Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2/20.0PJLRS-J.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: FASE DE INQUÉRITO
EXAME PERICIAL DE PSIQUIATRIA FORENSE
PARA EFEITO DE GRADUAÇÃO DA MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Tendo o arguido requerido em sede de inquérito que fosse sujeito a Exame Pericial de Psiquiatria Forense com a finalidade de ser atentido para efeitos de eventual graduação, valoração do dolo em sede de medida da pena (a que se reporta o art.º 14.º do Código Penal), e, tendo sido o despacho recorrido que indeferiu tal, sido proferido em sede de inquérito e não tendo o Recorrente ainda sido sujeito a julgamento e, muito menos, condenado, não é de todo na fase de inquérito oportuno e pertinente a sua feitura, pois será só ao Tribunal de julgamento que compete apreciar e decidir da eventual necessidade da realização de perícia psiquiátrica para efeitos de graduação e valoração do dolo com vista à determinação da medida da pena, e não na fase ainda de inquérito.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1–No Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 3, Autos de Inquérito n.º 2/20.0PJLRS, onde é arguido e aqui recorrente AA, requereu este que fosse sujeito a “exame pericial de psiquiatria forense, a efectuar pelo Instituto de Medicina Legal”.

Porém, este requerimento veio a ser indeferido pelo Mm.º Juiz “a quo” com a prolação do seguinte despacho:
“(...)
Requerimento de fls. 9207 a 9210 apresentado pelo arguido AA: tomei conhecimento.
O arguido, relacionado com o seu consumo/dependência de cannabis e de drogas duras, requereu a realização de perícia psiquiátrica forense levando em conta a eventual graduação/valoração do dolo em sede de medida da pena.
Tendo em conta o requerido propósito de realização de exame pericial relacionado com a graduação da medida da pena, secunda-se a posição de fls. 9273 assumida pelo Ministério Público, considerando-se que o requerido não assume qualquer relevância/pertinência para a presente fase processual de inquérito.
Em face do exposto indefere-se o requerido. (...)”.

***

Não conformado com esta decisão, da mesma interpôs o arguido o presente recurso, de cuja fundamentação extraiu as seguintes conclusões:
“(...)

1. Como se alegou oportunamente, indícios existem nos autos que o arguido deveria ser sujeito a Perícia Psiquiátrica, o que fez nos seguintes termos: O arguido nestes autos, encontra-se a ser assistido, há meses nos Serviços Clínicos do EPL, em virtude de problemas relacionados com o consumo de cannabis e de drogas duras (cocaína, entre outras), e sua dependência, o que o afectou de modo negativo e do ponto de vista do pensamento consequencial, - tendo sido julgado em Maio deste ano no Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo Local Criminal de Portimão - Juiz 1 - no âmbito do Processo 1791/19.0PAPTM - onde, por sentença transitada em julgado, foi judicialmente reconhecida a sua adicção a cannabis, sendo ainda decidida a consequente “extração de Certidão com remessa á Comissão de Dissuasão da Toxicodependência competente”.
2. Prosseguindo-se então nessa fundamentação: levando em conta a eventual graduação/valoração do dolo em sede de medida da pena (a que se reporta o art.° 14.° do Código Penal), requer-se que o ora arguido seja sujeito a Exame Pericial de Psiquiatria Forense, a efectuar pelo Instituto de Medicina LEGAL, nos termos do disposto nos artºs. 151.°, 152.°, 153.°, 154.°. 157.° e 159.° do CPP e art.° 32.º, n.º 1 da Lei Fundamental.
3. Pelo que, existindo indícios razoáveis de que a saúde mental do arguido se encontrava afectada, impor-se-ia decisão diferente do douto Tribunal, “máxime” que ordenasse a apontada perícia.
4. Uma vez que vários indícios existem nos autos de que o arguido é consumidor de haxixe sendo assistido medica e medicamentosamente pelos Serviços Clínicos do EP onde se encontra.
5. III - Da ausência de Fundamentação - Violação do art.° 97.º, n.º 5 do CPP: Ao indeferir a requerida realização de perícia, a única razão invocada no recorrido despacho foi a de que “o requerido não assume qualquer relevância/pertinência para a presente fase processual de inquérito”. (SIC) a pág. 2 do recorrido despacho proferido em 7.09.2021
6. Ora, a justificação apresentada é uma “não justificação” porque nada adianta, nem explica porque razão nas fases de Inquérito seriam interditas as Perícias... nem sequer se fundamentando de direito a razão de tão drástica decisão de indeferimento “tout court”. E muito menos, qual a base legal desse mesmo indeferimento.

7.Essa não justificação equivale, no caso “subjuditio” a uma autêntica e efectiva ausência de fundamentação, o que torna nulo o recorrido despacho, por violação do disposto no art.º 97.º, n.º 5 do CPP.
8. O princípio da investigação permite uma indagação pericial e que esse mesmo princípio incide não apenas sobre a “imputação dos factos da acusação, pública ou particular e da contestação” como ainda “à determinação das incriminações e das sanções e à fixação da responsabilidade civil. Cf. Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário... 4.ª Edição actualizada, UCP - 2011, a pág. 59 anotação 37 ao art.° 4.°
9.O douto despacho recorrido violou as seguintes disposições legais:-art.° 61.°, n.° 1, alínea g) do CPP. e ainda os art. 151.°, 152.°, 153.°, 154.°. 157.° e 159.° do CPP e art.° 32.°, n.° 1 da Lei Fundamental, uma vez que o arguido tinha legitimidade, estava em tempo e fundamentou devidamente a necessidade da requerida perícia.
Termos em que, não tanto pelo sucintamente alegado, como pelo que V.ª Ex.ªs doutamente hão-de suprir, ao revogar o douto despacho recorrido nos termos peticionados, e ordenando a necessária PERÍCIA, exercerão os Venerandos Desembargadores a mais criteriosa (...).

***

Notificado da interposição do recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva “resposta”, onde, a final, formulou as seguintes conclusões:

“(...)
1. O arguido AA, inconformado com o despacho datado de 07/09/2021, que indeferiu o seu pedido de perícia psicológica, veio dele interpor recurso.
2. A Motivação apresentada pelo Recorrente e respectivas Conclusões (consabidamente delimitadoras do objecto do recurso) avançam, entre o mais, com a i) o arguido devia ser sujeito a perícia psiquiátrica; ii) Violação do artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal - Nulidade de falta de fundamentação.
3. Na fase de inquérito, uma vez que não existem quaisquer indícios de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do Recorrente, a realização de perícia psiquiátrica revela-se desnecessária, representando não mais do que desperdício dos recursos do Estado.
4. O Recorrente acaba por “defender” a improcedência do seu próprio recurso, quando argumenta «levando em conta a eventual graduação/valoração do dolo em sede de medida da pena (a que se reporta o art.º 14.º do Código Penal), requer-se que o ora arguido seja sujeito a Exame Pericial de Psiquiatria Forense...».
5. O douto despacho recorrido foi proferido em sede de inquérito, não tendo o Recorrente ainda sido sujeito a julgamento e, muito menos, condenado.
6. É ao Tribunal de julgamento que compete apreciar e decidir da eventual necessidade da realização de perícia psiquiátrica para efeitos de graduação/valoração do dolo com vista à determinação da medida da pena.
7. Não existe falta de fundamentação no despacho recorrido, termos em que não houve violação do disposto no artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
8. O Recorrente omitiu propositadamente o início do douto despacho judicial, apenas referindo a parte que lhe interessa.
9. Pode ler-se no despacho que «Tendo em conta o requerido propósito de realização de exame pericial relacionado com a graduação da medida da pena secunda-se a posição de fls. 9273 assumida pelo Ministério Público, considerando-se que o requerido não assume qualquer relevância/pertinência para a presente fase processual de inquérito».
10. Com efeito, o requerido não tem qualquer fundamento legal, considerando que nos encontramos na fase de inquérito, pelo que a realização de perícia psiquiátrica para efeitos de determinação da medida da pena, salvo o devido respeito, revela-se precoce e inútil.
11.Em suma, o despacho recorrido não merece qualquer censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. não deixarão de douta mente suprir.
Deve o recurso apresentado pelo arguido AA ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se o despacho sindicado nos seus precisos termos. (...)”.


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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito não suspensivo.

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Neste Tribunal a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, ao qual, também, foram correctamente fixados o efeito e o regime de subida.

Porém, por manifesta improcedência, o recurso deve ser rejeitado.

2–Vejamos:
Dispõe o art.° 420.°, n.° 1, al. a), que “o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência”.
Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, pág. 116, sgs., 6.ª Edição, dizem que “(...) os recursos são havidos pelo Código como remédios jurídicos que não podem ser utilizados com o único objectivo de obter uma justiça melhor, só relevando a eventual injustiça, produto de vício de julgamento, quando seja resultado de violação de direito material, tendo de ser indicados expressamente no recurso os erros in judicando ou in procedendo em que se traduzem os vícios de julgamento invocados, dentro de um critério orientador do regime de recursos a que já se chamou de lealdade processual.
Pretendeu-se, assim, que os recursos não sejam um modo de entorpecimento da justiça, um monólogo com vários intérpretes ou um jogo de sorte ou azar.
O recorrente ficou, pois, com o ónus de estrita motivação do recurso, o qual, visando matéria de direito, compreende a indicação das normas jurídicas violadas, o sentido em que, no seu entendimento, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada e, em caso de erro de determinação da norma aplicável, a norma que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada; e, versando matéria de facto, dos concretos pontos factuais considerados incorrectamente julgados, das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e das provas que devem ser renovadas (...)”.
Por outro lado, dizem, ainda, que “(...) os Tribunais Superiores podem e devem seleccionar os recursos de que conhecem por meio de um processo simplificado, por ter por manifesta a sua improcedência”.
Assim, a rejeição do recurso pode assumir-se, respectivamente, nas vertentes formal e substantiva.
Aquela, prende-se com a “insatisfação dos requisitos prescritos nos nºs. 2 e 3 do art.º 412.º [especificações nos recursos em matéria de direito ou em matéria de facto, depois de esgotadas as possibilidades de aperfeiçoamento, art.º 412.º, n.º 1, al. c)] ou verificação de causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do art.º 414.º, n.º 2 (irrecorribilidade da decisão, intempestividade do recurso, falta de condições para recorrer, falta ou insuficiência da motivação) – art.º 420.º, n.º 1, al. b). Esta rejeição obsta ao conhecimento do mérito do recurso”.
Esta, a rejeição substantiva, por sua vez, “ocorre quando é manifesta a improcedência do recurso – art.º 420.º, n.º 1, al. a). Pressupõe a apreciação do mérito, mas através de um procedimento muito mais simplificado do que o usual”.
O Tribunal de recurso conclui, assim, que “este é improcedente e de forma manifesta, o que significa que, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos Tribunais Superiores, é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica”.
Ora, o caso dos autos compreende-se na possibilidade “substantiva ou material” de rejeição do recurso.

O arguido/recorrente apresentou nos autos o seguinte requerimento:
“(...) de todo o circunstancialismo que resulta dos autos, onde o arguido parece surgir apenas como um “colaborador” não lhe sendo propriamente imputada a autoria material de actividades de tráfico, nem esta resultando “prima faciae” dos autos, - levando em conta a eventual graduação/valoração do dolo em sede de medida da pena (a que se reporta o art.° 14.° do Código Penal), requer-se que o ora arguido seja sujeito a Exame Pericial de Psiquiatria Forense, a efectuar pelo Instituto de Medicina LEGAL (...)” (sombreado nosso).

Ora, como é por demais evidente, o requerimento em causa é todo ele dirigido à sentença final, visando-se, através do possível reconhecimento da existência de patologias ou de particulares características psíquicas, que o seu grau de culpa seja valorado em conformidade e a respectiva pena, a haver lugar à mesma, seja determinada em medida ajustada às circunstâncias.

Assim, ante o conteúdo do referido requerimento, outra e melhor fundamentada não poderia ter sido a decisão a proferir.

Está-se, ainda, na fase de inquérito, onde a referida perícia é prevista, tão só, para as decisões relativas à prisão preventiva ou OPHVE, como bem resulta dos artºs. 160.º, n.º 1 e 213.º, n.º 4 do C.P.P., sendo que, mesmo nestes casos, como dispõe este último preceito, “(...) o juiz pode solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade (...)”. Assim, se “pode”, não é obrigado a fazê-lo, ainda que o arguido o requeira.

Ora, não foi este o fim visado pelo arguido no requerimento em causa, como já foi salientado.

Deste modo, decidiu o tribunal “a quo” da forma que lhe era imposto fazer, sendo por demais bastante a justificação de que “(...) o requerido não assume qualquer relevância/pertinência para a presente fase processual de inquérito (...)”, tanto mais que a lei até diz que “não é lícito realizar no processo atos inúteis” – art.º 130.º do C.P.C..

Por tudo isto, entende-se ser de rejeitar o recurso, por manifesta improcedência.

3–Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em rejeitar o recurso, face à sua manifesta improcedência.
Nos termos do art.º 420.º, n.º 3 do C.P.P., condena-se o recorrente no pagamento da importância equivalente a 3 UC.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.
Notifique.


Lisboa, 16/12/2021



Almeida Cabral
Guilherme Castanheira