Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | FILOMENA CLEMENTE LIMA | ||
Descritores: | RECURSO PENAL MATÉRIA DE FACTO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/15/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I - O recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância II - Não basta afirmar que pretende ver reapreciada a prova, não tendo um direito a que o tribunal oficiosamente o faça, nem a que o faça como um segundo julgamento; é preciso usar os mecanismos legais que a lei estabelece para que veja exercido o direito ao recurso pleno da matéria de facto, com reapreciação da prova gravada e não apenas como revista plena e para o qual a lei conferia um prazo mais alargado. III - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (artigo 430°), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento | ||
Decisão Texto Parcial: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. 1.1. AS..., acusado pelo M°P°, em autoria material, da prática de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.° e 218.°, n.° 1, do Código Penal. JC..., deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo a sua condenação no pagamento do 1.100.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 25 de Junho de 1997, e até integral pagamento, quantia que entregou ao arguido a título de pagamento do preço da viatura cuja propriedade nunca lhe foi transmitida. Realizado o julgamento foi proferida decisão que Julgou-se totalmente procedente o pedido cível deduzido pelo demandante
JC... condenando o arguido/demandado AS... a pagar-lhe o montante de € 5.486,77, acrescido do pagamento dos juros de mora vencidos e vincendos, a contar desde a data da notificação do demandado para contestar o pedido de indemnização civil, à taxa legal e até integral pagamento, sendo as custas cíveis serão suportadas pelo demandado (arts. 523.°, do Cód. de Processo Penal, art. 446.°, n's 1 e 2, do Cód. de Processo Civil). 1.2. Interpôs recurso o arguido alegando em síntese: 1. Vem o arguido condenado, pela prática de um crime de 3. dos factos vertidos para o probatório, não se extrai que o Termos em que, 5. deverá atenta a factualidade provada, concluir-se pela não 7. Devendo face a todo o exposto no presente recurso sob 9. Mas conduta essa, que foi do mais perfeito 10. Não tendo este, não só não participado no acto subjacente à burla, como dele não teve oportunamente conhecimento; tão-pouco tendo tido assim consciência da ilicitude; 12. Tendo-se neste caso verificado também, erro na apreciação das 1.3. O M°P° não respondeu. 1.4. Respondeu o demandante civil: 1. O recurso interposto não cumpre o art.° 412.° do CPP, pois apesar de identificar as normas violadas, furta-se à interpretação do sentido de cada uma dessas normas, assim como omite a explicação do sentido com que essas normas deveriam ter sido aplicadas. 3. ... o que manifestamente não era a intenção do legislados, quando consigna na al. a) do n.° 3 do art.° 4122 do CPP que o recorrente deve indicar concretamente os
pontos de facto que considera incorrectamente julgados. 7. Prosseguindo e agora já não quanto à omissões perpetradas elo recorrente no seu recurso e respectivas motivações, refere o demandante respondente que o recorrente não tem razão no que expende no recurso, pois esquece-se e omite que o demandante afirmou claramente que adquiriu o dito automóvel ao senhor Adindo (arguido, ora recorrente) no stand propriedade deste e que por diversas vezes se lhe dirigiu solicitando os documentos do dito carro, sem contudo alguma vez o arguido ora recorrente lhos ter entregue. 8. Pouco importa se o demandante fez o negócio numa primeira vez com o arguido ou não, pois foi admitido pelo arguido que o stand onde se encontrava o carro era de sua propriedade e que o dito carro em concreto foi vendido pelo próprio, independentemente do negócio em causa ter sido operado por si (arguido) directamente ou por intermédio de um funcionário deste e diga-se em abono da verdade que ficou provado e o recorrente admite-o que a pessoa a quem o demandante se dirigiu numa primeira visita ao stand propriedade do arguido foi a um funcionário deste, declarando o demandante que o arguido / recorrente sabia do negócio, porque foi este quem recebeu o preço/dinheiro na sua conta proveniente do negócio e que veio de um crédito que o demandante contraiu para pagar o veículo em causa. 9. Refere o arguido recorrente ainda que não ocorreu engano, nem ardil para que o demandante ficasse sem carro e sem dinheiro e que nem sequer se pode considerar "caloteiro", no entanto esquece-se o arguido recorrente que foi ele próprio, não qualquer um outro funcionário ou coimissionista, quem por diversas vezes prometeu os documentos do veículo ao demandante (ver depoimento da testemunha SM... que acompanhou por diversas vezes o demandante ao stand do Sr. AS... --arguido / recorrente -- para que este lhe entregasse os documentos do veículo, até que o dito veículo foi "furtado" da porta da casa do demandante durante a noite e mais tarde se veio a saber e a conhecer que tinha sido "recuperado" pela sociedade vendedora do dito veículo em virtude de não ter recebido preço que o arguido / recorrente deveria ter pago) e que nunca lhos entregou até que o veículo foi "recuperado" pela sociedade vendedora do mesmo, por não ter recebido o preço por parte do arguido / recorrente. 11. Se o recorrente não tivesse usado de meios enganosos e ardis para provocar um prejuízo patrimonial no demandante, nunca este teria adquirido o dito carro, pois que ninguém no seu perfeito juízo adquire um bem, sabendo que o mesmo nunca passará para a sua propriedade e só o fez porque o arguido /recorrente enganou o demandante, provocando-lhe a sensação de que seria uma questão de tempo até que os documentos do carro estivessem tratados e actualizados a fim de lhos entregar (ao demandante), o que nunca veio a suceder.
12. O demandante entregou o preço / dinheiro ao arguido / recorrente a título de nada, pois não conseguiu, por exclusiva responsabilidade do arguido / recorrente, ficar com o carro que pagou, ficando assim com um claro prejuízo patrimonial, causado pelo arguido / recorrente. Pelo exposto, se conclui a presente resposta afirmando que muito bem esteve o Tribunal "a que" e muito bem se encontra elaborada e redigida a Douta Sentença recorrida, devendo ser mantida na integra, assim se fazendo a costumada Justiça e a boa aplicação do Direito!
2. A Exm.a PGA pronunciou-se pela intempestividade do recurso conforme parecer junto aos autos por considerar que o recorrente não formula, perante a motivação e conclusões do recurso, a especificação dos factos que pretende impugnar nem as provas que impõem que decisão diversa, pelo que não se justificando a reapreciação da prova gravada perante um recurso que não cumpre as regras necessárias à impugnaçao da matéria de facto, não deveria beneficiar do prazo alargado de 30 dias, mas apenas do prazo de 20 dias. 3. 3.1. Será aceitável, numa dada perspectiva, o entendimento da Exm.a PGA. Porém, não pretendendo privilegear a forma sobre o conteúdo e, porque a decisão acerca da definição do objecto do recurso acabaria por se reconverter na apreciação do próprio conteúdo do thema decidendum, preferimos apreciar liminarmente o recurso com vista à apreciação do mérito do mesmo ou da sua eventual improcedência manifesta, não sendo confundível o que sejam os vícios de forma que poderão conduzir a esta com a utilização indevida do prazo de recurso. No art.° 412°, n.°1 CPP prevê-se que, no seguimento e decorrência da enunciação especificada dos motivos e fundamentos do recurso, ou seja da motivação do recurso, se termine pela formulação de conclusões em que sejam resumidas as razões do pedido. É a partir das conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o ãmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer. Cfr., neste sentido, os Acórdãos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 3-2-1999 (BMJ 484-271), de 25-6-1998 (BMJ 478-242) e de 13-5-1998 (BMJ 477-263); SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, «Recursos em Processo Penal», pág. 48; GERMANO MARQUES DA SILVA, «Curso de Processo Penal», vol. III, 2' ed., 2000, pág. 335, JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES, «Recursos», in «Jornadas de Direito
Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal», 1988, pág. 387, e ALBERTO DOS REIS, «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, pp. 362-363. A motivação de recurso deve identificar, com clareza e precisão, quais as exactas razões da discordância do recorrente relativamente à decisão, ou seja os fundamentos do recurso devendo as conclusões, tal como decorre do art.° 412°, n.°1 CPP, resumir as razões do pedido que o recorrente formula relativamente à decisão recorrida. Ora, as conclusões destinam-se a resumir essas razões que servem de fundamento ao pedido, não podendo confundir-se com o próprio pedido nem podendo ser tão extensas e exaustivas como as conclusões, e destinam-se a permitir que o tribunal conheça, de forma imediata e resumida, qual o âmbito do recurso e os seus fundamentos. Essa definição compete exclusivamente ao recorrente e tem a finalidade útil e garantística de permitir que não existam dúvidas de interpretação acerca dos motivos que levam o recorrente a impugnar a decisão, o que poderia acontecer perante a mera leitura das alegações, por natureza mais desenvolvidas, definindo-se claramente quais os fundamentos de facto e/ou de direito, já que é através das conclusões que se conhece o objecto do recurso. Neste sentido se pronunciaram os Ac. STJ 21.4.93, 19.4.94, 9.11.94, CaJa STJ, tomos 2°, 2°,e 3° dos anos respectivos, p. 206, 189, 245. Não pode o tribunal seleccionar as questões segundo o seu livre arbítrio nem procurar encontrar no meio das alegações, por vezes extensas e pouco inteligíveis, o que lhe pareça ser uma conclusão. As conclusões nada têm de inútil ou de meramente formal.
Embora o recorrente indique, no requerimento inicial de recurso, que pretende ver reapreciada a prova gravada, não a requer nos rigorosos termos em que a lei a prevê e da forma como a preconiza. E é nas conclusões que se destinam a, de forma séria e clara, indicar o que pretende ver apreciado pelo tribunal de recurso que tal indicação deverá ser feita expressamente, como síntese do alegado na motivação. Ora um recurso da matéria de facto não é necessariamente um recurso que imponha reapreciação da prova gravada. Porém, não se confunda o que sejam vícios que afectam o aspecto formal do recurso com a pretensão do recorrente de ver reapreciada a prova gravda e das razões para que nesse caso possa usar de um prazo mais alargado, O recorrente na motivação, embora não especifique quais os factos da decisão que pretende impugnar refere genericamente factos de que discorda e transcreve excertos de depoimentos que o justificam. Veja-se por exemplo a alusão que faz na motivação do facto provado Ponto III-C.
3.2. É a seguinte a fundamentação de facto da decisão: II- FUNDAMENTAÇÃO (...) . 3.3 Lendo, atentamente, as conclusões constata-se que o recorrente invoca a violação dos art.°s 1°, n.°s 1 e 2 e 217, n.°1 e 218°, n.° 1 CP e a nulidade do art.° 374° n.°2 CPP. Ao longo das suas conclusões o recorrente discorda da circunstância de, dos factos provados, se não poder retirar que o arguido com tais factos preencheu o tipo legal de crime por que foi acusado. Alega que da matéria provada não emerge que tenha havido intenção de enriquecimento ilegítimo pelo que conclui pela inexistência dos elementos típicos do crime, atenta a (actualidade apurada ( cls. 3° a 5') . Porém, é nítida a confusão que estabelece entre a sua discordância relativamente aos factos e a sua errada subsunção ao Direito. Apenas na conclusão 12ª o recorrente fala em omissão de factos essenciais e de erro na apreciação das provas mas faz declarações genéricas como as seguintes: a conduta foi do mais perfeito desconhecimento do arguido, não tendo participado no acto subjacente à burla, como dele não teve conhecimento nem tão pouco teve consciência da ilicitude. Embora, na motivação o recorrente aluda a excertos de depoimentos testemunhais que segundo ele afastariam qualquer intenção de enganar o cliente, bem como de enriquecer ilegitimamente, a falta de consciência da ilicitude e a própria participação no negócio. É o caso da alusão ao depoimento da testemunha JF... que refere um excerto em que este refere que, ao realizar a venda, o arguido mais não fez do que seguir o procedimento normal, de modo similar ao que vinha tendo há cinco anos. Afasta assim, na sua versão, a intenção de enganar o cliente.
Nem nada no excedo transcrito o faz conluir. Na motivação, ao expor o motivo de discordância relativamente ao decidido, Omissão de factos essenciais para a boa decisão da causa." Já a leitura das conclusões — que, por seu turno, não podem sintetizar mais do que aquilo que deverá já constar da motivação — não permite concluir sequer que o recorrente pretenda impugnar a matéria de facto da forma que a lei lhe confere para tal, conforme mecanismos estabelecidos nos art.°s 411° e 412° CPP, nem que para tal deva o tribunal reapreciar a prova gravada, apesar de o afirmar no requerimento inicial de apresentação do recurso. Não basta afirmar que pretende ver reapreciada a prova, não tendo um direito a que o tribunal oficiosamente o faça, nem a que o faça como um segundo julgamento; é preciso usar os mecanismos legais que a lei estabelece para que veja exercido o direito ao recurso pleno da matéria de facto, com reapreciação da prova gravada e não apenas como revista plena e para o qual a lei conferia um prazo mais alargado. O recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância"— Germano Marques da Silva, "Forum Justitiae, Maio/99. Como o Supremo Tribunal vem decidindo, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (artigo 430°), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o
recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento — artigo 412°, n.° 2, alíneas a) e b).. O recorrente faz a indicação da sua própria versão dos factos, perante uma avaliação genérica e global da matéria de facto provada que também não impugna especificadamente, nem na motivação nem nas alegações. Em bom rigor, o recorrente não cumpriu aquele ónus, nem nas conclusões — o que não seria obstáculo a prosseguimento do recurso se depois de convidado as viesse aperfeiçoar — mas também não na motivação pelo que não se justifica aperfeiçoar as conclusões. Por outro lado, perante a alegação do próprio recorrente facilmente se constata que não pretende invocar a existência de existe qualquer erro notório na apreciação da prova m as sim demonstrara s ua d iscordância a cerca d a forma como o tribunal formou a sua convicção e fixou a matéria de facto. Erro notório na apreciação da prova é aquele que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja , quando o homem médio facilmente dele se dá
conta (Situas Santos e Leal Henriques, C.P.P. Anotado, I, 554) e traduz uma desconformidade do facto apurado com a prova. Verifica-se este erro "quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser desmontado a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum ."(Ac. do S.T.J. de 17/12/97, B.M.J. 472, 407). Também não resulta da decisão que esta contenha contradição insanável entre a decisão e a fundamentação ou que seja insuficiente para a decisão que foi proferida (art.° 410°, n.°1 e 2 CPP), vícios de conhecimento oficioso. Os factos 4,5,6,8 e 9 revelam a existência da astúcia indutora em erro e o facto 3 refere a intenção São pois suficientes os factos para a condenação como resulta do texto da decisão que se mostra devidamente fundamentada de facto e de direito. Pelo exposto, acordam as juízas em julgar o recurso manifestamente improcedente . Custas pelo recorrente com 4 fixada em 4 UC.
Lisboa, 15.07.2014 Filomena Lima Ana Sebastião
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