Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
359/09.4TBSRQ.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I–A decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova; existem certas questões relativamente às quais se pode desde logo e sem qualquer risco concluir que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não permitirá aí decidir.
II–No âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens a decisão de remeter os interessados para os meios comuns, por si só, não acarreta a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão remetida seja decidida.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:
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I–Em 20-12-2009 BRR requereu a abertura de inventário por óbito de ISA, referindo desde logo ser a ela própria que cabiam as funções de cabeça de casal.

Nas declarações de cabeça de casal fez saber a requerente que a inventariada havia falecido a 14 de Abril de 1993 no estado de viúva, deixando os seguintes herdeiros: os filhos BRR, MSR, OS, VS – este falecido em 24-6-2003, no estado de divorciado, deixando como herdeiros, seus filhos MM, CA e SC - MSR, MPS e IS.

Juntou a cabeça de casal a relação de bens composta por três verbas – a primeira correspondente a um prédio urbano e as segunda e terceira verbas correspondentes a dois prédios rústicos de semeadura, ambos sitos nas Canadas, Freguesia da Calheta de Nesquim, concelho de Lajes do Pico.

Procedeu-se à citação dos interessados, vindo o interessado MM deduzir “oposição”. Sustentou que o herdeiro mais velho é MSR e não a requerente do inventário, sendo àquele que devem ser deferidas as funções de cabeça de casal; que as verbas 2 e 3 estão indevidamente relacionadas pois representam um único prédio e que esse prédio foi doado verbalmente pela inventariada ao oponente, em 1987, sendo ele quem desde então e até agora explora toda a área de forma exclusiva pelo que sempre teria adquirido a propriedade do prédio por usucapião; que, aliás, em 6-3-2009 foi celebrada escritura pública de justificação daquela aquisição por usucapião, após o que o oponente converteu o prédio de rústico em urbano; que procedeu à construção de uma adega que tem 61 m2 de área de construção final, limpou e alindou o prédio, recuperou os muros envolventes, tudo isto tendo um valor total não inferior a 50.000,00 €.

Concluiu que a ora cabeça de casal não é quem deve exercer o cargo, deverão ser excluídas as verbas 2 e 3 da relação de bens e, subsidiariamente, deve ser relacionado o valor de 50.000,00 € como encargo da herança a título de benfeitorias e deve a cabeça de casal ser condenada como litigante de má fé.

A requerente do inventário e OS responderam à oposição. Mantiveram que, sendo a interessada BR a mais velha deve ser ela a cabeça de casal; referiram que a mulher do interessado OS havia, entretanto, falecido e identificaram os seus herdeiros; reafirmaram que os prédios relacionados integravam a herança da inventariada e declararam que não ocorrera a pretendida doação (além de que se ocorresse corresponderia a uma ofensa da legítima dos restantes herdeiros legitimários); mencionaram desconhecer a realidade das obras efectuadas e que não se trata de dívidas da herança, pelo que não devem ser relacionadas.

Foi proferido despacho que face às certidões de nascimento juntas aos autos confirmou que cabia à requerente do inventário o cargo de cabeça de casal.

Posteriormente foi proferido outro despacho que decidiu:
«Remete-se a discussão da propriedade sobre as verbas n.º 2 e 3 da relação para os meios comuns.
Determina-se a suspensão da instância até decisão transitada sobre a sobredita questão».

Apelaram MSR, MSS, IS, MPS e OS, concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:

1º-Veio a cabeça de casal relacionar três bens imóveis, que fazem parte do acervo hereditário, o primeiro composto por prédio urbano com o artigo urbano 75º, o segundo por prédio rústico com o artigo 2197 e o terceiro composto por prédio rústico omisso na matriz, os quais prédios localizam-se todos na freguesia de Calheta de Nesquim, concelho de Lajes do Pico e encontram-se todos não descritos na Conservatória do mesmo concelho.
2º-Veio o interessado MM Simas, reclamar da relação de bens, alegando em síntese a falta de relacionação do montante de € 50,000,00 como encargo da herança a título de benfeitorias e que, apenas a verba número um deverá fazer parte do acervo hereditário e as verbas número dois e três correspondem na prática a um único prédio (artigo 2197).
3º-Prédio esse que deverá ser excluído da relação de bens, uma vez que o interessado reclamante goza da presunção de registo a seu favor, em virtude da doação feita pela inventariada formalizada por escritura de usucapião em 2009 (que apenas teve por objeto o prédio constante na relação de bens sob a verba II).
4º-Vieram a c.c. de casal e OS responder à reclamação apresentada alegando em síntese, que existem dois prédios; sendo um com o artigo 2197 e o outro prédio melhor indicado na relação de bens sob o número três, uma vez que fisicamente são dois prédios distintos e com inscrições matriciais autónomas, configurando a sua junção num único artigo uma duplicação de matrizes de prédios.
5º-Indicaram prova e impugnaram do mesmo modo aquela aquisição e as alegadas benfeitorias.
6º-Mantêm, os ora recorrentes, o entendimento que a eliminação das verbas número 2 e 3 da relação de bens apresentada pela c.c., em virtude da doação feita pela inventariada cuja doação foi formalizada, após a sua morte, por usucapião em 2009 (apenas da verba nº 2), para além de corresponder a uma tentativa de sonegação de bens da herança, tal pretensão corresponde a uma verdadeira ofensa da legítima, cuja redução por inoficiosidade foi arguida.
7º-E isto porque, ainda que por mera hipótese académica, sejam eliminadas aquelas verbas em virtude da alegada doação ao seu neto (e junção ao prédio 2197 o prédio descrito sob a verba 3) resta apenas um prédio correspondente a verba nº 1, cujo valor de mercado é pequeno e a doação assim realizada, e o averbamento na matriz da verba nº 3 em nome do interessado MS, ofende a legítima dos restantes herdeiros legitimários.
8º-A cabeça de casal do mesmo transe veio impugnar as alegadas benfeitorias que o interessado reclama, porquanto sendo neto da inventariada nunca assumiu o cabeçalato na administração da herança, pois não se integra em nenhuma das alíneas do art.º 2080, n.º 1 do Código Civil e, por isso nenhuns poderes de administração dos bens da herança da falecida tinha, não lhe aproveitando o disposto no art.º 2087º do mesmo diploma.
9º-Nos termos do art.º 1350º, n.º 1, do Código Civil “Quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente, nos termos do n.º 2 do artigo 1336º, a decisão incidental das reclamações (…) o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns.”
10º-E, de acordo com aquele último normativo, “Só é admissível (…) a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes.”.
11º-A remessa dos interessados para os meios comuns só é de ordenar se não se conseguir no inventário prova suficiente para se decidir as questões suscitadas.
12º-Conforme os sinais dos autos a prova existente, não foi valorada nem foi ordenada a produção de prova indicada, pelo que a remessa da questão da titularidade dos bens relacionados sob as verbas numero dois e três da relação de bens para os meios comuns, colide com as normas ínsitas nos artigos 1335º, 1336º e 1350º todos do CPC.
13º-O Mmo juiz a quo para além de não ter valorado a prova existente não foi ordenada a realização de mais prova, indicada no articulado dos interessados, que lhe permitiria deferir provisoriamente as reclamações que se refere o nº 3 do art. 1350º do CPC.
A jurisprudência e doutrina mais avalizada acompanham esse entendimento.
14º-Em processo de inventário se uma das partes discordar da relação de bens e apresentar prova documental e testemunhal, - “não pode o juiz, sem produção de tal prova, remeter, de imediato, os interessados para os meios comuns, a fim de discutirem a titularidade dos bens (…) não só porque antes da produção de prova ser temerário considerar que a questão não pode ser decidida no inventário, mas também porque a regra é que tal questão deve ser conhecida em tal processo, exprimindo, o remeter as partes para os meios comuns, excepção a tal regra.”
(AC. RP, de 7.11.2005:JTRP00038476.dgsi.Net).
15º-Conforme os sinais dos autos veio o interessado reclamar a exclusão dos bens relacionados sob as verbas número dois e três, mas não comprovou (nem nenhum outro interessado), a pendência de processo comum em que tenha peticionado o reconhecimento da propriedade sobre tais bens, (Ac. RG, de 12.4.2007: Proc. 340/07.2.dgsi.Net).
16º-(…) IV – A suspensão do inventário só deve ser ordenada quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns, por só, então existir fundamento sério para tal (AC. RC, de 11.09.2007: Proc. 48/03.3TBFIG.C1.dgsi.Net).
17º Incumbia ao Exc.mo Juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer (artigo 1344º, n.º 2 e 265º, n.º 3 CPC).
18º-Não se tendo o Exc. Mº Juiz pronunciado expressamente sobre a necessidade ou não das diligências para o apuramento da verdade dos factos, estava-lhe vedado concluir pela suspensão dos presentes autos, sem que tivesse valorado a pretensão probatória formulada pelo reclamante, pela cabeça de casal e pelo interessado ora recorrentes.
19º-No limite, deveria o Mmo Juiz ter convidado o requerente a explicitar se pretendia accionar os meios comuns vindo aos autos demonstrar ter dado entrada à acção correspondente em 30 dias para efeitos do art. 1335º/1 CPC, a fim de ser declarada a suspensão nos presentes autos, até que fosse proferida decisão definitiva nessa acção.
Ao ter remetido a discussão da propriedade das verbas nº 2 e 3 da relação de bens para os meios comuns e nessa medida, determinado a suspensão da instância até decisão transitada sobre a sobredita questão, o Mmo. Juiz a quo, fez uma incorreta interpretação, dos artigo 1335º, 1336º e 1350º todos do CPC (na versão anterior a 2013).
Devendo em consequência ser proferido Douto Acórdão que revogue a decisão proferida que ordene a produção de prova e apreciação sumária da prova existente nos autos, e defira provisoriamente as reclamações e determine nos termos do nº 1 do art. 1327º, o prosseguimento do inventário com vista à realização de partilha provisória.

Dos autos não constam contra alegações.
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II-São as conclusões da alegação de recurso que delimitam o âmbito da apelação. Deste modo, face às conclusões apresentadas, as questões que se nos colocam são as seguintes: se não deveria ter sido determinada a remessa dos interessados para os meios comuns a fim de ali ser decidida a questão da titularidade dos bens relacionados sob as verbas 2) e 3); se, de qualquer modo, não deveria ter sido determinada a suspensão da instância.
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III-Dos autos decorre o seguinte:

1–A inventariada I S A faleceu em 14 de Abril de 1993.
2–A cabeça de casal apresentou relação de bens constituída por três verbas, todas elas bens imóveis, situados na freguesia de Calheta de Nesquim, concelho de Lajes do Pico.
3–O primeiro daqueles imóveis é um prédio urbano, sito no Terreiro, composto por casa de alto e baixo e área total de 142 m2 inscrita na matriz predial sob o artº 75, não descrito nem inscrito na Conservatória de Registo Predial.
4–As outras duas verbas relacionadas pela cabeça de casal correspondem a prédios rústicos de semeadura sitos nas Canadas, o primeiro inscrito na matriz predial sob o art. 2197 e o segundo omisso na matriz predial, ambos não descritos nem inscritos na Conservatória de Registo Predial.
5–Em 6 de Março de 2009 MM celebrou escritura de justificação notarial em que declarou ser dono e legítimo possuidor de um prédio rústico de terra de semeadura, vinha e adega, com a área oito ares e um centiare, sito na freguesia de Calheta de Nesquim, concelho de Lajes do Pico, inscrito na matriz no art. 2197 e que o adquiriu por doação feita pela sua avó paterna – a ora inventariada - há mais de 20 anos, sem que fosse outorgada escritura de doação, desde então estando na posse do dito prédio que adquiriu por usucapião.
6–Na matriz e relativamente ao prédio mencionado em 4) foi identificado como seu titular MM.
7–Na Conservatória de Registo Predial de Lajes do Pico, encontra-se descrito sob o nº 1577/20090416 um prédio urbano sito em Canadas, freguesia de Calheta de Nesquim, com a área de 801 m2, com aquisição inscrita a favor de Mário M.A.S..., sendo a causa de aquisição usucapião.
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IV–1-O interessado MM veio deduzir reclamação contra a relação de bens requerendo a exclusão de bens que considera indevidamente relacionados, as verbas 2) e 3), uma vez que as mesmas configuravam um só prédio por ele adquirido por doação verbal da inventariada, vindo posteriormente a ser outorgada escritura de justificação notarial e havendo procedido ao respectivo registo.

Nos termos do art. 1348 do CPC os interessados poderão reclamar contra a relação de bens, designadamente requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados.

O referido art. 1348, no seu nº 1, trata esta eventualidade na unidade do sistema das reclamações, como uma das hipóteses que podem surgir.

Consoante resulta do nº 3 do art. 1349 do mesmo Código, na sequência do atinente processado caberia ao juiz decidir sobre a pertinência da relacionação dos dois imóveis relacionados como verbas 2) e 3).

Todavia, como decorre do art. 1350 quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental das reclamações – o que sucede quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário por implicar redução das garantias das partes - «o juiz abstém-se de decidir e remete os interessados para os meios comuns».

Ora, pode suceder que o juiz, mesmo sem a produção de quaisquer provas, conclua que a questão suscitada tem uma complexidade que não é compatível com a índole sumária da prova a produzir no inventário, não a podendo aí decidir segura e conscientemente.

Dizia João António Lopes Cardoso, a propósito de tal matéria no âmbito das antecedentes disposições do CPC ([1]): «Pode suceder que o cabeça-de-casal tenha relacionado como pertencendo à herança bens que, efectivamente dela não fazem parte ou a respeito dos quais algum estranho se arrogue a respectiva propriedade (…) Também aqui poderão remeter-se os interessados para os meios comuns, na hipótese da prova a produzir se não compadecer com a natureza do processo de inventário». Referindo também ([2]) «que tudo deve ser examinado e decidido à luz de um são critério, já para não consentir que no inventário se resolvam questões de alta indagação, já para não excluir as que, aí, podem e devem obter solução adequada». Bem como que há certas questões em relação às quais «pode afoitamente concluir-se que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não consentirá fazer decidir aqui», forçando a ter «como facilmente previsível a impossibilidade de as ver decididas no processo de inventário».

Face à nova redacção das disposições do CPC decorrentes da reformulação do processo de inventário, aplicáveis ao caso dos autos, continua a não dever excluir-se um juízo a priori antes de produzidas as provas. Mantendo João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso ([3]) o que foi transcrito e mencionando que o juiz deve formar juízo prévio sobre a possibilidade da questão se dirimir no processo de inventário e que quando concluir que o desfecho natural do incidente será o da remessa das partes para os meios ordinários o proclamará antes de convidar as partes a produzir provas - «única forma de não causar despesas às partes, de abreviar o andamento do processo de inventário e não praticar actos inúteis que a lei processual proíbe».

Como resulta do supra referido, nos casos em que se conclui que para a questão ser decidida com segurança e consciência exige uma aturada e complexa indagação, não compatível com a estrutura de um incidente, devem as partes ser remetidas para os meios comuns. Existem certas questões relativamente às quais se pode desde logo e sem qualquer risco concluir que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não permitirá aí decidir.

Deste modo, a decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova. As diligências de prova resultariam em acto inútil se, perspectivando-se desde logo que face à complexidade da questão seria incompatível a decisão da mesma no âmbito do processo de inventário, mesmo assim se produzisse a prova para depois determinar aquela remessa.

Ora, as questões relacionadas com a aquisição por usucapião por outrem do direito de propriedade sobre imóveis relacionados envolvem a alegação de factos complexos, com a correspondente produção de prova, não compaginável com a prova incidental a produzir no âmbito do processo de inventário.
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IV–2–Saliente-se que aquilo que o reclamante alega é que em 1987 a inventariada lhe doou verbalmente o prédio e que até à data da sua morte – que ocorreu em 1993 - sempre disse que o prédio era dele, seu neto, explorando o reclamante toda a área do terreno, pelo que adquiriu o prédio por usucapião, vindo, aliás, a celebrar escritura pública de justificação daquela aquisição por usucapião em Março de 2009 (cerca de nove meses antes de se iniciar este processo de inventário).

A relação de bens a apresentar no inventário deve conter, no que concerne ao activo, os direitos patrimoniais do autor da herança e, no que concerne ao passivo, as obrigações do mesmo que não meramente pessoais, ou exceptuadas por lei, sendo que a titularidade de tais direitos e obrigações tem de ser determinada com referência à data da abertura da sucessão – data da morte do seu autor (art. 2031 do CC).

A herança da inventariada I corresponderia ao conjunto das relações jurídicas patrimoniais de que ela era titular ao tempo da sua morte, sendo objecto da sucessão e transmitindo-se aos seus sucessores.

Assim, a relação de bens a que se reportam os autos deverá integrar os bens de que a inventariada era titular à data da abertura da sucessão, ou seja, em 14 de Abril de 1993.

Não oferecerá dúvida que a doação verbal de um imóvel, porque não respeitada a forma legal é nula, nulidade essa que é de conhecimento oficioso do tribunal – arts. 947, 220 e 286 do CC. Por isso, na escritura de justificação o próprio reclamante refere que adquiriu o prédio por usucapião.

Tendo a inventariada falecido em 1993 e tratando-se de bem imóvel, à data da abertura da sucessão não decorrera o tempo suficiente – atentos os factos alegados – para o reclamante MM poder adquirir o direito de propriedade do imóvel que diz explorar desde 1987, por usucapião (arts. 1294 a 1296 do CC).

Na herança compreender-se-ia, então, o direito de propriedade sobre o imóvel a que o reclamante se reportaimóvel que, segundo ele mesmo, na sua materialidade corresponde aos imóveis relacionados pela cabeça de casal como verbas 2) e 3)?

A situação não se apresenta tão linear como pareceria poder decorrer das considerações aduzidas. Nos termos do art. 1288 do CC invocada a usucapião os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (em nome próprio), reafirmando o art. 1317 –f) do CC que o momento da aquisição do direito de propriedade é, no caso de usucapião, o do início da posse. Ora, o interessado MM afirma que desde 1987 – muito antes da data da abertura da sucessão - tem a posse dos imóveis e na escritura pública de justificação outorgada em Março de 2009 refere a aludida doação e que há mais de 20 anos está na posse do dito prédio.

A questão a que nos reportamos tem subjacente uma factualidade complexa que torna inconveniente a sua decisão incidental no inventário, com susceptibilidade de implicar a redução de garantias para as partes.

Trata-se, pois, de um caso em que se justifica a remessa dos interessados para os meios comuns na precisa ocasião em que teve lugar e sem que anteriormente se procedesse à produção de outros meios de prova.
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IV–3-Referiu-se na decisão recorrida:

«…deve ser decretada a suspensão da instância, já que a decisão de serem eventualmente retirados bens à relação apresentada está dependente do julgamento da questão que atrás se focou. É que não fará qualquer sentido prosseguir para uma eventual partilha de bens que, eventualmente, se podem vir a provar não fazem parte da herança».

Entende Lopes do Rego ([4]) que «ao contrário do que ocorre com as questões prévias “essenciais”, a que alude o art. 1335º, a insuficiência de elementos para dirimir incidentalmente as reclamações deduzidas em sede de relacionamento dos bens nunca conduz à suspensão do processo», aplicando-se no caso de remessa para os meios comuns o disposto no nº 2 do art. 1350. Este diz expressamente que quando o juiz, dada a complexidade da matéria de facto se abstém de decidir e remete os interessados para os meios comuns «não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu».

Dispõe o nº 1 do art. 1335 que se «na pendência do inventário, se suscitarem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, o juiz determina a suspensão da instância, até que ocorra decisão definitiva, remetendo as partes para os meios comuns, logo que os bens se mostrem relacionados». Determinando o nº 2 do mesmo artigo poder «ainda ordenar-se a suspensão da instância, nos termos previstos nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número anterior».

Sustenta, em consonância o mesmo autor ([5]) que neste preceito «apenas se regula o regime das questões ou causas prejudiciais “essenciais” de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, dispondo o art. 1350º sobre a decisão das questões que apenas condicionam a exacta definição do acervo dos bens a partilhar no inventário».

Opinião diferente parece ser a de João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso ([6]) ponderando que «o facto de se manter a relação tal como está não significa, nem isso é dito, que o inventário deva prosseguir logo». Acrescentando, contudo, que em conformidade com o nº 1 do art. 1335, forçoso será que o juiz fundamente a decisão em especial quanto ao segmento respeitante a tratar-se de questão de que dependa a definição dos direitos dos interessados directos na partilha.

No caso dos autos não está em causa uma questão que interfira com a admissibilidade do inventário ou com a definição dos direitos dos interessados e que, portanto, se inclua na previsão do nº 1 do art. 1335.

O que está aqui em causa é a definição dos bens que fazem parte da herança a partilhar o que tem natureza diversa daquelas outras, nada tendo a ver com a admissibilidade do inventário e não tangendo com a definição dos direitos dos interessados no inventário, quer no que respeita à titularidade dos seus direitos quer no que respeita à definição da sua quota.

A situação a que nos reportamos não se enquadra na previsão do nº 1 do art. 1335, mas sim, como já vimos, na do art. 1350 - nas palavras acima transcritas de Lopes do Rego, trata-se de questões que apenas «condicionam a exacta definição do acervo dos bens a partilhar no inventário». E, efectivamente, neste âmbito não se prevê a suspensão do inventário até à decisão a proferir nos meios comuns, como sucede naqueloutra situação do nº 1 do art. 1335. O disposto no nº 2 do art. 1350 inculca, aliás, o entendimento contrário (ao dizer que não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu). Se não tivesse em vista o prosseguimento do inventário esta disposição não teria utilidade prática.

Afigura-se, pois, que no âmbito do incidente de reclamação contra a relação de bens em que nos situamos a decisão de remeter os interessados para os meios comuns, por si só, não acarreta a suspensão da instância no processo de inventário até que a questão remetida seja decidida.

Nada impediria, todavia, que a suspensão fosse determinada de acordo com os termos gerais.

O que, por ora, não se configura, tendo em conta, designadamente, que não resulta dos autos que haja sido intentada qualquer acção respeitante aos bens em litígio ([7]).

Daí se concluir não haver lugar à suspensão da instância.

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V–Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida: sendo, embora, os interessados remetidos para os meios comuns no que concerne às verbas n.º 2 e 3 da relação de bens, não é determinada a suspensão da instância.
Custas da apelação pelos apelantes na proporção de metade.
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Lisboa, 28 de Abril de 2016



Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
Sousa Pinto



[1]«Partilhas Judiciais», Almedina, 3ª edição, vol. I, pags. 539-541.
[2]Pags. 523-525.
[3]Em «Partilhas Judiciais», Almedina, 5ª edição, vol. I, pags. 592 e 596-599.
[4]Em «Comentários ao Código de Processo Civil», Almedina, 1999, pag. 715, comentário ao art. 1350.
[5]Obra citada, pag. 702, anotação ao art. 1335.
[6]Obra citada, pags. 595-596.
[7]Havendo já sido decidido, em casos em que a acção fora proposta, ser justificado que «se decrete a suspensão da instância, para evitar a possibilidade de virem a ser partilhados bens que, afinal, não pertencem à herança» - acórdão do STJ de 9-10-97, Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano V, tomo 3, pag. 54.
Entendendo a Relação de Coimbra no seu acórdão de 11-9-2007 - ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/, processo 48/03.3TBFIG.C1: «A suspensão da instância ocorre, para além dos casos em que a lei, especialmente, o determinar, quando o Tribunal o ordenar, isto é, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta e quando entender que ocorre outro motivo justificado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 276º, nº 1 e 279º, nº 1, ambos do CPC.
Poder-se-ia entender que existe um motivo justificado para viabilizar a suspensão da instância, com vista a evitar a partilha dos bens que, eventualmente, se venha a provar que não fazem parte da herança.
De todo o modo, a suspensão do inventário não tem de ser, imediatamente, ordenada, devendo antes acontecer quando os herdeiros demonstrarem haver já recorrido aos meios comuns…»
Mas, também ocorrendo decisões em sentido oposto, sustentando-se que vindo-se a definir na acção que o prédio não pertence à herança, será caso de com suporte no decidido nessa acção, proceder à emenda da partilha, consoante arts. 1386 e 1387 do CPC – assim, o acórdão da Relação de Coimbra de 13-05-2014, ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/, processo 1318/11.2TBPBL.C1.