Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
125/13.2TCFUN-A.L1-6
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: PLANO DE REVITALIZAÇÃO
AVALISTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Em caso de situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, pode o devedor requerer a instauração de PER (cfr. art.ºs 17.º-A a 17.-I do CIRE), regime legal inovador que visa privilegiar a finalidade de reestruturação/recuperação das empresas relativamente à satisfação dos credores.
- Concede-se, assim, ao devedor a possibilidade de estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.
- O regime da obrigação cartular é distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstração, em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem.
- O aval é uma garantia da obrigação cambiária, visando garantir o seu pagamento, sendo o avalista apenas sujeito da relação subjacente ao ato cambiário do aval. Assim, a obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado.
- As vicissitudes da relação subjacente não se repercutem na obrigação cartular do dador de aval, quedando-se esta inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, contra o avalista para obter a satisfação do seu crédito.
- A aprovação/homologação de um PER, com moratória (ou diversos prazos e taxas de juros de mora) para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável/oponível pelos avalistas contra quem foi instaurada a respetiva execução.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – Relatório:


Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que, a eles e a outro, move o “B... PLC”, com os sinais dos autos, vieram os Executados J..., V..., R..., e J..., todos com os
sinais dos autos, deduzir oposição a tal execução, alegando, para
tanto, em síntese:
- como avalistas da subscritora das livranças dadas à execução, podem recusar o cumprimento da obrigação enquanto não forem executados todos os bens da devedora principal (a sociedade “J...”);
- é ainda lícita a recusa dos avalistas se provarem que o crédito não foi satisfeito por culpa do credor;
- a sociedade emitente das livranças apresentou-se a um processo de revitalização (doravante PER), no âmbito do qual o aqui credor/Exequente reclamou o seu crédito (sobre a sociedade subscritora/devedora), cujo sucesso ou insucesso pode determinar a desnecessidade e impedimento de executar os seus patrimónios, pois, mesmo que esse processo termine com a insolvência daquela sociedade o seu património pode ser suficiente para pagar toda a dívida exequenda;
- não pode reclamar-se o crédito no PER contra a revitalizada e simultaneamente na execução contra os avalistas daquela, pois tal poderia levar ao recebimento do montante do crédito nas duas instâncias, como consequente enriquecimento à custa dos Executados/avalistas;
- só após os eventuais pagamentos que viessem a ser efetuados no processo de insolvência – se fosse esse o caso – se ficaria a saber se o Exequente receberá, ou não, o seu ali reclamado crédito;
- e só em caso de tal não recebimento, poderia o Exequente avançar com a execução contra os avalistas/Opoentes.

Concluem pela procedência da oposição, por provada, com as legais consequências.

O Exequente contestou a oposição, pugnando pela improcedência dos argumentos invocados e concluindo pela total improcedência de tal oposição.

Após, os referidos Executados/Opoentes vieram apresentar articulado superveniente, alegando, no essencial, que:
- no PER da sociedade executada foi aprovado um plano, com redução e alteração dos prazos de pagamento das dívidas daquela, onde se inclui o valor reclamado na execução a que esta oposição se reporta;
- com a aprovação deste plano a obrigação exequenda transmudou-se ou extinguiu-se, passando a existir um novo título, pelo que aquela deixou de existir e, por isso, é inexigível;
- da homologação do PER decorre que os títulos cambiários dados à execução perderam todos os seus efeitos, encontrando-se o exequente impedido de exigir o pagamento decorrente da relação cambiária;
- os Opoentes não aceitaram garantir a nova obrigação, constituída no PER.

Notificado, o Exequente respondeu, pugnando, para além do mais, pela improcedência dos argumentos invocados em sede de articulado superveniente.

Foi proferido despacho saneador, com dispensa de seleção da matéria de facto.

Realizada a audiência de julgamento, foi decidida a matéria de facto controvertida, por despacho, que não foi objeto de reclamação.

Seguiu-se a sentença, onde a oposição à execução foi julgada improcedente, por não provada, determinando-se o prosseguimento, incólume, da execução.

Inconformados, os Oponentes V..., R... e J... apelaram do assim decidido, tendo apresentado alegações, onde formulam as seguintes conclusões:

«I - A sociedade emitente da livrança em questão foi objeto de um processo de revitalização que presentemente corre os seus termos no 3º juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal, sob o n.º 4895/12.7 TBFUN;
II - Nesse processo de revitalização, o exequente reclamou o seu crédito sobre a sociedade devedora;
III. No processo de revitalização, o exequente reclamou contra a revitalizada J.... exatamente o mesmo valor que agora vem reclamar contra os ora executados, enquanto avalistas;
IV. O crédito da exequente consta do plano discutido, aprovado e homologado, no âmbito do PER ;
V- De acordo com esse Plano de Revitalização, o prazo de cumprimento respeitante à livrança emitida pela sociedade  Revitalizada, foi  alterado, para  um período muito mais  longo;
VI- Uma vez que esse  prazo  de cumprimento da obrigação emergente da  livrança  emitida pela  Revitalizado  foi  alterado, tal facto tem  repercussões  imediatas  na  relação processual  que  se estabeleceu entre o  exequente   e os avalistas;
VII- Dito de outro modo, não sendo neste momento exigível à sociedade emitente da livrança,  a obrigação  constante desta,  também  não é  possível  fazer semelhante  exigência perante os  avalistas,  ora   recorrentes;
VIII - A obrigação em causa, por motivo superveniente, que foi a Aprovação do Plano de Revitalização, tornou-se inexigível perante a emitente da livrança e consequentemente, também se tornou inexigível perante os avalistas;
IX-Ao julgar improcedente a oposição deduzida pelos recorrentes, o tribunal a quo violou o artigo 17º  F,  nº 6, do CIRE e  ainda a alínea  e) do  artº 729º  do actual CPC.».
Pugnam pelo provimento do recurso, julgando-se procedente a oposição deduzida e declarando-se extinta a presente instância, por inexigibilidade da obrigação perante os avalistas/Recorrentes, tudo com as legais consequências.

A parte Recorrida contra-alegou, concluindo pela total improcedência do recurso.

Este foi admitido como de apelação, com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados.
Dispensados os vistos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito do Recurso:

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes – nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aplicável na fase recursória (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([1]) –, está em causa na presente apelação saber:
- Se a obrigação exequenda, por ter sido objeto de alteração/aprovação/homologação no âmbito do PER da devedora/avalizada, tornando-se inexigível perante esta, também se tornou inexigível perante os respetivos avalistas, aqui Opoentes;
- Devendo, por isso, julgar-se extinta a execução contra estes.

III – Fundamentação:

            A) Matéria de facto
Na 1.ª instância foi considerada – sem controvérsia nesta parte – a seguinte factualidade como assente:
«A. A sociedade emitente da livrança foi objeto de um processo de revitalização que presentemente corre os seus termos no 3º juízo cível do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal, sob o n.º 4895/12.7 TBFUN (artigo 4º da petição inicial de oposição).
B. Nesse processo de revitalização, a exequente reclamou o seu crédito sobre a sociedade devedora (artigo 5º da petição inicial de oposição).
C. No processo de revitalização, o exequente reclamou contra a revitalizada J..., exatamente o mesmo valor que agora vem reclamar contra os ora executados, enquanto avalistas (artigo 6º da petição inicial de oposição).
D. O crédito da exequente consta do plano discutido, aprovado e homologado, no âmbito do PER (artigo 32º da contestação).
E. O referido crédito contou, desde logo, com o voto negativo da exequente (artigo 33º da contestação).
F. No passado dia 04 de Novembro de 2012, a J... requereu, no Tribunal Judicial do Funchal, um Processo Especial de Revitalização (artigo 2º do articulado superveniente).
G. Processo que foi distribuído no 3º Juízo Cível sob o n.º 4895/12.7TBFUN (artigo 3º do articulado superveniente).
H. No âmbito do dito processo a sociedade J... apresentou e negociou com os seus credores um Plano de Revitalização (artigo 4º do articulado superveniente).
I. Plano que, submetido à votação dos credores, veio a ser aprovado (artigo 5º do articulado superveniente).
J. No âmbito desse Plano foi apresentada e aprovada a proposta de pagamento dos créditos da aqui exequente (artigo 6º do articulado superveniente).
K. O Plano mereceu a aprovação dos credores (artigo 7º do articulado superveniente).
L. Na sequência da referida aprovação, o tribunal por decisão de 27-05-2013 homologou o Plano de Recuperação (artigo 8º do articulado superveniente).
M. Inconformada com essa decisão, a sociedade S... dela apresentou recurso, do qual veio a desistir posteriormente (artigos 9º e 10º do articulado superveniente).
N. Por despacho datado de 3 de Julho de 2013, o Tribunal deferiu o requerimento de desistência do recurso apresentado e julgou extinta a instância recursiva (artigo 11º do articulado superveniente).
O. Despacho que foi dado a conhecer às partes por notificação elaborada eletronicamente na data de 05-07-2013 (artigo 12º do articulado superveniente).
P. A decisão de homologação do plano de revitalização transitou em julgado (artigo 16º do articulado superveniente).
Q. Nos presentes autos vem a Exequente peticionar a cobrança coerciva da divida exequente decorrente das duas livranças que constituem o título executivo (artigo 18º do articulado superveniente).
R. Livranças, essas, com vencimento anterior ao pedido de Revitalização (artigo 19º do articulado superveniente).
S. O despacho de nomeação do Sr. Administrador Judicial Provisório no âmbito do Processo Especial de Revitalização foi publicado no dia 08.11.2012 (artigo 20º do articulado superveniente).
T. Assim, no decurso dessas negociações, as partes acordaram que o pagamento da dívida inicialmente titulada pela livrança executada nos autos fosse realizado nos moldes, termos e condições que viessem a resultar da reestruturação do passivo da J.... operada no Plano de Revitalização (artigo 22º do articulado superveniente).
U. A J.... propôs aos seus credores a substituição de todas as suas dívidas por uma só dívida, renegociada e reestruturada, e a ser paga nos termos do Plano de Revitalização, proposta que foi aceite pela maioria dos seus credores e que vincula todos os credores (artigos 23º e 24º do articulado superveniente).
V. Obrigando-se a proceder ao pagamento das quantias previstas no Plano, em moldes diversos dos constantes dos respetivos títulos ou documentos de suporte (artigo 26º do articulado superveniente).
W. O crédito ora negociado tem um prazo de vencimento distinto e vence juros de acordo com a taxa fixada no Plano e não de acordo com a dívida anterior (artigos 27º e 28º do articulado superveniente).
X. Não tendo sequer solicitado aos aqui oponentes a assinatura de qualquer declaração de manutenção dos títulos cambiários avalizados ou dos avales prestados ou outras garantias (artigo 37º do articulado superveniente).
Y.Nos autos de Processo Especial de Revitalização foi reconhecido ao aqui exequente o valor do crédito reclamado nos presentes autos (artigo 69º do articulado superveniente).
Z. De acordo com o Plano de Revitalização aprovado o crédito do exequente será pago nas condições aí definidas (artigo 70º do articulado superveniente).
AA.Com a aprovação do Plano de Revitalização e sua homologação por sentença, foi alterado o prazo de cumprimento da obrigação (artigo 71º do articulado superveniente).
BB. A exequente remeteu para a J..., em 26 de novembro de 2012, carta a comunicar a sua intenção de participar nas negociações do PER (artigo 56º da resposta ao articulado superveniente).».

            B) O Direito:

Como já enunciado, a questão a decidir é a de saber se, tendo a obrigação exequenda sido objeto de alteração e homologação no âmbito do PER da devedora/avalizada, tornando-se, por isso, inexigível perante esta, tal inexigibilidade se estende aos avalistas/Opoentes.

Vejamos.

1. - O PER foi introduzido no CIRE ([2]), de forma inovadora, pela Lei n.º 16/2012, de 20-04, que determinou o aditamento àquela codificação de um capitulo (com a epígrafe “Processo Especial de Revitalização”) contendo os art.ºs 17.º-A a 17.º-I, nos quais foi estabelecida a respetiva regulamentação jurídica, por aqui logo podendo perspetivar-se quanto à importância conferida a tal disciplina legal inovadora, tida por indispensável perante o volume de insolvências em Portugal, em ambiente de crise económica e financeira em que o País mergulhou.

Assim, em contexto de ajuda externa, assumido o “Memorando de Entendimento”, celebrado entre o Estado português e organismos internacionais (CE, BCE e FMI), veio o Governo de Portugal a aprovar a Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25-10, definindo diversos “Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores”.

Nessa sequência seria desencadeado o processo legislativo que conduziu à entrada em vigor da dita Lei n.º 16/2012, cuja alteração ao art.º 1.º (n.º 1) do CIRE veio apontar como preferencial a via da recuperação das empresas – em detrimento da via, anteriormente preponderante, da liquidação do património dos devedores –, exceto se tal não se afigurar possível, prevendo-se agora no n.º 2 do mesmo dispositivo legal que, em caso de situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, possa o devedor requerer a instauração do processo especial de revitalização (de harmonia com os ditos art.ºs 17.º-A a 17.-I do CIRE).

Quis, pois, com significado de monta, privilegiar-se a finalidade de reestruturação da empresa relativamente à satisfação dos credores: enquanto na versão originária do CIRE se privilegiou a finalidade de liquidação do património do devedor insolvente, atendendo ao interesse dos credores, estes a serem satisfeitos com o produto obtido, agora visa-se em primeiro plano a recuperação da empresa, com indireta satisfação dos seus credores, face à retoma por aquela da sua atividade normal para obtenção de resultados positivos ([3]).

A conclusão a retirar nesta sede é, pois, inequivocamente, a de que se quis privilegiar, neste contexto de crise e “morte”/extinção de empresas, a recuperação das empresas, designada por “revitalização”, partindo-se para o “primado da recuperação sobre a liquidação” ([4]).

Donde que disponha o art.º 17.º-A do CIRE destinar-se o processo especial de revitalização “a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização” (n.º 1, com itálico aditado), processo esse que “pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação” (n.º 2).

No centro da discussão sempre estará, pois, segundo o figurino adotado pelo legislador, uma manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, corporizada em declaração escrita, no sentido de encetarem negociações para revitalização do devedor através da aprovação de um plano de recuperação (cfr. art.º 17.º-C, n.º 1, do CIRE), perante o que o Tribunal deve logo, por despacho, nomear administrador judicial provisório (n.ºs 3 e 4 do mesmo art.º).

Na sequência, comunicando o devedor aos credores não subscritores daquela declaração escrita o início de negociações para revitalização, convidando-os a participar nas negociações (art.º 17.º-D, n.º 1, do CIRE), terão estes prazo de vinte dias para reclamar créditos, remetendo as reclamações ao administrador judicial provisório, ao qual cabe elaborar a lista provisória de créditos (n.º 2 do mesmo art.º).

Esta é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e objeto de publicação no portal Citius, podendo ser impugnada em cinco dias úteis, após o que o juiz decidirá sobre as impugnações que hajam sido apresentadas (n.º 3 do mesmo dispositivo legal).

Se não for objeto de impugnação, a lista provisória de créditos converte-se de imediato em definitiva (n.º 4 do mesmo preceito), dispondo os declarantes de prazo para concluir as negociações (n.º 5 do mesmo art.º), sendo que os credores decidem se pretendem, ou não, participar nessas negociações (cfr. n.º 7), em que participa o administrador judicial provisório, o qual orienta e fiscaliza o decurso dos trabalhos e a sua regularidade (n.º 9).

Concluídas as negociações, cabe então ao juiz homologar o plano de recuperação aprovado que lhe seja apresentado ou, ao invés, recusar tal homologação (n.ºs 1, 2 e 5 do art.º 17.º-F do CIRE), caso tenha adequado fundamento legal para tanto.

No caso dos autos, ocorreu homologação do plano aprovado, tendo a decisão homologatória transitado em julgado, contemplando os créditos da aqui Exequente/Oposta, com pagamento pela devedora das quantias previstas no plano em moldes diversos dos previstos nos respetivos títulos, incluindo prazo de vencimento distinto e nova modalidade de taxa de juros moratórios.

Quer dizer, e como vem provado, reconhecido ao Exequente/Apelado o valor do crédito reclamado, este, de acordo com o Plano de Revitalização aprovado, será pago nas (novas) condições aí definidas, com alteração, pois, do prazo de cumprimento da obrigação.

Sendo certo, de acordo com o disposto no art.º 17.º-F, n.º 6, do CIRE, que “a decisão do juiz vincula os credores”.

2. - É pacífico, por provado, que a Exequente deu à execução duas livranças, peticionando a cobrança coerciva da respetiva dívida exequenda, livranças essas, ambas elas, com vencimento anterior ao pedido de Revitalização.

Sendo o regime da obrigação cartular distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação da obrigação no título, literalidade, em que o título se define pelos exatos termos que dele constem, autonomia do direito do portador legítimo do título e abstração, em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem, basta à execução, fundada em título cambiário, a apresentação desse título e a não demonstração pelo demandado, no caso de título emitido/entregue em branco, de ter sido incumprido o pacto de preenchimento ([5]).

O aval, por sua vez, configura-se como uma garantia da obrigação cambiária, destinando-se a garantir o seu pagamento. Assim, o avalista não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o portador e o subscritor da livrança, mas tão só sujeito da relação subjacente ao ato cambiário do aval. A obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado, mantendo-se mesmo no caso de a obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, como resulta do disposto no art.º 32.º da LULLiv. ([6]).

Ante, pois, a dita natureza e características dos títulos cambiários enquanto títulos executivos, bem se compreende que o exequente, como portador legítimo do título, não careça de alegar no requerimento executivo a relação subjacente.

Com efeito, se o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada, certo é que a sua obrigação se mantém, até no caso de a obrigação garantida ser nula, a não ser que a nulidade decorra de um vício de forma (dito art.º 32.º da LULLiv.).

Daqui se extrai, por um lado, que a obrigação do avalista é formalmente subsidiária/acessória da obrigação garantida, por isso dotada de uma extensão e de um conteúdo que se aferem pela obrigação da pessoa avalizada, nos moldes constantes dos título, e, por outro lado, que a responsabilidade do avalista/garante é inequivocamente autónoma.

Como esclarecido no Ac. STJ, de 11/12/2012 – Aresto Uniformizador de Jurisprudência –, Proc. 5903/09.4TVLSB.L1.L1.S1 (Cons. Gabriel Catarino), disponível em www.dgsi.pt ([7]):
«O aval é um acto jurídico cuja função é a de garantir o pagamento do crédito cambiário, tendo como finalidade essencial reforçar a segurança do tomador na definitiva satisfação do crédito inscrito no título em que o aval é prestado.
(…)
Poder-se-á, assim, definir o aval como o negócio cambiário típico, por força do qual se oferece aos tomadores do título cambiário a garantia de uma pessoa, o avalista, formalmente dependente da de outro obrigado no título, o avalizado, mas configurada num plano substancial com carácter autónomo.
A garantia oferecida pelo avalista constitui-se ao mesmo tempo acessória e autónoma.
(…)
O aval é, pois, uma garantia dada pelo avalista à obrigação cambiária e não à relação extracartular. O aval é uma garantia autónoma (não é uma fiança): a obrigação do avalista é, por um lado, subsidiária ou acessória de outra obrigação cambiária ou da obrigação de outro signatário; no entanto, o aval é também um verdadeiro negócio cambiário, origem de uma obrigação autónoma; o dador de aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por quem dá o aval, mas assume a responsabilidade do pagamento da letra.
O avalista não detém uma posição acessória em relação à obrigação garantida …
 (…)
A posição doutrinal mais recente, bem como a jurisprudência, tem vindo a afirmar a natureza autónoma e independente do aval relativamente à obrigação avalizada, ainda que formalmente dependente. [ Cfr. neste sentido o Ac. deste Supremo Tribunal de 01-07-2003 (Conselheiro Azevedo Ramos), in www.stj.pt em que se doutrinou “A obrigação do avalista é materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente.” ]
(…)
Ao tratar-se de um acto cambiário a obrigação que nasce do aval é abstracta, isto é, prescinde da causa na sua relação circulatória. A qualificação da garantia pessoal fundamenta-se na adição (aglutinação) de um novo sujeito a uma ligação objectiva prévia e não ao nexo pessoal entre o avalista e o avalizado. Efectivamente, o aval, qual garantia objectiva não se vincula com a pessoa nem com a obrigação avalizada, mas tão só porque, singelamente, é uma garantia de pagamento de uma obrigação que objectivamente emerge do título. De modo que a abstracção do aval é idêntica às demais obrigações cambiárias posto que esta dá vida justamente a uma relação cartular dessa qualidade, independente e diferente.
(…)
Não se permite ao avalista que se valha das excepções pessoais do avalizado, já que a sua obrigação é independente e o direito do terceiro é autónomo;
(…)
Trata-se, outrossim, de uma garantia objectiva para pagamento do título sem vinculação com a obrigação avalizada, excepto quanto à existência desta. Elimina-se, pois, o carácter subjectivo (este é a vinculação com a obrigação de uma determinada pessoa) do aval para se tornar objectivo (quer dizer uma obrigação abstracta, conforme a literalidade do documento). Trata-se de uma garantia cambiária típica, dado que a obrigação do avalista se encontra desligada do avalizado; a obrigação deste torna-se abstracta e literal como direito autónomo para o portador do documento, se bem que existindo uma obrigação formal com o acto avalizado se considere como um nexo de posição, sem que se requeira uma substancial posição entre ambas as obrigações cambiárias. Em virtude disso, o avalista assume uma obrigação directa e pessoal, não com o do seu avalizado, e portanto responde, directa e pessoalmente, perante o credor cambiário, pelo pagamento do título e não pelo cumprimento deste. O avalista não assegura que o avalizado pagará, mas sim que o título será pago; não participa da obrigação de outros, mas, ao invés, fá-la própria (non alienae obligationi accedit sed alienam facit propriam); a designação da pessoa a favor a quem se presta o aval tem tão só a finalidade de fazer assumir ao avalista uma responsabilidade cambiária de igual grau que a do avalizado.
(…)
Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou da livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente segregando um feixe de obrigações e deveres que, do nosso ponto de vista, não são passíveis de denúncia.».

Em sentido semelhante se vêm pronunciando outros arestos dos nossos Tribunais superiores ([8]).

Ora, perante a descrita autonomia da responsabilidade dos aqui avalistas/garantes, é inequívoco – salvo o devido respeito por diverso entendimento – que a dita homologação do PER da devedora avalizada, se a favorece (desde logo, em termos temporais, através de um plano de recuperação conducente à sua revitalização), em nada altera a situação de garantes dos ora Opoentes, os quais, enquanto avalistas, não podem opor ao credor/Exequente as alterações ocorridas na relação subjacente, a que foi objeto do PER, pois que sujeitos estritamente à relação cartular, posto que a dívida se encontra ainda por pagar.

É que o PER, contendo um regime de proteção do devedor em dificuldades perante os seus credores, não deixa de traduzir uma medida com um cariz mais ou menos gravoso para tais credores, pelas suas consequências para estes (sacrifícios inerentes), nada justificando que, fora do âmbito daquelas concretas dificuldades e majorando esse carácter gravoso, as consequências patrimoniais nocivas se estendam aos avalistas do beneficiário do PER ([9]).Bem decidiu, pois, a sentença recorrida, que nenhuma censura merece, antes improcedendo as conclusões em contrário dos Recorrentes.

IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Em caso de situação económica difícil ou de insolvência meramente iminente, pode o devedor requerer a instauração de PER (cfr. art.ºs 17.º-A a 17.-I do CIRE), regime legal inovador que visa privilegiar a finalidade de reestruturação/recuperação das empresas relativamente à satisfação dos credores.
2. - Concede-se, assim, ao devedor a possibilidade de estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização.
3. - O regime da obrigação cartular é distinto dos demais negócios jurídicos, nele sobressaindo os critérios da incorporação, literalidade, autonomia e abstração, em que a existência e validade da obrigação prescinde da causa que lhe deu origem.
4. - O aval é uma garantia da obrigação cambiária, visando garantir o seu pagamento, sendo o avalista apenas sujeito da relação subjacente ao ato cambiário do aval. Assim, a obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado.
5. - As vicissitudes da relação subjacente não se repercutem na obrigação cartular do dador de aval, quedando-se esta inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária, contra o avalista para obter a satisfação do seu crédito.
6. - A aprovação/homologação de um PER, com moratória (ou diversos prazos e taxas de juros de mora) para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável/oponível pelos avalistas contra quem foi instaurada a respetiva execução.

***

V – Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas da apelação e na 1.ª instância a cargo dos Opoentes/Apelantes.

Escrito e revisto pelo relator.
Elaborado em computador.


Lisboa, 04/06/2015


José Vítor dos Santos Amaral
Regina Almeida
Maria Manuela Gomes



([1]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença de fls. 353 a 358 dos autos em suporte de papel, datada de 11/07/2014, bem como art.º 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, ambos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.). Tudo sem prejuízo, porém, do disposto no art.º 6.º, n.º 4, da mesma Lei, mormente quanto ao anterior processado destes autos de oposição à execução (com natureza declarativa).
([2]) Este aprovado pelo DLei n.º 53/2004, de 18-03, e alterado ainda pelos DLeis n.º 200/2004, de 1809, n.º 76-A/2006, de 29-03, n.º 282/2007, de 07-08, n.º 116/2008, de 04-07, e n.º 185/2009, de 12-08, contando, outrossim, com a alteração decorrente da Lei n.º 66-B/2012, de 31-12.
([3]) Cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, Ana Prata e outros, Almedina, Coimbra, 2013, p. 07. 
([4]) Vide Rui Pinto Duarte, A administração da empresa insolvente: rutura ou continuidade, em I Congresso da Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2013, p. 161, citado por Ana Prata e outros, op. cit., p. 08.      
([5]) Assim o Ac. do STJ de 30/09/2010, Proc. 2616/07.5TVPRT-A.P1.S1 (Cons. Alberto Sobrinho), em www.dgsi.pt.
([6]) Cfr. ainda o aludido Ac. do STJ de 30/09/2010.
([7]) Citação extensa, mas eloquente. 
([8]) Veja-se o Ac. STJ, de 26/02/2013, Proc. 597/11.0TBSSB-A.L1.S1 (Cons. Azevedo Ramos), em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I - O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado. II – O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.
III - A razão de ser do art. 32.º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma. IV - A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma. V - Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento. VI -
A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.» (itálico aditado). Assim também o Ac. STJ, de 30/10/2014, Proc. 16/13.7TBSCF-A.L1-A.S1 (Cons. Silva Gonçalves), também em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se: «I - A relação entre portador (exequente) e o avalista (executado) não constitui uma relação imediata, revelando, isso sim e sempre, uma relação mediata, deste circunstancialismo jurídico-positivo se inferindo que não é tolerado ao avalista, na oposição à execução que venha a deduzir, que faça valer quaisquer excepções fundadas nas relações pessoais com o avalizado. II - Deste modo, porque o plano de insolvência está, inexoravelmente, de fora da relação cartular configurada na livrança que se executa, esta ocorrência judicial não é susceptível de se impor na presente execução». Posição também defendida, por exemplo, nos Acs. Rel. Lisboa, de 19/09/2013, Proc. 877/13.0TVLSB.L1-8 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins), e de 26/02/2015, Proc. 516/13.9TBRMR-A.E1.L1 (Rel. António Martins), ambos em www.dgsi.pt. E no mesmo sentido já se pronunciava o Ac. Rel. Guimarães, de 04/12/2008, Proc. 2523/08.1 (Rel. Raquel Rêgo), em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I - Assegurando o cumprimento de uma concreta obrigação, a obrigação do aval não obedece à regra accessorium sequitur principale, pois que se mantém mesmo no caso de a obrigação garantida ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma. II - É, no fundo, uma garantia objectiva do próprio pagamento da letra, ou livrança, uma específica obrigação cambiaria de garantia, com regime próprio e que só num ou noutro aspecto se assemelhará à fiança do direito comum. III - Assim, a aprovação do Plano de Insolvência, com pagamento da dívida em prestações, de que beneficia a subscritora da livrança, não é invocável pelo recorrente avalista.”.
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