Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27/20.6GBALM-A.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ATIVIDADE CRIMINOSA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - A continuação da actividade criminosa, que se pretende impedir mediante a medida de coacção, não pode abranger comportamentos que ultrapassem o prolongamento daquele que constitui o objecto do processo, sob pena de se transformar a medida de coacção numa medida de segurança.
- Com a alteração da alínea c) do art.º 204º CPP, operada pela Lei n.º48/2007, teve-se a preocupação de clarificar o texto legal, de modo a realçar que não se trata de acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas de prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual está indiciado no processo, nos termos do que já era o nosso entendimento.
- A jurisprudência tem identificado situações em que a obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva e com preferência sobre esta, não se mostra adequada à realização das finalidades cautelares visadas.
- É  o que ocorre, por exemplo, em certas situações de tráfico de estupefacientes, em que se identifique a existência de um forte perigo de continuação da actividade criminosa, sabido que o crime de tráfico, exceptuando na modalidade de "transporte", é um daqueles crimes que, com os meios de comunicação actuais e algumas ajudas, pode perfeitamente desenvolver-se a partir do interior de uma residência, sem conhecimento da entidade vigilante, já que não é possível efectuar qualquer "fiscalização" da actividade criminosa através do meio técnico de controlo pelo que, a partir de determinado patamar de perigo, nem mesmo a obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, previne o prosseguimento da actividade ilícita.
- Carece de razão de ser, a este propósito, a invocação do acórdão do TEDH, proferido no caso Qing v. Portugal (queixa n.º 69861/11), pois aí estava em causa, além do mais, a circunstância de, após o despacho de aplicação de medida de coacção, o tribunal, entre 14 de junho de 2011 e 30 de Janeiro de 2013, ter mantido sucessivamente a prisão preventiva com recurso a fórmulas estereotipadas, sem considerar concretamente os elementos que foram aduzidos pelo arguido tendo em vista o reexame da sua situação processual, o que não acontece no caso presente.
- Invocando o recorrente a situação prisional em que se encontra e as alegadas más condições prisionais, invocando a seu favor o acórdão do TEDH proferido no caso Petrescu c. Portugal (queixa n.º 23190/17) mas sendo objecto do recurso o despacho que impôs a prisão preventiva, os argumentos aduzidos pelo recorrente quanto às condições do estabelecimento prisional em que se encontra, ainda que eventualmente a considerar noutra sede, não podem ser atendidos como fundamentos do recurso do concreto despacho que, no quadro da indiciação e dos requisitos para aplicação de medida de coacção, decidiu aplicar-lhe a prisão preventiva.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1. Após primeiro interrogatório judicial, foi imposta ao arguido Q. , melhor identificado nos autos, a medida de coacção de prisão preventiva, por despacho de 6 de Agosto de 2020.
2. Recorreu o referido arguido, terminando a respectiva motivação com a formulação das seguintes conclusões (transcrição das conclusões):
1- O arguido foi detido e alvo de busca imediata: não lhe foi de imediato nomeado advogado nem explicitado em concreto o direito a defesa: o arguido é de nacionalidade Chinesa mas as autoridades policiais não o informaram, logo no momento inicial da abordagem, que tinha direito a ser assistido por advogado, o que traduz violação do art. 6.º- 1 e 3 da Convenção Europeia dos Direitos Homem; neste sentido o “affaire RODIONOV contra Rússia”, processo 9106/09 publicado em http//hudoc.echr.coe.int.
2- O arguido foi alvo de busca e apreensão e interveio no acto; não lhe nomearam intérprete pelo que todo o processado é nulo e de nenhum efeito, o que deve ser declarado de imediato. A nulidade da busca gera a nulidade da apreensão e actos subsequentes face à manifesta violação dos arts 6.º da Convenção Furopcia dos Direitos do Homem, 32.º da nossa Lei Fundamental, 174.º e 92.º-2 do Cod. Proc. Penal: os Mandados deveriam ter sido exibidos ao suspeito arguido antes da busca, traduzidos em Mandarim e explicado o respectivo teor; nada disto ocorreu pelo que os Mandados de busca e apreensão são nulos: cfr. acordão da Relação do Porto: proc. 256/16.7PAPVZ-B.Pl: É nula a busca domiciliária realizada em casa habitada por estrangeiro que não conhece nem domina a língua portuguesa, não lhe tendo sido nomeado intérprete, nem a autorização assinada se mostra traduzida para a sua língua natal in dgsipt
3- O Despacho violou os Princípios da Liberdade, da Mínima intervenção possível, da Proporcionalidade, da Substanciação e deve ser revogado; o Princípio da substanciação impõe a indicação especificada dos factos constitutivos – A. Reis, CPC Anotado, vol. II. p. 356 Manuel Andrade, ob. cit.. p. 297, Castro Mendes, Manual de Processo Civil. p. 299 e A. Varela Manual de Civil, p. 692 ; Menezes Cordeiro. Direitos Reais. 1979. 11; pág. 84 e Anselmo d<e Castro. Direito Processual Civil Declaratório, Almedina. Coimbra, 1981, 1 Vol.. pág. 207 208;....
4. O arguido está retido numa cela fria e húmida de 7 m2, sem  ventilação, sem condições físicas e anímicas, sem higiene, com mais 3 reclusos; constata-se sobrelotação prisional no EPL; nas últimas semana a cela foi invadida por pulgas que atacaram o arguido e lhe provocaram comichão; a alimentação é péssima; o orçamento do Governo de Portugal é de 1,29 € por dia para as 3 refeições de cada recluso. Portugal foi condenado pela Cour Européenne no “affaire PETRESCU contra Portugal” . processo 23190/17 face às péssimas condições prisionais: art.º 3.º da Convenção Europeia; em 4-9-2020 foi transferido, abruptamente, numa carrinha celular minúscula, algemado, para o EP Montijo.
5- Consta do despacho que se verificam os pericula libertatis, sem especificação como impõe o art. 204.º do CPP o que traduz nulidade; o perigo de obstruir o bom desenrolar do processo penal não pode ser invocado em abstracto pelas Autoridades, deve ser baseado em provas factuais concretas; o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já declarou por várias vezes que cabe aos órgãos jurisdicionais motivar de forma concreta, com base em factos relevantes, as razões pelas quais a Lei e a Ordem são realmente ameaçadas sob pena de violação dos Princípios da Liberdade e do respeito por tratados internacionais, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, art.s 5,º, o Pacto Internacional  Sobre Direitos Civis e Políticos, 9.º e 204.º do CPP, o que deve ser declarado;
6- Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão 69861/11 - publicado no site de apoio à Procuradoria Geral da Republica:www.gddc.pt e em http$://hudoc.cchr.coe.int , notificado à Exma Senhora Procuradora Geral da República de Portugal em 5-11-2015 que de conhecimento oficioso: na aplicação da prisão preventiva estão vedados “argumentos estereotipados” em desconformidade com o art. 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; não há lugar a “cripto-argumentos” aplicáveis mutatis mutandis a “N” arguidos na Justiça Portuguesa: publicado vidé ainda “CALMNOVICI contra Roménia”, de 1-7-2008, http//direitoshumanos.gddc.pt, de conhecimento oficioso.
7- No Despacho de 7-8-2020 os "termos estereotipados” são evidentes! constata-se EM CONCRETO que o arguido reside em Portugal há 20 anos; tem paradeiro certo conhecido dos OPC; tem apoio familiar, é empreiteiro; padece de angústia e depressão; nasceu cm 3-4-1972, está retido numa cela fria e húmida de 7 m2sem ventilação, vegeta no cárcere sem condições físicas e anímicas, sem dignidade e sem higiene, não há distanciamento social; na cela tem mais um recluso; nos corredores do EPL apinham-se dezenas de reclusos sen distanciamento social; constata-se sobrelotação prisional ao EPPJ.: a alimentação é péssima insuficiente e sem qualidade; o orçamento do Governo de Portugal é de 1.29€ por dia para a 3 refeições de cada recluso, padece de doença cardíaca, estomago e pulmões; corre o risco de INFECÇÃO; muitos reclusos são seropositivos; corre risco real e concreto de VIDA por infecção pelo CORONA VIRUS- COVID 19 !! inexistem em concreto os pericula libertatis...
8- O Despacho não é compatível com os arts. 204° CPP e 5°-3 da C.E.D.H.!! condições prisionais violam o art° 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - urge ordenar o mais urgente possível a feitura do Relatório junto da DGRSP e o arguido mantido na residência sob vigilância electrónica, ao abrigo dos artigos 201°. 204º do CPP 1.º 28º e 32º da Lei Fundamental, 5º- 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do acórdão desta Veneranda Relação de Lisboa de 11-2-2009 -proc 11271/2008 Relalor Senhor Juiz Desembargador Carlos Almeida e da MOÇÃO publicada na REVISTA MNISTÉRIO PÚBLICO representativa dos desígnios da LIBERDADE: "II) a prisão deve ser uma solução de último recurso. É portanto necessário pôr termo ao abuso da prisão preventiva; in REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO Ano 8.º - Abril 1987, n.º30, pág. 179-181.
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, no sentido de que o recurso não merece provimento, concluindo (transcrição das conclusões):
1) A lei processual penal não faz depender a validade da revista, da busca ou da apreensão da comunicação a um visado (suspeito ou denunciado) de que tem direito de acesso imediato a advogado; a obrigatoriedade de assistência por defensor está prevista para quem assuma a qualidade de arguido, e não para um suspeito, conforme artigo 64.° do Código de Processo Penal, qualidade que o recorrente não assumia quando foi abordado e feita a apreensão.
2) O recorrente Q. foi detido, ato contínuo constituído arguido e consequentemente informado de que lhe assistia o direito a constituir advogado ou a solicitar a nomeação de defensor, tendo procedido a constituição de mandatário, o que demonstra o cumprimento de todas as prerrogativas legais no que respeita a assistência por defensor.
3) Tratando-se, como no caso dos autos, de mandados de busca emanados de autoridade judiciária, não é legalmente exigível a tradução dos mandados, nem a presença de intérprete, ainda que os visados sejam cidadãos estrangeiros.
4) De todo o modo, o arguido e recorrente Q.  não foi interveniente nas diligências de busca (residência e armazém), não foi reclamada a sua presença (nomeadamente pelo seu cônjuge ou pelo seu filho no que respeita à sua residência), nem tinha que ser, por se tratar de ato processual independente da sua vontade e da sua presença.
5) A cópia dos mandados de busca foi entregue a quem, em cada um dos casos, tinha a disponibilidade do espaço (residência e armazém), não se suscitando então, nem posteriormente, qualquer questão atinente à compreensão do sentido e do alcance das diligências pelas pessoas presentes (embora também de nacionalidade chinesa), mostrando-se respeitadas todas as formalidades legais que presidem ao cumprimento dos mandados de busca.
6) A aplicação da medida de coação de prisão preventiva foi fundamentada e tal medida mostra-se necessária e adequada às exigências cautelares que se impõem e proporcional à gravidade do ilícito criminal indiciado, bem como à pena previsivelmente a aplicar ao arguido.
7) A medida de coação de obrigação de permanência na habitação não se mostra, em concreto, adequada às exigências cautelares que o caso requer, na medida em que não obsta à continuação da atividade de tráfico.
8) Mostram-se verificados todos os pressupostos de que a lei faz depender a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, que, por isso, se deve manter (artigos 191.°, n.° 1, 193.°, n.°s 1 e 2, 202.°, n.° 1, alíneas a) e c), e 204.°, alínea c), do Código de Processo Penal).
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso não deve ser provido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões a apreciar e decidir:
- da nulidade da busca e apreensão e dos atinentes mandados por alegada falta de nomeação de advogado e explicitação em concreto do direito ao mesmo, e bem assim por alegada falta de intérprete, invocando o recorrente a violação dos artigos 6.º da CEDH, 32.º da nossa Lei Fundamental, 174.º e 92.º-2 do Cod. Proc. Penal;
- da alegada violação dos princípios da liberdade, da mínima intervenção possível, da proporcionalidade e da “substanciação” e falta de fundamentação dos pericula libertatis;
- das condições em que o arguido/recorrente está preso;
- da possibilidade de aplicação da OPH com vigilância electrónica.
2. Elementos relevantes
2.1. A súmula do despacho recorrido, conforme consta do auto de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, é a seguinte (transcrição):
«Seguidamente a Mm.a Juíza de Direito proferido despacho, validando a detenção dos arguidos, tendo sido efectuada nos termos legais e tendo os mesmos sido apresentados no prazo legal, validando igualmente as buscas e apreensões efectuadas.
O Ministério Público apresentou os arguidos para primeiro interrogatório de arguido detido, pela prática, pelo arguido Q.  de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 21.°, n.° 1, por referência à tabela l-C do D. L. 15/93 de 22 de Janeiro e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.° 186.°, n.° 1, al. d) da Lei 5/2006 de 23/02, com referência aos art.°s 2.°, n.° 1, al. m), 3.°, n.°s 1 e 2, al. e) e 4.°, n.° 1, todos do mesmo diploma legal. Pelos Arguidos G. e J.  pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.° 21.°, n.° 1, por referência à tabela l-C do D. L. 15/93 de 22 de Janeiro ou eventualmente p. e p. pelo art.° 25.° do mesmo diploma legal.
Referindo os factos indiciados e já constantes do presente auto, mostrando-se fortemente indiciada a prática pelos arguidos Q. , G. e J.  dos crimes dos quais se encontram indiciados.
Por considerar existir perigo de continuação da actividade criminosa, perturbação do decurso do inquérito e face ao alarme social associado a este tipo de crime, termos em que, ao abrigo do disposto nos art.°s 191.°, 193.°, 196.° 199.°, 200.°, n.° 1, als. b) e d) e n.° 3 e 204.°, ais. a) e c) do C. P. Penal, determino que os arguidos aguardem os ulteriores termos do processo às seguintes medidas de coacção: 
Q. :
- Termo de Identidade e Residência, já prestado;
- Prisão preventiva.
Guoliang Shi:
- Termo de Identidade e Residência, já prestado;
- Obrigação de apresentação periódica no Órgão de Polícia Criminal competente com periodicidade semanal;
- Proibição de contactos com os restantes arguidos;
- Proibição de se ausentar, sem prévia autorização do Tribunal, do território nacional, com entrega do respectivo passaporte.
Jinyoung Xiao:
- Obrigação de apresentação periódica no Órgão de Polícia Criminal competente com periodicidade semanal;
- Proibição de contactos com os restantes arguidos;
- Proibição de se ausentar, sem prévia autorização do Tribunal, do território nacional, com entrega do respectivo passaporte.
(…).»
*
3. Apreciando
3.1. Invoca o recorrente a nulidade da busca e apreensão e dos atinentes mandados por alegada falta de nomeação de advogado e explicitação em concreto do direito ao mesmo, e bem assim por alegada falta de intérprete, socorrendo-se, para o efeito, dos artigos 6.º da CEDH, 32.º da nossa Lei Fundamental, 174.º e 92.º, n.º 2 do C.P.P.
As buscas são, em princípio, ordenadas ou autorizadas por despacho da autoridade judiciária competente, podendo, no entanto, nos casos delimitados no n.º 5 do artigo 174.º do C.P.P., ser efectuadas por órgão de polícia criminal sem a mencionada ordem ou autorização.
Tratando-se de uma busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada, a competência para a ordenar ou autorizar pertence ao juiz (artigo 177.º, n.º 1), sem prejuízo de, em determinados casos, poder também ser ordenada pelo Ministério Público ou efectuada por órgão de polícia criminal (n.º 3 desse mesmo preceito).
O regime da busca domiciliária está previsto no artigo 177.º, conjugado com o artigo 174.º e seguintes do C.P.P., normas que emanam do preceituado no artigo 34.º da Constituição da República (CRP), que consagra o domicílio como um direito inviolável, determinando o n.º2 desse artigo que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei.
Por força dos artigos 34.º n.º2 e 202.º, n.º2, da Constituição, 177.º, n.º1 e 269.º, n.º1, alínea c), do C.P.P., a autoridade competente para decretar (autorizar ou ordenar) a busca domiciliária é, como já se disse, o juiz. Porém, o consentimento do visado, documentado por qualquer forma, legitima a realização de busca domiciliária, a qualquer hora e no âmbito de quaisquer infracções criminais [alínea b) do n.º 5 do artigo 174.º e n.º 3 do artigo 177.º do C.P.P.].
Nas situações de pluralidade de habitantes do mesmo domicílio, coloca-se a questão de saber, face à protecção constitucional, de quem deve provir o consentimento: se de qualquer co-domiciliado que tenha a disponibilidade da habitação, se de todos ou se do visado pela diligência processual.
Trata-se de questão que, in casu, não interessa aprofundar.
O que importa reter é que a alegada questão da nacionalidade estrangeira e desconhecimento da língua portuguesa por parte do arguido/recorrente só seria relevante caso se tratasse de uma busca domiciliária legitimada no seu consentimento.
Realmente, a jurisprudência tem entendido não ser de considerar legalmente válido o consentimento prestado para a realização de busca domiciliária por quem não possui nacionalidade portuguesa e não conhece nem domina a língua portuguesa, não lhe tendo sido nomeado intérprete.
Neste sentido, os acórdãos da Relação do Porto, de 29/03/2017, processo 256/16.7PAPVZ-B.P1 (tinham sido assinadas autorizações de busca prestadas por estrangeiros, desconhecedores da língua portuguesa, sem que tivessem sido assistidos por intérprete e sem que as autorizações assinadas se mostrassem traduzidas na sua língua natal), e de Guimarães, de 23/10/2017, processo 14/17.1GABCL-A.G1 (considerou-se não válido o consentimento prestado para a realização da busca domiciliária por quem, não tendo a nacionalidade portuguesa nem dominando o português, o prestou na ausência de intérprete com compromisso prestado) – em www.dgsi.pt, como os que venham a ser citados sem outra indicação.
O acórdão da Relação de Lisboa, de 22/10/2008, processo 6945/2008-3, reportou-se às seguintes questões: saber se é válido o consentimento para a realização de uma busca domiciliária quando prestado por uma pessoa, comprovadamente, analfabeta; saber de quem deve provir o consentimento; saber se é válido o consentimento prestado pelo visado, quando for menor de 21 anos, sem que o mesmo se encontre assistido por defensor.
No caso, esta Relação, decidindo por maioria, entendeu: não ser válido o consentimento para a busca prestado por pessoa analfabeta; mesmo que esse consentimento fosse válido, o mesmo não podia nunca legitimar a realização de uma busca ao quarto do filho da pessoa que a tinha autorizado; a considerar-se que o visado também havia prestado o consentimento, este seria inválido por ter sido prestado por um menor de 21 anos, sem a assistência de defensor.
Por sua vez, o acórdão de 14/01/2016, desta Relação de Lisboa, proferido no processo 360/15.9PBLRS-A.L1-9, entendeu que sendo o visado (na altura da realização da busca domiciliária ainda não constituído como arguido) menor de 21 anos, impunha-se que o consentimento fosse dado na presença de defensor, o que, não tendo ocorrido, foi configurado como nulidade insanável.
Nos diversos acórdãos supra mencionados – de que o arguido/recorrente cita expressamente o da Relação do Porto, de 29/03/2017 -, as buscas domiciliárias tinham sido realizadas tendo por base o consentimento dos visados – que deverá ser livre e esclarecido -, pelo que assumiu relevância, para aferir da validade desse consentimento, a circunstância de ter sido prestado por menor de 21 anos, por pessoa analfabeta ou por estrangeiro desconhecedor da língua portuguesa, não assistido por intérprete.
Vejamos a tramitação processual.
Por despacho de 17/07/2020, do Ministério Público, foi determinada busca no armazém sito na Rua Almada Negreiros, lote 683, Fernão Ferro, de proprietário e utilizador então desconhecido, por haver a forte suspeita da prática de um crime de tráfico de estupefaciente p. e p. pelo artigo 21.º, n.º1, por referência à tabela I-C, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Realizadas diversas diligências de investigação e obtida a identificação como suspeito de Q. , o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal, e foi judicialmente determinada, a busca domiciliária à respectiva residência, sita na Rua …º esquerdo, Feijó.
O despacho judicial a determinar a realização da dita busca domiciliária, “com a apreensão de todos os objectos relacionados com o ilícito em investigação, se necessário com arrombamento de portas”, `à residência,  respectivos arrumos, anexos, garagens, caixas postais, barracões e sótãos”, foi proferido em 31/07/2020 (cfr. fls. 64 a 66 dos presentes autos).
Conforme resulta do auto de diligência externa de 04/08/2020 (fls. 70 a 72), nessa data os inspectores da Polícia Judiciária dirigiram-se à morada em causa, na qual se encontravam C. , cônjuge de Q.  (nascida em 03-09-1977) e K. . , filho do casal (nascido em 31-05-1995), na presença dos quais se procedeu à diligência, com entrega do mandado de busca e apreensão e cópia do despacho que o determinou.
O mesmo se retira também do correspectivo auto de busca e apreensão (fls. 73 a 75), no qual se fez constar que C.  e K. "prescindiram da presença de outrem".
Procedeu-se também a busca a veículos automóveis – igualmente legitimidada por mandados da autoridade judiciária. Quando se ultimava a busca à viatura de matrícula 06-UJ-69, surgiu Q. , o qual trazia consigo uma mala de viagem do tipo trolley e uma caixa de cartão, que pousou no porta-bagagens. Abordado pelos inspectores da Polícia Judiciária, que se identificaram nessa qualidade, Q.  encetou fuga, vindo a ser interceptado após perseguição em distância de cerca de 900m (cfr. “auto de notícia e de detenção em flagrante delito”, de fls. 258-260).
A caixa de cartão que o arguido trazia consigo tinha no seu interior uma substância que reagiu positivamente ao teste rápido efectuado como canabis, dissimulada em sacos de plástico de vácuo, película aderente de cor preta, fronhas de almofada e uma manta.
Fez-se constar que "Neste seguimento, Q.  foi detido em flagrante delito pelo crime de tráfico de estupefacientes."
Q.  foi, então, constituído arguido e o respectivo expediente de constituição traduzido para mandarim (fls. 261 a 264).
Na mesma data, 04-08-2020, procedeu-se a busca no armazém, com entrega do duplicado do mandado de busca e na presença de G. e J. , também detidos e constituídos arguidos (fls. 302 a 304, 333 a 343).
 Foi nomeado intérprete para tradução do português para o mandarim (fls. 348) e os arguidos Q. , K. , J. e G. constituíram mandatário (fls. 405 a 408).
No dia 05/08/2020 os arguidos foram apresentados a 1.º interrogatório judicial, que decorreu com a presença do mandatário e de intérprete.
Atente-se, finalmente, que o recorrente Q. , como o próprio alega também em sede de recurso, vive em Portugal há 20 anos, onde tem a sua família, dizendo ainda ser empreiteiro.
Perante este quadro, importa lembrar que, quando a busca domiciliária é legitimada pelo consentimento de visado, desde que «por qualquer forma, documentado» [alínea b) do n.º 5 do artigo 174º e n.º 3 do artigo 177º do Código de Processo Penal], a jurisprudência tem entendido, como já dissemos, que sendo o visado pela busca o arguido, o consentimento só pode ser prestado com a assistência do defensor sempre que ele, nomeadamente, for analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída (artigo 64.º).
Porém, num caso como o dos autos, em que existe autorização prévia da autoridade competente para a busca domiciliária – juiz de instrução -, a presença do arguido ou visado não é sequer obrigatória, podendo assistir à diligência e fazer-se acompanhar ou substituir por alguma pessoa que seja da sua confiança, não sendo exigível a comparência, nem o consentimento da pessoa visada com a busca, independentemente de a mesmo ser ou não analfabeta, estrangeira ou desconhecedora da língua portuguesa.
 Tratando-se de diligência processual ordenada por juiz em que não é obrigatória a presença do visado/arguido, a diligência em si está legitimada independentemente das condições pessoais do visado. Como se lê no acórdão da Relação de Guimarães, de 18/12/2017, processo 45/15.6GAMDL.G1, não é a presença ou ausência do arguido ou suspeito que a pode impedir “pois nem sequer a sua presença é determinante e, como tal, seja ele analfabeto ou não, esteja ele representado ou não a diligência tem lugar independentemente da sua presença. Estamos em condições de dizer mais: mesmo que presente, sendo analfabeto, e sem advogado, a diligência também seria realizável, sem estar ferida de nulidade, e tudo porque emana da ordem de um juiz. Diferente seria se não emanasse diretamente de ordem judicial, mas esse não é o nosso caso.”
Repare-se que o arguido não foi detido e alvo de busca imediata, diversamente do que alega.
Realmente, o arguido foi abordado, encetou fuga perante a identificação dos inspectores da Polícia Judiciária - percebendo por isso o que estava em causa (até porque correu 900m), foi apreendida a caixa de cartão que deixou no porta-bagagens e só perante o resultado desta diligência foi constituído arguido.
Então, foi-lhe comunicado, em português e em mandarim, que nessa qualidade lhe assistia o direito de constituir advogado ou de solicitar a nomeação de um defensor, conforme se alcança de fls. 261-264.
A lei processual penal não faz depender a validade da revista, da busca e da apreensão da comunicação a um visado (suspeito ou denunciado) de que, no momento em que se procede ao acto, tem direito de acesso imediato a advogado.
A obrigatoriedade de assistência por defensor está prevista para o arguido, e não para um suspeito, conforme artigo 64.º do C.P.P., qualidade que o recorrente ainda não assumia quando foi abordado.
Uma vez constituído arguido, foi informado dos seus direitos – incluindo o de constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor - e deveres processuais, nos termos do auto de constituição, em português e mandarim, tendo o ora recorrente, na sequência, constituído advogado.
Como facilmente se alcança, esta situação não tem qualquer semelhança com a do caso Rodionov c. Russia (queixa n.º 9106/09), que o recorrente invoca, objecto de acórdão do TEDH, de 11/12/2018 [Secção III], relativa à omissão de informar sobre o direito a um advogado no período compreendido entre a detenção e a colocação sob custódia da polícia e consequências sobre a equidade global do processo, centrando-se assim no "momento inicial" na detenção.
Em suma, o arguido/recorrente foi detido, acto contínuo constituído arguido e consequentemente informado de que lhe assistia o direito a constituir advogado ou a solicitar a nomeação de defensor, tendo efectivamente procedido a constituição de mandatário.
Não se vê, pois, em que foi preterido o direito do arguido a assistência por defensor.
Mais alega o recorrente a nulidade dos mandados de busca, por não terem sido exibidos a suspeito/arguido antes da busca, traduzidos em mandarim e explicado o respectivo teor.
Constitui nulidade a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória, o que não sucede quanto ao cumprimento de mandado de busca emitido por autoridade judiciária, tratando-se, como já se disse, de acto em que a presença do arguido ou visado/suspeito não é sequer obrigatória e que pode ser cumprido à revelia do suspeito ou arguido (artigos 92.º, n.º 2, 120.º, n.º 1, alínea c), e 176.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.).
Como já se fez notar, o acórdão da Relação do Porto, de 29/03/2017, que o recorrente invoca a seu favor, tem pressupostos totalmente diversos do caso que nos ocupa: tratava-se de uma autorização de busca, como tal dependente de consentimento.
Importa ainda dizer que, no que respeita aos mandados de busca, o recorrente não "interveio no acto", pois presentes no cumprimento do mandado de busca domiciliária estiveram C.  e K. , e no cumprimento do mandado de busca ao armazém estiveram G. e J. , aos quais foi entregue o duplicado.
O cumprimento do mandado de busca basta-se com a entrega da cópia do mandado a pessoa que tenha a disponibilidade do lugar e, mesmo na falta desta, a um parente, vizinho, porteiro ou alguém que o substitua (artigo 176.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).
 Tais formalidades foram cumpridas com a entrega dos mandados a quem respectivamente tinha a disponibilidade da residência e do armazém.
Quer isto dizer que as buscas, domiciliária, ao armazém e aos veículos, tiveram por base mandados das autoridades judiciárias competentes, e, pelas razões sobreditas, inteiramente válidas.
Decorreram no dia 4 de Agosto, nesse mesmo dia o recorrente foi constituído arguido, sendo presente no dia imediato a 1.º interrogatório judicial, tendo a assistência de advogado que constituiu e de intérprete. No 1.º interrogatório, como decorre do auto respectivo, foram-lhe comunicados os factos concretamente imputados e os eleementos do processo que os indiciam.
Não se verificam, por conseguinte, as invocadas nulidades por alegada violação – que não ocorre - dos artigos 6.º da CEDH, 32.º da CRP, 174.º e 92.º, n.º 2 do C.P.P.
3.2. Invoca o recorrente a violação dos princípios da liberdade, da mínima intervenção possível, da proporcionalidade e da “substanciação” e falta de fundamentação dos pericula libertatis.
De harmonia com o disposto no artigo 191.º, n.º1, do C.P.P., as medidas de coacção visam dar resposta a necessidades processuais de natureza cautelar que resultam da existência dos perigos ou de algum dos perigos enunciados nas três alíneas do artigo 204.º daquele diploma.
No que toca à exigência de fumus comissi delicti para que seja aplicada uma medida de coacção, é sabido que a aplicação da prisão preventiva, da obrigação de permanência na habitação e da proibição e imposição de condutas (artigos 200.º, n.º1, 201.º e 202.º do C.P.P.) pressupõe a verificação de fortes indícios da prática do crime em questão.
Questiona-se, por vezes, se a avaliação indiciária que permite a afirmação da existência de fortes indícios, para efeito da aplicação de uma medida de coacção que os exija como pressuposto específico, terá um conteúdo mais ou menos exigente do que a contida no conceito de indícios suficientes, para efeito de dedução de acusação ou prolação de pronúncia.
Inexiste, no texto legal, a definição do que se entende por “fortes indícios” e certo é que no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, se consagra o princípio da presunção de inocência (de onde emana o princípio “in dubio pro reo”) segundo o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
De acordo com a lição de Germano Marques da Silva ” (Curso de Processo Penal, II, 4.ª edição, Verbo, Lisboa, 2008, p. 294):
A indiciação do crime necessária para aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial significa probatio levior, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação” não podendo exigir-se “uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime”.
Adianta o mesmo autor que “nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos da prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição”.
Tal como refere Fernanda Palma, entendemos que os indícios de que resulta uma possibilidade razoável de condenação e que por isso são suficientes, na avaliação efectuada no final do inquérito e da instrução, não poderão deixar de ser graves ou fortes, “no sentido de serem factos que permitem uma inferência de tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável”. Os fortes indícios, por sua vez, caracterizam-se também por uma qualificação de intensidade, mas a sua avaliação, para aplicação de uma medida de coacção, poderá ocorrer em qualquer altura do processo, com base nos elementos probatórios então disponíveis, mesmo quando o inquérito ainda não permita a dedução de acusação por existirem outras diligências a realizar. No entanto, os indícios até então recolhidos, para serem avaliados como fortes, terão de ser já intensos, para que, com base neles e na representação dos factos que suscitam, o juiz possa formular já um juízo (provisório) sobre a prática dos factos de elevada probabilidade (sobre esta matéria, a referida autora pronunciou-se em “Acusação e pronúncia num direito processual penal de conflito entre a presunção de inocência e a realização da justiça punitiva”, I Congresso de Processo Penal – Memórias, Almedina, 2005, p. 122).
Analisado o recurso, constata-se que o arguido/recorrente não questiona directamente os indícios, nem a sua intensidade.
E, efectivamente, face à prova coligida, no quadro indiciário que a Mm.ª Juíza teve de avaliar, com os elementos disponíveis, entendemos não merecer qualquer reparo o juízo de forte indiciação, com base num juízo (ainda que provisório) sobre a prática dos factos imputados ao arguido/recorrente, de elevada probabilidade, nem a subsunção jurídico-criminal adoptada quanto aos factos indiciados: crime de tráfico de estupefacientes, p.  e p. pelo artigo 21.º, n.º1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C, anexa a esse diploma; crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º1, alínea d), do regime aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com  referência aos artigos 2.º, n.º1, al. m), 3.º, n.º1 e 2, al. e) e 4.º, n.º1, do mesmo diploma.
3.2.1. O despacho de aplicação de uma medida de coacção é um acto judicial decisório e, como tal, deve ser fundamentado, estando a decisão em causa sujeita, em termos gerais, à disciplina do artigo 97.º, n.º 4 e 5, e, em termos específicos, do artigo 194.º, n.º 6, do C.P. Penal.
A falta de fundamentação do despacho que aplique medida de coacção, que anteriormente constituía uma simples irregularidade, passou a configurar uma nulidade com a revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, encontrando-se o dever de fundamentação vinculado a um determinado conteúdo.
Como tal nulidade não está expressamente prevista como insanável (artigo 119.º), tem-se concluído tratar-se de uma nulidade relativa, nos termos do artigo 120.º do C.P.P. e, por conseguinte, dependente de arguição pelo Ministério Público ou pelo arguido, se presentes no acto, no próprio acto e antes que o mesmo termine – art. 120.º n.º 3, alínea a) –, perante o tribunal da decisão, sob pena de sanação (ver ac. da Relação do Porto, de 3.06.2009, processo 1324/08.4PPPRT-A.P1; ac. da Relação de Guimarães, de 18.01.2010, processo 758/09.1JABRG-H.G1; ac. da Relação do Porto, de 20.2.2010, processo 760/09.3PPPRT-A.P1; ac. da Relação de Coimbra, de 16.02.2011, processo 474/08.1JACBR-B.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt). 
Desde logo se constata que não foi arguida, no próprio acto, qualquer nulidade a respeito de qualquer pretensa falta de fundamentação.
Em todo o caso, mesmo admitindo-se, num entendimento mais favorável que também tem sido acolhido por alguma jurisprudência, que a arguição possa ser feita não já perante o tribunal da prolação da decisão controvertida, mas em fundamento de recurso (ao abrigo do artigo 410.º, n.º3, do C.P.P.), ainda assim, numa apreciação de meritis do argumento da falta de fundamentação, o mesmo não merece acolhimento.
Compulsados os autos de recurso, verifica-se que os mesmos são integrados, além do mais, por cópia (certificada) do auto de interrogatório judicial do qual consta, além do mais, a concreta indicação dos factos imputados e das provas, sendo que, posteriormente, o despacho de aplicação de medida de coacção indica os factos fortemente indiciados, a base probatória dos mesmos e a subsunção jurídico-penal, identifica os perigos previstos no artigo 204.º do C.P.P. e justifica com base nos mesmos a medida de coacção imposta.
O despacho de aplicação de medida de coacção, no que agora nos importa, considera, relativamente ao recorrente, fortemente indiciados os factos constantes da referida narração.
Está em causa uma actividade de plantação e cultivo de planta de canábis, com arrendamento de um armazém para o efeito, revelando algum nível de organização e sofisticação, tendo como “mentor” (assim se refere a Mm.ª Juíza) o recorrente, com apreensão nos autos, além do mais, de 6,900 kg de liamba dissimulados em três sacos de embalamento a vácuo, divididos em seis embalagens; 180 vasos contendo plantas de canábis; “pereiras” de secagem das plantas; 6,350 kg de bolotas de incubação de sementes; lâmpadas de iluminação e aquecimento de plantas; sementes de canábis folha com peso de cerca de 4,950 kg; sacos de plástico  contendo cabeças retiradas de plantas de canábis folha, com o peso de cerca de 700 g, 1,100 kg, 131 g e 250 g, etc.
Ouvida a gravação e lida a transcrição, verificamos que o despacho da Mm.ª Juíza não se circunscreve ao que sinteticamente ficou consignado no auto, fazendo a clara distinção entre o ora recorrente e os demais arguidos.
Não se pode dizer, por conseguinte, que o despacho seja do tipo tabelar ou “formatado” ou “estereotipado” para todos os arguidos, pois distingue, concretamente, quanto aos indícios e quanto aos perigos e exigências cautelares, os arguidos uns dos outros.
Perante os elementos probatórios reunidos nos autos, o tribunal a quo decidiu pela existência de fortes indícios da prática pelo arguido, ora recorrente, dos crimes supra referidos, em que se inclui um crime de tráfico, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos [artigo 202.º, n.º1, al. a), do C.P.P.] e que corresponde a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a três anos (artigos 1.º, al. m) e 202.º, n.º1, al. c), do C.P.P.].
Mais se entendeu verificarem-se, quanto ao recorrente, os pressupostos de que depende a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, designadamente, os perigos de continuação da actividade criminosa e de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, tomando-se tal medida de coacção como a única adequada ao caso.          
Como fundamento da aplicação desta medida referem-se as quantidades “muito consideráveis” em questão, a circunstância de o arguido/recorrente ser o “mentor” no quadro de uma actividade organizada, o facto de não exercer actividade profissional – disse ser empreiteiro, mas sem actividade e sem qualquer funcionário, tudo associado à natureza do crime de tráfico e revelador do perigo de continuação da actividade criminosa.
Referiu-se, outrossim, à natureza do bem protegido (a saúde pública) e às consequências nefastas para esse bem e para a sociedade em geral, que provocam justificado alarme e insegurança na comunidade, impondo uma actuação firme e eficaz, concluindo ser a prisão preventiva a única medida de coacção capaz de acautelar os referidos perigos - de continuação da actividade criminosa e o de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.
O artigo 193.º, n.º1, do C.P.P., estabelece que as medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Consagram-se neste preceito os princípios da adequação e da proporcionalidade.
O princípio da adequação exige que a medida seja apta e idónea para satisfazer as exigências cautelares do caso, devendo ser escolhida de acordo com estas exigências (e não outras). Como ensina Germano Marques da Silva, uma medida é adequada «se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares» (Curso de Processo Penal, II, 4.ª edição, Verbo, Lisboa, 2008, p. 303).
A adequação é qualitativa (aptidão da medida, pela sua natureza, para realizar os fins cautelares pretendidos) e quantitativa (no que toca à sua duração ou intensidade).
 Dispõe o n.º 3 desse mesmo artigo que a execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências que o caso requerer.
O princípio da adequação é integrado pelo princípio da proporcionalidade que impõe que a medida seja proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada. Deste princípio infere-se que ainda que uma medida de coacção possa ser justificada pelas exigências cautelares do caso, poderá a mesma não ser proporcional à gravidade do crime e à sanção que previsivelmente será aplicada ao arguido. A gravidade deverá ser ponderada em função do modo de execução do crime, dos bens jurídicos violados, da culpabilidade do agente e, em geral, de todas as circunstâncias que devem ser consideradas em sede de determinação da medida concreta da pena.
Em estreita ligação a estes princípios está o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva, consagrado pelo artigo 193.º, n.º 2, do CPP e em conformidade com o artigo 28.º, n.º2, da Constituição da República: a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes outras medidas de coacção constantes do catálogo legal.
As necessidades processuais de natureza cautelar a que as medidas de coacção pretendem dar resposta resultam da existência dos perigos ou de algum dos perigos enunciados nas três alíneas do artigo 204.ºdo C.P.P., referindo a alínea c):
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”
O mesmo artigo 204.º, alínea c), na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, reportava-se ao perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Como refere Germano Marques da Silva, este fundamento deve ser objecto de cuidadosa interpretação, em termos que o seu âmbito se restrinja às finalidades processuais cautelares atinentes às medidas de coacção, entendendo este autor que a aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão-só a continuação da actividade criminosa pela qual está já indiciado (ob. cit., p. 300 e 301).
Segundo este entendimento, a continuação da actividade criminosa que se pretende impedir mediante a medida de coacção não pode abranger comportamentos que ultrapassem o prolongamento daquele que constitui o objecto do processo, sob pena de se transformar a medida de coacção numa medida de segurança.
Com a alteração da referida alínea, operada pela Lei n.º48/2007, teve-se a preocupação de clarificar o texto legal, de modo a realçar que não se trata de acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas de prevenir a continuação da actividade criminosa pela qual está indiciado no processo, nos termos do que já era o nosso entendimento.
Ora, os fortes indícios revelam que o arguido/recorrente é o “mentor” de uma actividade organizada de plantação e cultivo de plantas de canábis, com apreciável dimensão e sofisticação, tendo por finalidade a obtenção de proveitos económicos através da venda a terceiros.
O papel do arguido/recorrente no seio da actividade organizada - e não meramente episódica -, a dimensão desta e a natureza do crime indiciado, a que acresce o facto de o recorrente não exercer actividade profissional, constituem, a nosso ver, elementos reveladores do perigo de continuação da actividade criminosa. Atente-se à quantidade e ao estado de maturação das substâncias apreendidas e às instalações de que o recorrente dispunha, elementos indiciadores de persistência na prática da actividade de tráfico de estupefacientes.
O desejo de obtenção de proventos económicos, a ganância do dinheiro fácil é a motivação do traficante de droga. A natureza das condutas em causa e a expectativa de obtenção de elevados réditos são facilitadores do prosseguimento das actividades ilícitas, perigo que não pode ser negligenciado, pois é efectivo e não uma mera abstracção, tanto mais que, como se disse, o arguido não tem actividade profissional.
Neste contexto, mostra-se fundado, a nosso ver, o juízo sobre a existência de um efectivo perigo de que o arguido, em liberdade, venha a dar continuidade à actividade criminosa em causa, reconhecendo-se, outrossim, ainda que em segundo plano, que a natureza do bem protegido e as consequências nefastas para esse bem e para a sociedade em geral, decorrentes de comportamentos criminosos como o  aqui em causa, provocam justificados sentimentos de alarme e de insegurança na população.
No presente caso, a medida imposta é adequada a realizar os objectivos que com ela se pretende, atingir – prevenir a concretização dos assinalados perigos – e, por outro lado, em caso de condenação pelos factos indiciados, não é de excluir que possa vir a ser aplicada prisão efectiva. Quer isto dizer que a medida imposta não se mostra desproporcionada à gravidade dos crimes e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas e é, de igual modo, adequada para conter os perigos identificados com a intensidade que os mesmos, no caso, manifestam.
Não será, portanto, por força da aplicação dos indicados princípios que a prisão preventiva deverá ser substituída por qualquer outra, designadamente pela obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.
A jurisprudência tem identificado situações em que a obrigação de permanência na habitação, como medida alternativa à prisão preventiva e com preferência sobre esta, não se mostra adequada à realização das finalidades cautelares visadas.
É  o que ocorre, por exemplo, em certas situações de tráfico de estupefacientes, em que se identifique a existência de um forte perigo de continuação da actividade criminosa, sabido que o crime de tráfico, exceptuando na modalidade de "transporte", é um daqueles crimes que, com os meios de comunicação actuais e algumas ajudas, pode perfeitamente desenvolver-se a partir do interior de uma residência, sem conhecimento da entidade vigilante, já que não é possível efectuar qualquer "fiscalização" da actividade criminosa através do meio técnico de controlo.
A partir de determinado patamar de perigo, nem mesmo a obrigação de permanência na habitação, com vigilância electrónica, previne o prosseguimento da actividade ilícita.
Assim acontece no caso em análise, até pela (indiciada) posição que o arguido/recorrente assume (de mentor) da “organização” e da ligação com outros que, a partir de casa, estaria em condições de comandar.
Do exposto conclui-se que o despacho recorrido não violou os invocados princípios da  liberdade, da mínima intervenção possível, da proporcionalidade, da “substanciação”, além de que os pericula libertatis encontram-se concretamente fundamentados no despacho recorrido.
Carece de razão de ser, a este propósito, a invocação do acórdão do TEDH, proferido no caso Qing v. Portugal (queixa n.º 69861/11), pois aí estava em causa, além do mais, a circunstância de, após o despacho de aplicação de medida de coacção, o tribunal, entre 14 de junho de 2011 e 30 de Janeiro de 2013, ter mantido sucessivamente a prisão preventiva com recurso a fórmulas estereotipadas, sem considerar concretamente os elementos que foram aduzidos pelo arguido tendo em vista o reexame da sua situação processual.
Não é essa, obviamente, a situação em causa nos presentes autos.
3.2.2. Invoca o recorrente a situação prisional em que se encontra e as alegadas más condições prisionais, invocando a seu favor o acórdão do TEDH proferido no caso Petrescu c. Portugal (queixa n.º 23190/17).
Não se desconhece tal aresto e outros similares, como o do caso J.M.B. e outros c. França (queixa n.º 9671/15 e mais 31), relativo à sobrelotação das prisões e condições dos reclusos em França.
Ocorre que objecto do recurso é o despacho que impôs a prisão preventiva.
Os argumentos aduzidos pelo recorrente quanto às condições do estabelecimento prisional em que se encontra, ainda que eventualmente a considerar noutra sede, não podem ser atendidos como fundamentos do recurso do concreto despacho que, no quadro da indiciação e dos requisitos para aplicação de medida de coacção, decidiu aplicar-lhe a prisão preventiva.
Vê-se, assim, que justificou-se a medida de coacção aplicada ao arguido-recorrente, a qual se mostra legal, necessária, adequada e proporcional, não se mostrando violadas quaisquer normas, designadamente as da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e as demais que o recorrente invoca sem fundamento no seu recurso.
Como é sabido, estamos numa fase indiciária, competindo-nos decidir sobre o despacho recorrido.
As medidas de coacção estão sempre subordinadas à cláusula rebus sic stantibus, pelo que, alterados os elementos dos autos, no decurso do processo, designadamente por via do desenvolvimento da investigação, quanto à indiciação ou quanto às exigências cautelares, o tribunal, oficiosamente ou mediante requerimento, não deixará de reponderar a situação.
Coclui-se que o recurso não merece provimento.
*
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido arguido Q..
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º1 do C.P.P., 8.º, n.º9, do R.C.P. e tabela III anexa a esse Regulamento), sem prejuízo de se poder vir a verificar a condição de que depende a isenção prevista na al. j) do artigo 4.º do RCP.
Remeta de imediato cópia deste acórdão à 1ª instância.

Lisboa, 24.11.2020
Luís Gominho                   
José Adriano