Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1663/15.8T8PDL-A.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
PATRIMÓNIO IMOBILIÁRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Verificando-se que uma empresa vem acumulando dívidas vencidas de elevado montante, que a sua actividade comercial está parada (ou quase), o facto de a mesma ser proprietária de bens imóveis só poderá relevar desde que seja conhecido o valor de mercado de tais imóveis.
-Sem se apurar o preço por que tais imóveis poderão ser vendidos, nem sequer se existe procura para os mesmos em termos de mercado, esse património imobiliário não altera a situação de incapacidade da empresa de obter liquidez para solver as dívidas vencidas.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:

 
Por apenso à ação especial de insolvência na 1663/15.5T8POL, na qual, por sentença de 07/09/2015, foi declarada a insolvência de M... Lda., requerida pelo N... S.A., veio a N... LDA, deduzir os presentes embargos, peticionando a revogação da sentença de declaração de insolvência.

Alegou, em síntese, que a insolvente tem vindo a efetuar pagamentos e que obteve a libertação de garantias bancárias, diminuindo, desta forma, o seu passivo. Mais acrescenta que a insolvente continua a exercer a sua atividade comercial, pelo que, apesar das grandes dificuldades com que se debate, está solvente e é viável. Por fim, peticiona o reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente, no montante de 7 562,81 €.
  
O N... S.A., apresentou contestação, alegando que todos os factos agora invocados já integravam os autos e foram tidos em consideração aquando da prolação da sentença de insolvência, pelo que devem ser julgados improcedentes. Também improcedente deve ser a reclamação de créditos da embargante, por inadmissibilidade legal. Por fim, e sabendo a embargante que o passivo da insolvente é na ordem dos quinze milhões de euros, age de forma altamente reprovável, pelo que tal conduta não pode passar impune.
  
Também a MASSA INSOLVENTE apresentou contestação aos embargos, pugnando pela sua improcedência, uma vez que todos os factos alegados são meras expetativas e previsões, sendo que a devedora se encontra, efetivamente, em situação de incapacidade para cumprir pontualmente com as suas obrigações.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância das formalidades legais, vindo a ser proferida sentença que julgou os embargos improcedentes.

Foram dados como provados os seguintes factos:
1)-M...  Lda., pessoa coletiva nº ..., com sede ..., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Ponta Delgada sob o mesmo número.
2)-A insolvente tem por objeto social o comércio de materiais de construção: construção geral de edifícios e obras de engenharia civil; arquitetura e técnicas afins; empreitadas e obras públicas; fornecimento de materiais de construção civil; compra e venda de bens imóveis.
3)-Por sentença proferida a 07/09/2015, já transitada em julgado, a M... Lda., foi declarada insolvente.
4)-No processo de insolvência consideraram-se confessados os factos articulados pela requerente.
5)-A embargante é credora da M..., no valor de € 7.562,81.
6)-A 31/12/2014 o total do ativo da M... era de € 12.580.272,99.
7)-A 31/12/2014 o passivo da M... era de € 11.140.652,98.

Inconformada, recorre a embargante, concluindo que:
-O objecto do  presente recurso abrange quer a decisão proferida sobre a matéria de facto controvertida, quer a decisão jurídica da causa.
-A recorrente impugna as respostas dadas aos factos constantes das als a), b) e c) dos Factos Não Provados.
-Ao julgar o  facto a) como "não provado", o Tribunal a quo ignorou a prova documental junta ao processo, em concreto as certidões prediais e os elementos contabilísticos da devedora  e violou os princípios do inquisitório, da  gestão processual  e da cooperação para a descoberta da verdade material (vd. arts. 11º do CIRE e 411º, 5º, 6º, 7º e 417º todos do actual CPC);
-Deve ser julgado como provado que a M... é proprietária de bens imóveis, em concreto dos bens imóveis  identificados nas certidões prediais juntas ao processo de fls. 74 a 110 (Docs 1 a 31 do requerimento apresentado no dia 30/09/2015) e que, na ausência de elementos que traduzam o justo valor de mercado de tais bens, o seu valor ascende, no mínimo, ao valor reflectido nos documentos contabilísticos da insolvente juntos ao processo (balancete de Janeiro e Junho de 2015 - conta nº 3 e 4 e balanços), atendendo-se às normas contabilísticas aplicáveis (directrizes contabilísticas que integram o Sistema de Normalização Contabilística), o qual é de €. 10.434.068.99;
-De acordo com o disposto nos arts. 3º e 30º, nº 4, ambos do ClRE, esta avaliação do activo e, consequentemente do património das sociedades insolventes, faz-se de acordo com as normas contabilísticas aplicáveis e mediante análise dos elementos de contabilidade, designadamente o balanço;
-Encontram-se junto ao processo os elementos contabilísticos necessários para se poder determinar o valor contabilístico dos bens imóveis (património) da M..., e no âmbito das declarações prestadas pelo declarante H..., TOC da insolvente, o Tribunal poderia ter solicitado todos os elementos e esclarecimentos necessários para uma melhor análise de tais elementos.
-Da análise dos referidos documentos resulta o seguinte: Obras em Curso, com o valor de € 7.900.473,04, representando 62.77% do seu total, e Edifícios e Construções, com  o valor de €. 2.533.595,95, representam cerca de 20.1%. O valor dos imóveis deverá ser entendido como sendo a soma dos Edifícios e Construções (Ativos Fixos Tangíveis) - As obras em curso - construção de imóveis (Inventários), os quais, estão contabilizados pela quantia de €. 10.434.068.9. 
-Ao julgar o facto b) como "não provado", o Tribunal a quo ignorou totalmente a documentação junta ao processo que prova os seguintes pagamentos efectuados pela  M...:
-€ 1.889,02, em Agosto de 2015, a S... (cfr. n.º 39, al. o) da p.i. dos Embargos e Doc. 14 junto com a p.i.);
-€ 4.720,00, em Fevereiro de 2015, à sociedade E... Lda. (fornecedor) (cfr. nº 39, al. p) da p.i. dos Embargos e Docs 15 e 16 juntos com a p.i.);
-€. 2.750,45, em Fevereiro de 2015, à sociedade Q... Lda. (fornecedor) (cfr. Nº 39, al. r) da p.i, dos Embargos e Doc. 17 junto com a P.J.);  
-€. 25.000,00, em Fevereiro de 2012, à sociedade G... (fornecedor) (cfr nº 39, al. i) da p.i. dos Embargos e Doc. nº 2 junto com o requerimento de 30/09/2015);
-€ 14.974,26, em Dezembro de 2012, à “A E... Lda. (fornecedora) (cfr. nº 39, al. a) da p.i. dos Embargos e Doc. 33 junto com o requerimento de 30/09/2015);
-€ 24.845,09, a Cruz Leal (fornecedor) (cfr. n.º 39, al. e) da p.i. dos Embargos e Doc. 34 junto com o requerimento de 30/09/2015};
-€. 12.914,47,  em Fevereiro de 2013, a J... Lda. (fornecedor) (Cfr. nº 39, al. j) da p.i. dos Embargos e Doc. 35 junto com o requerimento de 30/09/2015);
-€ 12.310,00,  em Dezembro de 2013, à A... (fornecedor) (cfr. nº 39, al. f) da pi. dos Embargos e Doc. 36 junto com o requerimento de 30/09/2015);
-Conforme resulta dos Docs 19 e 20 juntos à  p.i. dos embargos e dos Doc.s 38 a 43 do requerimento apresentado no dia 30/09/2015, a M..., para além dos pagamentos que efectuou, obteve a libertação das seguintes garantias bancárias:
I
-Garantia bancária nº 125-02-1460330, do M..., no valor de €. 27.500,00, em Maio de 2015 {Docs 19 e 20 juntos à p.i.):
-Garantia bancária n.º 781/09/00117, do B..., no valor de €. 31.832,07, em Abril de 2014 (Docs 38 e 39 juntos ao requerimento de 30/09/2015);
-Garantia bancária nº 2546000767393, do B..., no valor de €. 31.832,07, em Abril de 2014 (Docs 40 e 41 juntos ao requerimento de 30/09/2015);
-Garantia bancária n.º 7810900456, do B..., no valor de €. 77.275,78, e a Garantia bancária nº 7811000366, do B.... no valor de € 134.538.351 as  quais, em Agosto de 2014, integravam a lista dos créditos em Incumprimento e, em Setembro de 2015, já não integravam a relação das garantias bancária da M... no B..., por entretanto terem sido libertas (Docs 42 e 43 junto ao requerimento de 30/09/2015);
-Atentos os serviços prestados por A... e H... à M..., faz todo o sentido aqueles terem conhecimento dos pagamentos efectuados por esta, através da documentação que lhe é entregue pelo representante legal da sociedade. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, este facto dá credibilidade ao depoimento destas testemunhas;
-Com base numa análise crítica dos documentos juntos ao processo, em concreto dos Docs 13 a 20 juntos com a p.i, e os docs 3 a 4 juntos com o requerimento apresentado no dia 30/09/2015, conjugados com os depoimentos das testemunhas A... e H..., este quesito impugnado deve ser respondido do seguinte modo:
-De 2012 até à presente data a M... efectuou pagamentos aos credores, pelo menos, no valor de €. 99.403,29 e libertou garantias bancárias, pelo menos, no valor de 302.978,27.
-O Tribunal a quo nunca poderia ter dado como não provado o facto c);
Atentos os serviços prestados por A... e H... à M... faz todo o sentido e decorre da normalidade das coisas, que aqueles tenham conhecimento da vida da M... através dos documentos que lhes são entregues para tratamentos contabilísticos, pelo representante legal da sociedade;
-Da análise crítica da Demonstração dos Resultados do período de 2014 e do Balancete Razão referente ao período de Janeiro a Junho de 2015, juntos à p.i. dos embargos como docs 23 e 24, conclui-se que a M... continua a exercer actividade comercial;
-Nos referidos documentos contabilísticos, a M... apresenta rendimentos com vendas e prestação de serviços, ainda que de forma tímida;
-No processo existe prova documental de obras realizadas e de obras em curso, a saber: - Factura nº 1 de 22/07/2015, com o descritivo "Trabalhos efectuados de acordo com o previsto contrato de empreitada", no valor de €. 38.940,00 (cfr. Doc 26 junto à p.i. dos embargos);
I
-Factura nº 2 de 22/07/2015, com o descritivo "Trabalhos efectuados de acordo com o contrato", no valor de € 5.428,00 (cfr. Doc. 27 junto à p.i, dos embargos);
-Factura nº 3 de 22/07/2015, com o descritivo "Trabalhos a mais executados por solicitação e aprovação do dono de obra", no valor de €.13.383,86 (cfr. doc. 28 junto à p.i, dos embargos);
-Factura nº 9 de 22/07/2015, com o descritivo "Fornecimento de rodapé ,em madeira com acabamento em mogno", no valor de €. 493,24 (cfr. Doc. 29 junto  à p.i. dos embargos);              
-contrato de empreitada para remodelação de uma vivenda no ano de 2014 (referido, mas não considerado, pelo Tribunal a quo (cfr. Doc. 45 junto ao requerimento de 30/09/2015);
-O depoimento prestado pela testemunha do requerente N... S.A., C..., não devia ter merecido qualquer crédito pelo Tribunal a quo, pois o conhecimento que a testemunha tem do mesmo é um conhecimento indirecto, do que ouviu dizer;
-A actividade comercial da M... não se limita à  construção civil (execução de obras). De acordo com o nº 2 dos Factos Provados, a insolvente tem como actividade comercial o comércio de materiais de construção; construção geral de edifícios e obras de engenharia civil; arquitectura e técnicas afins; empreitadas e obras públicas; fornecimento de materiais de construção civil; compra e venda de bens ímóveis;
-A insolvente também tem como actividade comercial a compra e venda de bens imóveis e conforme resulta das certidões prediais e dos documentos contabilísticos juntos ao processo, a insolvente tem em carteira (em stock) inúmeros bens imóveis para venda.
-A recorrente discorda das conclusões do Tribunal a quo e entende que foi elidida a presunção legal de insolvência prevista nas alíneas do nº 1 do art. 20º do ClRE, por resultar provada a situação de solvência da M...;
-O Tribunal a quo na sua decisão desvalorizou totalmente os factos 6º e 7º dos Factos Provados;
-Os factos 6º e 7º resultaram da discussão dos embargos e tiveram por base os últimos elementos contabilísticos da devedora, juntos ao processo;
-Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal a quo,  estes factos não tinham sido apreciados aquando da declaração de insolvência;
-A declaração de insolvência teve por base os factos dados como assentes (tendo por base o efeito do cominatório), constantes dos arts 1º a 32º, 42º a 45º, 48º a 60º, 64º, 67º a 72º e 74º a 80º da petição inicial apresentada pelo requerente N..., nos quais  é alegado que o passivo da M... supera o seu activo e não o contrário (Cfr. Sentença de Insolvência);
-Conforme posição do Tribunal da Relação de Lisboa, "a oposição de embargos à declaração de falência pode ter por fundamento qualquer razão de facto ou de direito que haja justificado a declaração de falência, o que significa que a reapreciação em embargos à sentença falimentar não possui fundamentos taxativos, podendo desencadear a reapreciação da razoabilidade da declaração de falência. seja pela  invocação de novos factos, seja pela reconsideração dos já  ponderados na sentença que declarou a falência"  (Ac. RL de  22/06/2016);    
-De acordo com o Supremo Tribunal de Justiça "pode servir de fundamento 'aos embargos à sentença de falência "ser o activo superior ao passivo" (cfr. Acórdão de 27/11/1979, disponível em www.dgsi.pt);
-De acordo com o disposto no art.º 607º do CPC, o Juiz deve discriminar os factos julgados como provados e tomá-los em consideração na fundamentação da sentença;
-Com base em tais factos (6º e 7º), que deviam ter ser considerados e valorizados na Douta Sentença recorrida, conclui-se o seguinte: Sendo o Activo, naquela data de 31/12/2014, na quantia de €.12.580.272.79 e o Passivo na quantia de €. 11.140.652,98, os capitais Próprios da M... são positivos na quantia de €. 1.439.619.81, ou seja o Activo é superior ao Passivo na referida quantia de €. 1.439.619.81, e sendo o seu Capital Social na quantia de 1.000.000.00 euros, está salvaguardada a proporcionalidade exigida pelo artigo 35º do Código das Sociedades Comerciais;            
-De acordo com as normas contabilísticas aplicáveis, que actualmente se integram no Sistema de Normalização Contabilística, o activo é superior ao passivo quando o capital próprio é positivo, sendo que na situação dos autos o capital próprio da devedora, de acordo com os documentos contabilísticos juntos ao processo, ascende a €  1.439.619,81;
-Por força dos factos provados resulta que a M... tem um património activo que a ser liquidado (voluntária ou judicialmente) é susceptível de satisfazer o pagamento das suas obrigações vencidas perante o requerente N...;
-Pese embora os créditos do requerente N... poderem considerar-se de elevado valor (se bem que se encontram garantidos por hipotecas sobre imóveis) e não obstante a insolvente ser devedora a outros credores, não é menos verdade que o património da M... (€ 12.580.272,79) é  superior a todos aqueles débitos, pelo que dúvídas não existem de que resulta demonstrada a solvência da M...;
-Sendo que, o Activo/ Património da M... é preenchido sobretudo por um nó muito significativo de bens imóveis livres e disponíveis e que uma das actividades comerciais da M... é precisamente a compra e venda de bens imóveis;
-Pelo que, este Activo para além de superar largamente o Passivo da M... permite a obtenção de liquidez (pelas vendas), de modo a possibilitar à devedora o cumprimento pontual das suas obrigações, numa situação que se pode caracterizar como sendo de suficiência de Activo líquido (que permite a obtenção de liquidez) perante o Passivo exigível;
-Relativamente à actual situação económica da devedora, comprova-se, pois, conforme o atrás referido, que o Activo da M..., em 31-12-2014, é na quantia de € 12.580.272,79, que a M... é proprietário de bens imóveis cujo valor contabilístico ascende a €. 10.356.220,39, que a M... efectuou pagamentos aos credores e libertou garantias bancárias e que se encontra em actividade, ainda que de forma tímida, o que revela uma nítida e indesmentível capacidade patrimonial e vontade da devedora M... em continuar a liquidar as suas responsabilidades, apesar da sua difícil situação económico-financeira;
I
-Como se infere das disposições contidas nos art.ºs 1º, 3º, n.º 1, e 20º, nº 1, todos do CIRE, a situação de insolvência de uma pessoa, singular ou colectiva, de natureza empresarial ou não, reporta-se à sua esfera patrimonial e consiste, latu sensu, na incapacidade do seu património para cumprir a generalidade das obrigações vencidas (art. 3º, nº 1, do CIRE) (Ac. RP de 14/09/2010, disponível em www.dgsi.pt);
-O Tribunal da Relação de Évora, no Ac. de 07/12/2012, disponível em www.dgsi.pt. diz o seguinte: " ... para que o incumprimento assuma natureza presuntiva em relação à insolvência do devedor, é preciso que este, atentas as demais circunstâncias, permita concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada"; 
-No mesmo sentido, o mesmo Tribunal, nos seus Acs de 03/07/2008 e de 30/11/2006, disponíveis em www.dgsi.pt conclui, respectivamente, do seguinte modo:
I
"Deparamos com uma sociedade ou património autónomo em estado de falência quando é patente ser o activo insuficiente para liquidar o passivo."
"Só poderá ser decretada a insolvência de uma pessoa colectiva quando for alegado e provado a impossibilidade manifesta do seu activo garantir as obrigações vencidas” ; 
-Assim, in casu, não se verifica a presunção da insolvência prevista nas alíneas do nº 1 do art. 20º do CIRE, pois, os factos referidos no art. 20º do CIRE constituem meros índices da situação de Insolvência, tal como definido no art. 32º do CIRE, e, no caso concreto, esta foi afastada com a prova da solvência da M... [vd. Ac. RL de 04/12/2014, disponível em www.dgsi.pt);
Nestes termos, contrariamente ao concluído pelo Tribunal a quo, mostra-se ilidida a presunção de insolvência que fundamentou a sentença embargada, ao demonstrar-se nos presentes autos, com base na sua escrita obrigatória, a solvência da M...;
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue provados por procedentes os presentes embargos e, consequentemente, revogue a sentença de declaração de insolvência da M..., com todas as consequências legais.

O N... SA contra-alegou sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.

O presente recurso incide, antes do mais, sobre a decisão factual, nomeadamente os constantes de a), b) e c) dos factos não provados.
Assim, pretende a recorrente que se dê como provado que a M... é proprietária dos bens imóveis identificados nas certidões prediais juntas aos autos de fls. 74 a 110, cujo valor contabilístico ascende a € 10.434.068,99.

Note-se que o que havia sido alegado no requerimento inicial dos embargos, art. 32º, foi o seguinte:
“A sociedade M... é actualmente proprietária dos bens imóveis constantes da relação que se junta como documento nº 12, cujo valor actual de mercado ascende a € 9.652.000,00”.

Ora, o aludido documento 12, a fls. 40 e 41, consiste numa relação de diversos imóveis, sendo atribuído a cada um determinado valor de mercado mas sem a menor fundamentação.

E só o valor de mercado pode aqui relevar, ou seja, o valor que a M... poderá obter pela venda dos imóveis, para pagar as dívidas comprovadas. Não foi feita qualquer prova, não só da viabilidade de venda dos imóveis, como do preço que, atentas diversas circunstâncias – qualidade, estado de conservação, preços praticados na zona de implantação desses imóveis, existência de procura, etc. - poderá render tal venda.

De resto, o que foi alegado, como vimos, foi um dado valor de mercado, não um valor contabilístico, e esse valor de mercado não está provado, pelo que não podia ser outra a resposta do tribunal a quo.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda - “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” anotado, pág. 170 - “mas importa considerar que a simples exibição da escrita arrumada não é condição suficiente da prova da solvência (...) Por um lado, pode a escrita revelar um activo superior ao passivo e no entanto o devedor estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações por não dispor de meios líquidos para o efeito. Mas, por outro, pode o passivo ser superior  e o devedor continuar a cumprir, porque, apesar das dificuldades, tem a possibilidade de recurso a instrumentos – nomeadamente o crédito ou formas de suprimento de capital – que lhe conferem meios de pagar”.

Transpondo estas considerações para o caso em apreço, uma afirmação de solvência tem de se sustentar emn factos que demonstrem, no caso de activo imobiliário, o valor deste em termos de mercado: se pode ser vendido e por quanto.

Essa demonstração não foi feita pela embargante.

Insiste a recorrente que incumbia ao tribunal, no âmbito do princípio do inquisitório, realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente e relativamente a factos não alegados, as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, art. 11º do CIRE.

Sublinhe-se contudo que já foi proferida sentença que declarou a insolvência, na qual estas questões foram ponderadas.

Aqui, estamos perante uma oposição por embargos, nos termos do art. 40º do CIRE. Se é invocada dada factualidade, nomeadamente o valor de mercado do activo imobiliário da insolvente, é à embargante que incumbe a respectiva prova.

Voltando aos autores atrás mencionados, “a petição de embargos desencadeia a reapreciação da razoabilidade da declaração de insolvência (...) Tratar-se-á normalmente de avaliar novos factos trazidos ao processo pelo embargante. Mas poderá também ser o caso de deverem ser levados em conta factos que os autos documentam e que não foram considerados na sentença embargada, ou, como a lei declaradamente afirma, de serem produzidas provas que não foram tidas em conta pelo tribunal e que, precisamente por permitirem inquinar factos dados como provados ou apurar outros factos, sejam susceptíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência” - op. cit. Pág. 212.
Pretende ainda a recorrente que deveria ter sido dado como provado que “de 2012 até à presente data a M... efectuou pagamentos aos credores, pelo menos no valor de € 99.403,29 e libertou garantias bancárias, pelo menos no valor de € 302.978,27.”

O que havia sido alegado pela embargante, no artigo 38º do requerimento de embargos, é que havia feito os pagamentos constantes do documento nº 13 (fls. 41 verso a 43), tendo sido alegado no art. 39º a satisfação dos pagamentos listados de a) a r) desse artigo. Tais pagamentos, como alegado no art. 40º, ascendiam a  € 256.786,07.

Ora, o que resulta da fundamentação da decisão factual, é que o Mº juiz a quo entendeu não existir prova documental do pagamento de tal montante de € 256.786,07.

A prova apresentada a fls. 41º vº a 43 consiste numa lista elaborada pela insolvente com menção de diversos pagamentos a fornecedores, a trabalhadores e em processos.

A fls. 43 vº a 45 deparamos com uma declaração, uma nota de pagamento e um recibo, provindos de diversos fornecedores, atestando o pagamento das quantias de € 1.889,02, € 4.720,00 e € 2.750,45.

Quanto ao documento de fls. 113 trata-se de um pagamento à credora G... não se percebendo exactamente se esse pagamento foi feito através da garantia bancária prestada pelo M... em Fevereiro de 2012. No doc. de fls. 115 alude-se a extinção da obrigação da M... perante a credora H... Lda, mediante dação (bens móveis) a que foi atribuído o valor de € 14.974,26, em 14/12/2012.  O documento de fls.115 vº consiste numa listagem, ignorando-se a proveniência, encontrando-se a indicação manuscrita de “24.845.094 – total material levantado pela C...”, não constando qualquer data. A fls. 116 temos um recibo proveniente de J... referindo um encontro de contas e que a M... pagou em 25/03/2013 € 12.914,47 estando a dever  € 738,53. A fls. 116 vº um novo encontro de contas, em 19/12/2013, relativo à A...
A testemunha A... referiu que ainda não tinham fechado a contabilidade do ano de 2015, por falta de documentação, desconhecendo que pagamentos foram feitos e a quem. Também H... referiu que o seu conhecimento deriva dos documentos que lhe sejam entregues pela administração da M..., aludindo a um engenheiro C...

O certo é que a maioria destes alegados pagamentos são de 2012, nem sequer se podendo apurar se consistiram na entrega das verbas em dívida (uma dação é uma forma diferente de extinção total ou parcial de uma obrigação, um encontro de contas sem maiores especificações pode resultar de créditos recíprocos etc.) única maneira se apurar se a M... dispõe de liquidez para satisfazer os seus compromissos. E estes documentos não permitem comprovar tal facto, pelo menos desde 2012. 

Repare-se que a própria firma N..., ora embargante, não é paga pela M... relativamente aos serviços de contabilidade que efectua para ela, nos últimos cinco anos (ver depoimento de A...), o que levou à surpresa do Mº juiz a quo, mostrando dificuldade em compreender porque é que continuam a prestar tais serviços, mas a testemunha aludida não conseguiu responder, remetendo para os donos da empresa N...

Na verdade, não se prova de modo algum que a insolvente tenha efectuado pagamentos e muito menos no montante de € 256.786,07.

Há ainda a salientar um aspecto directamente ligado à razão de ser da própria figura dos embargos à declaração de insolvência.

A sentença que declarou a insolvência baseou-se em factualidade confessada pela devedora M.... Os presentes embargos teriam assim por finalidade afastar os fundamentos da declaração de insolvência, com base na apresentação de novos factos trazidos ao processo pelo embargante ou de pretender que sejam levados em conta factos que os autos já documentavam e que contudo não foram considerados na sentença aludida.

Contudo, os factos alegados pela embargante não estão documentados, quer quanto ao valor de mercado dos imóveis quer quanto ao pagamento de algumas dívidas. Para mais, neste último caso, a questão põe-se em termos de saber se estamos perante verdadeiro pagamento ou outra forma qualquer de extinção da obrigação. O que pretendemos dizer é que, existindo muito avultadas dívidas da devedora, só o pagamento mostraria a sua capacidade de liquidar os débitos, de apresentar liquidez.

Quanto à questão de a M... continuar a desenvolver a sua actividade, a testemunha A... afirmou que a empresa continua a ter actividade. Mas afirmou também que a empresa já não tinha trabalhadores. Aludiu finalmente a uma obra em curso.

A testemunha C..., do N... e que foi gestora de conta da M..., afirmou que na praça consta que a M... está parada, que não tem trabalhadores e que tinha em curso uma empreitada que também está parada. 

O único elemento de prova é a demonstração de resultados de fls. 49 (relativa a 2014) e o Balancete relativo a 2015. Em relação a este último, mais circunstanciado, constata-se uma situação em que a actividade está, mesmo no modo como a M... apresenta as coisas, nos seus limites mínimos, não se depreendendo dos fracos movimentos reportados a existência de uma actividade de construção civil. Por outro lado, a recorrente afirma que a insolvente prossegue também a actividade de compra e venda de imóveis e que sendo proprietária de diversos imóveis pode exercer tal actividade de venda.

Contudo, e este é um dos aspectos mais preocupantes da situação da M..., o certo é que a M... não vendeu qualquer imóvel o que, por uma mera questão de senso comum, leva a pensar se existe procura, em termos de mercado, relativamente a tal património imobiliário, tudo indicando que não, pelo menos no presente.

A prova oferecida não é de molde a modificar a apreciação já feita na sentença que declarou a insolvência, em processo onde, relembre-se de novo, foram dados como provados os factos alegados pelo requerente N..., por confissão resultante da falta de impugnação da requerida M....

O N..., requerente da insolvência, é credor da M... num valor superior a € 1.800.000,00. A M... tem dívidas vencidas, para com outros credores, superiores a € 3.000.000,00. A própria embargante não é paga desde 2010 pela M... pelos serviços de contabilidade que lhe presta, ascendendo o crédito neste caso a € 7.562,81.

Em 2015, mesmo a atender aos documentos juntos pela embargante, os ganhos da M... são pouco relevantes (estamos a basear-nos apenas no balancete e no tocante a clientes identificados, sendo que como A... referiu, à data do julgamento ainda não haviam fechadas as contas de 2015 por falta de documentação que estaria na posse do legal representante da M...).

Como dissemos, a documentação junta não mostra se foram efectuados pagamentos aos credores e qual o modo por que ocorreu a extinção de diversas garantias bancárias.

Dizer-se que a 31/12/2014 o activo da M... ascendia a € 12.580.272,99 e o passivo a € 11.140.652,98, afasta a aplicação imediata do art. 3º nº 2 do CIRE, mas não significa por si só que a devedora se ache em situação de solvência.

É através da aferição dos factos índice enumerados no art. 20º nº 1 a) a h) do CIRE que se poderá concluir pela situação efectiva do devedor.

A sentença que declarou a insolvência julgou verificados os seguintes índices de presunção de insolvência:
Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
O incumprimento generalizado de dívidas tributárias e contribuições e quotizações para a segurança social.
Nos presentes embargos, a embargante não logrou afastar as aludidas presunções.
Mais uma vez teremos de reiterar a irrelevância de um património imobiliário se não se demonstra o seu valor de mercado, ou seja, o preço pelo qual tais imóveis podem ser vendidos. Não é certamente por acaso que a insolvente não logrou vender tal património ou parte dele para solver dívidas há muito vencidas.
Estas dívidas são de montante bastante elevado e o própria embargante não logrou explicar (e muito menos provar) como poderá a M... obter liquidez para fazer face a tais débitos.
Por estas razões entendemos adequada a apreciação jurídica efectuada na sentença recorrida.

Concluindo-se que:
–Verificando-se que uma empresa vem acumulando dívidas vencidas de elevado montante, que a sua actividade comercial está parada (ou quase), o facto de a mesma ser proprietária de bens imóveis só poderá relevar desde que seja conhecido o valor de mercado de tais imóveis.
–Sem se apurar o preço por que tais imóveis poderão ser vendidos, nem sequer se existe procura para os mesmos em termos de mercado, esse património imobiliário não altera a situação de incapacidade da empresa de obter liquidez para solver as dívidas vencidas.

Termos em que se julga improcedente a apelação.
Custas pela apelante.



LISBOA, 9/3/2017



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: