Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
378/14.9PBFUN.L1-5
Relator: SIMÕES DE CARVALHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: -No crime de violência doméstica, as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensa à integridade física, o de ameaças e o de injúria, existindo uma relação de especialidade entre a norma que pune aquele crime e as que punem estes últimos.
-A identidade do objecto do processo ainda que não deva "ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo principio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe justamente realizar", não poderá “definir-se tão rígida e estreitamente que impeça o esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade.
-O que se revela necessário, é que estejamos perante uma alteração que efectivamente "mexa" com os direitos do arguido e que postule essa necessidade de defesa e isso não acontece quando, aos factos da acusação, se retiram algum ou alguns, isto é se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis ou quando os factos são meramente concretizadores ou esclarecedores dos constantes primitivamente da acusação e pronúncia.
-Não se justifica a comunicação prevista no art.º 358º CPP quando da audiência de julgamento decorre que as condutas apuradas não revelam o especial desvalor da acção que é pressuposto do crime de violência doméstica, constante da acusação.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


-Relatório:

 
No processo comum singular n.º 378/14.9PBFUN da Instância Local – Secção Criminal (Juiz 2) do Funchal da Comarca da Madeira, por sentença de 15-07-2016 (cfr. fls. 210 a 225), no que agora interessa, foi decidido:

«Por tudo o exposto, julga-se a acusação apenas parcialmente procedente e, em conformidade, absolve-se o arguido A. da autoria do crime p. e p. pelo art° 152°, n°s 1, al. b) e 2 do C. Penal e do crime p. e p. pelo art° 212°, n° 1 do C. Penal e condena-se este mesmo arguido, pela autoria do crime p. e p. pelos art°s 143°, n° 1, 145°, n° 1, al. a) e 132°, n° 2, al. b) do C. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 1 (um) ano e, pela autoria do crime p. e p. pelo art° 143°, n° 1, do C. Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo um total de 400 (quatrocentos) euros.
Vai ainda o arguido condenado no pagamento das custas do processo, com 4 (quatro) U. C. de taxa de justiça.
Julga-se totalmente procedente o pedido cível deduzido por "Serviço de Saúde da R. A. M., E. P. E.", condenando-se o demandado A. ao pagamento à demandante do montante de 128,91 euros (cento e vinte e oito euros e noventa e um cêntimos), acrescido de juros moratórios, à taxa anual de 4%, contados desde a notificação do pedido e até integral pagamento.
Sem custas cíveis (cfr. art° 4o, n° 1 al. n) do R. C. P.).
Remeta boletins ao registo criminal, após trânsito em julgado.
Notifique.»

O arguido A. não aceitou esta decisão e dela recorreu (cfr. fls. 229 a 241 v.º), extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«i.-Vem o arguido, A., ora Recorrente, interpor recurso
da Douta sentença proferida nos autos à margem referenciados,
que o condena na prática de um crime de ofensas à integridade
física agravada previsto e punido pelos artigos 143.° n.° 1, 145.°

n.° 1 alínea a) e artigo 132.° n.° 2, alínea b) do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo
período de 1 (um) ano e bem assim pela autoria de um crime de
ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo
143.° n.° 1 do Código Penal, na pena de multa de € 400,00

(Quatrocentos euros).
ii.-O ora Recorrente insurge-se contra douta sentença.
iii.-Prima, douta acusação proferida fls ..., é, em nosso entendimento, nula.
iv.-Na verdade, os factos imputados na acusação de 1 a 5, ao Recorrente e que reportam ao crime de violência doméstica, não deveriam ter figurado novamente do libelo acusatório, na medida em que já tinham sido objeto de uma outra acusação, acusação essa que culminou na suspensão provisória do processo, processo n.° 635/08.3PDFUN, tendo o arguido, como douta sentença impugnada reconhece, cumprido as injunções a que foi sujeito (artigo 281.° do CP).
v.-In casu, o libelo acusatório narra factos e deduz acusação por
crimes que já foram punidos e que, inclusive como reconhece sentença impugnada, para os quais não tem legitimidade para a deduzir, pelo que, se entende, pela sua nulidade
vi.-Por outro, o libelo acusatório, sem legitimidade, imputa ao arguido o crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.° do Código Penal.
vii.-Tal facto é (re)afirmado no preâmbulo da douta sentença impugnada, que refere que sendo este um crime de natureza semi-pública, e não tendo havido queixa quanto a este, e "não se tendo especificado a conduta danosa", não tem o MP legitimidade para deduzir a acusação.
viii.-Ainda Assim, douto Tribunal a quo leva a factologia a julgamento, considerando-os como provados (vide sentença impugnada - FACTOS PROVADOS RELEVANTES).
ix.-MAS a fim de "emendar a mão", absolve o Arguido, ora
Recorrente destes tipos objetivos de ilícitos criminais, ALTERANDO A SUA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA, subsumindo-o o suposto crime de violência doméstica em ofensas à
integridade física qualificada.

x.-Neste senso, o libelo acusatório proferido, sofre de uma nulidade.
xi.-A douta acusação viola assim o princípio de caso julgado; os factos imputados ao arguido no presente processo, já tinham sido objeto de arquivamento no processo n.° 635/08.3PDFUN, tendo o arguido, como douta sentença impugnada reconhece, cumprido as injunções a que foi sujeito.
xii.-Como foi também violado o princípio ne bis idem, expresso no artigo 29.° n.° 5 da CRP.
xiii.-In casu, isso sucedeu (Vide FACTOS PROVADOS RELEVANTES),
xiv.-Nulidade, essa que condicionou todo o processo, pois toda a acusação, toda a produção de prova, designadamente testemunhal da acusação baseou-se nos factos integradores do crime de violência doméstica (Basta ver a matéria dada como provada na sentença impugnada).
xv.-Termos em que, deve-se declarar nula a acusação e absolver o arguido de todos os crimes imputados.
xvi.-Mais, ainda que não se considere o supra referido, tais factos e que constam de 1 a 5 do libelo acusatório, deveriam ter sido expurgados nos termos do artigo 311.° do CPP,
xvii.-Então se aqueles factos.... os de violência doméstica ... JÁ FORAM PUNIDOS, e os e de dano ... o MP não tem legitimidade os mesmos não podem, fazer parte da acusação, e não podem, por conseguinte, constar dos factos provados e respetiva fundamentação jurídica de douta sentença impugnada.
xviii.-Pelo que, entende, salvo melhor opinião, o ora Recorrente, que o Tribunal a quo deveria ter rejeitado a acusação.
xix.-e que a mesma, pelos vícios que se imputam, padece de nulidade, pois o "direito penal é direito penal do facto e não do agente".
xx.-Mas, por hipótese académica que se suscita dada a jurisprudência, afigura-se-nos ainda, porém, que o se o referido vício da acusação não provocar a sua nulidade, provocará a sua improcedência na totalidade.
xxi.-Considerando, o Acórdão da Relação do Porto, processo n.° 581/10.0GDSTSP1, de 27/06/2012, em que foi relator Pedro Vaz Pato: Será nula, nos termos do referido artigo 283°, n° 3, b), uma acusação que não contem a narração dos factos imputados ao arguido. Se a acusação contém a descrição desses factos e eles não constituem crime, porque deles não constam factos que consubstanciem um, ou maisT dos elementos constitutivos de um qualquer crime, a acusação será improcedente, e não nula.
xxii.-Sem prescindir, do supra alegado, entende-se, ainda, que douta sentença enferma de nulidades.
xxiii.-Na verdade, Douto Tribunal a quo, dando-se conta, na elaboração da sentença de tais nulidades e ilegitimidades, "absolve" o arguido do crime de violência doméstica e do dano,
xxiv.-Contudo, dá como provados, factos que constam da acusação e que fazem parte do tipo objetivo de ilícito do crime de violência doméstica e que não poderiam entrar no presente processo, sob pena da violação do princípio ne bis in idem,
xxv.-encadeando-os, com o facto, alegadamente ocorrido em Março de 2014, subsumindo-o já como crime de ofensa a integridade física agravada, e condenando o Recorrente numa pena de 10 meses suspensa na execução por um ano.
xxvi.-Entendemos aqui, à melhor opinião, que o Tribunal a quo, além de ter julgado o arguido 2 vezes pelo mesmo crime, (de violência doméstica), conforme se denota da matéria provada e se poderá inferir de partes dos depoimentos que infra se debitará,
xxvii.-alterou de forma substancial os factos descritos na acusação e bem assim alterou a sua qualificação jurídica,
xxviii.-e não cumpriu os termos dos artigos 358.° e 359.º do CPP, quer dando uso do contraditório ao Recorrente, e ou procedendo a sua denúncia ao MP para proceder criminalmente, caso fossem autonomizáveis, não sendo, deveria ter absolvido o arguido.
xxix.-Douto Tribunal a quo, condenou o arguido, por factos diversos dos descritos na acusação e também alterou a sua qualificação jurídica.
xxx.-Pelo que, em nosso entender, douta sentença é nula, por violação dos artigos 379.° n.° 1, alínea b), 358.°, 359º, e artigo 410.° n.° 3 do CPP.
xxxi.-Entendemos ainda com o devido respeito, que a nosso ver, existe uma contradição insanável da fundamentação de sentença impugnada.
xxxii.-In casu, douto Tribunal a quo, pese embora ter proferido, a falta de legitimidade do MP para ter pronunciado o Recorrente pelo crime de violência doméstica, já que "(...) este crime (...) já foi objeto de arquivamento (...) em virtude de o arguido ter cumprido as injunções impostas (...) tem força de caso julgado. (...) Tendo as cumprido, uma nova acusação por estes factos significaria uma clara violação do princípio ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo facto. Seguramente que o arguido pode ser novamente julgado e condenado por um crime de violência doméstica, mas tendo de ser desconsideradas os factos já objeto do anterior arquivamento (...)
Toda a factualidade descrita nos cinco primeiros parágrafos da acusação já foi especificadamente imputada ao arguido, a título de violência doméstica, tendo ele já cumprido injunções, como efetiva punição por esse crime, pelo que tal pedaço de vida já não poderá servir para conjugado factos posteriores fundamentar a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica (...)
xxxiii.-vem dar tais factos como provados. Neste sentido Vide factos provados relevantes
" (...) o arguido e A.N. foram casados entre si, desde 30/07/84 até ao ano de 2015.
Tem nove filhos (...)
Durante o período de vida em comum, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido, no interior da residência comum, agrediu A.N. Nunes, desferindo-lhe bofetadas na cara, pontapés nas pernas e puxando-lhe os cabelos, e dirigiu-lhe impropérios, tais como "puta do caralho", e intimidações "como eu vou matar-te".
O arguido ingeria, por vezes, bebidas alcoólicas em excesso.
Com o intensificar das agressões, ameaças e insultos que atingiam a A.N.... esta separou-se do arguido, em meados de 2012 (...)
(...)
No dia 4 de Março de 2014 (...)
Este ao vê-la, interpelou-a, com a expressão "A.N. quero falar contigo".
Tendo-o ela ignorado, ele munido com uma saca de areia que carregava, com 50Kgs, lesto em sua direção e atirou a referida saca contra as costas da A.N.(...)
O arguido tentou desferir pontapés à A.N. (...)
O arguido, ao ser separado pelo A. virou-se contra este e agarrou-lhe a camisa, rasgando-a, (...)
xxxiv.-Ora se estes factos não podem fazer parte do objeto da
acusação como refere douta sentença impugnada, porque já

julgados, não tendo o MP legitimidade para proferir acusação
quanto a eles,
também não podem figurar nos factos provados da sentença.
xxxv.-porque, de certa maneira, inexistem, são nulos, são
improcedentes achamos nós...

xxxvi.-Na fundamentação jurídica da matéria de douta sentença impugnada, torna-se mais claro esta supra contradição alegada, quando douto Tribunal refere que:
(...) Ao longo do período que viveram juntos, por diversas vezes, o arguido bateu, insultou e atemorizou o seu cônjuge, como voltou a agredir, em 04/03/14, tal como desta vez, igualmente agrediu o A.G., companheiro da sua filha A.N.G.. De facto, a ex-Cônjuge do arguido confirma ter sido agredida, física e verbalmente, do modo descrito na acusação. A filha do arguido que, desde ela era criança, que o pai maltratava a mãe, física e verbalmente, confirmando a ocorrência de bofetadas e pontapés, insultos e ameaças de morte, tantas vezes que não consegue contar. Diz ainda que ocorria indiferentemente de ele ter bebido demasiadas bebidas alcoólicas ou de estar sóbrio.
Também em relação ao episódio de 4 de Março de 2015, as ditas testemunhas deram ao Tribunal um relato coerente e pormenorizado dos factos provados (...)
xxxvii.-Pelo que entende, o Recorrente que existe uma contradição insanável na fundamentação de douta sentença, e cuja consequência é a sua nulidade.
xxxviii.-Na verdade, todo o depoimento testemunhal das testemunhas da acusação vão no sentido do crime de violência doméstica;
-Neste sentido, vide o depoimento testemunhal, de A.N. , ex-cônjuge do arguido, prestado na audiência de discussão de julgamento de 11 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 4 até ao minuto 11.40;
-Depoimento testemunhal de A.G., prestado na audiência de discussão de julgamento de 13 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 1.30 até ao minuto 7.55;
-Depoimento testemunhal de A.N.G, prestado na audiência de discussão de julgamento de 13 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 0.32 até ao minuto 4.20;
xxxix.-E quanto aos factos que douto Tribunal a quo considerou provados, referentes a Março de 2014 em que o arguido interpelou a ofendida "A.N. quero falar contigo" .... e na ignorância desta, o mesmo munido de uma saca de areia atira a referida saca contra as costas da ofendia, impunha-se decisão diversa da proferida.
xl.-Na verdade, os mesmos estão contaminados pelas declarações referente a violência doméstica, tendo as testemunhas já supra identificadas, declarado nos seus depoimentos, quanto aquela situação, uma continuação da atividade criminogénea do tipo ilícito do crime de violência doméstica.
xli.-Contudo, entende-se, que as mesmas nos termos figurados não se apresentam verossímeis, sendo até incongruentes: Vide audição dos respetivos depoimentos,
xlii.-De A.N. , ex-cônjuge do arguido, prestado na audiência de discussão de julgamento de 11 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 11.40 até ao minuto 17.20;
xliii.-Depoimento testemunhal de A. G., prestado na audiência de discussão de julgamento de 13 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 7.55 até ao minuto 17-20;
xliv.-Depoimento testemunhal de A.N.G, prestado na audiência de discussão de julgamento de 13 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, a partir do minuto 4.20 até ao minuto 17.20;
xlv.-Como dá para entender dos depoimentos supra descritos, existe muita mágoa entre as partes, que nem os laços sanguíneos, passados estes anos, ainda conseguiu desfazer, sendo dos seus depoimentos pode aferir-se que primeiro têm a certeza.... mas quando indagados melhor já não tanta a certeza; sabem como foi mas depois quando indagados melhor já não sabem como foi...parecendo, sem qualquer sombra de dúvida que a sua atitude é punitiva quanto ao arguido mas pelos factos que não podem fazer parte do presente julgamento.
xlvi.-Mais, os relatórios médicos dos ofendidos junto fls... contradizem as declarações prestadas pelos mesmos ofendidos.
xlvii.-Pois o depoimento testemunhal dos ofendidos diabolizam as agressões ... referindo que ... levaram com uma saca de 50 kilos... o arguido agrediu...deu pontapés... soco na cara...apertou pescoço... mas conforme resulta dos relatórios médicos efetuado aos ofendidos, constante fls .... nos mesmos apenas figuram que os ofendidos, em consequência do sucedido, tiveram " discretas equimoses"...
xlviii.-Douto Tribunal ao ter dado como provado as agressões à A.N.e ao A., não dá como provado, as agressões efetuadas por aqueles ao arguido, e que constam no relatório médico apresentado junto aos autos fls.... em que se comprova que também, em consequência e por sequência daquela situação o arguido ficou ferido, e com lesões físicas gravíssimas.
xlix.-É que a ter havido luta, como supostamente alegam os ofendidos, o arguido não só não ficaria ferido, se a mesma tivesse sido entre Ofendidos Versus Ofendidos.!

1.-Pelo que, entende-se, considerado o já supra alegado, que o Tribunal a quo, baseou a produção de prova no crime de violência doméstica, considerando-os provados em violação do princípio ne bis in idem, devendo Tribunal Ad quem considerar tais factos como não provados/inexistentes;
li.-e bem assim não valorou corretamente a prova do arguido, ora Recorrente, quer o seu relatório médico constante fls .... que refere que o arguido fraturou a cara, teve uma luxação da arcada dentária inferior e teve uma luxação lateral...
lii.-Nem valorou corretamente o depoimento de L.S., prestado na audiência de discussão de julgamento de 13 de Julho de 2016, gravado através do sistema integrado de gravação digital, minuto 1.00 até ao minuto 15.30;
liii.-Na verdade, e considerando o rancor dos familiares/ofendidos patente nas declarações supra descritas, poderia ter bem acontecido que o A. quando o Arguido, com a saca nas costas, ao ter visto passar a mulher ter proferido "A.N. quero falar contigo" e o A. considerando as animosidades existentes, tivesse-lhe dado um pontapé e o arguido ter caído.
liv.-É que as dúvidas que douto Tribunal a quo coloca no depoimento desta testemunha bem poderiam ter sido dirigidas aos ofendidos... Então o arguido joga-lhes uma saca de 50 Kilos... dá-lhes pontapés... aperta-lhes o pescoço .... rasga-lhe camisa e eles não fazem nada.
lv.-O que será mais verossímil, pela experiência da vida, o arguido correr com uma saca de 50 kilos atrás da ofendida A.N., mulher, durante 5 metros, e jogar-lhe "lesto" a saca em cima quando os outros familiares seguiriam atrás ou que o Arguido com a saca de 50 kilos em cima, ao tentar interpelar a mulher "A.N., quero falar contigo" tenha levado uma patada do A. e ter caído ao Chão!?
lvi.-In dúbio pro reo, devendo Tribunal a quo, considerando as dúvidas suscitadas ter absolvido o Recorrente.
lvii.-Demais, por hipótese que se suscita, na improcedência do supra exposto, facto que não se concebe, mas considerando o bom patrocínio da causa, a pena aplicada ao arguido, para as discretas escoriações a que aludem os relatórios médicos dos ofendidos é manifestamente excessiva.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Excias doutamente suprirão deve:
a)-declarar-se nula/improcedente a acusação e absolver o arguido de todos os crimes imputados',
b)-declara-se nula douta sentença impugnada, por violação dos artigos 379.° n.° 1, alínea b), 358.°, 359.° e artigos 410.° n.° 2, alínea b) e n.° 3 do CPP;
c)-Mas ainda assim que não se entenda, por hipótese que se suscita, na improcedência do supra exposto, facto que não se concebe, mas considerando o bom patrocínio da causa, a pena aplicada ao ora Recorrente ser diminuída porque manifestamente excessiva.»

Admitido o recurso (cfr. fls. 256) e, efectuadas as necessárias notificações, apresentou resposta o Mº Pº (cfr. fls. 260 a 272) em que concluiu:

«1–Os recursos têm o seu objeto delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, procurando remédio jurídico para erros praticados no processo.
2–A acusação preenche os requisitos do art.° 283.°, n.° 3 do CPP, incluindo a narração dos factos, a indicação do lugar, do tempo e da motivação da prática dos mesmos e circunstâncias que poderiam ser relevantes para aplicação de uma sanção e foi correctamente recebida pelo tribunal no momento de saneamento do processo e prolação do despacho a que se refere o art.° 311.° do CPP.
3–Os denominados vícios da decisão, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, conforme prescreve o art.° 410.° do Código de Processo Penal, têm que resultar do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras de experiência comum.
4–O crime de violência doméstica é um crime complexo que pode englobar diversas condutas tipicamente consideradas crime por si próprias, incluindo ofensa à integridade física, coacção, injúria, difamação etc, mas que neste crime têm como elemento agregador o bem jurídico saúde física e psíquica que seja atingida de modo incompatível com a dignidade humana, sendo que o tribunal a quo julgou não estar verificado, antes considerando a conduta típica como ofensa à integridade física agravada, o que não importa qualquer alteração substancial dos factos.
5–A sentença recorrida é justa, as penas aplicadas ao arguido não merecem qualquer censura, na medida em que o tribunal ponderou correctamente todas as circunstâncias que depunham a favor e contra o ora recorrente, nos termos do art. 71.°, do Código Penal, tendo em atenção a culpa do agente e as necessidades de prevenção.
6–De acordo com a observação do texto da decisão por um cidadão comum, sem cultura jurídica, o veredicto do tribunal a quo não ofende o sentimento de justiça.
Deste modo, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo Recorrente, mantendo-se a decisão nos seus precisos termos, com o que se fará JUSTIÇA!»
 
Remetidos os autos a esta Relação, nesta instância o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (cfr. fls. 284 e 285), pugnando pela improcedência do recurso.

Apesar de ter sido dado cumprimento ao disposto no n.° 2 do Art.° 417° do C.P.Penal, nada foi dito.

Proferido o despacho preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento em conferência, nos termos do Art.º 419º do C.P.Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
                                                                                                
O objecto do recurso, em face das conclusões da respectiva motivação, reporta-se às seguintes questões:
1–Eventual ocorrência de nulidade da acusação que deveria ter conduzido à absolvição do recorrente;
2–Pretensa verificação de nulidade da sentença em crise, ao abrigo do disposto no Art.º 379º, n.º 1, alínea b) do C.P.Penal, uma vez que se terão desrespeitado as condições previstas nos Art.ºs 358º e 359º do mesmo Código;
3–Suposta ocorrência do vício previsto no Art.º 410°, n.° 2, alínea b) do C.P.Penal;
4–Possível violação do disposto no Art.° 410°, n.° 2, alínea c) do mesmo Código;
5–Eventual redução da dosimetria das penas de prisão e de multa que concretamente foram aplicadas ao recorrente.

No que ora interessa, é do seguinte teor a sentença recorrida, a qual se transcreve, numerando em itálico, para eventual comodidade futura, os factos considerados provados:

«FACTOS PROVADOS RELEVANTES.
1O arguido e A.N. foram casados entre si, desde 30/07/84 até ao ano de 2015.
2Têm nove filhos, designadamente A.N., J.N., C.N., S.N., L.N., D.N., B.N., E.N., e P.N..
3Durante o período de vida em comum, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido, no interior da residência comum, agrediu a A.N., desferindo-lhe bofetadas na cara, pontapés nas pernas e puxando-lhe os cabelos, dirigiu-lhe impropérios, tais como "puta do caralho", e intimidações, tais como "eu vou-te matar".
4O arguido ingeria, por vezes, bebidas alcoólicas em excesso.
5Com o intensificar das agressões, ameaças e insultos que atingiam a A.N., esta separou-se do arguido, em meados de 2012, tendo ido residir para uma casa-abrigo da Segurança Social.
6Os factos cometidos pelo arguido referidos supra foram considerados indiciados pelo Ministério Público, em despacho de proposição de suspensão provisória do processo de inquérito, que mereceu homologação do Juiz de Instrução e, tendo o arguido cumprido as injunções que, no âmbito dessa suspensão, lhe foram impostas, foi o processo de inquérito, por despacho de 03/07/2013, arquivado, relativamente a esses factos, nos termos do artigo 282°, n° 3 do C. P. Penal.
7No dia 4 de Março de 2014, pelas 10 horas e 50 minutos, quando A.N.se deslocou ao Estreito de Câmara de Lobos, área desta comarca, para ir visitar o seu pai, acamado, cruzou-se com o arguido, na Estrada José Avelino Pinto.
8Este, ao vê-la, interpelou-a, com a expressão: "A.N., quero falar contigo".
9Tendo-o ela ignorado, ele, munido de uma saca de areia que carregava, com cerca de 50kgs, avançou lesto em sua direcção e atirou a referida saca contra as costas da A.N., pelo que ela caiu ao chão, embateu com o seu ombro direito no ferro da varanda de protecção da vereda e com a cabeça no chão.
10A neta dela, D.S., de 4 anos, que seguia à sua frente, e o seu filho, P.N., de 8 anos, que seguia pela mão, acabaram por ser arrastados pela queda da A.N. e, igualmente, caíram, sem, contudo, se terem magoado.
11O arguido ainda tentou desferir pontapés à A.N., quando ela se encontrava no chão, o que não conseguiu, em virtude da intervenção de A. G., companheiro da sua filha A.N.G, que o agarrou e afastou.
12O arguido, ao ser separado pelo A. G., virou-se contra este e agarrou-lhe a camisa, rasgando-a, tentou desferir-lhe socos na cara e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, tentando asfixiá-lo, provocando-lhe escoriações no pescoço e junto à boca.
13Como consequência directa e necessária da referida conduta, resultaram para a A.N. discretas equimoses azuladas nas faces exteriores dos ombros e face anterior do joelho esquerdo, com 3 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.
14Teve ainda necessidade de recorrer ao Serviço de Urgência do Hospital Dr. N.M., onde recebeu tratamentos às lesões causadas pela conduta descrita do arguido, que tiveram um custo de 128,91 euros, ainda não pagos.
15Como consequência directa e necessária da referida conduta, resultaram para o A. G. discreta escoriação na região peribucal direita e face anterior direita da base do pescoço, com 3 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.
16Previu e quis o arguido molestar fisicamente a A.N., sua, à data, cônjuge, e o A. G..
17O arguido previu e quis, através das suas condutas referidas no parágrafo terceiro destes factos provados, lesar a saúde física e mental, a auto-estima, a consideração pessoal a liberdade de acção e determinação da A.N., de molde a feri-la na sua dignidade e provocar-lhe mau estar psicológico, inquietação e angústia, assim como receio pela sua própria vida e integridade física.
18O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com total conhecimento de que as suas condutas descritas eram proibidas e punidas pela lei penal.
19O arguido não aufere rendimentos.
20É analfabeto.
21Vive sozinho.
22Não tem antecedentes criminais.

FACTOS NÃO PROVADOS RELEVANTES.
As agressões, impropérios e intimidações do arguido à mulher agravavam-se quando ele consumia bebidas alcoólicas em excesso.
No chão, a A.N. ainda foi atingida por vários pontapés desferidos pelo arguido.
Com o aperto no pescoço, o arguido conseguiu asfixiar o A. G.

FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.

O arguido prestou declarações, tendo negado ter agredido, insultado ou ameaçado o seu cônjuge, A.N..
De igual modo, negou ter agredido o A. G., companheiro da sua filha, alegando que este é que o agrediu a ele.
Adiantou que, de facto, ele e a A.N. deixaram de viver juntos, há cerca de quatro anos, tendo-se divorciado há alguns meses (facto que ela também confirmou, desconhecendo a data exacta, mas apontando finais de 2015).
Não obstante este depoimento do arguido, pela conjugação dos depoimentos da sua ex-mulher, testemunha A.N., da sua filha, testemunha igualmente chamada A.N.G., e do companheiro desta, A. G., que se afiguraram genuínos e extremamente credíveis, não ficou a menor dúvida no espírito do julgador sobre a veracidade dos factos descritos na acusação, ou seja, de que, ao longo do período em que viveram junto, por diversas vezes, o arguido bateu, insultou e atemorizou o seu cônjuge, como a voltou a agredir, em 04/03/14, tal como, desta vez, igualmente agrediu o A. G., companheiro da sua filha A.N.G..
De facto, a ex-cônjuge do arguido confirma ter sido agredida, física e verbalmente, do modo descrito na acusação. A filha do arguido especifica que, desde que ela era criança, que o pai maltrata a mãe, física e verbalmente, confirmando a ocorrência de bofetadas, pontapés, insultos e ameaças de morte, tantas vezes que nem as consegue contar. Diz ainda que isso acontecia indiferentemente de ele ter bebido demasiadas bebidas alcoólicas ou de estar sóbrio.
Também em relação ao episódio de 4 de Março de 2015, as ditas testemunhas deram ao Tribunal um relato coerente e pormenorizado dos factos provados, tendo apenas ressalvado que o -arguido foi agarrado pelo A. G. antes de ter dado qualquer pontapé à A.N., pelo que este facto não ficou provado, sem prejuízo da prova de o ter tentado fazer.
Os relatórios periciais de fls. 36 e 105, provando a existência de lesões físicas nos queixosos, são também elementos que se conjugam com as suas declarações e lhes conferem veracidade.
Em contrapartida, a testemunha L.S., não mereceu ao Tribunal qualquer credibilidade, não só porque o seu relato não se afigurou verosímil, como ainda por a sua versão contrariar a das outras testemunhas, que pareceram muito credíveis.
Por outro lado, não obstante o arguido ter sido também atendido no Serviço de Urgência do Hospital Dr. N.M., no dia seguinte a estes factos (cfr. fls. 201) não é evidente que exista uma qualquer relação entre esse atendimento e a situação do dia 4 de Março descrita nos autos, mormente o envolvimento físico que teve com o A. G..
O depoimento da testemunha F.F., conjugado com a certidão de fls. 156 e doc. de fls. 157, são comprovativos da despesa relativa ao atendimento hospitalar dado a A.N., conforme provado.
A situação social e económica do arguido foi dada a conhecer ao Tribunal por ele próprio.
Foram ainda consultados os assentos de nascimento de fls. 120 e ss., comprovativos do matrimónio do arguido com a queixosa e respectiva descendência.
Foram vistos os despachos de fls. 13 a 23 dos autos, relativos à questão da suspensão provisória do processo.
Foi visto o C. R. C. do arguido, autuado a fls. 174, de onde resulta que não tem antecedentes criminais.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO - PENAL E CIVIL DOS FACTOS.

Vem o arguido acusado da autoria de um crime de "violência doméstica" agravado, p. e p. pelo art° 152°, n°s 1, al. b) e 2 do C. Penal.
A conduta punível em causa está objectivada na redacção desse artigo do C. Penal conferida pela Lei n° 59/07, de 4 de Setembro, sob a epígrafe "Violência Doméstica", onde se dispõe, designadamente, que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privação da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou a quem ele viva em condições análogas às dos cônjuges é punido com pena de prisão de um a cinco anos se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Está em causa nos autos, o cônjuge do arguido, pelo que a alínea pertinente neste artigo incriminador é a alínea a), e não a alínea b) que lhe foi imputada na acusação.
Mais se acrescenta, no n° 2 do art° 152° do C. Penal que, no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto no domicílio comum, da vítima ou perante menor, é punido com pena de prisão de dois até cinco anos.
A punição criminal da violência doméstica, destina-se (essencialmente) a proteger o valor da dignidade humana no quadro de uma relação de subordinação existencial (cfr. Américo Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pag. 333).
Visa a salvaguarda da saúde física e mental das pessoas protegidas pela incriminação (cfr. Ac. R. P. de 3/11/99, in C. J., XXIV, tomo 5, pág. 223)
A sua verificação pressupõe, normalmente, se bem que não necessariamente, uma determinada reiteração ou habitualidade do comportamento agressor (cfr. Ac. cit. e ainda Ac. R. E. De 23/11/99, in C. J., XXIV, tomo 5, pág. 283).
Quando não se verifica a habitualidade, teremos que estar em presença de um comportamento muito grave, que traduza crueldade, insensibilidade ou até vingança por parte do agente (cfr. Ac. S. T. J. de 14/11/97, in C. J./Acs. S.T.J., V, tomo 3, pág. 235).
Compulsando esta doutrina e jurisprudência, com a qual se concorda, e remetendo-a à matéria provada nestes autos, designadamente no parágrafo 3o dos factos provados, conclui o Tribunal ter o arguido preenchido com o seu comportamento, os elementos objectivos e subjectivo do crime de violência doméstica agravada.
No entanto, este crime, englobando todas as acções dadas como provadas no terceiro parágrafo dos factos provados, já foi objecto de um despacho de arquivamento, no âmbito de uma suspensão provisória de processo, ao abrigo do disposto no art° 282°, n° 3 do C. P. Penal, em virtude de o arguido ter cumprido todas as injunções que aí lhe foram impostas. Essa norma legal dispõe, na sua parte final, que o processo, assim arquivado, não poderá ser reaberto. Com esta expressão, mais não poderia o julgador pretender senão atribuir força de caso julgado a esse arquivamento. De facto, a suspensão provisória do processo é um mecanismo alternativo à acusação e ao julgamento, em que, dispensando-se este último, o arguido repara o mal do crime que lhe é imputado, satisfaz as exigências de prevenção geral e cumpre as necessidades da sua ressocialização, com o cumprimento de determinadas injunções. Tendo-as cumprido, uma nova acusação por estes factos significaria uma clara violação do princípio ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo facto. Seguramente que o arguido pode ser novamente julgado e condenado por um crime de violência doméstica, mas tendo de ser desconsiderados os factos já objecto de anterior arquivamento, no âmbito de um processo em que estava a ser especificamente investigado e lhe foi imputada a autoria de um crime de violência doméstica e foi arquivado no âmbito do art° 282°, n° 3 do C. P. Penal. Alguma jurisprudência dos Tribunais superiores distingue as situações de factos anteriormente investigados, como ofensas à integridade física, ameaça ou injúria, em que o processo tenha ficado arquivado por desistência de queixa, admitindo que estes factos possam integrar uma acusação pelo crime complexo de violência doméstica (cfr. Ac. R. P. de 09/12/15, relatado pelo desembargador Jorge Langweg, in www.dgsi.pt).

Diversa é a situação dos autos, em que toda a factualidade descrita nos cinco primeiros parágrafos da acusação já foi especificamente imputada ao arguido, a título de violência doméstica, tendo ele já cumprido injunções, como efectiva punição por esse crime, que foram consideradas satisfatórias, pelo que tal pedaço de vida já não poderá servir para, conjugado com factos posteriores, fundamentar a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica. Em suma, um despacho de arquivamento, no âmbito de uma suspensão provisória de processo, ao abrigo do disposto no art° 282°, n° 3 do C. P. Penal, em virtude de o arguido ter cumprido todas as injunções que aí lhe foram impostas é equivalente a uma sentença transitada, fazendo caso julgado da factualidade em causa no objecto desse processo.

Resta apurar se o facto novo, de 2014, a nova agressão dada como provada, pode configurar, per se, a prática deste crime. Considera o Tribunal que não. Tal facto é, desconsiderando os demais já arquivados, um acto isolado da vida do arguido e não comporta, na perspectiva do Tribunal, suficiente gravidade, em termos de crueldade ou insensibilidade, nos termos expostos supra, para que se possa imputar ao arguido um crime de violência doméstica.

Vem o arguido acusado da autoria de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143°, n° 1 do C. Penal.

Dispõe o art° 143°, n° 1 do C. Penal que pratica o crime de ofensa à integridade física "quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa".

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a integridade física dos seres humanos e a verificação do elemento objectivo do mesmo consiste na ofensa ao corpo ou à saúde da vítima. Ofensa ao corpo consistirá na causação de uma lesão física, num mau trato feito ao corpo e ofensa à saúde consistirá numa agressão que ponha em causa, de forma não insignificante "o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a" ou que leve "à criação de um estado de doença" (cfr. Maiwald cit. in "Comentário Conimbricense do C. Penal" tomo I, Ca Ed. Pág. 207).

Afigura-se indubitável que o aperto do pescoço de outra pessoa, com intenção de magoar (não sendo sequer este resultado necessário para que o crime se consume - cfr. Ac. S. T. J. de 04/03/99, in SASTJ, n° 29, pág. 71), resulta na prática de um crime de ofensa à integridade física.

Ninguém criminalmente imputável ignora que um comportamento dessa natureza é, ademais, penalmente proibido.

Assim, tendo-se verificado estes pressupostos, foi cometido pelo arguido o crime previsto no art° 143°, n° 1 do C. Penal, por duas vezes, uma relativa à A.N. e outra relativa ao A. G..

A ofensa cometida sobre a sua ex-cônjuge é qualificada, por ser particularmente censurável, na medida em que atingiu aquela que era, à data, sua cônjuge, e em relação à qual ele tinha o particular dever de protecção e respeito pela integridade física (cfr. conjugação do art.° 145°, n°l, al. a) e n° 2 do Código Penal, com o art° 132°, n°2, al. b) do mesmo diploma legal). É de salientar que as causas de agravamento da censurabilidade penal previstas no n° 2 do art° 132° do C. Penal não funcionam - como é amplamente reconhecido pela doutrina e jurisprudência - de uma forma automática, importando apurar se existem no caso sub iudice circunstâncias que fundamentam um sensível agravamento da censurabilidade do comportamento do agente.

Ponderadas as circunstâncias da actuação do arguido neste caso concreto, não subsistem dúvidas de que o comportamento do arguido se enquadra no tipo qualificado de que vem acusado.

Pelo exposto se conclui que o arguido cometeu o crime de ofensa à integridade física agravada sobre a ex-mulher e simples sobre o A. G..

Os danos físicos que o comportamento do arguido provocou implicaram a deslocação da A.N. a estabelecimento de saúde da demandante, onde recebeu tratamento médico.

O arguido, com o seu comportamento ilícito e culposo, foi o causador de tal despesa, pelo que a ele, nos termos conjugados do disposto nos art°s 483°, 490° e 495°, n° 2 do C. Civil, é imputável o respectivo pagamento, nos termos peticionados pelo demandante cível.

DA MEDIDA DAS PENAS.

O crime de ofensa à integridade física agravada é punido é punido com pena de prisão até quatro anos e este mesmo crime, na sua forma simples, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
É, portanto, dentro dos limites assinalados supra, que importa ponderar a culpa do agente (cfr. artigo 40°, n° 2 do C. P.) as exigências de prevenção geral e as de prevenção especial, com vista à prossecução do objectivo traçado na parte final do n° 1 do artigo 40° do C. P. (neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pags.214 e ss. e 245 a 248).
A ilicitude e culpa do comportamento do arguido são elevadas, no que ao crime de ofensa agravada diz respeito.
As exigências de prevenção geral são também elevadas, no contexto de actuação do arguido.
Julga-se adequada a fixação de uma pena concreta de dez meses de prisão, para este o crime de ofensa à integridade física agravada.
Importa salientar que o arguido e a ofendida já não vivem conjuntamente, há vários anos, sendo que, ainda assim, tal ausência de vida em comum não é impeditiva de actos de violência. De qualquer forma, sempre fica algo reduzido o risco de novas ocorrências, que é muito maior quando as pessoas mantêm vida conjugal.
Não pode deixar de se observar que o arguido não tem antecedentes criminais, facto muito relevante na sua idade.
Considera o Tribunal que não é totalmente descartável um prognóstico favorável a respeito, mormente pela ameaça do cumprimento efectivo de uma pena de prisão e, desta forma, que tal pena de prisão a aplicar ao arguido possa ser suspensa na sua execução (cfr. art° 50°, n° 1 do C. Penal).
Sobre o crime de ofensa à integridade física simples, são um pouco menores as exigências de prevenção geral e temos de considerar a existência de uma ilicitude de nível mediano, mesmo que a culpa seja elevada e muito censuráveis as circunstâncias da conduta do arguido, ao agredir o ofendido quando este apenas o queria impedir de agredir novamente a sua ex-mulher.
De qualquer modo, considera o Tribunal que a opção pela pena de multa, concretamente fixada em 80 dias, ainda salvaguarda as finalidades da punição.
A situação social provada do arguido mais do que justifica a fixação de um quantitativo diário da multa de cinco euros. …».

E, por isso, foi proferida a decisão que se transcreveu no início do presente acórdão.

Vejamos:

O âmbito dos recursos delimita-se pelas conclusões da motivação em que se resumem as razões do pedido. Sendo as conclusões proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Edição de 1981, Pág. 359).

No que se reporta à primeira questão, verifica-se, desde logo, que o recorrente se insurge pela circunstância de a acusação descrever factos genéricos reportados à vida em comum com a ofendida que já foram objecto de "julgamento", uma vez que decorreu um inquérito, entretanto arquivado, onde foi aplicada a suspensão provisória do processo e cumpridas as injunções.

Ora, na perspectiva do que acaba de se assinalar, não se nos afigura correcto dizer-se que houve julgamento e, muito menos, que houve cumprimento de uma pena, já que o que aconteceu foi a aplicação de um mecanismo de consenso em que o arguido acordou cumprir determinadas condições, sendo que, com isso, evitou ser submetido a julgamento.

Aliás, não se pode olvidar, por um lado, que esse facto foi ponderado pelo Ministério Público aquando da acusação ora em causa, dado que, havendo reiteração de condutas subsumíveis ao mesmo crime de violência doméstica, já não podia "negociar" nova suspensão do processo, conforme pode ler-se a fls. 113: "Contudo, ao arguido no âmbito dos autos de inquérito com o nr. 635/08.3PDFUN, foi aplicado o mecanismo de suspensão provisória do processo, durante o período de 12 (doze) meses. Tendo o referido inquérito sido arquivado, com o cumprimento das injunções e decorrido o respectivo prazo.

Ponderando os factos apurados, as circunstâncias do caso concreto e as características de personalidade do arguido, nomeadamente toda a conduta ulterior ao conhecimento dos factos, e a admissão tácita dos factos que lhe são imputados, entendo que o cumprimento de adequadas injunções e regras de conduta já não responde suficientemente às exigências de prevenção criminal que se verificam na situação em apreço na tutela do bem jurídico, pelo que será deduzida acusação pública pelos factos denunciados e praticados pelo arguido A.".

Por outro lado, o arguido foi confrontado com a acusação e com todos os factos que lhe foram imputados, quer os relativos ao crime de violência doméstica, quer ao crime de dano, quer, ainda, quanto ao crime de ofensa à integridade física simples, com os quais se conformou, na medida em que aceitou submeter-se a julgamento em vez de ter requerido instrução para eventualmente ser despronunciado por qualquer dos supra mencionados ilícitos.

Assim, compulsado o conteúdo da acusação, inexistem dúvidas de que a mesma preenche as exigências do Art.° 283°, n.° 3 do C.P.Penal, incluindo a narração dos factos, designadamente com a indicação do lugar, do tempo e da motivação da prática dos mesmos, bem como  de circunstâncias que poderiam ser relevantes para aplicação de uma sanção: “Em Processo Comum e com intervenção de Tribunal Singular, nos termos do disposto no artigo 283.º e 16.º, n.° 3 ambos do Cód.Proc.Penal, o Ministério Público acusa:

A., residente na em Estreito de Câmara de Lobos- Funchal.
Porquanto indiciam suficientemente os autos que:
1.-O arguido A.e a ofendida A.N., estão casados entre si.
2.-Desse casamento existem nove filhos: A.N.G., J.N., nascido no dia 27 de Fevereiro de 2009, C.N., S.N., L.N., D.N., B.N., E.N., nascido a 17 de Março de 2002 e P.N., nascido no dia 15 de Fevereiro de 2006.
3.-Durante o período de vida em comum, por diversas vezes, o arguido agrediu A.N., desferindo-lhe bofetadas na cara, pontapés nas pernas e puxando-lhe os cabelos, dirigiu-lhe impropérios tais como "puta do caralho", e intimidações tais como "eu vou-te matar".
4.-As agressões, ameaças e insultos agravam-se quando o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso, situação que era bastante frequente.
5.-Com o intensificar das agressões, ameaças e insultos, que atingiam a ofendida, esta separou-se do arguido em meados de 2012, tendo ido residir para uma casa abrigo da segurança social.
6.-No dia 4 de Março de 2014, pelas l0 horas e 50 minutos, quando a ofendida se deslocou ao Estreito de Câmara de Lobos, para ir visitar o seu pai que se encontrava acamado, cruzou-se com o arguido na Estrada José Avelino Pinto,
7.-Este ao ver a ofendida, interpelou-a com a expressão "A.N. quero falar contigo",
8.-Tendo a ofendida ignorado completamente o arguido, este munido de uma saca de batatas com cerca de 50 kgs, corre em sua direcção e atira a referida saca contra as costas da ofendida A.N..
9.-Com tal acto, a ofendida cai ao chão, embatendo com o seu ombro direito no ferro da varanda de protecção da vereda e bateu com a cabeça no chão.
10.-A neta da depoente D.S. de 4 (quatro) anos, que seguia a sua frente, foi atingida pela ofendida e também caiu ao chão, não tendo contudo se magoado.
11.-Ao ser atingida pela saca e desequilibrar-se, antes de cair ao no chão, atingiu também o seu filho P.N., de 8 (oito) anos, que seguia de mão dada com esta.
12.-No chão a ofendida ainda foi atingida por vários pontapés do arguido, tendo este cessado as referidas agressões apenas com a intervenção do seu genro e ofendido nos autos, A. G., que o afastou.
13.-O arguido ao ser separado pelo seu genro A., virou-se contra este e tentou agredir este com socos na cara, de seguida agarrou a camisa deste, rasgando-a e de seguida, apertou-lhe o pescoço com as suas duas mãos, asfixiando o ofendido.
14.-Provocando ao ofendido escoriações no pescoço, bem como, junto à boca.
15.-Como consequência directa e necessária da referida conduta, resultou para a ofendida A.N. lesões, descritas como discretas equimoses azuladas nas faces exteriores dos ombros e face anterior do joelho esquerdo, com 3 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional e sem quaisquer consequências permanentes.
16.-Como consequência directa e necessária da referida conduta, resultou para o ofendido A. lesões, descritas como discreta escoriação na região peribucal direita e face anterior direita da base do pescoço, com 3 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional e sem quaisquer consequências permanentes.
17.-O arguido previu e quis, através das suas condutas atrás referidas, lesar a saúde física e mental, assim como a auto-estima, a consideração pessoal e ainda a liberdade de acção e determinação da ofendida, de molde a feri-la na sua dignidade e provocar-lhe mau estar psicológico, inquietação e angústia, assim como receio pela sua própria vida e integridade física.
18.-Mais previu e quis o arguido, A., agindo deliberada, livre e conscientemente, querendo e conseguindo molestar fisicamente o queixoso A..
19.-O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com total conhecimento de que as suas condutas atrás descritas eram proibidas e punidas pela lei penal, e, bem assim, com plena capacidade de determinação segundo as legais prescrições, sendo certo que, não obstante tal conhecimento e capacidade, não se inibiu de actuar do modo descrito.
20.-Com as condutas descritas cometeu o arguido, como autor material, e em concurso efectivo:
I.1-(um) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal:
II.1-(um) crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º, n° 1, do Código Penal;
III.1-(um) crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.°, n.º 1 do Código Penal."

Desta forma, a acusação preenche todos os requisitos legais, tendo sido, acertadamente, recebida pelo tribunal aquando do momento oportuno de saneamento e de prolação do despacho a que se refere o Art.° 311° do C.P.Penal.

É certo que o Mº Pº acusou por um crime de dano para o qual não tinha legitimidade, uma vez que o ofendido durante o inquérito não se refere a essa factualidade e apenas descreve os factos integradores do crime de ofensa à integridade física, a estes se reportando para expressar a sua vontade do procedimento criminal.

Contudo, tendo sido o arguido absolvido daquele crime, por falta de legitimidade do Mº Pº para acusar, a factualidade que se refere ao dano ocorreu e foi descrita nos factos provados, bem como outros factos que, contudo, não importaram qualquer condenação, servindo apenas para o enquadramento e circunstancialismo da dinâmica em que os ilícitos provados foram praticados.

Aliás, não se pode sequer olvidar o que, a este propósito, se deixou exarado na sentença impugnada e que ora, mais uma vez, se sublinha: “Compulsando esta doutrina e jurisprudência, com a qual se concorda, e remetendo-a à matéria provada nestes autos, designadamente no parágrafo 3o dos factos provados, conclui o Tribunal ter o arguido preenchido com o seu comportamento, os elementos objectivos e subjectivo do crime de violência doméstica agravada.
No entanto, este crime, englobando todas as acções dadas como provadas no terceiro parágrafo dos factos provados, já foi objecto de um despacho de arquivamento, no âmbito de uma suspensão provisória de processo, ao abrigo do disposto no art° 282°, n° 3 do C. P. Penal, em virtude de o arguido ter cumprido todas as injunções que aí lhe foram impostas. Essa norma legal dispõe, na sua parte final, que o processo, assim arquivado, não poderá ser reaberto. Com esta expressão, mais não poderia o julgador pretender senão atribuir força de caso julgado a esse arquivamento. De facto, a suspensão provisória do processo é um mecanismo alternativo à acusação e ao julgamento, em que, dispensando-se este último, o arguido repara o mal do crime que lhe é imputado, satisfaz as exigências de prevenção geral e cumpre as necessidades da sua ressocialização, com o cumprimento de determinadas injunções. Tendo-as cumprido, uma nova acusação por estes factos significaria uma clara violação do princípio ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo facto. Seguramente que o arguido pode ser novamente julgado e condenado por um crime de violência doméstica, mas tendo de ser desconsiderados os factos já objecto de anterior arquivamento, no âmbito de um processo em que estava a ser especificamente investigado e lhe foi imputada a autoria de um crime de violência doméstica e foi arquivado no âmbito do art° 282°, n° 3 do C. P. Penal. Alguma jurisprudência dos Tribunais superiores distingue as situações de factos anteriormente investigados, como ofensas à integridade física, ameaça ou injúria, em que o processo tenha ficado arquivado por desistência de queixa, admitindo que estes factos possam integrar uma acusação pelo crime complexo de violência doméstica (cfr. Ac. R. P. de 09/12/15, relatado pelo desembargador Jorge Langweg, in www.dgsi.pt).
Diversa é a situação dos autos, em que toda a factualidade descrita nos cinco primeiros parágrafos da acusação já foi especificamente imputada ao arguido, a título de violência doméstica, tendo ele já cumprido injunções, como efectiva punição por esse crime, que foram consideradas satisfatórias, pelo que tal pedaço de vida já não poderá servir para, conjugado com factos posteriores, fundamentar a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica. Em suma, um despacho de arquivamento, no âmbito de uma suspensão provisória de processo, ao abrigo do disposto no art° 282°, n° 3 do C. P. Penal, em virtude de o arguido ter cumprido todas as injunções que aí lhe foram impostas é equivalente a uma sentença transitada, fazendo caso julgado da factualidade em causa no objecto desse processo.
Resta apurar se o facto novo, de 2014, a nova agressão dada como provada, pode configurar, per se, a prática deste crime. Considera o Tribunal que não. Tal facto é, desconsiderando os demais já arquivados, um acto isolado da vida do arguido e não comporta, na perspectiva do Tribunal, suficiente gravidade, em termos de crueldade ou insensibilidade, nos termos expostos supra, para que se possa imputar ao arguido um crime de violência doméstica.”

Importa salientar que não se vislumbra, além do mais, que toda a produção de prova se tenha baseado tão-somente nos factos integradores do crime de violência doméstica.

Sendo que, do mesmo modo, não se nos afigura ter sido violado o princípio ne bis in idem, tal como o mesmo se encontra consagrado do Art.º 29º, n.º 5 da C.R.P.

Em face do que acaba de se expender, mais nada nos resta senão concluir que nenhum vício afecta a acusação que importe, nesta sede, considerá-la nula e, em consequência, absolver o arguido de todos os crimes que lhe foram imputados.

Quanto à segunda questão, torna-se imperioso referir, de imediato, que no crime de violência doméstica as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensa à integridade física, o de ameaças e o de injúria.

Pelo que, se apresenta, desde logo, como inequívoco que a diferença existente entre os textos da acusação e da sentença em crise, no segmento factual respeitante à ofendida A.N. não corresponde a qualquer alteração substancial na medida em que não conduziu à integração desses factos em crime diverso relativamente àquele de que o recorrente se encontrava acusado, bem como não se verificou qualquer agravação no limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de que se encontrava acusado. Antes pelo contrário se constata ter ocorrido uma atenuação desse limite. Por esta via está, pois, afastada a aplicação, in casu, do regime constante do disposto no Art.o 359º do C.P.Penal.

Outrossim, como se retira por antinomia da definição legal constante da alínea f) do n.° 1 do Art.º 1º C.P.Penal, a alteração não substancial dos factos é aquela que não tem por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Em todo o caso, afigura-se-nos que não se pode concluir, sem mais discussão, que qualquer modificação da factualidade provada, em relação ao que se mostre exactamente vertido na redacção da respectiva acusação ou pronúncia, seja merecedora desse qualificativo.

Conforme consta do Acórdão do S.T.J. de 24-01-2002, proferido no processo n.º 1298/99 da 5.a Secção (SASTJ, n.º 57, Pág. 93), a alteração não substancial "pressupõe uma modificação com relevância para a decisão da causa, não bastando para tal que matéria de facto provada não seja inteiramente coincidente com a vertida na acusação".

Basicamente estão presentes nesta matéria duas distintas ordens de preocupações que correspondem a outros tantos princípios de processo penal: o princípio acusatório e o da total garantia de defesa do arguido.

De permeio fica a questão do objecto do processo, conceito nuclear no funcionamento de diversos institutos adjectivos v. g. os poderes de cognição do tribunal, a extensão do caso julgado, ou o avaliar a excepção da litispendência, mas que não tem, nem pode ter, uma delimitação conformativa absolutamente milimétrica.

É que não se pode olvidar, desde logo, que sobre o Tribunal recai um princípio de investigação (cfr. nomeadamente Art.º 340°, n.º 1, do C.P.Penal), e por isso, como o ensina Castanheira Neves, a identidade do objecto do processo ainda que não deva "ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo principio acusatório e que a definição do objecto do processo se propõe justamente realizar", não poderá “definir-se tão rígida e estreitamente que impeça o esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infracção imputada e da correlativa responsabilidade”(cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 31-01-2012, no Processo n.º 947/10.6PEAMD.L1-5, relatado pelo Exm.º Desembargador Luís Gominho, in www.dgsi.pt/jtrl).

Sendo de notar que nem mesmo o principio da identidade que o conforma, postula uma sua igualdade "euclideana", para usar a afirmação sugestiva de Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal Anotado, 2.ª Edição, II Vol., Pág. 413).

O que se revela necessário, é que estejamos perante uma alteração que efectivamente "mexa" com os direitos do arguido (como se refere no Acórdão desta Relação de 29-11-2007, no Processo n.º 7223/07, relatado pelo Exm.º Desembargador João Carrola, in www.dgsi.pt/jtrl), que postule essa necessidade de defesa.

Assim não acontece, "quando aos factos da acusação se retiram algum ou alguns, isto é se reduz o objecto do processo já que aqueles direitos permanecem intocáveis" (Acórdão da Relação de Lisboa que acaba de se indicar e Acórdão do S.T.J. de 08-11-2007, no processo 07P3164, relatado pelo Exm.º Conselheiro Carmona da Mota, in www.dgsi.pt/jstj), ou "quando os factos são meramente concretizadores ou esclarecedores dos constantes primitivamente da acusação e pronúncia" (v.g. Acórdão da Relação do Porto de 19-11-2008, no processo 0815244, relatado pelo então Exm.º Desembargador Manuel Braz, consultável em www.dgsi.pt/jtrp).

No seguimento do que acaba de se expender, determina o Art.º 358º do C.P.Penal, no seu n.º 1, que: "Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa."

Do texto legal ora citado extrai-se que qualquer alteração não substancial dos factos só impõe a respectiva comunicação ao arguido quando essa alteração tiver relevo para a decisão da causa.

Nesta perspectiva, "alteração não substancial" constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não tenha relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal.

Destarte, a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.

De todo em todo, verifica-se que o arguido A. se encontrava acusado pela prática, como autor material, entre outros que para aqui não relevam, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo Art.º 152º, n.ºs 1, alínea b) e 2, do C. Penal.

Ora, tendo em conta que os cinco primeiros parágrafos da acusação, de modo algum, poderiam servir para fundamentar a condenação do recorrente pelo sobredito ilícito, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, tal como acertadamente se salientou na sentença impugnada e já supra se deixou transcrito, nada mais restava senão chegar à conclusão de que o episódio ocorrido em 04-03-2014, por se tratar de um acto isolado da vida do mesmo, não revestia densidade suficiente para atingir a dignidade humana da ofendida A.N.dos Santos Nunes.

Consequentemente, veio o Tribunal a quo a entender que apenas se estava perante um crime de ofensa à integridade física praticado sobre a pessoa da sua mulher e, como tal, qualificada, por ser particularmente censurável.

E dizemos isto por que, em relação à mesma, tinha o arguido A.o particular dever de protecção e respeito pela respectiva integridade física, na medida em que, na sobredita data, se encontravam ainda casados.  

Por força do que acaba de se assinalar, inexistem dúvidas de que o Tribunal de 1ª Instância não julgou por factos diversos dos contidos na acusação, uma vez que o crime de violência doméstica é um crime complexo que compreende várias condutas tipicamente consideradas crime por si próprias, incluindo ofensa à integridade física, coacção, injúria, difamação e etc, mas que neste crime têm como elemento agregador o bem jurídico saúde física e psíquica que seja atingida de modo incompatível com a dignidade humana.

Sendo certo que, nesta conformidade, mais nada se vislumbra senão que, in casu, terão sido levadas a cabo tão-somente pequenas modificações da matéria de facto, visando a melhor concretização da conduta do recorrente.

O que, em nosso entender, de forma alguma, se apresenta como susceptível de traduzir qualquer alteração, ainda que meramente não substancial, do objecto do processo.

Até por que as mesmas não revelam interesse algum para a decisão da causa, na medida em que o núcleo essencial da factualidade estava já plasmado na acusação.

De todo em todo, é manifesto, pois, que existe identidade entre a factualidade que constava da acusação e os factos que foram dados como provados na sentença em causa.

Operando a respectiva comparação, verifica-se que a diferença da matéria fáctica entre esta última peça processual e aqueloutra, reside apenas na circunstância de nela terem sido dados como provados, num segmento, menos factos do que os que constavam da acusação.

É que, ao contrário do que consta da acusação, não se deu como assente que, no chão, a ofendida A.N. ainda tenha sido atingida por vários pontapés desferidos pelo arguido, mas apenas que este ainda tentou desferir pontapés àquela, quando a mesma se encontrava no chão, o que não conseguiu, em virtude da intervenção de A. G., companheiro da sua filha A.N., que o agarrou e afastou.

Destarte, torna-se inequívoco concluir não ser aplicável à situação sub judice o regime de comunicação previsto no Art.o 358º do C.P.Penal.

Todavia, importa referir, ainda, que, tendo em conta o estatuído no Art.º 358º, n.º 3 do C.P.Penal, o disposto no antecedente n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação. 
 
Ora, tal como se deixou já supra expendido, os factos objectivos não sofreram qualquer alteração significativa.

Todavia, o tribunal a quo entendeu que a actuação imputada e comprovada configurava não um crime de violência doméstica mas sim um crime de ofensa à integridade física qualificada, no que se reporta à pessoa da ofendida A.N. dos S...Nunes.

Assim, não sendo coincidente a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos feita na acusação e na sentença em crise, inexistem dúvidas de que se verifica uma alteração da respectiva qualificação jurídica.

No entanto, pese embora o n.º 3 do Art.º 358° do sobredito Código aluda a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia tout court, o que do ponto de vista literal inculca a ideia de que abrange toda e qualquer alteração, obviamente com a ressalva prevista no n.º 2, segundo a qual se dispensa a comunicação da alteração ao arguido quando resulte de alegação feita pelo mesmo, a verdade é que se vem entendendo que nem toda a alteração implica necessariamente a sua comunicação ao arguido.

A questão da necessidade daquela comunicação tem sido objecto de debate desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal (1987).

Porém, não resulta pacífico o entendimento sobre a obrigatoriedade de comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e concessão ao mesmo de prazo para a defesa.

Com efeito, para além da ressalva contida no supra apontado n.º 2 do Art.º 358º, segundo a qual a alteração não carece de ser comunicada ao arguido, o que bem se percebe, visto que a mesma é resultado de alegação por si produzida, vem-se entendendo que outros casos ocorrem em que é inútil prevenir o arguido da alteração da qualificação jurídica, razão pela qual se considera não dever ter lugar a comunicação.

É que o instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido, pretendendo a lei que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender.

Ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do Art.º 32° -, consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.

Desta forma, atenta a ratio do instituto, vem-se entendendo que só nos casos e situações em que as garantias de defesa do arguido o exijam (possam estar em causa), está o tribunal obrigado a comunicar ao arguido a alteração da qualificação jurídica e a conceder-lhe prazo para preparação da defesa.

Ora, no crime de violência doméstica, conforme já supra se deixou consignado, as condutas típicas podem integrar diversos tipos legais, nomeadamente o crime de ofensas à integridade física, o de ameaça e o de injúria.

Por toda a matéria de facto subsumível à norma especial do Art.º 152º do C. Penal caber inteiramente no âmbito mais vasto da norma geral (Art.ºs 143º, 145º, 153º e 181º, do Código Penal, entre outros possíveis tipos), existe uma relação de especialidade entre a primeira norma e estas últimas, prevalecendo, por essa razão aquela sobre estas (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 23-11-2011 e de 14-05-2014, relatados, respectivamente, pelos Exm.ºs Desembargadores Orlando Gonçalves e Luís Coimbra, in www.dgsi.pt/jtrc).

No entendimento do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque “o crime de violência doméstica (…) está também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples (…). Portanto a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes” (cfr. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica editora, Edição de 2008, Págs. 406 e seg.).

Porém, ao invés, pode acontecer, como aconteceu na situação dos autos, que, realizada a audiência de julgamento, as condutas típicas provadas não revelem o especial desvalor da acção pressuposto pelo crime de violência doméstica.

Neste caso, mais nada restava senão determinar-se a punição por aplicação das normas penais gerais, que representam um “minus” em relação ao crime de que o recorrente vinha acusado.

O que, desde logo, decorre da circunstância do arguido A.ter tido conhecimento de todos os elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física qualificada, designadamente dos relativos ao facto da ofendida ainda ser sua mulher e à consciência
da ilicitude,como se verifica dos pontos1,7 a 9,13,16 e 18 da sentença recorrida, e, assim, ter tido a possibilidade de os contraditar, pois todos esses factos constavam da acusação (cfr. factos 1, 6 a 9, 15 e 19 da acusação).

Por conseguinte, torna-se forçoso reiterar que, também neste caso, não se impunha a comunicação prevista no supra mencionado Art.º 358° do C.P.Penal, uma vez que não se mostram verificados os respectivos pressupostos.

Em suma, mais nada nos resta concluir senão que nenhuma nulidade se mostra cometida, maxime a que resulta do estabelecido no Art.º 379º, n.º 1, alínea b) do supra mencionado diploma de direito adjectivo penal.

Afigurando-se-nos, de igual modo, que não se efectivou qualquer interpretação dos sobreditos normativos que se apresente como inconstitucional, por desrespeito dos princípios acolhidos nos n.ºs 1 e 5, do Art.º 32°, da C.R.P..

No que se prende com a terceira questão, torna-se forçoso, de imediato, salientar que a contradição insanável mencionada no Art.º 410º, n.º 2, alínea b) do C.P.Penal só acontece quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que a fundamentação constante do texto da decisão recorrida justifica uma decisão oposta ou quando existe colisão entre os fundamentos invocados.

Neste âmbito, verifica-se que a sentença em causa espelha uma fundamentação escorreita e lógica que justifica plenamente a decisão tomada.

Desde logo, pelo correcto e exaustivo exame crítico da prova produzida que, conforme já se salientou, foi feito na decisão sub judice, sem que se consiga vislumbrar qualquer contradição nos termos sobreditos.

É que, na verdade, inexiste qualquer discrepância entre o segmento da fundamentação invocado pelo recorrente, com o seguinte teor: “(…) este crime (…) já foi objecto de um despacho de arquivamento (…) em virtude de o arguido ter cumprido as injunções impostas (…) tem força de caso julgado. (…) Tendo-as cumprido, uma nova acusação por estes factos significaria uma clara violação do princípio ne bis in idem, segundo o qual uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo facto. Seguramente que o arguido pode ser novamente julgado e condenado por um crime de violência doméstica, mas tendo de ser desconsiderados os factos já objecto de anterior arquivamento (…) toda a factualidade descrita nos cinco primeiros parágrafos da acusação já foi especificamente imputada ao arguido, a título de violência doméstica, tendo ele já cumprido injunções, como efectiva punição por esse crime, que foram consideradas satisfatórias, pelo que tal pedaço de vida já não poderá servir para, conjugado com factos posteriores, fundamentar a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica (…)” e a matéria de facto que se deu como provada nos pontos 1 a 5 (e até por força, também, do ponto 6) da sentença impugnada.

E dizemos isto porque, tal como já supra deixámos salientado, tal factualidade serviu apenas para o enquadramento e circunstancialismo da dinâmica em que os ilícitos provados foram praticados e nunca para efeitos de sustentar qualquer condenação, maxime pelo crime de violência doméstica, a qual, conforme decorre dos autos, nem sequer ocorreu.

Por outro lado, importa referir que, em nossa opinião, mais nada resulta do segmento da fundamentação, igualmente transcrito pelo recorrente, com o seguinte teor: “(…) ao longo do período em que viveram junto, por diversas vezes, o arguido bateu, insultou e atemorizou o seu cônjuge, como a voltou a agredir, em 04/03/14, tal como, desta vez, igualmente agrediu o A. Gouveia, companheiro da sua filha A.N. Nunes. De facto, a ex-cônjuge do arguido confirma ter sido agredida, física e verbalmente, do modo descrito na acusação. A filha do arguido especifica que, desde que ela era criança, que o pai maltrata a mãe, física e verbalmente, confirmando a ocorrência de bofetadas, pontapés, insultos e ameaças de morte, tantas vezes que nem as consegue contar. Diz ainda que isso acontecia indiferentemente de ele ter bebido demasiadas bebidas alcoólicas ou de estar sóbrio. Também em relação ao episódio de 4 de Março de 2015, as ditas testemunhas deram ao Tribunal um relato coerente e pormenorizado dos factos provados (…)” senão que a sobredita matéria fáctica não poderia deixar de ter sido dada como assente, na medida em que a mesma corresponde ao que, efectivamente, foi dito pelas testemunhas A.N., e A. G..

Sendo que, à revelia do pretendido, tal não se apresenta, outrossim, como susceptível de revelar a ocorrência de alguma disparidade. 
 
Nestes termos, não se nos afigura existir qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Relativamente à quarta questão, importa referir que o vício consagrado no Art.º 410º, n.º 2, alínea c) do C.P.Penal, nas condições em que se encontra legalmente previsto, é, em função da sua natureza ou por definição, intrínseco da decisão recorrida e, como tal, não deve obter raízes no exterior da mesma.

Portanto, só existe erro notório na apreciação da prova quando o mesmo é tão evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta.

A discordância com a decisão do tribunal recorrido no que respeita à forma como este teria apreciado a prova produzida em audiência de julgamento não constitui o vício de erro notório na apreciação da prova.

Também tal vício não se mostra revelado face ao teor da decisão impugnada e, do mesmo modo, quanto à existência do mesmo, não assiste razão ao recorrente ao apontá-lo, como o faz nas conclusões transcritas.

Na realidade, afigura-se-nos que este “ficciona” a existência de erro notório na apreciação da prova, porque afere essa existência pela matéria alegada na motivação do recurso, sem correspondência, aliás, nos factos apurados e consoante o foram.

Aliás, em nosso entendimento, os factos provados conduzem necessária e logicamente à conclusão de que o arguido A. praticou, como autor material, na pessoa de A.N. dos S.Nunes, um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelas disposições conjugadas dos Art.°s 143°, n.° 1 e 145°, n.° 1, alínea a), com referência ao Art.º 132°, n.° 2, alínea b), todos do C. Penal e, ainda, na pessoa de A. G., um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo Art.° 143°, n.° 1, do mesmo Código, pelos quais vem condenado.

A decisão sob recurso é coerente, dela constando a factualidade que permite integrar os elementos constitutivos de tais ilícitos.

Na verdade, conforme se salienta na motivação da decisão de facto, a convicção do Tribunal a quo resultou da conjugação dos depoimentos da testemunha A.N. dos S. Nunes, actual ex-mulher do recorrente, A.N., filha do recorrente e A. G., companheiro desta, os quais se apresentaram como genuínos e extremamente credíveis.

O arguido A. prestou declarações, em que negou, por um lado, ter agredido, insultado ou ameaçado o então seu cônjuge, A.N. e, por outro, ter agredido o sobredito companheiro da sua filha, alegando que este é que o agrediu a ele.

Mais adiantou que, de facto, ele e a A.N. deixaram de viver juntos, há cerca de quatro anos, tendo-se divorciado há alguns meses (facto que ela também confirmou, desconhecendo a data exacta, mas apontando para finais de 2015).

Não obstante este depoimento do recorrente, não ficou a menor dúvida no espírito do julgador sobre a veracidade dos factos descritos na acusação, ou seja, de que, ao longo do período em que viveram juntos, por diversas vezes, este bateu, insultou e atemorizou o seu cônjuge, assim como a voltou a agredir, em 04-03-2014, tal como, desta vez, igualmente agrediu o A. G., companheiro da sua filha A.N..

É que, de facto, a actual ex-mulher do arguido confirmou ter sido agredida, física e verbalmente, do modo descrito na acusação.

Para além disso, a predita filha do arguido especifica que, desde que ela era criança, que o pai maltratava a mãe, física e verbalmente, confirmando a ocorrência de bofetadas, pontapés, insultos e ameaças de morte, tantas vezes que nem as conseguia contar. Diz, ainda, que isso acontecia indiferentemente de ele ter bebido demasiadas bebidas alcoólicas ou de estar sóbrio.

Também em relação ao episódio de 04-03-2014, as supra mencionadas testemunhas deram ao Tribunal um relato coerente e pormenorizado dos factos provados, tendo apenas ressalvado que o recorrente foi agarrado pelo A. G. antes de ter dado qualquer pontapé à A.N. , pelo que este facto não ficou provado, isto sem prejuízo da prova de o ter tentado fazer.

Os relatórios periciais de fls. 35 a 36 v.º e 104 a 105 v.º, provando a existência de lesões físicas nos queixosos, são também elementos que se conjugam com as suas declarações e lhes conferem veracidade.

Em contrapartida, a testemunha L.S. não mereceu ao Tribunal qualquer credibilidade, não só porque o seu relato não se afigurou verosímil, como ainda por a sua versão contrariar a das outras testemunhas, que pareceram muito credíveis.

Por outro lado, apesar do arguido ter sido, também, atendido no Serviço de Urgência do Hospital Dr. N.M., no dia seguinte a estes factos (cfr. fls. 201 e v.º), não resulta evidente a existência de uma qualquer relação entre tal atendimento e a situação do dia 04-03-2014 descrita nos autos, mormente o envolvimento físico que teve com o A. G..

Outrossim, quanto ao elemento subjectivo inerente às condutas do recorrente concluiu-se pela sua verificação de acordo com um juízo de verosimilhança, assente nas regras da experiência comum e no confronto com a demais factualidade objectiva apurada.

Além do mais, inexistem dúvidas de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (cfr. Art.º 127º do C.P.Penal).

Ora, esta livre apreciação da prova não se consubstancia num livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, realizada pelo julgador, mas sim numa apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza, em geral, de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo também ela, em geral, objectivável e motivável.

Por conseguinte, em face do que acaba de se expender, mais nada resta senão concluir que, na verdade, assim aconteceu in casu.

Sendo, também, inequívoco que as provas são apreciadas, não pelo que isoladamente significam, mas pelo valor que assumem no complexo articulado de todas elas.

Não se verificou, portanto, qualquer situação de non liquet em questão de prova que devesse ter sido valorada a favor do recorrente.

Pelo que, se torna forçoso referir que a sentença em crise não violou o princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência, isto pela simples razão de que ao tribunal jamais se colocou uma situação de dúvida insanável sobre os factos relevantes para a decisão.

Nestes termos, não se vislumbra a ocorrência de qualquer erro notório na apreciação da prova.

E dizemos isto, desde logo, porque, tendo em conta os factos provados, de modo algum, se pode, necessária e logicamente, chegar à conclusão de que o arguido A. deveria ter sido absolvido de qualquer dos ilícitos que lhe foram imputados, nos termos pretendidos.

Destarte, constatando-se inexistir quer este, quer o precedente, bem como o outro vício previsto no Art.º 410º, n.º 2 do C.P.Penal, é de concluir não haver lugar ao reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do Art.º 426°, n.º l do mesmo Código.

No que diz respeito à derradeira questão, impõe-se, desde logo, salientar que a moldura da pena de prisão que, em abstracto, corresponde ao crime de ofensa à integridade física qualificada, em causa nos autos, vai de 1 mês a 4 anos (cfr. Art.º 145º, n.º 1, alínea a), com referência ao Art.º 41°, n.º 1, ambos do C. Penal).

Sendo que, no que se reporta ao crime de ofensa à integridade física simples, a pena de multa, pela qual acertadamente se optou in casu, vai de 10 a 360 dias (cfr. Art.º 143°, n.º 1, com referência ao Art.º 47°, n.º 1, ambos do sobredito Código).

Por conseguinte, a respectiva medida concreta deve ser determinada, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa ao agente e das exigências de prevenção, considerada a finalidade das penas indicada no Art.° 40°, n.° l do C. Penal e atendendo, ainda, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a favor do arguido ou contra ele, designadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita (cfr. Art.°s 71º, n,°s l e 2 do predito diploma de direito substantivo penal).

No entanto, a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, sendo certo que a sua individualização pressupõe uma proporcionalidade entre a pena e a culpabilidade.

Por isso, não esquecendo as exigências de prevenção e reprovação do crime, a execução da pena deve manter-se num sentido pedagógico e ressocializador, não podendo a mesma, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (cfr. Art.° 40°, n.º 2 do C. Penal).

É, pois, a culpabilidade que irá não só fundamentar como limitar a pena.

Esta, na verdade, será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade, não podendo, igualmente, excedê-la.

Mas, para além da função repressiva, medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas, de protecção de bens jurídicos e de reintegração do agente na sociedade.

A pena deverá, assim, desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem dedicar-se à prática delituosa, por uma parte e, ressocializar o delinquente, por outra.

Verifica-se, pois, que a sentença recorrida teve em devida conta o que acaba de se enunciar.

Deste modo, atendeu-se, por conseguinte, a que, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, o grau de ilicitude se revestiu de uma gravidade elevada, tendo em conta não só que a agressão foi perpetrada sobre quem, na altura, ainda era cônjuge do recorrente, mas também o circunstancialismo que a rodeou.

Por sua vez, já no que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física simples, impõe-se considerar a existência tão-somente de uma ilicitude de nível mediano, isto não obstante ter incidido sobre o ofendido A. G., quando este queria impedir o arguido A. de agredir novamente a sua mulher. 

Constatou-se, também, que a necessária culpa, no que concerne a ambos os ilícitos, revestiu a modalidade mais intensa - dolo directo.

Mais ressalta, ainda, dos elementos constantes dos autos, elevadas necessidades de prevenção geral que se prendem, sobremaneira, com a projecção negativa que o sobredito tipo de crimes têm na sociedade em geral por revelarem um censurável desrespeito pelo próximo.

Do que só pode decorrer uma necessidade de inequívoca estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência das normas infringidas.

Por outro lado, ponderando a ausência de antecedentes criminais da recorrente, somos da opinião que não se verificam, in casu, particulares exigências de prevenção especial.

Se bem que não possa deixar de se relevar, de forma negativa, a postura que o mesmo exibiu, designadamente ao não assumir a sua apurada conduta.

O que só pode levar à extrapolação de que não logrou interiorizar o respectivo desvalor. 
 
Daí que se entenda adequado à gravidade de cada crime manter as penas de 10 meses de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de 1 ano, e de 80 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, aplicadas pelo Tribunal a quo.

Assim, igualmente nesta parte, verifica-se carecer de fundamento o presente recurso.

In fine, torna-se forçoso referir, ainda, que inexiste violação de qualquer disposição legal e, muito menos, dos preceitos que na respectiva motivação foram mencionados.
*

Pelo exposto, acordam os juízes em negar provimento ao recurso, confirmando, na sua plenitude, a decisão recorrida.
               
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


Lisboa, 14-03-2017

                                                                   
(Relator):Simões de Carvalho
(Adjunto):Margarida Bacelar