Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1597/12.8TBFUN.L1-1
Relator: JOÃO RAMOS DE SOUSA
Descritores: PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
COMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/14/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Apurando-se que o réu acordou no pagamento de determinada quantia, incumbe-lhe comprovar esse pagamento (facto extintivo do direito) segundo as regras do ónus da prova do art. 342.2 do CC.
2. Se o réu acordou pagar comissões à autora segundo o que esta facturasse, “IVA incluído”, o que conta para o cálculo destas comissões é essa facturação com o IVA mencionado nas facturas, ainda que para efeitos fiscais pudesse depois pedir o desconto deste imposto.

(Sumário do Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório

O ..Juízo Cível do Tribunal Judicial .. condenou M…, Lda. (ré, recorrente), a pagar a AF, Unipessoal, Lda. (autora, recorrida) a quantia de € 8.286,47, com juros de mora legais sobre € 8.035,00, desde 28 de março de 2012, até integral e efetivo pagamento; absolveu a ré do pedido de condenação como litigante de má fé.

A ré recorreu, pedindo que se dê provimento ao seu recurso, “sendo a recorrente absolvida dos pedidos constantes dos factos 10, 12 e 13, dados como provados na douta sentença, tudo com as legais consequências”. Quer a ré dizer: pedindo a absolvição do pedido, na parte decorrente dos factos 10, 12 e 13 da sentença.

A autora opôs-se, pedindo que se confirme a decisão recorrida.

Corridos os vistos, cumpre decidir se deve ter-se ou não por provada a matéria decorrente dos factos 10, 11, 12 e 13 a sentença, e o que daí resulta na presente ação.

Fundamentos

Factos

Provaram-se os seguintes factos, apurados pelo Tribunal a quo:
1-         A A. é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à criação e elaboração de projectos de decoração de interiores (art. 1º do PI).
2-         A R. é uma sociedade que se dedica à compra e venda de móveis e acessórios de decoração, assim como à concretização de projectos de decoração de interiores (art. 2º da PI).
3-         Em março de 2011, no âmbito das suas atividades, a Autora obrigou-se para com a R. à criação e elaboração de projectos de decoração de interiores, à vista e análise dos espaços a decorar, à reunião com os clientes, à escolha e desenho de móveis, peças decorativas e todos os adereços de decoração para a concretização dos projetos criados e elaborados e ao acompanhamento e orientação da respetiva montagem nos imóveis a decorar de acordo com os projetos por si criados e elaborados. (arts. 3º e 4º da PI).
4- Como contrapartida pela prestação dos serviços da Autora acima discriminados, a Ré obrigou-se perante aquela: a pagar-lhe mensalmente uma remuneração base mensal fixa de € 2.000,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor; a pagar-lhe. A título de comissões, a quantia de € 1.500,00 ou de € 2.500,00 por cada mês do calendário gregoriano em que a Ré faturasse, IVA incluído, montante entre € 80.000,00 a € 99.999,99 mensais ou igual ou superior a € 100.000,00, respetivamente; e a proporcionar à Autora, enquanto vigorasse o contrato de serviços desta com a Ré, um apartamento para habitação da sua sócia gerente … (art. 5º da PI).
5-  A Autora principiou a prestar os seus serviços para a Ré em março de 2011(art. 6º da PI).
6-  Para cumprimento da obrigação de proporcionar habitação à gerente da Autora, Ré propiciou à aludida sócia gerente a habitação de um apartamento de tipo T1 por cima loja onde se encontrava instalado o estabelecimento da Ré (art. 7º da PI).
7-  Em meados de maio de 2011 a Autora e a Ré acordaram alterar o contrato que tinham no que à obrigação de proporcionar habitação tangia, ficando a Autora, desde então, com a possibilidade de arrendar, a seu gosto, o espaço habitacional que entendesse, pelo preço que entendesse, obrigando-se a Ré já não a proporcionar a habitação mas tão só a pagar-lhe mensalmente, o montante de € 450,00 a acrescer aos montantes referidos no anterior artigo referidos em 4º dos factos provados (art. 8º da PI).
8- Por força dessa alteração, a Autora veio a celebrar um contrato em 6 de maio de 2011 por força do qual tomou de arrendamento, pela renda mensal de € 500,00, uma fração autónoma situada no 1 andar do prédio sito na E.. 187, …, para onde foi habitar a sua sócia gerente (art.s 9º e 10º da PI).
9-  E em 29 de setembro de 2011, dando por findo o contrato de arrendamento acima aludido, a Autora veio a celebrar um novo contrato por força do qual tomou de arrendamento, também pela renda mensal de € 500,00, uma fração autónoma situada 2º andar do mesmo prédio, onde desde então passou a habitar a sua sócia gerente (art.s 11 e 12 da PI).
10-   A R. não procedeu ao pagamento do IVA, devida pelas comissões até junho de de 2011, no montante de 1.150,00€ (art. 13 da PI).
11-  Durante o mês de julho de 2011, a Ré faturou um montante superior a 100.000,00€ (art. 14 da PI).
12-   A Ré, não efetuou o pagamento de 2.500,00 + IVA devido à Autora a título de Comissão relativa a esse mês julho de 2011, no valor global de 3.075,00 € (art. 15 da PI).
13-                    A R. não pagou à A. a quantia de 450,00€ mensais, relativas ao alojamento nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2011, no montante total de 1.350,00€ (art. 16 da PI).
14-                     A Ré não pagou à Autora a quantia de € 2.000,00€, acrescida do IVA à tal legal , devida pela prestação de serviços no mês de Novembro de 2012, no montante global de 2460,00€ (art. 17 da PI)
15-  Em virtude da falta dos pagamentos acima referidos, a Autora suspendeu, a partir de 1 de dezembro de 2011 a prestação de serviços (art. 18 da PI).
Análise jurídica

Considerações do Tribunal recorrido

O Tribunal a quo fundamentou-se, nomeadamente, nas seguintes considerações:


...os factos provados integram um contrato de prestação de serviços definido no art.  1164 do Cód. Civil, …
Resulta dos do elenco dos factos provados – não discutidos pelas partes- que a Autora se obrigou a prestar à R. serviços, na área de elaboração de projectos de decoração, mediante o pagamento de retribuição.
Divergem as partes quanto ao montante acordado pela retribuição.
Alegou a A. que esse montante era composto por uma base mensal fixa de € 2.000,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor; uma comissão variável, entre € 1.500,00 e € 2.500,00, dependendo da facturação da R. e, bem assim, na assunção das despesas de alojamento – primeiro em apartamento T1 facultado pela R. e, posteriormente, no pagamento do valor de 450,00€ mensais, quando a A. arrendou um apartamento.
Impugna a R. essa factualidade, contrapondo que apenas se vinculou ao pagamento da retribuição mensal fixa.

No caso presente, provou-se não só a celebração do contrato de prestação de serviços entre a A. e R. –  que esta nunca pôs em causa – mas também que a retribuição acordada alegada pela A. (nº 4 dos factos provados).
Logrou A. provar os factos constitutivos do seu direito, isto é, que a obrigação nasceu e está vencida (art. 342, nº 1 do CC), não tendo o R., por seu turno, provado qualquer facto extintivo ou impeditivo do direito da A ( art.  342, nº 2 do CC), mormente o pagamento da retribuição acordada.
Nos termos do disposto no art. 762 do C.C., o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que se vinculou. Não tendo a R. efectuado a prestação debitória a que se havia comprometido - Pagamento da retribuição - a ela continua adstrito.
Atendendo que sobre o devedor recai a presunção de culpa quanto à falta de cumprimento da obrigação a que se encontrava vinculado, responde ainda a ré pelos prejuízos que causou à A. pelo retardamento da prestação incorrendo na obrigação de indemnização correspondentes aos juros ( cfr. arts. 798 e 799 do C.C), pelo que são devidos, pela R. à A., juros desde a data da constituição em mora, à taxa legal.

Conclusões do recorrente
A  isto, opõe o recorrente as seguintes conclusões:
I—Em sede da audiência de julgamento, não se deu como provado que a recorrente suportaria um valor de arrendamento para habitação da sócia gerente da recorrida, até ao valor mensal de quatro e cinquenta euros;
II- Essa prova não resultou da prova testemunhal, trazida à audiência de discussão e    julgamento;
III- De resto, não fazia qualquer sentido que fosse a recorrente a pagar os valores do arrendamento, quando os dois contratos juntos aos autos, foram outorgados em nome e apenas pela recorrida, sem qualquer intervenção da recorrente;
IV- Até para efeitos fiscais, se fosse a recorrente a suportar esse valor, exigiria que o contrato fosse celebrado em seu nome;
V- Assim sendo, a matéria constante do facto 13 dado como provado na douta sentença, deve ser considerada, como NÃO PROVADA;
VI - Por outro lado, conferindo o depoimento das testemunhas, ninguém referiu o valor de € 1.150, 00, referido no facto 10, dado como provado, na douta sentença;
VII- Nem sequer se provou que a recorrente se obrigasse a pagar comissões.
VIII- O tribunal a quo nunca poderia dar como provado que os valores referidos no facto 10 da douta sentença, não tinham sido pagos, se em sede da audiência de discussão e julgamento, ninguém referiu esse facto
Logo, esse facto, deve ser considerado, como NÃO PROVADO.
IX - Quanto à matéria constante do artigo 15 da douta petição inicial, não se provou que existisse acordo entre as partes para pagamento de comissões.
Por esse motivo e logo à partida, a matéria do facto 12, dada como provada, na douta sentença, deve receber a resposta deNÃO PROVADA.
Mesmo que assim não fosse, mas é, a verdade é que a fls. 118, a ROC da recorrente certificou que no mês de Julho do ano de dois mil e onze, aquela vendeu apenas o montante de € 89.381. 42.
Essa declaração não foi impugnada por falsidade.
E quanto aos valores constantes das declarações para o FISCO, a fls. 130 foi dada uma explicação para o sucedido.
Essa explicação é técnica e consta de fls. 130 dos autos.
Essa explicação pode ser comprovada por qualquer técnico em matéria tributária.
Basta saber ler e interpretar o documento apresentado pela recorrente na competente Repartição de Finanças e que se mostra junto aos autos.
Como é evidente, face ao exposto, o facto 11 dado como provado na douta sentença, deve também receber a resposta de NÃO PROVADO.
X - A recorrente sempre aceitou e aceita pagar o montante constante do artigo 17 da douta petição inicial e dado como provado como facto 14 da douta sentença.
XI - Ao condenar a recorrente nos montantes constantes dos factos 10, 12 e 13, dados como provados, na douta sentença, o tribunal a quo violou o artigo 342, nº 1, do C Civil.

Conclusões da recorrida

Mas a recorrida objeta, em resumo, que o recurso é improcedente no que se refere aos factos 10, 11, 12 e 13, pois a ré não ilidiu a presunção de culpa que recai sobre o devedor; que o documento do ROC apresentado em fase de alegações finais é inadmissível e inoperante, por violação do princípio do contraditório, e de qualquer forma o total das vendas feitas em julho de 2011 é superior a € 100.000,00; e finalmente que os documentos e depoimentos apresentados pela autora  confirmam a sua versão.

Não há razão para alterar a matéria provada

A recorrente pretende que se dê como não provada a matéria constante dos factos 10, 11, 12 e 13 (conclusões VIII, IX, e V).

Não tem razão.

Quanto à matéria do facto 10, a recorrente considera que “em sede da audiência de discussão e julgamento ninguém referiu esse facto”; e portanto este deve considerar-se não provado.  Mas verifica-se que o ónus da prova aqui era da ré: uma vez provado que as partes haviam acordado no pagamento das comissões IVA incluído (facto 4), incumbia à devedora comprovar tal pagamento, assim extinguindo o direito da credora – art. 342.2 :CC. Não o tendo feito, o IVA das comissões até junho de 2011 tem-se por não pago, conforme decidiu a 1ª instância. Assim, esta conclusão é improcedente.

A matéria do facto 11 foi dada como provada com base nos documentos de fls. 99-100: o total da base tributável de  € 385.492,73 declarada às Finanças, que dividido pelos três meses a que respeita, se cifra por um valor mensal superior a € 100.000,00, segundo refere a sentença. 

A isto, a recorrente objeta que
a fls. 118, a ROC da recorrente certificou que no mês de Julho do ano de dois mil e onze, aquela vendeu apenas o montante de € 89.381. 42.
Essa declaração não foi impugnada por falsidade.
E quanto aos valores constantes das declarações para o FISCO, a fls. 130 foi dada uma explicação para o sucedido.
Essa explicação é técnica e consta de fls. 130 dos autos.
Essa explicação pode ser comprovada por qualquer técnico em matéria tributária.
Basta saber ler e interpretar o documento apresentado pela recorrente na competente Repartição de Finanças e que se mostra junto aos autos.
Como é evidente, face ao exposto, o facto 11 dado como provado na douta sentença, deve também receber a resposta de NÃO PROVADO.
Segundo a ré alegou a fls. 130,
“o valor de € 385.492,73 é a soma de vendas a taxa intermédia (€ 3.115,52) mais as vendas a taxa normal (€ 340.885,56) mais as compras que adicionaram incorretamente, no valor de € 41.492,15, sendo certo que não foi descontado as notas de crédito.
Se as contas fossem feitas corretamente, o valor apurado era o de € 272.066,52, tal como foi declarado pela Técnica Oficial de Contas na declaração que juntou aos autos”.

O problema é que a declaração da TOC (fls. 118) não foi apresentada na sede própria, na audiência de discussão e julgamento, onde poderia ser sujeita a contraditório, com base na discussão das correspondentes faturas, que a ré aliás não apresentou. A ré produziu tal documento/declaração com as alegações finais, num momento em que não poderia ser admitida, e reiterou-o na resposta ao pedido de condenação como litigante de má fé. Assim, o Tribunal não pôde ter este documento em consideração para o efeito da análise da prova relativa ao pedido de condenação; apenas poderia tê-lo em consideração para a apreciação da má fé – mas não julgou necessário entrar nessa apreciação.

Trata-se pois de matéria nova, não discutida no momento próprio, e que por isso também não poderá ser examinada no âmbito do recurso, que só visa reapreciar as questões que o tribunal de 1ª instância teve a oportunidade de apreciar.
De qualquer modo, o que ficou acordado entre a autora e a ré (facto 4) foi simplesmente ter em conta o que a ré faturasse IVA incluído; não ficou acordado descontar nessa faturação a complexa tecnicidade fiscal que a ré invoca agora nas suas alegações de recurso:  se à faturação para efeito de impostos devia ou não ser deduzido o valor das compras intercomunitárias ou as deduções de IVA.
Uma coisa é a faturação para o efeito do contrato, outra é a faturação para o efeito da declaração de impostos. Nas faturas, a ré tinha de incluir o IVA, ainda que pudesse depois deduzi-lo para efeitos fiscais.
Note-se que a ré apresentou aquelas declarações fiscais, que incluiam o IVA (fls. 99) como prova relativa à faturação que o tribunal lhe pediu. É a faturação antes dos descontos, segundo ela própria declarou ao Fisco. IVA incluído, segundo o acordado com a autora (facto 4).
Ora, desses valores de faturação, IVA incluído (isto é, antes dos descontos) resulta uma média mensal superior a € 100.000,00. Conforme a 1ª instância decidiu.
Em resumo, o que interessa para o efeito da decisão da prova é o valor apresentado pela ré: valores facturados pela ré sem descontos, conforme havia acordado pela autora.
Improcede, pois, a conclusão IX da recorrente. Os factos 11 e 12 foram corretamente dados como provados.

A matéria do facto 13 está correlacionada com a do facto 7: neste, deu-se como provado que as partes acordaram em maio de 2011 alterar o contrato que haviam celebrado, nomeadamente obrigando-se a ré, já não a fornecer habitação à autora, mas sim a pagar-lhe mensalmente € 450,00, a acrescer aos montantes referidos no facto 4.

A recorrente afirma que “Em sede da audiência de julgamento, não se deu como provado que a recorrente suportaria um valor de arrendamento para habitação da sócia gerente da recorrida, até ao valor mensal de quatro(centos) e cinquenta euros” (conclusão I).

Mas esta afirmação da recorrente está em manifesta contradição com o facto 7; a recorrente não pediu que se dê esse facto como não provado; limita-se a acrescentar que “Essa prova não resultou da prova testemunhal trazida à audiência de discussão e julgamento”. Aliás, sem razão, pois o facto resulta do depoimento de JM, que tivemos ocasião de ouvir no registo respetivo.

Se a recorrente não impugnou a matéria do facto 7, nomeadamente a fundamentação do tribunal ao dar como provado esse facto, não pode este tribunal de recurso apreciar aqui a questão.

E quanto ao facto 13, é matéria articulada pela autora, mas aqui, como vimos acima, o ónus da prova (pagamento) era da ré, enquanto devedora. Incumbia-lhe comprovar o pagamento. Não tendo sido feito prova do pagamento, e em face desse ónus da prova, apenas se pode dar por provado que aquela importância não foi paga.

Improcede, pois, a conclusão V da recorrente.

Nada havendo a alterar na matéria de facto, improcede o recurso
Improcedendo todas as conclusões da recorrente, não havendo factos a alterar na matéria provada, improcede o recurso, pois a sentença em matéria de direito não carece de modificação.

Em suma:
1. Apurando-se que o réu acordou no pagamento de determinada quantia, incumbe-lhe comprovar esse pagamento (facto extintivo do direito) segundo as regras do ónus da prova do art. 342.2 do CC.
2. Se o réu acordou pagar  comissões à autora segundo o que esta facturasse, “IVA incluído”, o que conta para o cálculo destas comissões é essa facturação com o IVA mencionado nas facturas, ainda que para efeitos fiscais pudesse depois pedir o desconto deste imposto.

Decisão

Assim, e pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso, pelo que confirmamos na íntegra a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 2014.10.14
João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton