Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1495/09.2TYLSB-Q.L2-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
VENDA A NON DOMINO
INEFICÁCIA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os actos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, e tem natureza extintiva, operando a dissolução do vínculo contratual.
II- O acto transmissivo da propriedade concretizado após aquela resolução, constitui uma venda a non domino e é ineficaz em relação à Massa insolvente.
III- Regulado no artigo 473.º do Código Civil, o enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, o enriquecimento de alguém, obtido à custa do empobrecimento de outrem, não facultando a lei ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.
IV- Não existe enriquecimento sem causa quando, por força da resolução de um negócio em beneficio da massa, o transmissário posterior, que adquiriu a propriedade do imóvel após aquela resolução, entregou o imóvel objecto do negócio resolvido para ser apreendido para a massa insolvente.
V- Tanto mais que, no caso concreto, não existe enriquecimento da massa, que apenas viu regressar ao seu património algo que dele não devia ter saído, não tendo o transmissário/recorrente pago à ré massa insolvente qualquer valor, para que se possa afirmar a existência de um crédito sobre a massa.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
(…) S.A. intentou a presente acção de verificação ulterior de créditos contra Ladrilis Materiais de Construção e Decoração, Lda., a massa insolvente da Ladrilis e os seus credores, peticionando a condenação da massa insolvente a pagar-lhe a quantia de 150.000,00 euros, acrescida dos juros legais de mora, à taxa legal, computados desde 16/05/2018 até efectivo e integral pagamento, já vencidos à data da instauração da acção no montante de 11.852,05 euros. Mais requer que o seu crédito seja qualificado como crédito da massa insolvente, e se determine que o mesmo seja pago com prioridade sobre os créditos graduados.
Para tanto alegou, em suma, que pagou à sociedade Imobiliária (…), Lda. o preço de 150.000,00 euros pela aquisição de um imóvel, e que, por força da resolução operada pelo Sr. Administrador de Insolvência, confirmada por decisão proferida no apenso E, tem direito a receber da massa insolvente o preço pago, acrescido de juros de mora, porquanto entregou o imóvel à massa, que foi integrado na esfera jurídica da 2.ª ré, a qual não devolveu à autora o preço pago pela aquisição do dito imóvel, como se impunha nos termos do disposto no artigo 126.º do CIRE. Tal valor, alega, traduz um verdadeiro enriquecimento sem causa da 2.ª ré, pois recebeu o imóvel dos autos através da resolução operada pelo administrador, à custa do empobrecimento da autora, que perdeu o preço pago.
As rés foram regularmente citadas.
A ré Massa Insolvente veio apresentar contestação pugnando pela improcedência da acção, tendo alegado que a autora não reclamou o invocado crédito em sede de insolvência, o qual não se mostra aprovado nem sequer consta dos elementos contabilísticos da sociedade a existência de movimentos bancários que evidenciem tais pagamentos.
Foi proferido despacho saneador com selecção dos temas da prova e realizada a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente, e, em consequência, absolveu as rés do pedido formulado pela autora.
Inconformada, a autora interpôs o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
«1. Nos termos do artigo 126.º, n.º 1 do CIRE, operada a resolução em benefício da massa insolvente, deverá ser reconstruída a situação em que se encontrariam as partes se não tivessem celebrado o concreto contrato resolvido;
2. Ademais, conforme decisão judicial devidamente transitada em julgado, foi ordenado o cancelamento dos registos em nome dos adquirentes, o que motivou o cancelamento do registo da aquisição a favor da Apelante; - Cfr. Facto Provado n.º 12
3. Incorrendo o Tribunal a quo num erro de interpretação ao tratar o negócio que serviu de base à titularidade da Apelante como um negócio “alheio” ao que foi objeto de resolução;
4. Tal interpretação, cremos, não colhe, devendo se considerar igualmente resolvido pelo facto de ter sido cancelado o respetivo registo;
5. Ora, conforme referido e bem pelo Tribunal a quo, «Nos termos do art.º 433.º do Código Civil a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico tendo, via de regra, eficácia retroactiva (vide n.º 1 do art.º 434.º e n.º 1 do art.º 289.º ainda do Código Civil). Visando colocar as partes na situação em que estariam caso não tivessem celebrado o contrato, pretende-se, por esta via, restabelecer o “status quo ante”»;
6. Contudo, ao decidir no sentido constante da Sentença sob censura, o Tribunal a quo acaba por beneficiar injustificadamente a Massa Insolvente em clara contradição do princípio geral plasmado no artigo 473.º do Código Civil, conforme ficará, em nosso entender, de seguinte demonstrado;
7. Já que (e tendo em conta o regime legal constante dos artigos 289.º e 290.º do Código Civil) somente a Apelante cumpriu com a sua obrigação de restituição, furtando-se a Massa Insolvente em restituir o valor entregue pela Apelante aquando da aquisição do imóvel, conduta que foi, salvo melhor entendimento, indevidamente ponderada pelo Tribunal a quo;
8. Justamente, o Tribunal a quo ao considerar que, «(…) no caso concreto, a Autora adquiriu o imóvel alvo de resolução à sociedade Imobiliária do (…), Lda., por título de compra e venda, tendo pago a esta o preço de €150.000,00.
Como tal, não tendo sido a insolvente a receber o valor do preço pago, ou a massa insolvente, mas uma terceira sociedade, será esta que terá a obrigação de restituir à autora o preço que recebeu pela transmissão do imóvel e não a massa insolvente que não recebeu qualquer quantia por tal negócio celebrado entre duas sociedades estranhas à insolvência», salvo melhor opinião, o raciocínio protagonizado pelo Tribunal a quo não corresponde à logica subjacente ao instituto de enriquecimento sem causa, porquanto ignora que o único empobrecido da “cascata” de negócios resolvidos é a Apelante;
9. Neste sentido, é necessário, desde logo, identificar 2 sujeitos, a saber: o empobrecido e o enriquecido;
10. Configurando, claramente, a Apelante como empobrecida (extirpada do imóvel e do preço pago);
11. Quanto à posição de enriquecido resulta do entendimento do Tribunal a quo que tal posição pertence a sociedade que alienou o imóvel à Apelante e não a Massa Insolvente, o que, cremos, assenta em erro de direito;
12. Em suma, entende o Tribunal a quo que uma sociedade que aliena um imóvel recebendo determinada quantia pecuniária e que posteriormente a respetiva Massa Insolvente vê o direito de propriedade regressar totalmente a título gratuito para a sua esfera jurídica não se deverá considerar que a mesma enriqueceu…
13. Lógica que não merece, salvo melhor entendimento, qualquer acolhimento no nosso ordenamento jurídico;
14. Veja-se que a enriquecida identificada pelo Tribunal a quo (ou seja, a IMOBILIÁRIA DO (…)) efetivamente recebeu por parte da Apelante um concreto valor monetário, todavia em sentido inverso viu ser transferida da sua esfera jurídico o direito de propriedade relativo ao imóvel;
15. Pelo que não se poderá considerar que o seu “enriquecimento” careceu de justificação, sendo sim fruto do mais comum dos contratos, a compra e venda;
16. Entendendo o Tribunal a quo que não obstante a resolução operada pelo AI ter a capacidade de atingir negócios jurídicos realizados por terceiros alheios à relação primitiva objeto de resolução, já não teria como consequência a obrigação da Massa Insolvente a favor da qual foi operada a resolução restituir o terceiro na medida em que enriqueceu  injustificadamente;
17. Situação que de forma alguma se encontrava nos objetivos do legislador, caso contrário não teria ficado a constar a obrigação de reconstituir-se a situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado, remetendo claramente para o regime da resolução constante do Código Civil;
18. Sendo normalmente indicados como pressupostos no artigo 473.º do Código Civil: o enriquecimento de alguém; sem causa justificativa; à custa de outrem;
19. Ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo o pressuposto do enriquecimento de alguém encontra-se preenchido;
20. Em bom rigor podemos identificar nos presentes autos dois enriquecimentos distinto em momentos temporais diferentes: (i) a sociedade insolvente alienou o concreto imóvel recebendo em consequência determinada compensação económica, ou seja, num primeiro momento verificou-se um primeiro enriquecimento (justificado), por parte da ora Massa Insolvente; e (ii) posteriormente vê a Massa Insolvente regressar à sua esfera jurídica o mesmo imóvel que anteriormente alienou e pelo qual foi “recompensada”, contudo não se encontra associado a tal regresso qualquer contrapartida, regressando assim ao património da Massa um imóvel cujo valor de venda se fixou em € 150.000,00 sem ter, para o efeito, de despender de qualquer quantia;
21. Situação que se revela injusta, atentatória do princípio da boa-fé, e por isso desconforme com o ordenamento jurídico, o enriquecimento gratuito do património da Massa para o qual regressou o concreto imóvel;
22. Entendendo a melhor doutrina que no caso de resolução de atos onerosos fica a contraparte investida no direito de repetir o que prestou;
23. Assim verifica-se um verdadeiro enriquecimento sem causa da Massa, pois, conforme sobejamente referido supra, recebeu o imóvel dos autos através da resolução, à custa do empobrecimento da Apelante que perdeu o preço pago que recorde-se se fixou em € 150.000,00 montante que representa o enriquecimento da massa insolvente, constituindo assim uma dívida da mesma;
24. Deste modo, salvo melhor entendimento, mal andou o Tribunal a quo ao não considerar nos moldes supra descritos preenchido o concreto pressuposto;
25. Termos em que, a título de restituição do indevido, por enriquecimento sem causa, deveria o Tribunal a quo ter condenado a Massa Insolvente no pagamento à ora Apelante da quantia peticionada em sede da Petição Inicial que deu origem aos presentes autos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, constituindo assim o concreto crédito uma dívida da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 126.º e 51.º, n.º 1, alíneas c) e i), do CIRE.
26. Quanto à má-fé da Apelante vertida na douta sentença recorrida impera somente referir que o instituto do enriquecimento sem causa não faz depender a restituição daquilo que o enriquecido injustificadamente se locupletou da boa ou má-fé do empobrecido, razão pela qual tal fundamento não reveste aqui, em nosso entender, qualquer pertinência;
27. Nestes termos, salvo melhor opinião, padece a douta decisão de erro de direito, devendo ser anulada, substituindo-se a mesma por douta decisão que considere procedente a ação e, em consequência, deverá a Massa Insolvente ser condenada no reconhecimento e verificação do crédito da Apelante reclamado nos presentes autos e que se cifra no valor global de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescido dos legais juros de mora, à taxa legal, computados desde a 16 de maio de 2018 até efetivo e integral pagamento e cujos juros vencidos à data de interposição da presente ação ascendiam à quantia de € 11.852,05 (onze mil, oitocentos e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), qualificando o crédito como uma dívida da Massa Insolvente, determinando-se que o mesmo seja pago com prioridade sobre os créditos graduados».
A ré Massa Insolvente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão de improcedência da apelação.
Foi admitido o recurso interposto, e, colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, conforme decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, as questões que cumprem decidir neste recurso prendem-se em aferir se a autora é titular de um crédito sobre a massa insolvente, referente ao valor pago pela aquisição do imóvel em causa nos autos, avalizando se se encontram preenchidos os pressupostos legais do enriquecimento sem causa.
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III-/ Fundamentação de facto:
Na decisão da 1ª instância foram considerados os seguintes factos:
1. A sociedade Ladrilis-Materiais de Construção e Decoração Lda. foi declarada insolvente por sentença de 15/01/2010, transitada em julgado 25/02/2010.
2. Por escritura pública celebrada em 06/08/2008, no Cartório Notarial de Almada de Maria Luísa Elvas, a insolvente, representada por JA (…) e LU (…), declarou vender a (…)  Imobiliários, Lda., pessoa colectiva (…), com sede na Rua (…) em Almada, esta representada igualmente por JA (…) e LU , terreno para construção urbana com a área de 1280 m2, sito na Estrada Nacional, …, freguesia da Charneca da Caparica, concelho de descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o nº ....
3. O referido lote de terreno foi registado em nome da sociedade (…), Lda., por compra, mediante a Ap. 15 de 06/08/08.
4. Por escritura pública celebrada em 06/08/2008, no Cartório Notarial de Almada de Maria Luísa Elvas, (…) Imobiliários, Lda., representada por JA (…) e LU (…), declarou vender a Imobiliária do (…), Lda., pessoa colectiva (…), com sede (…) na Rua …, freguesia de Alcântara, em Lisboa, esta representada por RU e por FE, com a área de 1280 m2, sito na Estrada Nacional, …, freguesia da Charneca da Caparica, concelho de Almada, inscrito na matriz sob o art. Registo Predial de Almada sob o nº ....
5. O referido lote de terreno foi registado em nome da sociedade Imobiliária do (…), Lda., por compra, mediante a Ap. 16 de 06/08/08.
6. Em 27/04/2010, o Sr. Administrador de Insolvência enviou à Imobiliária do (…), Lda., carta registada com AR, resolvendo o negócio descrito em 3), nos termos do artigo 123.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
7. Sobre o referido lote de terreno encontram-se registadas pela ap. 5494 de 29/04/2010 e 2489 de 12/05/2010, a resolução do negócio efectuada pelo administrador de insolvência.
8. Em 25/05/2010, Imobiliária do (…), Lda. intentou acção de impugnação de resolução, contra a massa insolvente de (…) Construção Lda. representada pelo Senhor Administrador de Insolvência a qual correu termos no apenso E.
9. Por título de compra e venda, celebrado em 23/11/2012, na 2.º Conservatória do Registo Predial de Almada, a Imobiliária do (…) Lda., na qualidade de parte vendedora, representada por RU (…)e por FE (…), declarou vender, à (..) S.A, na qualidade de parte compradora, representada por JO (…), o lote de terreno para construção urbana com a área de 1280 m2, sito na Estrada Nacional, …, freguesia da Charneca da Caparica, concelho de Almada, inscrito na matriz sob o artigo ..., com o valor Almada sob o nº ....
10. O referido lote de terreno foi registado a favor da aqui Autora, por compra, mediante a Ap. 698, de 2012/11/23.
11. Por sentença proferida em 12/12/2016, no apenso K, (…) S.A. foi habilitada no lugar da sociedade Imobiliária (…), Lda.
12. Por sentença datada de 11/04/2017, proferida no apenso E e transitada em julgado, foi a referida acção julgada improcedente e determinado o cancelamento dos registos em nome da ali requerente ou de terceiros, incluindo o registo da aqui Autora.
13. O preço referido em 9) foi pago pela sociedade Convalente S.A à sociedade Talaminho, Lda.
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IV-/ Do mérito do recurso:
Defende a autora nos autos que tem um direito de crédito sobre a massa insolvente, dado que, alega, lhe assiste o direito à restituição do preço pago em negócio que foi resolvido em benefício daquela massa. Argumenta que a não devolução do preço implica um verdadeiro enriquecimento sem causa da sobredita massa, que recebeu o imóvel dos autos através da resolução do negócio, à custa do empobrecimento da autora, que perdeu o preço pago. Deste modo, esse valor, traduzido no preço pago pela autora de € 150.000,00, representa um enriquecimento da massa insolvente e constitui uma dívida da mesma.
Vejamos se assim é.
A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os actos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, sendo o acto resolutivo da competência do administrador da insolvência, que, levado a cabo, pode ser impugnado judicialmente pelas pessoas por ele afectadas.
Por ser assim, resulta com clareza da lei, que com aquela resolução se obtém a reconstituição do património do devedor, destruindo-se os actos que lhe são prejudiciais, ainda que limitados ao período de dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, permitindo-se, desta forma, a recuperação dos bens que dele saíram.
É indiscutível que o direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva, que implica que as partes regressem à situação em que se encontrariam se não tivessem celebrado o negócio, assim se operando a extinção do vínculo contratual, sendo que, quanto aos seus efeitos, em termos gerais, o artigo 433.º do CC equipara a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com eficácia retroactiva, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 434.º n.º 1 e 289.º n.º 1 do mesmo código, ditando, por sua vez, o artigo 435.º, que a resolução, ainda que expressamente convencionada, não prejudica os direitos adquiridos por terceiro, e que o registo da acção de resolução que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, torna o direito de resolução oponível a terceiro que não tenha registado o seu direito antes do registo da acção.
Neste enquadramento legal, e em termos genéricos, dissolvido o vínculo contratual, por resolução, cada uma das partes terá então de restituir à contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência de tal cessação.
Revertendo aos autos, verificamos, contudo, que a autora veio alegar ter adquirido um imóvel, cujo preço liquidou, imóvel que, por força da resolução operada pelo administrador de insolvência em beneficio da massa, teve que entregar, para ser apreendido para a massa, sem que lhe tenha sido restituído o preço pago. Assim, na sua tese, tais factos configuram um enriquecimento sem causa da ré, massa insolvente, que lhe confere o direito à restituição do indevido.
Regulando o enriquecimento sem causa, diz-nos a lei, no seu artigo 473.º do Código Civil, que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou, sendo que essa obrigação tem assim por base a restituição do que foi indevidamente recebido, ou do que foi recebido por virtude de uma causa que deixou de existir.
É assim linear afirmar-se que a obrigação de restituir, fundada no enriquecimento sem causa, pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos, o enriquecimento de alguém, obtido à custa do empobrecimento de outrem, não facultando a lei ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.
Importa, pois, e em suma, que o enriquecimento careça de causa justificativa.
Ora, a situação dos autos, nem de perto nem de longe, pode ser equacionada ou configurada à luz de um enriquecimento sem causa.
Primeiro, inexiste enriquecimento da massa, pois esta apenas viu regressar ao seu património algo que dele não devia ter saído.
Segundo, o preço pago pela recorrente não foi entregue à ré massa insolvente, para que se possa afirmar que aquela tenha um crédito sobre esta, ou que lhe deva entregar qualquer valor por força de uma resolução.
Acompanhamos, pois, sufragando-a, a argumentação aduzida na sentença recorrida, que assim consignou «Ora, no caso concreto, a Autora adquiriu o imóvel alvo de resolução à sociedade Imobiliária do (…), Lda., por título de compra e venda, tendo pago a esta o preço de 150.000,00 euros. Como tal, não tendo sido a insolvente a receber o valor do preço pago, ou a massa insolvente, mas uma terceira sociedade, será esta que terá a obrigação de restituir à autora o preço que recebeu pela transmissão do imóvel e não a massa insolvente que não recebeu qualquer quantia por tal negócio celebrado entre duas sociedades estranhas à insolvência.
Aliás, não tendo a massa insolvente recebido qualquer quantia por parte da autora não se poderá considerar que estejamos perante uma dívida da massa insolvente nos termos do artigo 51.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, já que, inexiste qualquer enriquecimento sem causa por parte da massa».
E mais adiante «Mais se diga que a venda efectuada pela sociedade (…) Lda. à aqui autora realizou-se em 23.11.2012, ou seja já depois o Sr. Administrador de Insolvência ter enviado carta à sociedade Imobiliária do (…), Lda., em 27.04.2010, a resolver o negócio de compra e venda de tal imóvel celebrado entre esta e a empresa (…) Empreendimentos Imobiliários, Lda., que o havia, por sua vez, adquirido à sociedade insolvente Ladrilis-Materiais de Construção e Decoração Lda..
Aliás, a venda efectuada pela sociedade Imobiliária do (…) Lda. à aqui autora realizou-se já após a sociedade Imobiliária do (…), Lda. ter intentado acção de impugnação de resolução, contra a massa insolvente de Ladrilis, Materiais para Construção Lda. representada pelo Senhor Administrador de Insolvência a qual correu termos no apenso E, tendo dado entrada em 25.05.2010.
Como tal, a transmissão do imóvel pela sociedade Imobiliária do (…) Lda. à aqui autora não precedeu a resolução dos negócios anteriores e, sendo posterior a esta, a transmissão em causa sempre constitui uma venda a non domino, que é ineficaz em relação à massa insolvente».
Concordamos integralmente com a fundamentação aduzida.
Com efeito, convém não esquecer, no que concerne aos efeitos da resolução do negócio em relação a terceiros, que o regime insolvencial se distingue do regime geral previsto no código civil, no citado artigo 435.º, pois que, tal como decorre do artigo 124.º do CIRE, a oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má fé destes, sendo evidente que o terceiro transmissário cuja posição poderá ser protegida é necessariamente aquele que recebeu o seu direito antes do acto susceptível de resolução, e não, como nos autos, em momento posterior. Veja-se que, da matéria de facto dada como provada - que não foi impugnada – resulta que o Sr. Administrador de Insolvência resolveu o negócio celebrado com a insolvente em 27/04/2010, datando a aquisição da autora de 23/11/2012. Nessa data já a autora sabia daquela resolução, tendo, por essa razão, a sentença recorrida considerado, e bem, que a aquisição pela recorrente foi feita a non domino, que é assim ineficaz em relação à Massa insolvente, não se podendo sequer colocar a questão da oponibilidade da resolução a esse transmissário posterior, pois que a venda de coisa alheia, prevista no artigo 892.º do CC, aí sancionada com nulidade, é, relativamente ao verdadeiro proprietário da coisa vendida, puramente ineficaz.
Neste sentido, que aqui seguimos de perto, veja-se o acórdão da 6.ª Secção do STJ, relatado por Pinto de Almeida, datado de 24/11/2020, disponível na dgsi, assim sumariado no que ao caso interessa «(…) II- A resolução em benefício da massa insolvente, tal como a resolução do contrato no direito civil, determina a imediata cessação do vínculo, produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida; essa declaração tem eficácia constitutiva. III- A resolução em benefício da massa insolvente será oponível aos transmissários posteriores ao acto resolvido, se estes estiverem de má fé, tratando-se de acto oneroso, ou se se tratar de sucessores a título universal ou se a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito. IV- Sendo posterior à resolução, a segunda transmissão constitui uma venda a non domino e é ineficaz em relação à Massa insolvente, não se podendo colocar a questão da oponibilidade da resolução a esse transmissário posterior. V- O art. 124º, nº 1, do CIRE deve ser interpretado no sentido de que os "transmissários posteriores" serão apenas os "transmissários posteriores ao acto" aí referido, objecto de resolução, não se podendo aí incluir os transmissários posteriores a esta».
E depois, já na fundamentação, ficou consignado que «Deste modo, quando no nº 1 do art.º 124 do CIRE se fala na “oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores” as transmissões que se têm em vista são aquelas que são posteriores ao acto resolvido. Nunca por nunca as posteriores à resolução. Estas constituem transmissões a non domino porque o transmissário ficou privado dos poderes que lhe foram concedidos pelo acto resolvido. E, como se sabe, perante o verdadeiro proprietário as alienações a non domino são res inter alios, e, por via disso, em relação a ele ineficazes stricto sensu. Nesta conformidade, o terceiro que recebe direitos após o acto resolutivo, esteja de boa ou má fé, não goza da oponibilidade a que alude o nº 1 do art.º 124 do CIRE. De resto, se isso pudesse estaria descoberta uma fórmula para facilmente defraudar a massa insolvente e os credores com transmissões a terceiros de boa fé após a destruição de um acto de alienação do devedor operada com a resolução comunicada pelo AI».
Improcede, pois, e sem mais, a argumentação aduzida em sede de apelação, não se verificando nos autos os requisitos de enriquecimento sem causa pugnados pela autora (que adquiriu o imóvel de quem não era proprietário, em face da consolidada resolução do acto resolutivo), que vê assim a apelação naufragar, com a confirmação da sentença recorrida.
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V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação totalmente improcedente por não provada assim se confirmando a sentença recorrida.
Custas pela autora.
Registe e notifique.

Lisboa, 08/11/2022
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira