Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7540/2008-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ACÇÃO EXECUTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I – Quer o tribunal da 1.ª instância, como este Tribunal da Relação de Lisboa, estão legalmente impedidos de fazer uma reapreciação de mérito da decisão estrangeira visada pela declaração de executoriedade (artigos 36.º e 45.º, número 2 do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000), destinando-se a intervenção dos tribunais dos Estados membros da União Europeia onde o demandante, na posse dessa sentença condenatória, pretende instaurar acção executiva, a realizar um controle de índole fundamentalmente formal, conforme ressalta dos artigos 38.º a 46.º e 53.º a 56.º do mesmo diploma comunitário.
II – A eventual circunstância do Requerido não ter sido notificado da decisão em presença não constitui motivo para o seu não reconhecimento e executoriedade, pois é o próprio Regulamento n.º 44/2001, no seu artigo 42.º, número 2, que admite que, conjuntamente com o despacho de atribuição de executoriedade, seja igualmente notificado ao visado a sentença objecto do mesmo.
III – Não é certo nem seguro que em Portugal seja violada a Ordem Pública processual pelo facto de ser proferida e executada sentença contra uma parte ausente ou simplesmente revel, como facilmente resulta, nomeadamente, do disposto nos artigos 14.º, 15.º, 483.º a 485.º, 814.º e 921.º do Código de Processo Civil, estando pressuposto em tal regime o respeito do princípio do contraditório e da defesa do demandado (cf. artigo 3.º do mesmo diploma legal).
IV - Atento o juízo de conformidade praticamente formal que os tribunais do Estado onde irá correr a execução se limitam a fazer, no que concerne à atribuição de executoriedade, a discussão das questões suscitadas pelo Requerido/executado não devem ser discutidas no âmbito dos autos de atribuição de executoriedade mas antes no quadro da acção executiva que vier a ser instaurada, através da dedução da competente oposição . (JES)
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO
R e S, casados, ambos com domicílio no Luxemburgo vieram instaurar, em 9/04/2008, os presentes autos, com processo especial, contra JOSÉ, residente em Portugal, pedindo a declaração de executoriedade da sentença estrangeira que condenou o Requerido a pagar-lhes a quantia de 21.700,00 Euros, a título de provisão e relativa ao custo da obra que os Requerentes estão autorizados a mandar executar nos termos de anterior decisão (Acórdão) de 9/11/2006.
Os Requerentes alegaram, em síntese, o seguinte:
1) Os Requerentes têm um crédito sobre o Requerido, no montante total de Euros 21.700,00;
2) Esse crédito encontra-se reconhecido por sentença proferida no dia 8/02/2007, pela 9.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Grão-Ducado do Luxemburgo, no âmbito do processo n.º 29924;
3) Até à presente data, o Requerido não procedeu ao pagamento aos Requerentes da quantia a que foi condenada no dito processo;
4) Os Requerentes pretendem instaurar em Portugal acção executiva contra o Requerido, servindo a sentença como título executivo;
5) Nos termos dos números 1 e 2 do artigo 39.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000 e do número 2 do artigo 74.º do Código de Processo Civil, o Tribunal competente para declarar executória a dita sentença é este Tribunal da Comarca de Vila Franca de Xira, conforme previsto no artigo 38.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000;
6) O original da sentença encontra-se incorporado no processo n.º 29924, que correu termos no 9.º Juízo Cível do Tribunal da Relação do Grão-Ducado do Luxemburgo, juntando os Requerentes, nesta data, certidão emitida pelo Supremo Tribunal de Justiça do Grão-Ducado do Luxemburgo, nos termos e para os efeitos dos artigos 53.º e 54.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000;
7) Não se verifica nenhum dos motivos constantes dos artigos 34.º e 35.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, susceptíveis de impedir o reconhecimento da dita sentença;
8) Estão assim verificados os requisitos necessários, pelo que deverá a mencionada sentença ser declarada executória, ao abrigo do disposto no artigo 41.º do já referido Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000.
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O tribunal da 1.ª instância proferiu, de imediato e com data de 23/04/2008, o seguinte despacho:
R e S pediram contra JOSÉ a declaração de executoriedade da sentença proferida em 08/02/2007, pela 9a Secção do Tribunal de Apelação do Gão-Ducado do Luxemburgo, que condenou o requerido ao pagamento da quantia de € 21.770,00 (vinte e um mil setecentos e setenta euros).
O Tribunal é o competente (artigos 10, n.º 1 e 39°, do Regulamento (CE) n.º 44/2001).
A sentença supra aludida constitui decisão proferida por um tribunal de um Estado-Membro (artigo 32° do Regulamento).
Os requerentes são partes interessadas (artigo 38°, no 1 do Regulamento).
O requerido tem legitimidade, no confronto com a pretensão deduzida.
Encontra-se certificado que a decisão proferida pelo respectivo Estado-Membro tem força executiva nesse Estado (artigo 38.º, n.º 1 do Regulamento.
Mostram-se observados os trâmites legalmente exigíveis (artigos 40.º, 53.º e 54.º, do Regulamento).
Decisão: pelo exposto, ao abrigo do artigo 41.º do Regulamento (CE) 2001 declaro a executoriedade da decisão estrangeira supra aludida.
Notifique.
Cite o requerido (artigos – 42.º, n.º 2 e 43.º, n.º 1 do Regulamento).”
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Citado o Requerido JOSÉ, através de carta registada com A/R, conforme ressalta de fls. 17 e 18, veio o mesmo, em 26/05/2008, interpor recurso do despacho em questão (fls. 19 e seguintes), que foi admitido a fls. 56, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
O Requerido apresentou as alegações que se encontram juntas a fls. 20 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1 – O Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000 considera-se obstáculo à declaração de executoriedade da sentença não ter sido notificado ao requerido (ainda que revel) o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, em tempo útil de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tenha a possibilidade de o fazer.
2 – A ordem pública processual pode constituir obstáculo à declaração de executoriedade de uma sentença estrangeira.
3 – O artigo 26.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000 estipula que “o juiz deve suspender a instância enquanto não se verificar quer a esse requerido foi dada oportunidade de receber o acto que iniciou a instância ou acto equivalente, em tempo útil para apresentar a sua defesa, ou enquanto não se verificar que para o efeito foram efectuadas todas as diligências”.
4 – O ora recorrente nunca recebeu qualquer notificação referente a qualquer processo que contra ele tivesse corrido no Grão-Ducado do Luxemburgo.
5 – Não resulta dos autos qualquer documento ou prova que demonstre que o ora recorrente tivesse sido regularmente notificado da acção/decisão que contra ele corria em Juízo no Grão-Ducado do Luxemburgo, isto é, que o próprio tenha recebido em suas mãos qualquer documento proveniente do Tribunal.
6 – O ora recorrente manteve sempre a sua residência em Portugal na morada constante dos autos, pelo que não se compreende porque só agora foi notificado e não antes, quando ainda podia oferecer a sua defesa.
7 – Estão preenchidos os pressupostos constantes do artigo 34.º número 1 do Regulamento CE supra citado, já que o reconhecimento da executoriedade desta sentença estrangeira é manifestamente contrário à ordem pública do Estado Membro requerido.
8 – O direito de defesa e o princípio do contraditório são princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico, reconhecidos constitucionalmente, que em caso algum podem ser preteridos.
9 – O Tribunal do Estado da execução terá de certificar que a condenação foi imposta por uma sentença produzida com observância dos requisitos legais.
10 – Por isso não pode ser reconhecida em Portugal a executoriedade de uma sentença estrangeira que foi proferida no âmbito de um processo judicial que não acautelou tais princípios, pois se não tivesse sido assim, o ora recorrente teria sido sempre notificado na sua residência em Portugal, o que nunca aconteceu.
Termos em que devem V. Exas. dar provimento ao presente recurso declarando não executória a decisão estrangeira supra aludida por ser contrária à ordem Pública do Estado Português”.
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Os Requerentes vieram, em 26/06/2008, apresentar nos autos as contra-alegações de fls. 30 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1 - Invoca o Recorrente que a sentença proferida pelo Tribunal de Apelação do Grão-Ducado do Luxemburgo está em manifesta contradição com o preceituado nos artigos 34.º, número 1 e 26.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, por não o ora Recorrente sido notificado (ainda que revel) do acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, em tempo útil de modo a permitir-lhe a defesa.
2 – O recorrente teve integral conhecimento do processo que lhe foi instaurado pelos ora Recorridos R e S.
3 – Tal conhecimento é desde logo, expressamente confirmado pelos anteriores acórdãos proferidos no âmbito do mesmo processo cuja decisão final o Recorrente invoca, agora, desconhecer.
4 – A decisão cuja declaração de executoriedade foi requerida resulta de decisão de um recurso interposto pelo próprio Recorrente.
5 – Resulta do processo que correu termos no Luxemburgo que, por o aqui Recorrente não se ter conformado com a decisão proferida pela 1.ª instância, interpor recurso daquela decisão, onde apresentou as suas razões de facto e de direito para tentar alterar a sentença.
6 – A própria posição processual do aqui Recorrente na decisão proferida pelo Tribunal de Apelação do Luxemburgo é suficiente para demonstrar o conhecimento do ora Agravante do processo que contra si corria termos.
7 – Foi ao abrigo do princípio do contraditório e com respeito do direito de defesa do aqui Recorrente que foi proferida a decisão estrangeira que agora é por este questionada.
8 – Encontram-se preenchidos todos os requisitos impostos pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 para declarar como executória a decisão do Tribunal de Apelação do Grão-Ducado do Luxemburgo, conforme decidido pelo Tribunal a quo, não verificando, in casu, nenhum dos motivos constantes dos artigos 34.º e 35.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, susceptíveis de impedir o reconhecimento da dita sentença.
9 – Por não violar qualquer dispositivo legal, mormente, por não ser contrária à ordem pública portuguesa, deverá ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que declarou a executoriedade da sentença proferida pelo Tribunal de Apelação do Grão-Ducado do Luxemburgo, que condenou JOSÉ a pagar aos Recorridos a quantia de Euros 21.770,00.
Termos em que, e nos termos que V. Exa. se dignará suprir, deve o presente recurso ser considerado improcedente e, consequentemente, mantida a douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”.
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Os recorridos, face ao teor das alegações do Apelante, juntaram com as contra-alegações diversos documentos que foram admitidos pelo relator do presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 524.º, número 2 e 693.º-B do Código de Processo Civil.
O relator do presente recurso convidou as partes a pronunciarem-se sobre a eventual condenação do Requerido e aqui Apelante como litigante de má-fé, face ao teor das suas alegações, que são comprovadamente contrariadas por elementos existentes nos autos.
Os Requerentes vieram pronunciar-se no sentido da condenação do Requerido como litigante de má-fé, ao passo que este último, contestando tal litigância de má-fé, veio juntar uma série de documentos e alegar, em síntese, o seguinte, conforme ressalta de fls. 67 e seguintes:
“1) O recorrente não litiga de má fé, porque o que por si foi referido nas suas alegações é verdade.
2) O recorrente teve o primeiro contacto com o litígio em causa quando recebeu a notificação proveniente do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de Xira.
3) O recorrente teve há vários anos uma empresa no Grão-Ducado do Luxemburgo, mas nunca esteve à frente dos negócios dessa empresa, a qual era gerida por C.
4) Este caso em apreço, nunca o recorrente teve dele conhecimento, vindo a saber muito mais tarde que o Sr. João, fazia por sua conta e risco trabalhos dos quais não dava qualquer conhecimento.
5) Esta pessoa residiu no Luxemburgo, primeiro na Rue… e depois até ao presente momento, na Rue do …, onde reside ainda.
6) Estas moradas, como se pode verificar pela documentação junta pelos recorridos, é que figuraram sempre como sendo a sede da empresa.
7) O único beneficio que o recorrente poderá vir a beneficiar dessa empresa é por ter feito os descontos para a Segurança Social Luxemburguesa e vir a auferir mais tarde a pensão de reforma a que tem direito.
8) Por esse facto chegou a ter cartão de residente, na morada de João acima referida.
9) No entanto nunca residiu de facto no Luxemburgo, isto é aquelas moradas nunca foram o local onde diariamente o recorrente habitou com a sua família, onde trabalhou, onde se recolheu todas as noites, onde tomou as refeições e recebeu os amigos.
10) O recorrente foi de facto algumas vezes ao Luxemburgo, mas apenas pequenas estadias de um ou dois dias, a última das quais para encerrar e liquidar a empresa, porque foi notificado em Portugal pelos serviços fiscais luxemburgueses de que estariam em falta alguns compromissos fiscais.
11) Ao tomar agora conhecimento deste processo, o recorrente verificou que terá sido o tal Sr. João que recebeu as notificações provenientes do Tribunal Luxemburguês, mas não lhe deu conhecimento de nada.
12) Este facto poderá ser verificado pela consulta dos autos do processo luxemburguês, registos de correio ou notificações presenciais efectuadas pelo oficial de justiça, onde nunca se poderá ver qualquer assinatura do ora recorrente!
13) Pela gravidade da situação, a mandatária do recorrente conseguiu via Internet, o contacto do advogado referido no processo como defensor do ora recorrente, o Dr. J, com o qual tem trocado correspondência, e constatou que o mesmo terá sido contactado não pelo ora recorrente JOSÉ mas sim por João que domina a língua francesa e se fez passar por aquele.
14) Mais: a mandatária do ora recorrente foi informada pelo colega que no Grão-Ducado do Luxemburgo, (pasme-se!) o advogado não necessita procuração escrita do cliente para o representar em juízo!
15) Portanto, pode ir a juízo e simplesmente declarar oralmente que é advogado do Sr. X!
16) Estes factos demonstram bem porque é que o ora recorrente nunca soube que corria contra ele um processo judicial.
17) A mandatária do ora recorrente solicitou ao Dr. J algum documento assinado pelo ora recorrente e foi-lhe enviado apenas uma cópia do contrato celebrado com os recorridos em 1997 (que ora juntamos como Doc 1) onde é bem visível que não foi o ora recorrente que assinou esse contrato, mas sim João!
18) Também lhe foi enviado o certificado de residência que os recorridos referiram nas suas doutas alegações, o qual foi pedido em 24-11-2005. (Doc 2)
19) Ora, se para representar uma pessoa em Tribunal não é necessária procuração escrita, também para pedir um documento deste poderá ser feito por qualquer pessoa!
20) Nas datas constantes desse documento (2001 a 2003 e data do pedido 2005) o recorrente esteve sempre na sua residência em Portugal, onde todos os dias trabalha, faz a sua vida normal e é visto por todos.
21) A provar tal facto juntamos:
- Cópia do cartão de eleitor que comprova que o ora recorrente é eleitor inscrito na freguesia de … desde 08-01-1979; (Doc. 3)
- Atestado de residência da Junta de Freguesia de …; (Doc.4)
- Declarações de IRS do ora recorrente e esposa referente a rendimentos provenientes do trabalho prestado em Portugal referente aos anos de 2003, 2004, 2005, 2006, 2007; (Doc.5, 6, 7,8, 9)
- Declaração da Companhia de seguros …,, referente a um acidente de trabalho que sofreu em 2003; (Doc.10)
- Ficha da Companhia de seguros … referente a esse acidente de trabalho que o recorrente sofreu em território português em 03 de Setembro de 2003, donde constam as datas e consultas de tratamentos; (Doc. 11)
- Ainda referente a esse acidente de trabalho, junta-se ficha do Centro de Recuperação de Vila Franca de Xira, onde se pode constatar que em Dezembro de 2003 o recorrente recebeu diversos tratamentos de fisioterapia, de salientar no dia 04 de Dezembro 2003, data que segundo o certificado de residência luxemburguês o recorrente estaria no Luxemburgo; (Doc. 12)
- Dois documentos referentes à actividade profissional do recorrente, um assinado pelo próprio dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira datado de 25-02-2003 e resposta a ele endereçada. (Doc. 13 e Doc.14)
22) Por factos ocorridos em 22-12-2003 o ora recorrente viu-se envolvido no processo-crime que corre os seus trâmites no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Franca de Xira – 2.º Juízo Criminal com o número de processo …, tendo prestado nesse processo TIR (cfr. Doc 15 Junto)
23) Pode-se por isso constatar-se que o ora recorrente não estava no Luxemburgo nas datas constantes do certificado de residência luxemburguês, nem era residente naquele país, pelo que tal declaração não pode ser dada como verdadeira para efeitos judiciais.
24) Não tendo por isso sido regularmente notificado de tal processo nem do recurso interposto referido nas doutas alegações dos recorridos.
25) Não resulta dos autos qualquer documento ou prova que demonstre que o recorrente tenha recebido em suas mãos qualquer documento proveniente do Tribunal.
26) Nem poderá existir, porque, como se demonstra pelos documentos juntos, era em Portugal que o recorrente se encontrava onde exercia a sua actividade profissional, recebia tratamentos médicos, etc.
27) Razão pela qual não pode ser reconhecida em Portugal a executoriedade de uma sentença estrangeira que foi proferida no âmbito de um processo judicial que não acautelou o princípio do contraditório de do direito de defesa, pois se assim fosse o ora recorrente teria sido regularmente notificado na sua residência em Portugal.
28) Não consubstancia por isso litigância de má fé a conduta pessoal do ora recorrente.
29) Nem sequer se poderá dizer que não haveria possibilidade de o contactar em Portugal, pois que por outros motivos ele foi notificado pelos serviços fiscais luxemburgueses, e agora para os recorridos executarem a sentença, logo foi achado.
30) Quanto muito se poderá dizer que o mesmo foi vítima de abuso de confiança de terceiro, responsabilidade esta a apurar em instância própria.
31) No entanto tal não significa que o recorrente tenha de ser condenado, sem mais.
(…)
III – MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Resulta provado, com relevo para a decisão e com base nos documentos juntos as autos, a seguinte factualidade:
1) Por Acórdão proferido no dia 8/02/2007, pela 9.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Grão-Ducado do Luxemburgo, no âmbito do processo n.º …, foi JOSÉ condenado a pagar a R e S a quantia de 21.700,00 Euros, a título de provisão e relativa ao custo da obra que os Recorridos estão autorizados a mandar executar nos termos de anterior decisão (Acórdão) de 9/11/2006;
2) Tal Acórdão foi proferido na sequência de recurso interposto pelo aqui Apelante, no âmbito do mesmo processo n.º …, da sentença proferida no tribunal da 1.ª instância, tendo aquele Acórdão dado continuidade e desenvolvimento às decisões tomadas nos outros dois Acórdãos emitidos anteriormente pelo mesmo Tribunal de recurso, em 9/03/2006 e 9/11/2006, que por sua vez confirmaram a mencionada decisão da 1.ª instância;
3) Esse Acórdão, bem como os anteriores, foram proferidos em Audiência Pública, aí estando presentes os advogados das partes, sendo o recorrente JOSÉ patrocinado pelo Dr. J …, advogado no Tribunal de Esch-sur-Alzette;
4) Os Requerentes propuseram contra o Requerido, em 12/01/2001, uma acção de natureza cível no Tribunal de Comarca do Luxemburgo, que foi objecto de julgamento em 28/05/2001 e 1/12/2004, tendo o aqui Apelante sido condenado a satisfazer parcialmente as pretensões deduzidas contra ele pelos aqui Apelados, vindo essa sentença a ser notificada a JOSÉ no dia 16/03/2005;
5) Essa sentença da 1.ª instância foi notificada a JOSÉ na seguinte morada: Soleuvre, Rue do K, Luxemburgo;
6) Foi suscitada, como questão prévia, a inadmissibilidade da interposição do recurso a que se refere a alínea 2) da presente matéria de facto, com fundamento no facto de JOSÉ ter-se ausentado do Luxemburgo para Portugal sem indicação de nova morada, o que impossibilitou a oportuna notificação ao mesmo da sentença da 1.ª instância por parte dos aqui Recorridos, mas tal questão foi decidida no sentido da aceitação do recurso em causa, por o ali recorrente ter apresentado um certificado de residência do município que atestava que desde 4/12/2003 o mesmo residia na morada indicada na anterior alínea desta matéria de facto.

NOTA: Os factos acima dados como assentes baseiam-se unicamente nos documentos juntos aos autos com a petição inicial e com as contra-alegações dos Requerentes, não tendo sido considerados aqueles apresentados pelo Requerido conjuntamente com o requerimento em que este último se pronunciou, a convite do relator do presente recurso, acerca da eventualidade da sua condenação como litigante de má-fé, tendo a sua exclusiva relevância probatória no quadro dessa problemática e já não no plano do objecto da apelação, pois, para esse efeito e em nosso entender, a mencionada documentação deveria ter sido junta com as respectivas alegações, não nos encontrando, por outro lado e finalmente, perante documentos que pudessem ser excepcionalmente admitidos após esse momento, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 524.º, 542.º, 543.º, 693.º-B e 700.º do Código de Processo Civil.
Verifica-se, com efeito, que tais documentos – com excepção do Atestado de Residência (fls. 78 – 27/09/2008), que podia ser obtido em data anterior, sendo a data concreta da sua emissão irrelevante para os efeitos aqui em apreciação – possuem data anterior à propositura dos presentes autos: contrato (fls. 75 – 13/4/1997), certificado de residência (fls. 76 – 24/11/2005), cartão de eleitor (fls. 77 – 8/01/1979), Declarações do IRS – Modelo 3, referentes aos anos fiscais de 2003 a 2007 (Fls. 79 a 107, com apresentações na Fazenda Pública até 31de Março do ano subsequente), Documentos referentes a um acidente de trabalho sofrido pelo recorrente em 26/09/2003 (Fls. 108 a 110 – entre 26/09/2003 e 10/12/2003), pedido de licença camarário de construção de uma moradia e resposta dos serviços municipais competentes (Fls. 111 e 112 – 11/03/2003 e 29/09/2005) e pronúncia – crime do Apelante e esposa (fls. 113 a 119 – 9/11/2005).

IV – APRECIAÇÃO DO PEDIDO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
O Requerido e aqui Apelante pretende impugnar a atribuição de executoriedade ao Acórdão proferido no dia 8/02/2007, pela 9.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Grão-Ducado do Luxemburgo, no âmbito do processo n.º 29924, com base na desconsideração pelo Tribunal de Vila Franca de Xira do estatuído pelo artigo 34.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, com referência aos seus números 1 e 2.
Impõe-se enquadrar juridicamente a questão, chamando à colação os diapositivos legais relevantes nesta matéria e que são os artigos 32.º, 34.º, 35.º, 38.º a 46.º, 53.º a 56.º e 72.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000.
Importa lembrar que, quer o tribunal da 1.ª instância, como este Tribunal da Relação de Lisboa, estão legalmente impedidos de fazer uma reapreciação de mérito da decisão estrangeira visada pela declaração de executoriedade (artigos 36.º e 45.º, número 2 do citado Regulamento), destinando-se a intervenção dos tribunais dos Estados membros da União Europeia onde o demandante, na posse dessa sentença condenatória, pretende instaurar acção executiva, a realizar um controle de índole fundamentalmente formal, conforme ressalta dos artigos 38.º a 46.º e 53.º a 56.º do mesmo diploma comunitário.
Ora, se compulsarmos o requerimento inicial dos autos e os documentos que o acompanham, verificamos que o mesmo, devidamente articulado, foi apresentado no tribunal competente, nele se mostrando suficientemente enunciadas a causa de pedir e pretensão perseguida pelos Apelados, tendo estes designado mandatário ad litem, bem como junto cópia certificada, de acordo com as exigências de forma e substância impostas pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001, da sentença proferida pelo Tribunal de 2.ª instância luxemburguês.
Perante tal cenário processual, o tribunal recorrido deu cumprimento ao disposto no artigo 41.º do Regulamento que estatui que “a decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53.º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34.º e 35.º. A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo”.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14/12/2006, relatora: Maria Alexandrina Moura Santos, processo n.º 260/06-3, afirma, a este propósito, o seguinte:
“I – A confiança recíproca entre as jurisdições dos Estados-Membros da EU é a pedra angular que justifica a livre circulação das decisões judiciais, como se se tratar dum único território e, consequentemente, não pode um juiz reapreciar de mérito a sentença proferida por outro num país estrangeiro.
II – Só os motivos indicados no artigo 45º (com as remissões aí previstas), do Regulamento44/2001, de 22 de Dezembro 2000 da União Europeia, podem fundamentar a recusa de execução duma sentença estrangeira.”
Argumenta o Apelante que, no caso vertente, se verificavam dois dos motivos que o legislador comunitário considera como impeditivos do reconhecimento ou da executoriedade de uma sentença estrangeira, o que devia ter obstado à proferição do despacho aqui em análise.
Tais causas impeditivas mostram-se previstas no já mencionado artigo 34.º, números 1 e 2, do Regulamento, que reza o seguinte, nessa parte:
Uma decisão não será reconhecida:
1 – Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido;
2 – Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer;
3 – (…)

Impõe-se dizer que, quer do requerimento inicial, como dos documentos juntos, não ressalta minimamente a ocorrência de qualquer uma das situações elencadas nos dois números do artigo 34.º do Regulamento, o que, em nosso entender, legitima juridicamente a declaração de executoriedade proferida pelo Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira.
Por outro lado, o recorrido não vem fazer qualquer prova do que alega, sendo certo que era possível fazê-lo documentalmente, quer no que toca à sua falta absoluta de conhecimento e intervenção nos autos em questão, como no que concerne à sua residência única, permanente e exclusiva em Portugal, competindo-lhe, naturalmente, tal prova, de acordo com os artigos 342.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Também a eventual circunstância do Requerido não ter sido notificado da decisão em presença não constitui motivo para o seu não reconhecimento e executoriedade, pois é o próprio Regulamento n.º 44/2001, no seu artigo 42.º, número 2, que admite que, conjuntamente com o despacho de atribuição de executoriedade, seja igualmente notificado ao visado a sentença objecto do mesmo.
Abordando a situação contemplada no número 2 do artigo 34.º, dir-se-á que não nos encontramos, manifestamente e ao contrário do que pretende o recorrente, face a um caso de requerido revel, ou seja, que nunca teve conhecimento e intervenção nos autos, tendo este, por outro lado, tido a possibilidade de reagir, designadamente através da interposição de recurso, ao Acórdão de 8/02/2007.
Como facilmente ressalta desse Acórdão, objecto da declaração de executoriedade dos autos, não só o Requerido JOSÉ se encontrava patrocinado por advogado, na Audiência pública que teve lugar em 8/02/2008 e durante a qual foi proferido aquela decisão, da qual ficou notificado na pessoa daquele, como esta resultou de recurso de apelação interposto pelo mesmo da sentença da 1.ª instância (logo, do exercício do seu direito de defesa e da concretização do princípio do contraditório), não sendo despiciendo realçar que na parte decisória do dito Aresto se refere, expressamente, que se deu oportunidade às partes para se pronunciarem sobre as questões controvertidas e que foram suscitadas no litígio em questão (“O tribunal de recurso, nona secção, reunido em matéria civil, decide contraditoriamente…” – sublinhado nosso).
Se conjugarmos tal Acórdão com os anteriores (de 9/03/2006 e de 9/11/2006), constata-se que a afirmação do Recorrido contida na segunda conclusão das suas alegações (“O ora recorrente nunca recebeu qualquer notificação referente a qualquer processo que contra ele tivesse corrido no Grão-Ducado do Luxemburgo”) não encontra nesta acção substrato probatório que a sustente, ressaltando antes dos elementos documentais dele constantes, conhecimento da existência dos referidos autos e recebimento de notificações no quadro dos mesmos, tendo não só impugnado o primeiro relatório pericial como recorrido da decisão do tribunal de comarca do Luxemburgo, sendo sempre patrocinado pelo mesmo causídico ao longo dos cerca de 6 anos em que a acção de natureza cível correu os seus termos na jurisdição luxemburguesa (em rigor, a instância em questão encontra-se suspensa relativamente à quantificação do remanescente, conforme já decidido na sentença da 1.ª instância e anteriores Acórdãos).
Tais elementos documentais complementares também contrariam a conclusão sexta das alegações do Recorrente, no sentido de sempre ter tido a sua residência em Portugal na morada constante dos autos, pois os factos descritos nas alíneas 5) e 6) indicam o contrário, dado aquele ter declarado no processo luxemburguês que tinha domicílio na cidade de Luxemburgo desde 4/12/2003, sendo certo que aí se enumeram dois endereços ali situados.
Demonstrado que se encontra o conhecimento, intervenção e exercício do direito de defesa por parte do Apelante, no quadro de um processo contraditório, não se pode falar da violação da Ordem Pública processual do Estado Português, o que conduz à total improcedência do presente recurso.
Dir-se-á, contudo, ainda o seguinte: não é certo nem seguro que em Portugal seja violada tal Ordem Pública processual pelo facto de ser proferida e executada sentença contra uma parte ausente ou simplesmente revel, como facilmente resulta, nomeadamente, do disposto nos artigos 14.º, 15.º, 483.º a 485.º, 814.º e 921.º do Código de Processo Civil, estando pressuposto em tal regime o respeito do princípio do contraditório e da defesa do demandado (cf. artigo 3.º do mesmo diploma legal).
Finalmente, conforme alguma jurisprudência dos nossos tribunais superiores (com a qual concordamos) tem vindo a defender, atento o juízo de conformidade praticamente formal que os tribunais do Estado onde irá correr a execução se limitam a fazer, no que concerne à atribuição de executoriedade, a discussão das questões que se prendem, designadamente, com a violação dos referidos institutos jurídicos não devem ser discutidas no âmbito dos autos de atribuição de executoriedade mas antes no quadro da acção executiva que vier a ser instaurada, através da dedução da competente oposição (cf. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30/09/2004, relator: Fernando Baptista, processo n.º 0434423 e de 17/10/2006, relator: Marques Castilho, processo n.º 17/10/2006).
A acreditar no requerimento em que o recorrente se veio pronunciar sobre a sua condenação como litigante de má-fé e que se mostra aparentemente sustentado na documentação que o acompanha, bem como no teor das suas alegações, o recorrente, para além dessa oposição à execução, poderá ainda, caso a legislação suíça o permita, interpor um recurso extraordinário de revisão relativamente à sentença revidenda (à imagem do que os artigos 771.º e seguintes do nosso Código de Processo Civil prevêem) e accionar criminal e civilmente o indivíduo que se fez passar, falsamente, por si.
Muito embora tenhamos chamado a atenção para o facto da postura adjectiva do Apelante ser contrariada pelos factos dados como provados e pelos documentos onde se radicam, o que poderia fundar a sua condenação em multa, como litigante de má fé, ao abrigo das alíneas a) e b) do número 1 do artigo 456.º do Código de Processo Civil e do artigo 102.º, alínea a) do Código das Custas Judiciais, certo é que requerimento e documentação por ele apresentados no âmbito desta matéria, suscita-nos alguma dúvidas quanto à realidade que estará subjacente à sentença revidenda, o que para nós é suficiente para questionar o juízo de censura que a conduta processual assumida pelo recorrente no quadro destes autos nos tinha suscitado, numa primeira abordagem da mesma, não o sancionando, nessa medida e face a tais dúvidas, no âmbito do instituto da litigância de má-fé.

V – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos do artigo 705.º do Código de Processo Civil, decide-se julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto por JOSÉ, confirmando nessa medida e integralmente o despacho recorrido.
Custas a cargo do apelante.
Registe e notifique.
Lisboa, 27 de Novembro de 2008
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)