Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1473/2007-1
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CONVENÇÃO ARBITRAL
TRIBUNAL ARBITRAL
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I. A arbitragem voluntária, na medida em que resulta da convergência da vontade das partes, é contratual na sua origem e, ainda, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado.
II. Assim, deve ser pela análise do modo como o autor delineia a acção na petição inicial e não em função da sorte ou resultado final da mesma, que deve aferir-se da (in)competência do tribunal judicial, por virtude das partes terem, ou não, acordado na submissão da questão a tribunal arbitral.
III. Consequentemente, se a autora, funda a sua pretensão num documento que em seu entender consubstancia um contrato de empreitada válido e eficaz firmado com a ré e se em tal contrato consta clausula em que as partes anuíram a submissão a tribunal arbitral de qualquer questão dele emergente, é este o tribunal competente para apreciar e decidir, mesmo que a ré argua logo na contestação a invalidade e/ou ineficácia do contrato.
C.A.M.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1.
1.1.
G Lda, instaurou contra L, S.L., acção declarativa, de condenação, com processo ordinário.
Pediu, para além do mais, que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 153.174,84 euros acrescida de juros de mora à taxa legal.
Para tanto alegou:
Que foi contactada pela ré fazer obras de remodelação a título de empreitada.
Que a pedido da ré lhe entregou um orçamento.
Que foi celebrado entre as partes contrato de empreitada
Tendo inclusive a autora solicitado uma garantia bancária para entregar à ré e esta exigido aquela a outorga de seguro contra todos os riscos o que efectivamente ela fez.
Que a ré lhe referiu que tinha fundos suficientes para efectuar o pagamento de acordo com o contrato de empreitada e que já tinha dado ordens ao banco para fazer uma transferência a seu favor.
Que abruptamente e sem qualquer motivo plausível, a ré fez constar à autora que já não estava interessada na concretização da obra, a qual era de tal importância para si que a impediu de concorrer a várias empreitadas e lhe causou prejuízos.
Juntou, como prova, documento escrito – nº3 - que em sua opinião consubstancia o contrato).
1.2.
Na contestação a ré invocou, para além do mais, a excepção dilatória da preterição de tribunal arbitral.
Alegou, para tanto, que na clausula 15ª do invocado contrato as partes acordaram em submeter qualquer questão emergente do mesmo a um tribunal arbitral com expressa renúncia a qualquer outro.
1.3.
No despacho saneador o Sr. Juiz a quo desatendeu tal excepção.
Para tanto expendeu:
«…verifica-se que…o doc.nº3, apresentado pela A. como contrato definitivo não está assinado por qualquer das partes, nem A., nem R…
Ora, condição essencial para que estejamos face a uma convenção de arbitragem é que as partes acordem em submeter o litígio à decisão de árbitros.
A forma do acordo é que tem de ser por escrito.
No n.º 2 da LAV estabelecem-se várias formas pelas quais se considera esta convenção reduzida a escrito - documento assinado pelas partes, troca de cartas, telex, telegramas ou de outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita - e das quais resulte inequivocamente que as partes quiseram submeter o litígio à decisão de árbitros.
Ora, tal intenção (acordo) e tal exigência (forma) não resulta dos autos.
Não existe um documento assinado pelas partes, não existem trocas de cartas, telegramas ou telexes, donde resulte que as partes quiseram estipular uma convenção de arbitragem.
Alias a invocação da excepção pela R. é contraditória com a versão de que estamos face a uma minuta de contrato nunca aceite pela R, e que nunca existiu um acordo quanto às suas cláusulas, mormente a convenção de arbitragem».

2.
Inconformada agravou a ré.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. A Autora intentou contra a Ré uma acção declarativa de condenação, com fundamento no incumprimento de um “suposto” contrato de empreitada realizado entre as partes e junto à p.i. como Doc. 3.
II. O referido contrato, junto com Doc. 3 pela Autora, é - segundo esta - o contrato definitivo (vide art. 7.º da p.i.).
III. A Autora, não só junta o Doc. 3 como sendo o contrato definitivo, como também junta a troca de correspondência, entre as partes, por correio electrónico, na qual o alegado contrato definitivo é remetido (e-mail também junto no próprio Doc. 3).
IV. Na sua Contestação, a Ré, aqui Agravante, não contestou o teor dos e-mails juntos, mas defende que aquele “alegado” contrato é tão só uma minuta, não constituindo - ao contrário do que defende a Autora - um contrato definitivo.
V. Conforme expressamente alegado na Contestação, defendeu a Ré que, de acordo com a versão da Autora - i.e., existindo contrato - se teria de concluir pela incompetência do tribunal por violação de convenção de arbitragem, o que constitui uma excepção dilatória nominada prevista no art. 494.º, al. j) do CPC.
VI. Com efeito, a “proposta de contrato de empreitada” junta pela Agravada como Doc. 2, bem como o “contrato definitivo” junto como doc. 3, dispõem na cláusula 15.2 que “as partes acordam em submeter qualquer questão emergente do presente contrato a um Tribunal Arbitral, com expressa renúncia a qualquer outro, composto por três árbitros e a constituir nos termos da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto” (sublinhado nosso).
VII. A Autora não apresentou Réplica.
VIII. O tribunal recorrido decidiu julgar a referida excepção improcedente, uma vez que tal “contrato definitivo” “não está assinado por qualquer das partes, nem A., nem R.” (fls 186, 2.º página do despacho saneador) e de que “a invocação da excepção pela R. é contraditória com a versão de que estamos face a uma minuta de contrato nunca aceite pela R, e que nunca existiu um acordo quanto às suas cláusulas, mormente a convenção de arbitragem” (fls. 186-87, pág. 2-3 do despacho saneador).
IX. Com o devido respeito, o tribunal recorrido não fez uma correcta aplicação do Direito.
X. A Autora defende que o contrato que junta como Doc. 3 foi aceite por ambas as partes e, como tal, que estas quiseram submeter o litígio à decisão de árbitros.
XI. Ou os factos alegados pela Autora são verdadeiros e existe cláusula arbitral; ou os factos não são verdadeiros, e o pedido terá de improceder.
XII. Ao tribunal cabe aferir se o tribunal é competente de acordo com a versão dos factos alegados pela Autora.
XIII. A excepção de preterição de tribunal arbitral voluntário - ou violação de convenção de arbitragem (neste caso, de cláusula compromissória) - tal como outras excepções dilatórias como a incompetência do tribunal ou a ilegitimidade das partes, deve ser aferida de acordo com a relação controvertida tal como configurada pela Autora (art. 26.º, n.º 3, do CPC).
XIV. De outra maneira, chegamos ao absurdo de, no final do processo, se ter de concluir pela improcedência do pedido ou pela violação de convenção de arbitragem.
XV. Esta é, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: vide, v.g. Acórdãos de 11-06-2002 (proc. 02B1429), de 13-05-2004 (proc. 04A1213), de 12-02-2004 (proc. 04B128), de 27-01-2004 (proc. 03A4065), de 06-03-2002 (proc. 01S3359) e de 09-02-1999 (proc. 98A1250), todos disponíveis em www.dgsi.pt;
XVI. A LAV não obriga à assinatura de ambas as partes, “dado tratar-se de formalidades ad probationem e não ad substantiam” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-04-96, proc. 96A049, disponível em www.dgsi.pt).
XVII. De qualquer forma, nos termos do n.º 1 e 2 do art. 2.º da LAV, “considera-se reduzida a escrito a convenção de arbitragem constante ou de documento assinado pelas partes, ou de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, quer esses instrumentos contenham directamente a convenção, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que uma convenção esteja contida”, o que abrange necessariamente a correspondência por correio electrónico.
XVIII. O contrato alegadamente definitivo foi remetido por correio electrónico, facto aliás que merece o acordo de ambas as partes (conforme ponto F) dos factos considerados assentes).
XIX. Assim, existe indubitavelmente um documento escrito que consta de uma troca de “meios de telecomunicação de que fique prova escrita”.
XX. Deste modo, segundo os factos relatados pela Agravada, as partes celebraram uma convenção de arbitragem (cláusula compromissória), plenamente válida e eficaz, nos termos do art. 2.º da LAV.
XXI. Se numa petição inicial o Autor defende que ambas as partes se vincularam a um determinado contrato, do qual consta uma cláusula compromissória, constante de troca de e-mails do qual ficou prova escrita (aliás junta pelo Autor e Réu), pouco importa se a Ré defende que não foi celebrado qualquer contrato: o tribunal competente é o tribunal arbitral.

3.
Sendo que, por via de regra – de que o presente caso não constitui excepção – o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
(im)procedência da invocada excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário.

4.
Os factos a considerar são os resultantes do relatório supra.

5.
Apreciando.
Estatui o art. 1.º nº1 da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, Lei da Arbitragem Voluntária (“LAV”):
«Desde que por lei especial não esteja submetido exclusivamente a tribunal judicial ou a arbitragem necessária, qualquer litígio que não respeita a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros».
E nos termos do nº2:
A convenção de arbitragem pode ter por objecto um litígio actual, ainda que se encontre afecto a tribunal judicial (compromisso arbitral), ou litígios eventuais emergentes de uma determinada relação jurídica contratual ou extracontratual (clausula compromissória).
Assim, a convenção arbitral é um negócio jurídico bilateral, na medida em que resulta da convergência da vontade das partes – v. Ac. STJ de 18.01.2000, no processo n.º 99A1015, em www.stj.pt.
Na verdade e como sustenta Raul Ventura in “Convenção de Arbitragem”, ROA n.º 46, pág. 301: «da convenção de arbitragem nasce um direito potestativo para cada uma das partes, cujo conteúdo consiste na faculdade de fazer constituir um tribunal arbitral para julgamento de certo litígio que, à data da convenção, tanto pode ser actual como futuro. Correlativamente, cada uma das partes fica sujeita a uma vinculação”.
Por esse facto é que os tribunais arbitrais voluntários são considerados instituições de natureza privada.
Mas, por participarem no exercício da função jurisdicional, reconhece-se às suas decisões força de caso julgado e força executiva – cfr. art. 26º da Lei 31/86.
Como lapidarmente se escreveu no Ac. do STJ de 18.01.2000 supra mencionado - citando Francisco Cortez in A Arbitragem Voluntária em Portugal,“ O Direito”, pág. 555 - «a arbitragem voluntária é contratual na sua origem, privada na sua natureza, jurisdicional na sua função e pública no seu resultado».

Nesta conformidade, com a convenção arbitral, ambas as partes ficam constituídas no ónus de, querendo ver decidido litígio que se compreenda no seu objecto, preferirem a jurisdição arbitral, privada, à jurisdição pública.
Por isso, se porventura, apesar da existência de convenção de arbitragem, uma das partes no litígio demandar a outra em tribunal judicial, o juiz deve abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância, por ocorrer a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral – cfr. Lopes dos Reis, “Questões de arbitragem Ad-Hoc II”, ROA, n.º 59, pág. 292 citado no Ac. da Relação do Porto de 23.03.2004, dgsi.pt, p.0326177
E como defende a recorrente, à semelhança do que acontece com a determinação da competência – vg. material - do tribunal, é outrossim em função do modo como a causa é delineada na petição inicial e pelo pedido do autor - ou seja pelo quid disputatum - e não pela controvérsia que venha a resultar da acção e da defesa - que se averigua a presença, ou não presença, dos demais pressupostos processuais.
Designadamente da preterição do tribunal arbitral voluntário, excepção dilatória cujo conhecimento não é oficioso – arts. 494º, n.º 1, al. j) e 495º do CPC.

No caso vertente verifica-se que a autora efectivamente funda o seu direito e formula o seu pedido na invocação de um contrato de empreitada que alega ter, válida e eficazmente, celebrado com a ré.
Ora se ela atribui validade e eficácia ao contrato, então dele tem de retirar todas as consequências e feitos jurídicos, em função do plasmado nas suas cláusulas e da lei aplicável.
E conforme se alcança do teor do contrato junto pela autora, reza este, na sua cláusula 15ª, o seguinte:
«As partes acordam em submeter qualquer questão emergente do presente contrato a um Tribunal Arbitral, com expressa renúncia a qualquer outro, composto por três árbitros e a constituir nos termos da Lei nº 31/86 de 29 de Agosto.
O tribunal julgará segundo a equidade».

Certo é que nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 2.º da LAV:
«A convenção de arbitragem deve ser reduzida a escrito
Sendo que:
Considera-se reduzida a escrito a convenção de arbitragem constante ou de documento assinado pelas partes, ou de troca de cartas, telex, telegramas ou outros meios de telecomunicação de que fique prova escrita, quer esses instrumentos contenham directamente a convenção, quer deles conste cláusula de remissão para algum documento em que uma convenção esteja contida».
Ou seja, a redução a escrito da convenção de arbitragem é conditio sine qua non da sua validade e eficácia.
Porém, perante a evidência da literalidade de tais segmentos do (pela autora) alegado no contrato de empreitada, é obvio dever concluir-se terem, in casu, as partes anuído e consensualizado – por escrito - o recurso ao tribunal arbitral, com expressa exclusão de qualquer outro.
Sendo, neste momento, irrelevante - porque tal atem-se com o mérito da causa e não com um pressuposto processual formal – que, a seu tempo, se venha a provar e concluir pela inexistência, nulidade, invalidade ou ineficácia do invocado contrato.
Nem se podendo dizer – como se defende na sentença - que existe contradição na posição da recorrente ao, por um lado, invocar a excepção da preterição de tribunal arbitral e, por outro lado, ao defender que estamos perante uma minuta de contrato e que nunca existiu acordo quanto às clausulas do contrato.
E que jurídico-processualmente tal posição tem cobertura legal, pois que, como já se referiu, os dois aspectos da mesma reportam-se a figuras jurídicas distintas e a momentos de apreciação diferenciados.
O primeiro aspecto prende-se com a questão processual formal da mencionada excepção dilatória e pode de deve ser desde já apreciado em função do modo como o autor configurou a lide.
O segundo aspecto conexiona-se com a questão substantiva da procedência ou improcedência da pretensão da demandante e apenas pode ser decidido, em princípio, após a produção da prova em sede de audiência final.
Tais aspectos não são conflituantes ou incompatíveis. Antes são complementares ou sucedâneos. A ré com base na causa de pedir invocada pela autora defende-se, desde logo, por excepção, pretendendo que nem sequer se aprecie o mérito. Mas se assim não for ou não se entenda, então pugna, com base em argumentos seus, pela improcedência do pedido.
Procede, destarte e sem necessidade de mais considerações, a, aliás bem fundamentada, pretensão da recorrente.

6.
Decisão.
Termos em que se acorda julgar procedente o recurso e, consequentemente, declarar verificada a excepção dilatória da preterição, por parte da autora, de tribunal arbitral voluntário e, consequentemente, absolver a ré da instância - artºs 494 al. j) e 493º nº2 do CPC.
Custas pela autora.

Lisboa, 2007.05.15
Carlos António Moreira
Maria Rosário Gonçalves
Rui Machado e Moura