/7;

4- Do referido auto de vistoria consta, designadamente, o seguinte:

“ (…)

a) Visitados todos os andares, verificaram os vistores a existência de manchas de humidades, bolores, estuque apodrecido e pinturas envelhecidas em praticamente todos os tectos e paredes.

b) A maioria dos elementos existentes em madeira, nomeadamente, portas, janelas, aduelas e ombreiras respectivas, encontram-se deteriorados.

c) (…)

d) Foi também verificado que as infra-estruturas existentes, nomeadamente as canalizações de águas domésticas e pluviais assim como todo o sistema eléctrico se encontravam em muito mau estado de conservação, necessitando de uma intervenção geral.

e) Na zona de escada, verificou-se ainda que, as paredes apresentavam o revestimento deteriorado a pintura solta e pequenas intervenções de reparação mal sucedidas.

f) Visualizada a cobertura pelo exterior, esta mostra pontualmente, sinais de diversas deformações da estrutura de suporte das telhas.

g) Mais se informa que, as paredes exteriores encontram-se envelhecidas necessitando também elas de reparação.”.

5- A arguida não esteve presente aquando da vistoria.

6- No dia 13-04-2007, a arguida recebeu a notificação correspondente ao ofício n.º 9256, de 11 de Abril de 2007, da qual consta, nomeadamente, o seguinte: “(…) serve o presente para notificar V. Exa. a proceder de forma legal no prazo de 60 dias, a contar da data de recepção do presente ofício, à realização de obras necessárias expressas no Auto de Vistoria, de que se junta fotocópia, de forma a que sejam corrigidas  as anomalias verificadas com vista a que a habitação possua as condições necessárias de segurança e habitabilidade”.

7- Em data não concretamente apurada, mas posterior à data mencionada em 6. e anterior à data referida em 1. a arguida pediu esclarecimentos à Câmara Municipal sobre as obras a realizar.

8- A arguida sabia que era imperativo legal, no prazo de 60 dias, a contar da notificação, proceder às obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança e salubridade;

9- A arguida sabia que a obrigação legal mencionada em 1. e 2. impende sobre o proprietário do imóvel enquanto titular do rendimento gerado por este;

10- Sabia que a conduta descrita é proibida e punível por lei.

11- Não tem antecedentes contra-ordenacionais.

12- No dia 20 de Fevereiro de 2009, a arguida dirigiu requerimento à autoridade administrativa a solicitar informação prévia        sobre a viabilidade da concessão de incentivo à realização de obras de conservação no imóvel.

13- O imóvel em causa foi objecto de uma intervenção conservatória durante o ano de 2010, efectuada pelo actual companheiro da arguida.

14- A intervenção consistiu no desentupimento da caleira do tubo, o qual estava na origem de infiltrações pelo telhado e substituição da trave mestra do mesmo (telhado), a qual apresentava deformação.       

15- A arguida recebeu o prédio por herança do marido, no ano de 2005.

16- Antes do falecimento do marido a arguida vivia do vencimento deste, que era funcionário público e das rendas do prédio.

17- Actualmente a arguida recebe rendas relativas ao imóvel destes autos nos seguintes valores: € 36,00 do 1º andar direito; € 166,00 do rés-do-chão esquerdo; €175,00 da loja e € 285,00 do 1º andar esquerdo.

Factos não provados:
         Não se provou que:
         a) Os factos mencionados em 1. ocorreram a 3 de Junho de 2009, pelas 14 horas.

b) Nunca a segurança e salubridade do imóvel foram colocadas em causa uma vez que as situações detectadas eram de diminuta gravidade.

c) A arguida não foi notificada da data da vistoria.

d) Na sequência dos esclarecimentos solicitados pela arguida, a Câmara não esclareceu quais as obras a realizar.

***

Vejamos o que foi escrito sobre a matéria relativa à invocada nulidade da decisão administrativa, na decisão recorrida:

Da nulidade da decisão administrativa, invocada pela arguida, por omissão de pronúncia da entidade administrativa sobre as questões suscitadas pela arguida no âmbito do procedimento contra-ordenacional:

O direito de defesa e audição do arguido no processo administrativo não deve tratar-se de uma mera formalidade, pelo que, a defesa do arguido não deve ser desconsiderada como se fosse inexistente, desde logo, por respeito a quem a elaborou e, evidentemente, por a sua apreciação séria poder conduzir ao não proferimento de uma decisão administrativa condenatória que em fase judicial pode revelar-se totalmente descabida.

         Não obstante, compulsados os autos, em concreto, o teor de fls. 62/67, constata-se que a autoridade administrativa procurou esclarecer se as questões suscitadas pela arguida, quanto à falta de notificação para a vistoria e à ausência de identificação/descrição em concreto do estado do imóvel e das obras que se pretendiam ver executadas, se verificavam. Assim, conforme decorre das supra referidas folhas do processo, foi solicitada informação interna sobre as referidas questões, tendo o funcionário identificado a fls. 65 exarado a seguinte informação: “Consultado o processo confirma-se que a senhora O..., proprietária, tomou conhecimento, inequivocamente, do seguinte:

a) – da vistoria a realizar – folha 14, marcada para o dia 22/fev/2006;

b) – do auto de vistoria realizado e homologado – folha 18;

c) – da notificação para a execução de obras, por ter consultado o processo, a seu pedido, em 14/jan/2008;

d) –das obras a realizar, por reunião de esclarecimento, a seu pedido, que teve  com um dos técnicos intervenientes, em 18/fev/2008;

Pedido o adiamento do início das obras, este foi-lhe concedido. Contudo, o novo prazo foi ultrapassado sem que houvesse obras. Por tal motivo, fez-se a participação competente, com data de 16/fev/2009;

Esgotados todos os procedimentos, é arquivado o processo, com despacho superior datado de 19/jan/2010, tendo sido dado conhecimento aos interessados.”.

É certo que a autoridade administrativa em sede de decisão não fez reflectir esta diligência, nem tomou posição expressa sobre as questões suscitadas, o que, obviamente, deveria e poderia ter feito.

Porém, é entendimento deste Tribunal que não é aplicável às decisões das autoridades administrativas o disposto no artigo 379º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, pelo que, a falta de pronúncia sobre os argumentos invocados pela defesa não constitui qualquer nulidade.

     Entende-se que, não só pela diferente natureza de quem a elabora, quer pelo disposto no artigo 62º, n.º 1, “in fine” do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, a decisão administrativa não pode ser equiparada a uma sentença judicial.

         Uma vez que existindo impugnação judicial, poderá nesta o arguido suscitar, quer questões que já tenha suscitado na defesa, quer quaisquer outras novas questões, quer ainda, uma vez que pode o arguido apresentar impugnação judicial, mesmo que não tenha exercido o seu direito de defesa, entende-se que nenhum vício se verifica, uma vez que na fase judicial poderá o arguido exercer plenamente o seu direito de defesa, encontrando-se agora sim o Tribunal obrigado a pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas.

         Por todo o exposto, julga-se improcedente a nulidade da decisão administrativa.”

***

 Se por um lado se concorda com o entendimento expresso na decisão recorrida quanto à exigência do rigor da fundamentação da decisão administrativa, por outro lado entendemos que a questão suscitada pela recorrente ia além desta questão, prendendo-se com o próprio mérito conforme melhor se explicará adiante.

É sabido que,

A fase instrutória do processo contra-ordenacional é, uma fase ainda de investigação, em que o que importa sobretudo é apurar factos relevantes para instruir a decisão da entidade administrativa. Também, sendo esta uma fase administrativa, a ela não presidem exactamente os mesmos princípios que estão subjacentes ao processo criminal; é que, nesse momento, a imputação dos factos susceptíveis de integrar o cometimento de uma contra-ordenação não equivale à prolação de uma acusação, como se em processo penal estivéssemos.

É isso que decorre do disposto no art.º 62.º, nº 1, parte final, do RGCOC: só com a apresentação pelo Ministério Público ao tribunal dos autos provenientes da autoridade administrativa estamos perante uma situação semelhante ou equivalente à prolação de uma acusação. Ou seja, sendo este o valor que a lei atribui à apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz, isto significa que os factos descritos na decisão condenatória da autoridade administrativa são factos a comprovar nessa fase jurisdicional.

É, aliás o que resulta do artigo 72 do R.G.C.O.C. “compete ao Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a decisão” (n.º 1) e “compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir” (n.º 2).
     
Daqui que se entenda que ao Tribunal competia, no caso, comprovar da verificação dos pressupostos materiais (objectivos) da prática da infracção apontada à arguida, até porque a mesma impugnara esses pressupostos objectivos (falta das formalidades essenciais da vistoria realizada) e a culpa e, não apenas a falta de pronúncia na decisão administrativa das questões suscitadas a título de defesa, perante a mesma autoridade administrativa. É o que se vê de fls. 120 dos autos, no articulado do recurso da Impugnação Judicial da decisão admninistrativa.

É que, tanto os elementos objectivos típicos da acção, como a questão da culpa em geral são matéria objecto de prova, tanto mais que, quanto a esta última são conhecidas as diferenças entre os possíveis elementos subjectivos da infracção (vários graus de dolo e negligência).

Sobre os requisitos ou elementos típicos da infracção imputada à recorrente vejamos as normas que suportaram o decidido: “artº. 98º, n.º 1, alínea s) e n.º 4, por referência ao artigo 89º, n.º 2, ambos do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção dada pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro”.

Artigo 98.º

Contra -ordenações

1 — Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal

ou disciplinar, são puníveis como contra -ordenação:

(…)

s) A não conclusão das operações urbanísticas referidas

nos n.os 2 e 3 do artigo 89.º nos prazos fixados para o

efeito;

(…)

4 — A contra -ordenação prevista nas alíneas c), d), s)

e t) do n.º 1 é punível com coima graduada de € 500 até

ao máximo de € 100 000, no caso de pessoa singular, e de

€ 1500 até € 250 000, no caso de pessoa colectiva

Artigo 89.º

Dever de conservação

1 — As edificações devem ser objecto de obras de conservação

pelo menos uma vez em cada período de oito

anos, devendo o proprietário, independentemente desse

prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção

da sua segurança, salubridade e arranjo estético.

2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, a

câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente

ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a

execução de obras de conservação necessárias à correcção

de más condições de segurança ou de salubridade ou à

melhoria do arranjo estético.

3 — A câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento

de qualquer interessado, ordenar a demolição

total ou parcial das construções que ameacem ruína ou

ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança

das pessoas.

 4 — Os actos referidos nos números anteriores são eficazes

a partir da sua notificação ao proprietário.

A nosso ver, e, como vem alegado haverá ainda que atentar na disposição do artigo 90 do referido diploma, norma esta que regula a vistoria, nos seguintes termos:

Artigo 90.º

Vistoria prévia

1 — As deliberações referidas nos n.os 2 e 3 do artigo 89.º

são precedidas de vistoria a realizar por três técnicos a

nomear pela câmara municipal, dois dos quais com habilitação

legal para ser autor de projecto, correspondentes à

obra objecto de vistoria, segundo o regime da qualificação

profissional dos técnicos responsáveis pela elaboração e

subscrição de projectos.

2 — Do acto que determinar a realização da vistoria

e respectivos fundamentos é notificado o proprietário do

imóvel, mediante carta registada expedida com, pelo menos,

sete dias de antecedência.

3 — Até à véspera da vistoria, o proprietário pode indicar

um perito para intervir na realização da vistoria e

formular quesitos a que deverão responder os técnicos

nomeados.

4 — Da vistoria é imediatamente lavrado auto, do qual

constam obrigatoriamente a identificação do imóvel, a

descrição do estado do mesmo e as obras preconizadas e,

bem assim, as respostas aos quesitos que sejam formuladas

pelo proprietário.

5 — O auto referido no número anterior é assinado por

todos os técnicos e pelo perito que hajam participado na

vistoria e, se algum deles não quiser ou não puder assiná-

-lo, faz -se menção desse facto.

6 — Quando o proprietário não indique perito até à data

referida no número anterior, a vistoria é realizada sem a

presença deste, sem prejuízo de, em eventual impugnação

administrativa ou contenciosa da deliberação em causa, o

proprietário poder alegar factos não constantes do auto de

vistoria, quando prove que não foi regularmente notificado

nos termos do n.º 2.

7 — As formalidades previstas no presente artigo podem

ser preteridas quando exista risco iminente de desmoronamento

ou grave perigo para a saúde pública, n nos termos

previstos na lei para o estado de necessidade.

Ora, da leitura daquele normativo, decorre desde logo que, sendo a vistoria a realizar por técnicos qualificados, (… por três técnicos a nomear pela câmara municipal, dois dos quais com habilitação legal para ser autor de projecto, correspondentes à obra objecto de vistoria, segundo o regime da qualificação profissional dos técnicos responsáveis pela elaboração e subscrição de projectos.), decorre daí a exigência legal de que a vistoria deva especificar quais as concretas obras a realizar, senão mesmo os seus custos.

Ora, dos autos resulta uma vistoria, que, embora efectuada por técnicos especializados, foi feita em termos de tal modo genéricos que se não pode perceber quais seriam as obras que em concreto deveriam ser feitas no prédio objecto da vistoria.

Reparámos até que, no próprio auto- fls. 7- se diz que a notificação a fazer ao proprietário é para “proceder às obras de conservação que julgue necessárias…com vista a corrigir as anomalias registadas.” Conclusão esta que mal se percebe, atento que a vistoria não referindo em concreto quais as obras, parece deixar essa parte ao critério do próprio proprietário. E, a ser assim igualmente se não percebe como se pode chegar á conclusão que o proprietário não fez as obras que a C.M. determinou.

E, estas questões são claramente colocadas em causa na impugnação judicial, pela recorrente.

A decisão, porém limitou-se a concluir que a requerida percebeu e sabia quais as obras que deveria realizar nos locais arrendados e ainda que “sabia que a conduta descrita é proibida e punível por lei”.

Salvo o devido respeito, as conclusões tiradas são imputações genéricas que, pela sua indeterminação, não podem ser valoradas contra a arguida/recorrente, a não ser na medida em que sejam especificadas as concretas condutas em que essa actividade se traduziu.

É este o entendimento dominante do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o acórdão desse mesmo Tribunal de 27-05-2009, proferido no Proc. n.º 484/09 - 3.ª[1], no qual se pode ler: «Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente - neste sentido podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3ª; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3ª e n.º 578/08-3ª (neste afirmando-se que a dúvida sobre a quantidade de droga vendida a vários consumidores, e apresentada de forma indeterminada e em jeito de imputação genérica, tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo); de 02-07-2008, processo n.º 3861/07-3ª.»

                      Só com a imputação concreta, traduzida em factos, é possível o exercício do contraditório.

Ora, percorrendo a decisão sob recurso, não encontramos matéria concreta que suporte as conclusões tiradas pelo Tribunal.
Veja-se que, a decisão concluíu que a requerida não realizou as obras na sua totalidade, quer por falta de dinheiro, quer por entender que algumas das reparações não eram de realizar por não haver nada a reparar.

E, também sobre os rendimentos da requerida, a sentença fixou: “Antes do falecimento do marido a arguida vivia do vencimento deste, que era funcionário público e das rendas do prédio.

Actualmente a arguida recebe rendas relativas ao imóvel destes autos nos seguintes valores: € 36,00 do 1º andar direito; € 166,00 do rés-do-chão esquerdo; €175,00 da loja e € 285,00 do 1º andar esquerdo.

Ora, parece-nos patente que se impunha saber não só quais as obras em concreto que os peritos da C.M. entendiam que a proprietária devia realizar, como o custo das mesmas, sobretudo porque em face dos parcos rendimentos da requerida, facilmente se poderia estar perante a figura do abuso de direito, no âmbito de pretensões de condenação de senhorios de prédios urbanos a realizar obras determinadas pela Câmara Municipal, cujo valor orçamentado exceda em muito o valor da renda paga pelo inquilino.

(sobre a questão a nossa jurisprudência de há muito que assim vem decidindo, pela verificação do abuso de direito, como exemplificamos com os acórdãos que se indicam:

Do Supremo Tribunal de Justiça:

- de 8.6.2006, Proc. 06B1103, Rel. Oliveira Barros

- de 31.1.2007, Proc. 06A4404, Rel. João Camilo;

Do Tribunal da Relação de Lisboa:
- de 18.3.2004, Proc. 1275/2006-6, Rel. Fátima Galante;
- de 12.7.2007, Proc. 4848/07-7, Rel. Pimentel Marcos;

- de 24.4.2008, Rel. António Neves
Do Tribunal da Relação do Porto:

 - de 22.9.2005, Proc. 0534208, Rel. Fernando Vasconcelos.)

  O Tribunal a isso não atendeu e, veio ainda a decidir que da factualidade apurada se extrai que “a culpa se molda no dolo”.

           No regime contra-ordenacional a culpa encontra assento no art.º 8.º do RGCOC. Assim, pratica uma contra-ordenação a título doloso todo aquele que, no momento e nas circunstâncias em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como infracção contra-ordenacional, e com consciência da respectiva proibição. A negligência é violação do dever objectivo de cuidado ou criação de um risco não permitido e determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido em determinada situação em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais.

Aplicando estes conceitos ao caso concreto, diremos que a arguida/recorrente ao não fazer as obras por falta de dinheiro (como se admite na decisão) justificou desse modo a sua actuação de não cumprimento da “ordem” que a C.M. lhe deu, tanto mais que, como já vimos atrás, uma outra razão também se impôs: a falta da concretização material das obras a realizar e o seu custo.

Impunha-se a nosso ver que se concluisse pela falta do dolo com base na dita factualidade descrita e não como se decidiu (sem apoio factual concreto da matéria fixada) pela existência do dolo na sua forma mais gravosa.

Ora, assim se entendendo, forçoso é concluir que nem os elementos objectivos típicos, nem os subjectivos, da infracção imputada á arguida lograram concretização na matéria de facto apurada, que se mostra claramente insuficiente para a integração da conduta da arguida no ilícito contra-ordenacional por que veio a ser condenada.

Razão clara para este Tribunal decretar a sua absolvição.

III – DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª. Secção Criminal desta Relação em dar provimento ao recurso, decretando a absolvição da recorrente.

Não há lugar a custas..

Elaborado em computador e revisto pelo relator  (art.º 94º/2 do CPP).

Lisboa, 26/06/2014

Relator

(Maria do Carmo Ferreira)

Adjunto

(Cristina Branco)

____________________________________________________
[1] Ibidem. No mesmo sentido se pronunciaram, também, os Acs. do STJ de 26-09-2007, Proc. n.º 1890/07 - 3.ª, de 05-12-2007, Proc. n.º 3396/07 - 3.ª, e de 19-12-2007, Proc. n.º 4203/07 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).