Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JOÃO CARROLA | ||
Descritores: | MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/04/2004 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO | ||
Sumário: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do tribunal da Relação de Lisboa: I. No processo comum n.º 68/03.8 PAMTA do 3.º Juízo do tribunal Judicial da Moita, o arguido (O) foi submetido a julgamento, após ter sido acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge previsto e punível pelo art.° 152.° n.° 2 do Código Penal. Realizada a audiência, sem documentação da prova produzida, por a mesma ter sido prescindida pelos intervenientes processuais, foi o arguido condenado, como autor material do crime pelo qual vinha acusado, na pena de prisão de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, suspensa na sua execução pelo período de um ano e dez meses. Inconformado com a decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, (...) II. Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do recurso por manifesta improcedência (art.ºs 412.º, 414.º e e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal) sendo por isso determinada a remessa dos autos aos vistos para subsequente julgamento na conferência (art. 419.º, n.º 4, al. a) do Código de Processo Penal). *** A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas: a rejeição formal, que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no art. 412.º n.º 2, e a rejeição substantiva, que ocorre quando é manifesta a improcedência do recurso A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores é patente a sem razão do recorrente. É o caso dos autos. *** Cumpre, agora, decidir do recurso apresentado pelo arguido. É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. Resumem-se a questão suscitada no presente recurso à qualificação jurídica dos factos provados no sentido de saber se integram o crime pelo qual o recorrente foi condenado ou se integram um crime de ofensas à integridade física. Nos termos do art.º 152º Código Penal, comete o crime de maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge: “1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação, ou como subordinado por relação de trabalho, pessoa menor, incapaz, ou diminuída por razão de idade, doença, deficiência física ou psíquica e: a) Lhe infligir maus tratos físicos ou psíquicos ou a tratar cruelmente; b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º. 2 - A mesma pena é aplicável a quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges maus tratos físicos ou psíquicos. O procedimento criminal depende de queixa.(...)” Como também se refere na decisão recorrida e citando Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra editora, pág.s 329 e seguintes: “a função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão "subtis " quão perniciosas - para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar - formas de violência no âmbito da família (...) (...) A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional..., mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.... Se em tempos passados, se considerou que o bem jurídico protegido era apenas a integridade física, constituindo o crime de maus tratos uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, hoje, uma tal interpretação redutora é, manifestamente, de excluir. A ratio desse art. 152º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, etc.)... Portanto deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico que pode ser afectado por uma multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, ..., afectem a dignidade pessoal do cônjuge....” Em regra o crime de maus tratos pressupõe alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade. Contudo e tal como tem vindo a ser decidido em instâncias superiores, o artigo 152° do Código Penal não exige como elemento objectivo do tipo, para verificação do crime nele previsto, uma conduta plúrima e repetitiva. As condutas que integram o tipo objectivo do crime previsto no artigo 152° do Código Penal podem ser de várias espécies: maus tratos fisicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças, injúrias), e podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes, a saber, ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação. De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime, as condutas que integram o tipo de ilícito não são individualmente consideradas enquanto integradoras de um tipo de crime para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge ou sobre menores. Assim e porque, como supra se referiu, as condutas que integram o tipo objectivo do crime de maus tratos podem ser susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem outros crimes, suscitam-se questões de qualificação jurídica e alguma complexidade reveste a questão de determinar se perante a factualidade considerada provada neste autos, se deve entender que o arguido praticou o crime de maus tratos, ou se praticou, antes, um pluralidade de crimes de tipo comum (nomeadamente de ofensas à integridade física). De facto, o crime de maus tratos, mormente quando a factualidade é subsumível ao n.° 2, pode concorrer com o de ofensa à integridade física; contudo, este concurso é aparente, ficando, então, consumido aquele que for passível de punição menos gravosa. Concorrendo com estes ilícitos penais, normalmente estes últimos ficarão consumidos pelo primeiro porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representam em relação a ele um minus. Deste modo, entre o crime de maus tratos físicos ou psíquicos (artigo 152°, n.° 1, alínea a) e 2 do Código Penal) e os crime de ofensas à integridade física simples (artigo 143°, n.° 1), existe uma relação de especialidade. O mesmo se diga em relação ao crime de maus tratos (psíquicos) através de ameaças ou de injúria, e os crimes de ameaça (artigo 153°) e de injúria ( artigo 181°), em que também o concurso é aparente cedendo estes àquele. Entre estas disposições legais e o artigo 152°, n.° 1, alínea a) e n.º 2 existe uma relação de especialidade, dado que toda a matéria de facto subsumível neste último preceito legal se integra inteiramente no âmbito mais vasto daquelas normas gerais. A razão de ser da agravação que subjaz à redacção do artigo 152° do Código Penal é derivada da especial relação entre o agente e o ofendido, que cria naquele uma particular obrigação de não infligir maus tratos ao familiar.” Ao agredir a vitima Rute Isabel o arguido ofendeu o corpo da mesma. Contudo, atento o que ficou exposto acerca das relações que se estabelecem entre estes crimes (no caso, de ofensas à integridade física) e o crime de maus tratos, neste caso ao cônjuge, associado a todo o circunstancialismo envolvente e, aos restantes factos considerados provados, entende-se que, que em termos de qualificação jurídica os factos devem ser subsumíveis ao artigo 152°, n.° 2 do Código Penal. O arguido usou, dolosamente, em relação à assistente, do mais comum meio de violência doméstica - maus tratos físicos (que incluem qualquer forma de contacto que magoe a vítima) – associada e antecipada de discussão. Independentemente do sentido da necessidade de reiteração que ao nível da jurisprudência tem sido seguido, mormente pelos acórdão citados na douta decisão recorrida, tem aqui pleno enquadramento a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão de 29 de Janeiro de 2003, proferido no recurso 3827/2002 in www.dgsi.pr/jtrc, no qual considerou que não são os simples actos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal. Ora a matéria de facto provada nestes autos, permite enquadrar a ofendida neste quadro, no período que mediou entre 21 de Novembro de 2002 e 3 de Março de 2003 (data que se provou como sendo a de separação), não sendo relevante esta data para se poder excluir desse mesmo ambiente os factos ocorridos a 10/3/2003. Os factos apurados preenchem os elementos objectivo e subjectivo do crime de maus tratos, pois revelam que o arguido no período compreendido entre o dia 21 de Novembro de 2002 e início de Março de 2003, de forma reiterada infligiu maus tratos físicos à ofendida, comportamentos que realizou, representando e querendo atingir a mesma pelo menos na sua integridade física. III. 1.º A sentença recorrida fez correcta e rigorosa qualificação jurídica dos factos provados, pelo que não justificava a critica que com a sua impugnação o recorrente lhe dirige. 2.º Pelo exposto, rejeita-se o recurso por manifestamente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida. 3.º Custas a cargo do recorrente, fixando a taxa de justiça em 6 UC’s com 1/3 de procuradoria e legal acréscimo. Feito e revisto pelo 1º signatário. Lisboa, 4 de Novembro de 2004. João Carrola Carlos Benido Ana de Brito |