Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6/16.8TELSB-D.L1-9
Relator: ANTERO LUIS
Descritores: CORREIO ELECTRÓNICO
APREENSÃO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
SUSPEITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. Ao correio electrónico apreendido sem autorização judicial não se aplica o disposto no artigo 179º, nº 3, do Código de Processo Penal.
2. A nulidade decorrente da apreensão de correio electrónico sem autorização judicial pode ser sanada com a autorização, a posteriori, da sua leitura pelo titular do direito ao sigilo da correspondência (sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I. Relatório

Nos autos de inquérito que correm termos nos serviços do Ministério Público do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, com o Nº 6/16.8TELSB, na sequência de promoção do Magistrado do Ministério Público, para que Meritíssimo Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal tomasse conhecimento do conteúdo das mensagens existentes, nos ficheiros de correio electrónico do contabilista de uma das sociedades visadas com a investigação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 179, nº 3 do Código Processo Penal, o mesmo indeferiu tal pretensão, por despacho 10/07/2018, junto a fls. 66 verso a 71 dos presentes autos, nos seguintes termos: (transcrição)
«Por despacho judicial de fls.254 foi autorizada, na sequência do requerido pelo MP, a apreensão de correio electrónico quanto aos suspeitos aí devidamente identificados.
Do auto de busca e apreensão, verifica-se que a PJ fez tábua rasa da autorização judicial e procedeu à apreensão de correio electrónico relativo a RR.., pessoa que não é suspeito nos presentes e não estava incluído entre as pessoas constantes da autorização judicial.
Por despacho de fls. 464 foi ordenada a eliminação dos ficheiros relativos à caixa de correio electrónico de RR...
Desse despacho veio o MP recorrer, alegando, em resumo que a apreensão do correio electrónico de RR.. mostrou-se uma diligência inteiramente proporcionada e imperativa à aquisição da prova e que nada obsta a circunstância de RR.. não ser suspeito no âmbito da presente investigação, porquanto, são susceptíveis de serem apreendidos quaisquer objectos relacionados com o crime ou que possam servir de prova, nos termos do artigo 174º nº 2 do CPP.
Por acórdão do TRL de 8-5-2018, foi decidido que, são susceptíveis de serem apreendidos quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova e que as mensagens de correio electrónico do Rui Fernandes foram licitamente apreendidas.
Na sequência da decisão do TRL veio o MP apresentar, novamente, neste TCIC os ficheiros apreendidos a RR..
Tendo em conta o requerido pelo MP, com vista a uma compreensão da questão vejamos, antes de mais, as normas legais em causa:
O art. 12º da D.U.D.H, nos termos do qual "Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.";
O art. 8' da C.E.D.H., nos termos do qual "1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.";
Da CRP: arts. 26°, sob a epígrafe "Outros direitos pessoais", ["1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias];
n° 8 do art. 32°, este sob a epígrafe "Garantias do processo criminal" [nº 8. São nulas todas as provas obtidas mediante (...), abusiva intromissão na vida privada, (...), na correspondência ou nas telecomunicações];
nºs 1 e 4 do art. 34º, sob a epígrafe "Inviolabilidade do domicilio e da correspondência" ["1. O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis. (...). 4. É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. "];
e nºs 1, 2, 4 e 7 do art. 35°, sob a epígrafe "Utilização da informática ["1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei. 2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente. (…).4. É proibido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei. (...). 7. Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da Iei.».
Nos termos da Lei 109/2009, de 15/09, verifica-se que o legislador distinguiu três situações: as pesquisas informáticas; a apreensão de dados informáticos; e a apreensão de correio electrónico e previu, para cada uma delas, um regime específico.
Assim, no artigo 15°, quanto à pesquisa de dados informáticos, diz-se o seguinte:
1- Quando no decurso do processo se tomar necessário à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, obter dados informáticos específicos e determinados, armazenados num determinado sistema informático, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho que se proceda a uma pesquisa nesse sistema informático, devendo, sempre que possível, presidir à diligência.
2- O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máximo de 30 dias, sob pena de nulidade.
3- O órgão de polícia criminal pode proceder à pesquisa, sem prévia autorização da autoridade judiciária, quando:
a) A mesma for voluntariamente consentida por quem tiver a disponibilidade ou controlo desses dados, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado;
b) Nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa.
4- Quando o órgão de polícia criminal proceder à pesquisa nos termos do número anterior:
a) No caso previsto na alínea b), a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada à autoridade judiciária competente e por esta apreciada em ordem à sua validação;
b) Em qualquer caso, é elaborado e remetido à autoridade judiciária competente o relatório previsto no artigo 253.° do Código de Processo Penal.
5- Quando, no decurso de pesquisa, surgirem razões para crer que os dados procurados se encontram noutro sistema informático, ou numa parte diferente do sistema pesquisado, mas que tais dados são legitimamente acessíveis a partir do sistema inicial, a pesquisa pode ser estendida mediante autorização ou ordem da autoridade competente, nos termos dos nºs 1 e 2.
6- À pesquisa a que se refere este artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras de execução das buscas previstas no Código de Processo Penal e no Estatuto do Jornalista.
Por sua vez, o artigo 2º al. b) define: «Dados informáticos», qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma susceptível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função;
Quanto à apreensão de dados informáticos, diz o artigo 16° o seguinte:
l- Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a apreensão dos mesmos.
2- O órgão de polícia criminal pode efectuar apreensões, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo anterior, bem como quando haja urgência ou perigo na demora.
3- Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respectivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
4- As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sempre sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de 72 horas.
5- As apreensões relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da advocacia e das actividades médica e bancária estão sujeitas, com as necessárias adaptações, às regras e formalidades previstas no Código de Processo Penal e as relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da profissão de jornalista estão sujeitas, com as necessárias adaptações, às regras e formalidades previstas no Estatuto do Jornalista.
6- O regime de segredo profissional ou de funcionário e de segredo de Estado previsto no artigo 182.° do Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações.
7- A apreensão de dados informáticos, consoante seja mais adequado e proporcional, tendo em conta os interesses do caso concreto, pode, nomeadamente, revestir as formas seguintes:
a) Apreensão do suporte onde está instalado o sistema ou apreensão do suporte onde estão armazenados os dados informáticos, bem como dos dispositivos necessários à respectiva leitura;
b) Realização de uma cópia dos dados, em suporte autónomo, que será junto ao processo;
c) Preservação, por meios tecnológicos, da integridade dos dados, sem realização de cópia nem remoção dos mesmos; ou
d) Eliminação não reversível ou bloqueio do acesso aos dados.
8- No caso da apreensão efectuada nos termos da alínea b) do número anterior, a cópia é efectuada em duplicado, sendo uma das cópias selada e confiada ao secretário judicial dos serviços onde o processo correr os seus termos e, se tal for tecnicamente possível, os dados apreendidos são certificados por meio de assinatura digital.
Por último, o artigo 17°, quanto à apreensão de correio electrónico, dispõe o seguinte:
Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.
Deste modo, resulta claro da lei, no caso de apreensão de correio electrónico, é necessário, sob pena de nulidade, a prévia autorização judicial, não se bastando apenas, com o facto de o juiz ser o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo do mesmo. Com efeito, dispõe o artigo 179° n° 3 do CPP, regime que o artigo 17º manda aplicar, «o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida ... »
Cumpre dizer, também, que essa obrigatoriedade de prévia autorização judicial tanto se aplica à apreensão de correio electrónico aberto ou fechado, na medida em que o legislador, no citado artigo 17º, não faz qualquer distinção. Para além disso, há que ter em conta que, como refere Armando Dias Ramos in A Prova Digital Em Processo Penal, pag. 61: «E aqui relembramos a impossibilidade de determinar quando é que uma mensagem de correio electrónico foi lida ou não, pois não existem programas informáticos forenses que determinem essa operação, existindo sempre a possibilidade de marcar uma mensagem como «não lida» mesmo após já ter sido lida».
Há que dizer, ainda, que é irrelevante a natureza do próprio correio electrónico. Com efeito, mesmo que se trate de mensagens com conteúdo meramente profissional não deixam estar de estar sob a tutela da vida privada e do segredo das telecomunicações. Neste sentido, diz Costa Andrade in comentário Conimbricense do CP, tomo I, 2ª Ed, p 1084: «Desde logo é indiferente o conteúdo das missivas ou telecomunicações não se exigindo que versem sobre coisas privadas ou íntimas nem que contenham com segredos».
Neste sentido, veja-se AC da RL de 11-01-201 1: «Não se vê igualmente, que face às exigências constantes do regime legal, que exige despacho do JIC e que este seja a pessoa a tomar conhecimento "em primeiro lugar" do conteúdo da correspondência e do correio electrónico apreendidos, "sob pena de nulidade", que se pudesse entender, como no despacho recorrido, que se errara um regime legal dito "específico", diverso, menos exigente, e que pudesse dispensar o cumprimento do disposto no artº 179° n° 3 do CPP, quando os termos da lei especial, Lei do Cibercrime, (Lei n° 109/2009, de 15 de Setembro.) remetem expressamente para o regime geral previsto no Código de Processo Penal, sem redução do seu âmbito, antes se impondo a sua aplicação na sua totalidade...».
No mesmo sentido, vejam-se os recentes ACRL, datados de 20-12- 2017, 7-3-2018 e 30-5-2018 proferido nos autos 1841l2.5TELSB, que negou provimento aos recursos interpostos pelo MP onde se diz: «... afigura-se-nos que o artigo 17° da LCC submete sempre a apreensão do correio electrónico, independentemente de se encontrar aberto ou fechado, à prévia autorização do juiz de instrução».
Assim sendo, não existem dúvidas que a lei exige prévia autorização judicial para a apreensão de correio electrónico e que só pode ser apreendido correio expedido pelo suspeito ou remetido a este.
No caso concreto, o TRL, na sequência do alegado pelo Mº Pº, considerou que o correio electrónico pode ser objecto de apreensão nos termos do disposto no art. 178º, nº 1 do CPP que dispõe que, são susceptíveis de serem apreendidos quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova.
Assim, na sequência da decisão do TRL, que julgou válida a apreensão de correio electrónico efectuada pela PJ, o correio electrónico relativo ao cidadão RR.. foi considerado como uma apreensão de um objecto nos termos do disposto no art. 178º, nº 1 do Código Processo Penal e dentro dos poderes do OPC que realizaram a busca.
Nesta conformidade, dado que essa apreensão foi validada pelo TRL e qualificada como uma apreensão de objectos sujeita ao regime do artigo 178º do CPP, não haverá lugar, no caso concreto, ao cumprimento do artigo 179º, nº 3 do CPP, uma vez que essa prova já se mostra validada e junta aos autos”.» (fim de transcrição)
***
Não se conformando com a referida decisão dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões: (transcrição)
1º) Investiga-se nos presentes autos a prática de factos susceptíveis de configurar a prática dos crimes de corrupção activa com prejuízo do comércio internacional, p. e p. no art. 7º da Lei nº 20/2008 de 21/04, de fraude fiscal, p. e p. no art. 103º e 104º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 05/06 e branqueamento de capitais, p. e p. no art. 368º-A do Código Penal.
2º) Com vista à recolha de prova da prática (ou não) dos mencionados crimes, foi determinada a realização de buscas, quer na sede da MM…., S.A.”, quer nas residências do seu Presidente do Conselho de Administração e respectivos Vogais, ao abrigo do disposto nos arts. 174º, nº 2 e 3, 176º e 177º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal.
3º) Por existir a probabilidade de que, nas residências acima indicadas e na sede da “MM…, S.A.” viessem a ser encontrados computadores, telemóveis, ou outros suportes electrónicos sob disponibilidade dos visados, com conteúdos relacionados com a prática dos supra referidos crimes ou que pudessem servir de prova dos mesmos, foi desde logo, pelo Mmº JIC, autorizado o acesso aos mesmos computadores, assim como aos demais sistemas informáticos, cópias de segurança e suportes informáticos ali existentes e cópia e apreensão da correspondência electrónica a realizar pela Polícia Judiciária.
4º) Em 11 de Outubro de 2017, foi efectuada busca à sede da MM…, S.A., que incluiu uma triagem informática, com recurso a ferramentas forenses, no respectivo servidor e, bem assim, além dos equipamentos informáticos dos vogais do Conselho de Administração, também de RR.., que, no momento da busca, se apurou tratar-se do contabilista da sociedade (cfr. auto de busca de fls. 408 e ss.).
5º) A correspondência de correio electrónico do contabilista da “MM… S.A.” (e que o mesmo dispõe nas instalações desta sociedade), é indiciariamente, para efeitos de avaliação de recolha de prova, correspondência que, em abstracto, poderá conter elementos que se relacionam com a actividade financeira da sociedade e como tal, face aos crimes em investigação (mormente, o crime de fraude fiscal e de branqueamento), poderá revelar-se de extrema relevância para a prova a produzir.
6º) Como o mandado de busca abrangia a globalidade das instalações da “MM…, S.A.” (e não só o gabinete ou a secretária dos suspeitos), também será de entender que a autorização para a recolha de correio electrónico na “MM….. S.A.”   abrangia a recolha das mensagens de correio electrónico de quem, no interior da “MM…, Lda.”, e de acordo com as informações que fossem sendo recolhidos no decurso das buscas, dispusesse de ficheiros nesse formato com relevância para a prova.
7º) A apreensão da caixa de correio electrónico de RR… mostrou-se, assim, no momento da busca e face aos elementos recolhidos no local por parte dos Sr.s Inspectores da Polícia Judiciária, uma diligência inteiramente proporcionada e imperativa à aquisição e recolha da prova.
8º) E a tal não obsta a circunstância de RR… não ser suspeito no âmbito da presente investigação, porquanto, são susceptíveis de serem apreendidos quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou seja, a faculdade de apreensão de coisas e de objectos necessários à “instrução” do processo abrange tanto os objectos em poder de/pertencentes ao suspeito ou indiciado, como os objectos em poder de, ou mesmo pertencentes a, terceiros.
9º) Por despacho de 30 de Outubro de 2017, o Mmº JIC, verificando que tinha sido apreendido o correio electrónico de RR.. e que o mesmo não se encontrava identificado como suspeito, considerou que a apreensão desse conteúdo extravasava o âmbito da autorização judicial para a recolha de correio electrónico e determinou a sua eliminação.
10º) Na sequência de recurso interposto pelo MP, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 8 de Maio de 2018, considerou válida e legítima a apreensão da caixa de correio electrónico de RR.., determinando a revogação do despacho recorrido, o qual deveria ser substituído por outro que não determinasse a eliminação dos ficheiros, contidos na caixa de correio electrónico, apreendidos a RR….
11º) A não eliminação dos ficheiros de correio electrónico, terá como decorrência processual, o estatuído no art. 179º, nº 3 do Código Processo Penal, ou seja, deverá o Mmº JIC ser o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo dos mesmos, tendo o MP apresentado os autos ao Mmº JIC para esse efeito.
11º) O Mmº JIC, porém, limitou-se a deixar permanecer os ficheiros de correio electrónico nos autos, afirmando que não haveria lugar ao cumprimento do disposto no art. 179º, nº 3 do Código Processo Penal.
12º) Ora, o facto de o Tribunal da Relação ter considerado válida a apreensão das mensagens de correio electrónico de RR…, não dispensa o Mmº JIC, de em momento subsequente, tomar conhecimento, em primeiro lugar do conteúdo da mesmas, uma vez que, a mera validação e junção aos autos da caixa de correio electrónico não permite ao MP ou ao OPC aceder ao seu conteúdo, sem o prévio conhecimento do seu conteúdo por parte do Mmº JIC, tal como previsto no art. 179º, nº 3 do Código Processo Penal.
13º) A não tomada de conhecimento, por parte do Mmº JIC, do conteúdo da caixa de correio electrónica apreendida, coloca a investigação numa situação de impossibilidade de aceder a eventual prova relevante constante da mesma.
14º) A omissão do exame da correspondência por parte do Mmº JIC constitui ela própria uma nulidade prevista no art. 120º, nº 2, al. d) do Código Processo Penal, por violação do disposto no art. 179º, nº 3 do Código Processo Penal.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, alterando-se a decisão recorrida em conformidade com o alegado.
V. Ex.as, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça. (fim de transcrição)
***
O recurso foi admitido (fls. 73 destes autos).
O Meritíssimo Juiz não deu cumprimento ao disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, o que é irrelevante para efeitos de decisão do recurso.
Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o douto parecer a fls. 124 aderindo às alegações do Ministério Público em primeira instância, concluindo pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II. Fundamentação
 
1. É pacífica a jurisprudência do STJ[1] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.
Da leitura das conclusões do recorrente a questão colocada a este Tribunal é saber se é admissível a abertura de correio electrónico de um não suspeito, cuja apreensão não foi previamente autorizada pelo juiz de instrução criminal e que foi apreendido ao abrigo do artigo 178º do Código de Processo Penal.
2. A Constituição da República Portuguesa consagra como direitos fundamentais, o direito à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações (artigos 26º e 34º).
Estes direitos, tal como os demais direitos liberdades e garantias previstos no texto constitucional, apenas podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na própria Constituição “(…) devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (artigo 18º, nº2) fazendo-se aqui apelo ao princípio da proporcionalidade, necessidade e adequação.
É tendo por base esta restrição proporcional que a Constituição, apesar de proibir a interferência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e em outros meios de comunicação, vem a permitir que a mesma se faça nos “(…)casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (artigo 34º, nº4).
Esta autorização de interferência está densificada nos artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal de uma forma bastante detalhada e tendo especial preocupação, por parte do legislador, em salvaguardar os referidos direitos liberdades e garantias constitucionais e por outro salvaguardar as exigências prevenção e repressão da criminalidade por parte do Estado e preservação do direito à segurança dos cidadãos enquanto direito constitucional (artigo 27º). A construção deste quadro normativo tem sempre na base a salvaguarda dos princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade.
O artigo 189º do Código de Processo Penal estabelece que o “disposto nos artigos 187.º e 188.º é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes.
Por sua vez o artigo 17º, da Lei 109/2009, de 15 de Setembro (Ciber Crime), sob a epígrafe, “Apreensão de correio electrónico e registos de comunicações de natureza semelhante”, estatui que, “Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal.”
Da leitura dos preceitos em causa resulta de forma linear, o que recorrente não contesta, que a apreensão de correio electrónico, só pode ser autorizada, em inquérito, por despacho do Juiz de Instrução,[2] desde que “se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova” e sempre sujeita a critérios de, proporcionalidade, indispensabilidade e manifesta necessidade,[3] interpretação esta que veio a ser reforçada com a actual redacção do artigo 189º, do Código de Processo Penal, resultante da alteração de 2007.[4]
Esta exigência de despacho judicial resulta de tal apreensão restringir direitos liberdades e garantias, consagrados nas normas constitucionais citadas e o seu controlo, em termos de restrição, se enquadrar na função jurisdicional dos tribunais[5] a qual, em sede de inquérito, compete em primeira linha ao Juiz de Instrução (artigo 17º do Código de Processo Penal).
  Feito este esclarecimento sobre a competência do Juiz de Instrução para autorizar a apreensão do correio electrónico, é claro e manifesto que, no caso dos autos, o correio electrónico apreendido a RR.. não teve o respaldo da autorização do Juiz de Instrução.
O Juiz de Instrução ao emitir os mandados de busca e apreensão teve o cuidado de elencar os suspeitos em relação aos quais autorizava a apreensão de correio electrónico. Ora, apesar desta declaração expressa do Juiz de Instrução, o órgão de polícia criminal em manifesta desobediência ao mandado judicial e numa interpretação alargada do seu âmbito, apreendeu correio electrónico de um terceiro, não suspeito e não incluído na autorização do despacho do Juiz de Instrução.
Esta apreensão sem suporte de autorização judicial implica e acarreta, em circunstâncias normais, a nulidade da prova, nos termos do artigo 190º do Código de Processo Penal.[6]
Porém, no caso sub judice e perante o despacho do Juiz de Instrução a determinar a destruição do correio electrónico do referido RR…, o Ministério Público interpôs recurso e este Tribunal da Relação veio a dar provimento ao mesmo e a considerar legal a apreensão do correio electrónico, nos termos e ao abrigo do artigo 174º do Código de Processo Penal.
Neste sentido, tendo a apreensão tido sido validada, nos termos e ao abrigo do artigo 174º a 178º do Código de Processo Penal, não há lugar, linearmente, como muito bem refere o Meritíssimo Juiz de Instrução no seu douto despacho, à aplicação do disposto no artigo 179º, nº 3 do Código de Processo Penal.
O acórdão do Venerando Tribunal da Relação, ao validar a apreensão, não se transforma ope judicis, numa espécie de autorização judicial a posteriori de apreensão do correio electrónico, como parece pretender o Ministério Público nas suas alegações. O acórdão limita-se a revogar o despacho que determinou a destruição do correio electrónico apreendido, o que o Meritíssimo Juiz de Instrução acatou e cumpriu.
Questão diferente dessa e agora em discussão no presente recurso, é saber se o correio electrónico apreendido sem autorização judicial pode e deve ser aberto pelo Juiz de Instrução, nos termos e para os efeitos do artigo 179º, nº 3 do Código de Processo Penal, como pretende o recorrente.
A resposta é simples e singela: não pode e não deve.
Basta a leitura linear do artigo 179º, nº 3 do Código de Processo Penal para fundamentar a resposta. O preceito refere expressamente: “O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência …”. Ora, no caso dos presentes autos o juiz não autorizou, nem ordenou, logo não tem que ser dado cumprimento ao preceito. O artigo 252º, nº1 do Código de Processo Penal aponta igualmente para esta interpretação.
Tem pois inteira razão o Meritíssimo Juiz de Instrução no seu douto despacho de indeferimento da pretensão do Ministério Público.
Não desconhecemos as dificuldades da investigação neste tipo de criminalidade (crimes de corrupção activa com prejuízo do comércio internacional, fraude fiscal, e branqueamento de capitais), nem a necessidade de compatibilização da preservação e integridade dos direitos fundamentais, com a possibilidade e necessidade de administração da justiça penal subjacente ao Estado de Direito.
Porém, o exercício do ius puniendi do Estado em matéria penal, apenas pode ser feito dentro dos limites que o Estado de Direito consagra e com o escrupuloso cumprimento da lei. A lei exige autorização judicial, logo deve ser obtida. Em matéria de direitos fundamentais não podem ser tidos em conta, especialmente em matéria de prova, princípios como o do “máximo aproveitamento” e muito menos quando está em causa a violação de direitos fundamentais.
Em resumo, não procede a alegação e pretensão do Ministério Público tal como ela se encontra estruturada.
Apesar do que fica dito, o recurso do Ministério Público é procedente por outro fundamento, ainda que não alegado, o qual pode ser conhecido por este tribunal de recurso, nos termos do artigo 410º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Vejamos.
O titular do correio electrónico RR.., na sequência do despacho do Meritíssimo Juiz de Instrução, foi notificado a fls. 102 verso e 103 destes autos de que lhe tinha sido apreendido o seu correio electrónico, bem como do recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação de Lisboa, relativo ao despacho que ordenou a destruição do correio electrónico.
Na sequência de tal notificação, a fls. 103 verso destes autos, RR.. titular do direito que a lei visa proteger, veio “(…) comunicar que não pretendo exercer o meu direito de salvaguarda do sigilo da minha correspondência”.
Ora, prescindindo o titular do direito ao sigilo da sua correspondência e sendo o mesmo disponível, nada obsta a que o mesmo seja lido. Supera-se, assim, por esta via, a falta de autorização judicial, tal como acontece nas buscas, nos termos do artigo 174º, nº5, alínea b), do Código de Processo Penal.
A nulidade decorrente da falta de autorização judicial (artigo 190º do Código de Processo Penal), é sanada pelo consentimento do titular do direito, aplicando-se aqui o artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Sanada a nulidade pelo consentimento do interessado titular do direito e tendo em conta que a sociedade arguida MM…, S.A., também eventual interessada e co-titular do sigilo do referido correio electrónico, foi alvo de busca e apreensão autorizada judicialmente, nada obsta a que o Meritíssimo Juiz de instrução proceda ao cumprimento do artigo 179º, nº 3 do Código de Processo Penal.

Em resumo, ainda que por fundamentos diversos dos alegados, nos exactos termos que ficaram referidos, procede o recurso do Ministério Público.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em, por fundamento diverso, conceder provimento ao recurso do Ministério Público e revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, nos termos e ao abrigo do artigo 179º, nº 3 do Código de Processo Penal, tome conhecimento, em primeira mão, da correspondência electrónica apreendida a RR.. e do seu conteúdo, nos concretos termos promovidos.

Sem custas por não serem devidas (artigo 522º nº 1 do CPP).

Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por dezassete páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2019.

Antero Luís
João Abrunhosa

[1]   Neste sentido e por todo, ac. do STJ de 20/09/2006 Proferido no Proc. Nº O6P2267.
[2] Neste sentido e por todos, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2011, proc. nº  5412/08.9TDLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, veja-se João Conde Correia, in Prova digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter, Revista do Ministério Público 139, Julho/Setembro 2014, pág. 40.
[3] No mesmo sentido e relativamente a tipo de prova semelhante, veja-se, Costa Andrade in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 290.
[4] Quer se considere que as Leis 32/2008 e 109/2009 revogaram parcialmente o Código de Processo Penal, quer se considere (doutrina maioritária) que as mesmas estão numa relação de complementaridade  
[5] Artigo 202º da Constituição da República Portuguesa.
[6] O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de Fixação de Jurisprudência 1/2018, de 30 de Novembro de 2017, a propósito do não cumprimento do prazo de 48 horas, estabelecido no artigo 188º, nº 4 do Código de Processo Penal, considerou tal nulidade sanável e dependente de arguição, nos termos dos artigos 190º e 120º, ambos do Código de Processo Penal. Publicado no Diário da República n.º 30/2018, Série I de 2018-02-12.