Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
233/20.3T8VFX.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
SOCIEDADE DOMINANTE
DOMÍNIO TOTAL SUPERVENIENTE
DELIBERAÇÃO EXTINTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1 – Para a aferição de uma situação de domínio total superveniente nos termos do disposto no art. 489º do CSC, porque a lei erige em critério que a sociedade dominante «domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios», não se contam as participações próprias ou auto participações.
2 – No caso de domínio total superveniente, a relação de grupo forma-se com a aquisição do domínio total, atento o disposto no artigo 489º nº3 do CSC.
3 – Mesmo que se entenda fazer uma interpretação ab-rogante do nº3 do art. 489º do CSC, a relação de grupo forma-se sempre que, não ocorrendo qualquer das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do nº2 do art. 489º do CSC, decorram 6 meses sobre a aquisição do domínio total.
4 – As deliberações previstas no nº2 do art. 489º do CSC são deliberações sujeitas a registo obrigatório, não produzindo efeitos quanto a terceiros antes do respetivo registo.
5 – O decurso do prazo de seis meses previsto no nº2 e parte final do nº1 do art. 489º do CSC sem registo de qualquer deliberação extintiva, que resulte de um documento autêntico junto aos autos, pode e deve ser valorado pelo tribunal, atento o disposto no art. 11º do CIRE, mesmo não tendo sido alegado por qualquer das partes.
6 – O ónus de alegação e prova de uma deliberação extintiva da relação de grupo, tomada nos termos das alíneas a) e b) do nº2 e parte final do nº1 do art. 489º do CSC, pertence ao requerido, por integrar matéria de exceção perentória.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
Banco S, SA, intentou a presente ação declarativa com processo especial requerendo a declaração de insolvência de
AC, Lda
Para tanto alegou, em síntese, ser credora da AZ – Sociedade …, E.M., SA, empresa que se encontra insolvente e de que a requerida é acionista única, sendo assim responsável pelo pagamento dos créditos que detém sobre a AZ, nos termos dos arts. 491º e 501º do CSC.
Interpelou a devedora AZ para o pagamento dos créditos vencidos relativos a quatro empréstimos, e, após 30 dias, interpelou a requerida invocando a situação de domínio total, não tendo esta satisfeito a dívida que monta a € 7.563.881,42.
A requerida tem como única atividade a detenção da totalidade do capital da AZ, não mantendo qualquer atividade no momento, tendo pelo menos o passivo daquela, ou seja, cerca de onze milhões de euros. Não aprova contas desde que foi constituída, em 2017.
Citada a requerida deduziu oposição, pedindo seja julgado improcedente o pedido deduzido, alegando sucessiva e subsidiariamente, a ilegitimidade da requerente e a ilegitimidade da requerida por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Alegou, em síntese, que a requerente não é sua credora não tendo legitimidade para requerer a sua insolvência, que não se encontra em relação de grupo com a AZ, dado ser titular unicamente de 51% do capital social, não sendo, assim, responsável pelo seu passivo e que a requerente concedeu empréstimos à AZ quando esta estava já em incumprimento. Alega a sua solvência tendo atividade e prestando serviços, não tendo quaisquer credores, e existindo apenas atraso no registo da prestação de contas de 2018, a efetuar em 2019. Caso se entenda que existe uma relação de domínio entre si e a AZ, deveria ter sido requerida a insolvência das duas sociedades em simultâneo e em coligação.
A requerente respondeu à oposição, alegando que a requerida detém 51% do capital social da AZ, mas os demais 49% são ações próprias, o que faz dela a única acionista da referida sociedade. Afirma a sua legitimidade, dada a responsabilidade solidária da requerida pelas dívidas da AZ. Não foi preterido o litisconsórcio necessário passivo por inexistir no ordenamento jurídico português a figura das insolvências de grupo, não sendo aplicável o disposto no art. 36º do CPC.
A requerida veio, referindo exercer o direito ao contraditório, responder à resposta, reiterando os termos da oposição.
Realizou-se audiência de julgamento, na qual foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as exceções arguidas de ilegitimidade ativa da requerente e de ilegitimidade passiva da requerida, por preterição de litisconsórcio necessário ativo, e despacho identificando o objeto do litigio e enunciando os temas da prova, foi produzida prova e veio a ser proferida sentença julgando improcedente o pedido de declaração de insolvência da requerida.  
Inconformada apelou a requerente pedindo a revogação da sentença recorrida e a declaração de insolvência da requerida e formulando as seguintes conclusões:
“1. A AC, Lda detém a totalidade do capital social da empresa AZ – Sociedade …, E.M., S.A.
2. O Banco S detém um crédito sobre a AZ no valor aproximado de sete milhões e meio de euros.
3. Por força do disposto nos artigos 489.º, 491.º e 501.º do CSC, a AC, Lda deve responder perante o Banco S pelas dívidas da AZ.
4. A situação de domínio total da AZ pela AC, Lda justifica a existência do crédito do Banco S e a sua legitimidade para requerer a insolvência da AC, Lda.
5. A AC, Lda não tem condições de solver o seu passivo – perante o Banco S e perante outros credores – e reúne outros factos-índice da situação de insolvência, o que impunha que a mesma fosse decretada.
6. A AC, Lda recusou-se a prestar a mais singela informação ao tribunal, não tendo apresentado sequer as contas anuais.
7. A AC, Lda apresentou oposição em 16 de Abril de 2020 e, mesmo tendo sido expressamente notificada pela 1.ª Instância para o efeito, não juntou qualquer documento contabilístico até à presente data.
8. A AC, Lda nunca provou a sua solvência, desde logo porque nunca sequer juntou aos autos a suas contas anuais.
9. O comportamento da AC, Lda e do seu administrador KS são, no mínimo, suspeitos.
10. A aquisição da AZ pela AC, Lda e a forma como a AC, Lda geriu a AZ nos meses imediatamente anteriores à sua declaração de insolvência, levou a que o Administrador de Insolvência da AZ tivesse requerido a qualificação da insolvência da AZ como culposa e tivesse indicado como visados, entre outros, o Senhor KS (sócio e gerente-único da AC, Lda).
11. Também o Ministério Público aderiu a essa posição e, em particular, voltou a indicar como visados pela qualificação o Senhor KS, gerente e sócio da AC, Lda.
12. Há vários indícios de crimes económicos e actuações fraudulentas, e a AC, Lda nem se dignou a apresentar quaisquer documentos relativos à sua escrituração mercantil, sejam eles balanços, demonstrações de resultados ou balancetes.
13. Na sentença recorrida, a 1.ª Instância reconheceu que o facto de a AC, Lda deter 51% do capital social da AZ era apto a desencadear uma situação de domínio total superveniente da AZ pela AC, Lda, nos termos do disposto na primeira parte do artigo 489.º, n.º 1, do CSC.
14. Isso é consentâneo com a doutrina consensual sobre esta matéria.
15. O conceito de domínio total superveniente é o de uma sociedade que domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios; a lei não exige a detenção de 100% do capital social, precisamente porque podem existir acções próprias.
16. A sentença recorrida entendeu que o Banco S não fez prova de que não se encontrava verificada a situação descrita na parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC e que, como tal, não resultou demonstrada a qualidade de credor da AC, Lda.
17. A 1.ª Instância entendeu que cabia ao Banco S demonstrar que, a partir do momento em que adquiriu a AZ, a AC, Lda não tinha tomado nenhuma das deliberações a que alude a parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC (e que remete para as alíneas a) e b) do n.º 2 daquela norma).
18. Entendendo que não foi realizada essa prova, a 1.ª Instância decidiu contra o Banco S, não considerou verificado o domínio total superveniente para efeitos do disposto no 489.º, n.º 1, do CSC e não admitiu a aplicação do disposto no artigo 501.º do CSC (aplicado ex vi artigo 491.º do CSC).
19. Existem quatro razões que impõe a revogação da sentença recorrida.
20. Em primeiro lugar, existem elementos nos autos que permitem concluir no sentido de que a AC, Lda não tomou nenhuma das deliberações referidas na parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC.
21. As deliberações referidas na parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC dizem respeito à dissolução da sociedade e à alienação da sociedade dominada e a dissolução de uma sociedade está sujeita a registo (cfr. artigo 489.º, n.º 6, do CSC).
22. Da certidão permanente de registo comercial da AZ junta como DOC. 3 do requerimento de insolvência não resulta qualquer registo relativo à eventual dissolução da sociedade.
23. A AZ foi adquirida pela AC, Lda em Março de 2019 e a nova administração apresentou a sociedade a PER cinco meses depois dessa aquisição (cfr. artigos 6.º e 175.º do requerimento de insolvência).
24. O facto de a sociedade ter sido apresentada a PER pela nova administração – ainda para mais com vista à sua revitalização – e de ter sido declarada insolvente meses depois deixa claro que a mesma não foi dissolvida nem foi tomada nenhuma deliberação nesse sentido.
25. Na oposição ao requerimento de insolvência, a própria AC, Lda reconheceu que adquiriu os 51% do capital social da AZ e que o remanescente correspondia a acções próprias.
26. Também o Administrador de Insolvência da AZ reconheceu nestes autos que até à declaração de insolvência o capital social daquela empresa estava dividido entre 51% para a AC, Lda e 49% de acções próprias (cfr. requerimento de 18-10-2020, ref.ª citius 9929438).
27. Até à declaração de insolvência (que ocorreu oito meses depois da aquisição) não foi tomada nenhuma deliberação pela AC, Lda no sentido de vender as participações da dominada AZ.
28. Não foi tomada nenhuma das deliberações a que se refere a parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC e a 1.ª Instância dispunha de elementos suficientes para decidir nesse sentido.
29. Em segundo lugar, é hoje entendido pela doutrina que as deliberações a que se refere a parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC são desnecessárias nos casos em que o domínio total superveniente é constituído após deliberação da sociedade dominante nesse sentido.
30. Seria incoerente que o legislador tivesse admitido que a aquisição de uma sociedade pode ser decidida pela assembleia geral de outra sociedade e, no período de seis meses depois dessa aquisição, sujeitasse os mesmos sócios a deliberar sobre a não dissolução ou venda da sociedade adquirida para que então se constituísse o domínio.
31. Essa interpretação deixava na disposição da sociedade dominante a sujeição ao regime de domínio (nomeadamente, à responsabilidade da sociedade-mãe) ao mesmo tempo em que permitia que mantivesse a influência dominante.
32. Tendo em conta que a AC, Lda é uma sociedade por quotas, aplica-se o disposto no artigo 246.º n.º 2, alínea d) do Código das Sociedades Comerciais, que requer que compete aos sócios (da AC, Lda) deliberar sobre «A subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades e a sua alienação ou oneração».
33. Para adquirir a participação na AZ, os sócios da AC, Lda já se manifestaram no sentido de criar uma situação de domínio total superveniente, não fazendo sentido que voltassem a deliberar sobre a mesma matéria.
34. Tendo em conta que a aquisição da AZ ocorreu em virtude uma manifestação de vontade da AC, Lda nesse sentido, a 1.ª Instância deveria ter reconhecido a irrelevância daquelas deliberações neste caso concreto.
35. Em terceiro lugar, o legislador reconheceu que enquanto não for tomada nenhuma das deliberações do n.º 2 daquele preceito, a situação de domínio considera-se constituída (cfr. artigo 489.º, n.º 3, do CSC).
36. Se o domínio total superveniente se considera constituído desde a aquisição e até ao momento em que são tomadas aquelas deliberações, significa que as deliberações são factos extintivos da situação de domínio e não factos constitutivos.
37. A eventual ocorrência das deliberações a que alude a parte final do artigo 489.º, n.º 1, do CSC surge também como facto extintivo do direito de crédito do Banco S (por via dos artigos 491.º e 501.º do CSC).
38. Sendo a ocorrência das deliberações um facto extintivo do direito do Banco S, era sob a AC, Lda e não sob o Banco S que recaía o ónus da sua prova (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CCiv).
39. Entendendo a 1.ª Instância que não foi feita prova da não ocorrência de nenhuma daquelas deliberações, haveria que decidir contra a AC, Lda e dar por verificada a situação de domínio total superveniente e a qualidade de credor do Banco S.
40. O entendimento contrário (que foi adoptado pela 1.ª Instância na decisão recorrida) resultaria numa prova diabólica para o Banco S, na medida em que lhe imporia que provasse em juízo que a AC, Lda não tomou uma determinada deliberação.
41. Em quarto lugar, para além da dívida do Banco S, existem outros factos-índice e pelo menos outra dívida (já) reconhecida nos autos.
42. Encontra-se provado nos autos a realização de um empréstimo, feito nas vésperas da declaração de insolvência, pela AZ à AC, Lda, e em que interveio em nome de ambas as partes, configurando assim um negócio consigo mesmo, KS – como administrador da AZ e como gerente da AC, Lda.
43. O documento que formalizou este empréstimo foi junto aos autos (cfr. DOC. 1 do requerimento de 14-05-2020, ref.ª citius 9631048) e não impugnado.
44. A AC, Lda faltou à verdade nestes autos e omitiu ao Tribunal a existência de outros credores.
45. O que corrobora tudo quanto foi alegado em sede de requerimento de insolvência a propósito da sociedade não ter actividade (cfr. artigos 123.º e seguintes do requerimento inicial).
46. E que foi confirmado também pelo facto de ter sido a sociedade-mãe da AC, Lda, a P, a liquidar as suas dívidas fiscais, já na pendência destes autos (cfr. requerimento de 16-07-2020).
47. A AC, Lda é uma sociedade sem património, sem actividade, que está insolvente e que, sabendo disso, durante os onze meses de pendência desta acção, não juntou sequer ao processo os elementos a que se refere o artigo 24.º do CIRE.
48. Encontrava-se verificado, desde logo pela certidão do registo comercial, a verificação de um facto-índice: o atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas.
49. A AC, Lda teria sempre de «provar a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, devidamente organizada e arrumada» (cfr. n.º 4 do artigo 30.º do CIRE), o que não ocorreu.»
A requerida contra-alegou defendendo a improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida.
«1ª Conclusão: Veio a recorrente interpor recurso da sentença proferida nos autos no dia 25 de outubro de 2020 que julgou a ação improcedente e indeferiu o pedido de declaração de insolvência da AC, Lda.
2ª Conclusão: Porém, entende a recorrida que, atendendo a que o recurso versa sobre a matéria de direito, não se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso previstos no n.° 2 do art.° 639° do CPC, uma vez que, compulsadas as alegações e conclusão apresentadas, não foram indicadas normas jurídicas violadas; a recorrente não indicou o sentido com que, no seu entender, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas e a invocar erro na determinação da norma aplicável, não indicou a norma jurídica que, no entendimento da recorrente, devia ter sido aplicada.
3ª Conclusão: Como é sabido, ao recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando a sua alegação onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão está errada ou é injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objetivo que visa alcançar com o recurso.
4ª Conclusão: Ou seja, nas conclusões, a recorrente não deu cumprimento ao previsto nas alíneas a) e b) do n.° 2 do art.° 639° do CPC, limitando-se a não se conformar com a decisão proferida, embora indique e concorde com as normas aplicáveis que serviram de fundamento à decisão.
5ª Conclusão: Pelo que, salvo melhor entendimento, deverá determinar-se a inadmissibilidade do recurso interposto pela recorrente e não se conhecer do objeto do recurso.
6ª Conclusão: Inconformada, veio a recorrente recorrer da sentença proferida pelo tribunal a quo no dia 25.10.2020, que decidiu julgar a ação improcedente indeferindo o pedido de declaração de insolvência da AC, Lda.
7ª Conclusão: Porém, entende a recorrida que, a sentença proferida não merece censura, mostra-se correta, com a factualidade que lhe serviu de base concretamente e bem analisada e, sobretudo, fazendo uma correta interpretação e aplicação ao caso concreto dos dispositivos legais, apresenta-se devidamente fundamentada e com uma correta interpretação do direito.
8ª Conclusão: Desde já se diga que as considerações tomadas pela Recorrente no seu recurso a coberto da epígrafe Introdução, deverão ser consideradas não escritas na medida em que não tendo a Recorrente recorrido da matéria de facto, não poderá invocar quaisquer factos por si alegados ao longo do processo. Pelo que, o disposto nos artigos 1º até ao artigo 37° das alegações deverão ser desatendidos, e desconsiderados pelo tribunal por se considerarem não escritos.
9ª Conclusão: o Banco S, veio requerer a declaração de insolvência da AC, Lda, alegando para tanto, que:
- a AC, Lda detém 51 % das ações da AZ - Sociedade …, EM, SA;
- 49% das ações da AZ são ações próprias;
- foi declarada a insolvência da AZ em 28/11/2019;
- no processo de insolvência da AZ foram reconhecidos à Requerente créditos resultantes de quatro contratos de financiamento com as seguintes naturezas e montantes: crédito garantido no valor de € 2.304.645,58; crédito garantido no valor de € 2.713.417,18; crédito comum no valor de € 2.400606,66 e crédito garantido no valor de € 91.711,59;
- que a Requerida não tem outro património ou atividade;
- que houve lugar a dissipação de património;
- que tem dívidas a terceiros;
- que não presta contas há vários anos.
10ª Conclusão: Por sua vez, a requerida/recorrida deduziu oposição, defendendo, no que mais releva, que:
- a Requerente não detém um crédito sobre a Requerida pois esta não tem domínio total sobre a AZ;
- a Requerida não tem outros credores;
- a Requerida tem contas prestadas.
11ª Conclusão: importa apurar, em primeiro lugar, se a Requerente é substancialmente credora da Requerida, o que passa por apurar a existência de uma relação de domínio total da Requerida sobre a AZ.
12ª Conclusão: O douto tribunal a quo deu como provada a seguinte factualidade:
1) Em 11/3/2019, a AC, Lda celebrou acordo tendente à aquisição de 51% das ações da AZ — Sociedade …, EM, SA;
2) 49% das ações da AZ são ações próprias;
3) Em 4/4/19 foi tomada deliberação de designação de membros de órgãos sociais da AZ (Ap. de 12/4/2019).
4) Foi declarada a insolvência da AZ em 28/11/2019 (insc.19 - Ap. 4/20191202 Provisório por natureza) e nomeado Administrador da Insolvência.
5) No processo de insolvência da AZ foram reconhecidos à Requerente créditos resultantes de quatro contratos de financiamento com as seguintes naturezas e montantes: crédito garantido no valor de € 2.304.645,58; crédito garantido no valor de € 2.713.417,18; crédito comum no valor de € 2.400606,66 e crédito garantido no valor de € 91.711,59;
13ª Conclusão: Mais consta da douta sentença que, "não existem outros factos alegados e não provados relevantes para esta específica questão a apreciar. Da prova testemunhal ouvida não resultou apurada matéria relevante adicional sobre a questão da situação de domínio da AZ, de que aqui, em primeiro lugar, se trata
14ª Conclusão: Inconformada, veio a recorrente interpor recuso da sentença apresentando conclusões defendo em suma que detém um crédito sobre a Requerida e que existe um domínio total da requerida sobre a AZ;
15ª Conclusão: Sucede que, salvo melhor opinião, o recurso interposto pela recorrente não deverá proceder, devendo ser proferido acórdão que improceda o recurso e confirme a decisão recorrida.
16ª Conclusão: Decidiu e bem o douto tribunal a quo que, as normas aplicáveis ao caso são os artigos 486.° n.° 1 e 3, 488.° e ss. e ainda, por força da remissão operada pelo art. 491.°, os arts. 501 a 504.° todos do mesmo Código das Sociedades Comerciais.
17ª Conclusão: E que ao caso é aplicável, o art.° 486.°, n.° 1, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que se considera que “duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, dita dominante, pode exercer, diretamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.°, n.° 2, sobre a outra, dita dependente, uma influência dominante”.
Por seu turno, o n.° 2 do mesmo preceito dispõe que se presume "... que uma sociedade é dependente de uma outra se esta, direta ou indiretamente:
a) Detém uma participação maioritária no capital;
b) Dispõe de mais de metade dos votos;
c) Tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de administração ou de fiscalização”.
18ª Conclusão: Conforme resulta da sentença, e que não merece reparo, da conjugação destes preceitos resulta claro, que o domínio está ligado a uma situação de influência dominante numa sociedade, a qual não está necessariamente conexa com participação no capital, mas com a existência de condições para garantir essa influência determinante na sociedade dominada, seja por via do capital detido, dos direitos de voto ou da possibilidade de designar a maioria dos titulares de órgãos sociais de relevo.
19ª Conclusão: Os grupos constituídos por domínio total são aplicáveis os preceitos 488.° e ss. do CSC e ainda, por força da remissão operada pelo art. 491os arts. 501 a 504.° todos do mesmo Código.
20ª Conclusão: Por sua vez, o art° 501.° estabelece a responsabilidade da sociedade diretora para com os credores da sociedade subordinada.
21ª Conclusão: Quanto às situações em que se entende existir domínio total, dispõe o artigo 488.° sobre o domínio total inicial, prescrevendo no seu n.° 1 que “uma sociedade pode constituir uma sociedade anónima de cujas ações ela seja inicialmente a única titular”.
22ª Conclusão: O art.° 489.° do CSC dispõe sobre o domínio total superveniente, que nos termos dos n.°s 1 e 2 do citado art.° 489° do CSC, diz:
“1- A sociedade que diretamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.°, n.° 2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei, salvo se a assembleia geral da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do número seguinte.
2- Nos seis meses seguintes à ocorrência dos pressupostos acima referidos, a administração da sociedade dominante deve convocar a assembleia geral desta para deliberar em alternativa sobre:
a) Dissolução da sociedade dependente;
b) Alienação de quotas ou ações da sociedade dependente;
c) Manutenção da situação existente.” (sublinhado nosso).
23ª Conclusão: Sendo ao presente caso aplicado o regime legal acima indicado, importa apurar se desde a data da aquisição de 51% das ações da AZ pela AC, Lda até à data da declaração de insolvência da AZ existiu uma situação de domínio total da AC, Lda sobre a AZ.
24ª Conclusão: Não obstante, o douto tribunal a quo ter entendido e ter feito constar da sentença que, no caso em apreço, inexistindo outros sócios, titulares de direito de voto e de designação dos membros dos órgãos sociais, há que concluir que a AC, Lda exerceu uma influência a 100% sobre a AZ, a qual pode ser suscetível de consubstanciar um grupo constituído por domínio total e que, o facto de a AC, Lda deter apenas 51 % do capital, sendo os restantes 49% ações próprias da AZ, não configura óbice à eventual existência de grupo constituído por domínio total.
25ª Conclusão: Acontece, porém, que, a afirmação da existência de uma relação de grupo constituído por domínio total superveniente, importa, ainda, o preenchimento dos demais requisitos previstos no art. 489.°, n.°s 1 e 2 do CSC.
26ª Conclusão: Resulta, pois, da parte final do art. 489.°, n.° 1, conjugada com o n.° 2 do mesmo preceito que, um dos requisitos para a existência de relação de grupo constituído por domínio total superveniente é a ausência de deliberação da sociedade dominante no sentido de dissolução da sociedade dependente ou alienação das ações da sociedade dependente.
27ª Conclusão: Ou seja, a contrario, para não existir a relação de domínio total superveniente, tem de existir deliberação da sociedade dominante no sentido de dissolução da sociedade de pendente ou alienação das ações da sociedade dependente.
28ª Conclusão: Sucedeu que, conforme consta e bem da douta sentença, e de todo o modo, também a recorrente acaba por reconhecer nas alegações que apresentou, no caso concreto, não foram alegados factos relativos a tal matéria, nem resultou da prova produzida factos que nos permitam concluir no sentido de que a AC, Lda tomou uma deliberação no sentido da dissolução da AZ, da alienação das suas ações, de manutenção da situação existente ou se nenhuma deliberação chegou a tomar.
29ª Conclusão: Quer isto dizer que, a requerente/recorrente não alegou factos relativos a esta matéria (diga-se quanto à ressalva prevista na parte final do n.° 1 do art.° 489° do CSC), nem da prova produzida resultaram factos que nos permitam concluir no sentido de que a AC, Lda tomou uma deliberação no sentido da dissolução da AZ, da alienação das suas ações, de manutenção da situação existente ou se nenhuma deliberação chegou a tomar.
30ª Conclusão: Conforme resulta da sentença, não se sabe se houve esta convocação, qual o sentido da deliberação, se existiu, e se à data da declaração de insolvência em 28/11/19 estava em curso processo de dissolução voluntária ou de venda de ações.
31ª Conclusão: Assim, perante o regime do domínio total superveniente, que afasta do regime do grupo constituído por domínio total as situações em que há convocação de assembleia em seis meses subsequentes à constituição da situação de domínio não inicial para deliberar a dissolução ou venda de ações da sociedade dominada, e em face dos factos alegados e apurados, não é possível afirmar a existência deste tipo de relação de grupo por domínio total.
32ª Conclusão: Termos em que importará concluir que a Requerente/Recorrente não logrou demonstrar a sua qualidade de credora da Requerida, por não terem sido alegados e provados factos suficientes para se integrar o conceito de domínio total superveniente e consequentemente fazer aplicar o regime da responsabilidade solidária da AC, Lda com a AZ.
33ª Conclusão: Quanto às demais questões, ficaram prejudicadas em virtude de a requerente não ter logrado provar a relação de domínio total sobre a devedora e assim não logrando provar a sua qualidade de credora da devedora com legitimidade para requerer a insolvência.
34ª Conclusão: Pelo que, decidiu e bem o tribunal a quo julgar a ação improcedente, indeferindo-se o pedido de declaração de insolvência da AC, Lda.
35ª Conclusão: Note-se que, no próprio requerimento de declaração de insolvência, a requerente Banco S não alega a existência de qualquer relação de domínio da AC, Lda sobre a AZ fundamentadora da sua qualidade de credora dotada de legitimidade para requerer a insolvência.
36ª Conclusão: A requerente Banco S limita-se a arrogar-se credor AZ por créditos advenientes de quatro contratos de financiamento, que veio a ser declarada insolvente e que nessa medida arroga-se também credora da AC, Lda que alega deter o domínio total da AZ e assim é solidariamente responsável pelos pagamentos dos créditos que o Banco S detém sobre a AZ fundamentando-se nos artigos 491° e 501° n.° 1 e 2 do CPC).
37ª Conclusão: Sucede que, conforme alegado na oposição ao requerimento de insolvência, a Requerida não participou nos referidos contratos de empréstimo celebrados entre a requerente Banco S e a AZ, sobre os quais não possui qualquer responsabilidade,
38ª Conclusão: A Requerida AC, Lda não subscreveu, outorgou ou participou por qualquer meio ou forma nos referidos contratos de empréstimo,
39ª Conclusão: Da petição inicial de insolvência, verifica-se que o pedido de declaração de insolvência da Requerida assenta única e exclusivamente em alegados créditos da Requerente sobre a AZ e como tal inexiste qualquer crédito da Requerente sobre a Requerida.
40ª Conclusão: A requerente não é credora da Requerida, que a legitime a requerer a insolvência da requerida socorrendo-se do art.° 20° do C1RE
41ª Conclusão: Não pode proceder a tese da Requerente, de que a Requerida se encontra numa situação de domínio total da AZ e que por isso a responsabilidade da Requerida é solidária, de acordo com o disposto nos artigos 491° e 501° ns.º l e 2 do Código das Sociedades Comerciais,
42ª Conclusão: A requerente não logrou provar essa relação de domínio total.
43ª Conclusão: Sendo certo que, a Requerida é detentora de 51% do capital social da AZ, no entanto inexiste qualquer outra relação entre ambas, - n.° 1 do art.° 483° do CSC.
44ª Conclusão: Ora, contrariamente à tese aventada pela requerente, para que uma sociedade se encontre numa posição de domínio total perante outra, terá a Sociedade dita dominante de ser detentora da totalidade do capital social da sociedade dita subordinada,
45ª Conclusão: O que não ocorre, in casu, porquanto a Requerida não é detentora da totalidade do capital social da AZ.
46ª Conclusão: Contrariamente à tese defendida pela Requerente, não pode aplicar-se no caso em apreço o preceituado no artigo 501° do CSC, uma vez que, inexiste qualquer contrato de subordinação e/ou domínio total entre as Sociedades - Requerida e a AZ.
47ª Conclusão: Pois, o art.° 501° do CSC, contém a responsabilidade da sociedade diretora de um grupo formado por contrato de subordinação, perante os credores da sociedade subordinada.
48ª Conclusão: Portanto, a tese da requerente Banco S passa por defender uma situação de domínio total da AZ pela AC, Lda justificativa da existência do crédito do Banco S e a sua legitimidade para requerer a insolvência da AC, Lda.
49ª Conclusão: Porém, a tese da requerente não pode proceder, porquanto, não logrou provar a existência de uma relação de domínio total da Requerida AC, Lda sobre a AZ e como tal, soçobrou a prova da sua qualidade como credora que a legitimasse a vir requerer a insolvência da devedora.
50ª Conclusão: Por fim e para o que aqui importa apurar da existência ou não, da situação de domínio total da AZ pela AC, Lda, justificativa da existência do crédito do Banco S e a sua legitimidade para requerer a insolvência da AC, Lda, rege o art.° artigo 489.° do CSC, que nos diz que para a verificação de existência de uma relação de domínio terá de se verificar a ausência das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do n.° 2.
51ª Conclusão: Ou seja, para provar a existência da relação de domínio total da AZ sobre a AC, Lda, impunha-se à requerente alegar e provar a não verificação das situações previstas nas alineas a) e b) do n.° 2 do art° 489° do CSC que obstasse ao afastamento do regime de domínio total superveniente.
52ª Conclusão: O que a recorrente não logrou fazer.
53ª Conclusão: Pelo que, decidiu e bem a 1ª instância em julgar como não verificada a situação de domínio total superveniente da AC, Lda sobre a AZ.
54ª Conclusão: E não venha a recorrente alegar que existiam elementos nos autos que permitem concluir que tais deliberações não foram tomadas, pois, como bem, decidiu o douto tribunal a quo, tais factos nem, sequer foram alegados pela requerente, nem resultou da prova produzida que se verificou ou não as circunstâncias previstas nas alíneas a) e b) do n.° 2 do ° artigo 489.° do CSC.
55ª Conclusão: Também não merece qualquer acolhimento a tese aventada pela recorrente da desnecessidade das deliberações a que se refere a parte final do n.° 1 e as alíneas a) e b) do n.° 2 do artigo 489.° do CSC para que se verifique a ausência do domínio total superveniente, desde logo, porque tal requisito resulta expressamente da lei.
56ª Conclusão: A recorrente limita-se, sem mais, a demonstrar o seu inconformismo com a decisão proferida pelo tribunal a quo.
57ª Conclusão: A recorrente não alegou nem provou os factos constitutivos da sua situação de credora, nomeadamente, da sua situação de domínio total supervivente que a legitimasse a vir requerer a insolvência da recorrida. 
58ª Conclusão: Salvo o devido respeito, a recorrente parte de uma premissa errada quando defende que a ocorrência das deliberações a que alude a parte final do art.° 489° n.° 1 do CSC, surge como facto extintivo do direito de crédito da recorrente.
59ª Conclusão: Quando, na verdade, se impunha à recorrente para prova da relação de domínio que alegou existir entre a AC, Lda sobre a AZ, alegar e provar a não verificação da situação prevista parte final do art.° 489° n.º 1 do CSC e nas alíneas do n.° 2 do citado preceito.
60ª Conclusão: O que a recorrente, não fez.
61ª Conclusão: Pelo que, bem andou o tribunal a quo ao decidir como decidiu de que tais factos não foram alegados pela recorrente nem resultou da prova produzida factos que permitam, concluir no sentido da verificação ou não verificação das deliberações a que aludem as alíneas do n.° 2 do citado preceito.
62ª Conclusão: Ficou, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões.
63ª Conclusão: Andou bem o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, julgando a ação improcedente, indeferindo o pedido de declaração de insolvência da AC, Lda.
O recurso foi admitido por despacho de 14/12/2020 (ref.ª 146714204).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas a questão a decidir é a da verificação de se existe uma relação de grupo entre a requerida e a AZ, devedora da requerente, que permita a aplicação do disposto no art. 501º do CSC.
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3. Fundamentos de facto:
O Tribunal de 1ª instância proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto com interesse para a específica questão que identificou – apurar da existência de uma relação de domínio total da requerida sobre a AZ:
“Mostra-se provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da específica questão acima referida, com base no acordo das partes e na prova documental junta aos autos:
- Em 11/3/2019, a AC, Lda celebrou acordo tendente à aquisição de 51% das ações da AZ – Sociedade …, EM, SA;
- 49% das ações da AZ são ações próprias;
- Em 4/4/19 foi tomada deliberação de designação de membros de órgãos sociais da
AZ (Ap. de 12/4/2019).
- Foi declarada a insolvência da AZ em 28/11/2019 (insc.19 – Ap. 4/20191202 Provisório por natureza) e nomeado Administrador da Insolvência.
- No processo de insolvência da AZ foram reconhecidos à Requerente créditos resultantes de quatro contratos de financiamento com as seguintes naturezas e montantes: crédito garantido no valor de € 2.304.645,58; crédito garantido no valor de € 2.713.417,18; crédito comum no valor de € 2.400606,66 e crédito garantido no valor de € 91.711,59;
Não existem outros factos alegados e não provados relevantes para esta específica questão a apreciar. Da prova testemunhal ouvida não resultou apurada matéria relevante adicional sobre a questão da situação de domínio da AZ, de que aqui, em primeiro lugar, se trata.”
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4. Fundamentos do recurso:
Prescreve o art. 3º nº 1 do CIRE aprovado pelo Decreto Lei nº 53/04 de 18 de março, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto Lei nº 200/04 de 18 de agosto (diploma a que pertencem todos os artigos infracitados sem indicação), que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. O nº 2 do mesmo preceito acrescenta que, no caso de o devedor ser uma pessoa coletiva ou património autónomo por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, direta ou indiretamente, é também considerado insolvente “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
A situação de insolvência consiste, como resulta da noção legal, na impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas – fórmula com largas tradições no ordenamento jurídico português e que corresponde à noção quer da lei alemã (§17 da Insolvenzordnung) quer da lei espanhola (artigo 2º-2 da Ley Concursal), os dois diplomas identificados como grandes inspiradores do CIRE.
Quando, como no caso sub judice, o pedido de declaração de insolvência não é formulado pelo devedor, a legitimidade ativa (ad substantium) é condicionada pela verificação de certas situações, elencadas nas alíneas a) a h) do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Há que considerar, quanto ao ónus da prova, que ao credor requerente da insolvência é quase impossível demonstrar o valor do ativo e do passivo da requerida, bem como a carência de meios para satisfação das obrigações vencidas.
Ciente desta dificuldade, a lei basta-se, nos casos de requerimento de declaração de devedor por outros legitimados, com a prova de um dos factos enunciados no art. 20º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, que permitem presumir a insolvência do devedor.
Ou seja, por um lado os factos que integrem cada uma das previsões do art. 20º nº1 são requisitos de legitimidade para a própria formulação do pedido pelo credor e, por outro, são também condição suficiente da declaração de insolvência[1].
Tal conclusão retira-se linearmente das disposições contidas no art. 30º nº5 (em caso de confissão dos factos alegados na petição inicial a insolvência é decretada se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº1 do art. 20º) e 35º nº4 (em caso de não comparência à audiência de julgamento, do devedor ou de um seu representante, o juiz profere desde logo sentença de declaração de insolvência se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis ao nº1 do art. 20º).
Completando este quadro com as disposições do artigo 30º, nºs 3 e 4 do CIRE, a situação fica assim desenhada: o credor ou outro legitimado apenas pode requerer a declaração de insolvência com base na impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas do devedor nos casos previstos no art. 20º nº1 e no caso de manifesta superioridade do passivo sobre o ativo quando o devedor seja uma pessoa coletiva ou património autónomo nos termos do art. 3º nº2 in fine. O devedor, por sua vez, pode basear a sua oposição ao pedido na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido (20º nº1) ou na inexistência da situação de insolvência.
A prova da solvência cabe ao devedor, e, no caso de sujeição legal a escrituração obrigatória, com base nesta, “devidamente organizada e arrumada”.
No caso de manifesta superioridade do passivo sobre o ativo pode o devedor lançar mão do disposto no art. 3º nº3 do CIRE, cabendo-lhe ainda a prova da sua solvência nos termos do preceito em causa.
Finalizando e sumariando o tracejado legal – nos casos previstos no art. 20º nº1 do CIRE forma-se, com a prova de factos integradoras de uma ou mais das situações ali previstas, uma presunção de que o devedor se encontra insolvente; essa presunção pode ser ilidida pelo devedor, provando a sua solvência, com base na sua escrita devidamente organizada (no caso de sociedades comerciais) – cfr. art. 347º do Código Civil[2].
A requerente/recorrente alegou factos conducentes, na sua perspetiva, à verificação da situação prevista nas alíneas b) e h) do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O tribunal a quo, depois de ter julgado improcedente, quer a exceção de ilegitimidade ativa da requerente quer a de ilegitimidade da recorrida, em despacho saneador que não sofreu impugnação, apontou, corretamente, adiante-se, remanescer por resolver a questão da legitimidade substantiva da requerente.
Na verdade, nos termos do art. 30º nº1 do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. Nos termos do nº3 do mesmo preceito, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo A., preceito que veio por fim à conhecida querela entre as posições de Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela posição do segundo.
A invocação da qualidade de credora da requerida pela requerente, basta para assegurar a respetiva legitimidade processual, nos termos dos citados nº1 e 3 do art. 30º Código de Processo Civil.
A questão de se a requerida é ou não devedora da requerente ou de se o crédito que esta invoca são suscetíveis de fundar uma declaração de insolvência, é, não uma questão de legitimidade processual, mas sim de mérito, mais precisamente de legitimidade substantiva, a ser dilucidada na sede própria, ou seja, de mérito.
A sentença recorrida assinalou como questão a apurar para aferir da legitimidade substantiva “se a Requerente é substancialmente credora da Requerida, o que passa por apurar a existência de uma relação de domínio total da Requerida sobre a AZ.”
Trata-se mais uma vez da perspetiva correta, a nosso ver, sendo claro dos autos que a requerente não invoca um crédito sobre a requerida, mas sim a responsabilidade solidária da requerida pelos créditos detidos sobre a AZ, esclarecendo-se que, diferentemente do que vem alegado pela requerida (conclusões 37 a 40), é irrelevante no caso que esta não tenha intervindo nos contratos outorgados e que originaram os créditos aqui invocados pela requerente. A questão a decidir para aferir da legitimidade ad substantium da requerente é a da existência de uma relação de grupo, mais especificamente de domínio total superveniente.
O tribunal recorrido começou por apurar se existia uma situação de domínio total, face ao apuramento da titularidade pela requerida de 51% do capital social da AZ, correspondendo os demais 49% a ações próprias, tendo considerado:
“Perante o regime legal acima indicado, importa apurar se desde a data da aquisição de 51% das ações da AZ pela AC, Lda até à data da declaração de insolvência da AZ existiu uma situação de domínio total da AC, Lda sobre a AZ.
Partindo do conceito de relação de domínio como influência dominante, presumida através de participação no capital, direitos de voto ou influência na designação de titulares de órgãos sociais, já através abordado e decorrente do art. 486.º, n.ºs 1 e 2 do CSC, concluo que as ações próprias não excluem uma relação de domínio total, pois as ações próprias não permitem o exercício do direito de voto, o qual se encontra suspenso, em virtude do regime específico decorrente do art. 324.º, n.º 1, do CSC.
Efetivamente, “… a pertinência de uma participação maioritária de capital como instrumento de domínio não resulta “per se”, mas apenas na medida do efectivo poder de voto que confere à sociedade dominante, devendo excluir-se as partes do capital da sociedade dominada cujos direitos de voto estejam paralisados…” (cfr. “A contrapartida patrimonial na aquisição tendente ao domínio total”, de Liliana da Silva Sá, disponível em www.julgar.pt).
Assim, no caso em apreço, inexistindo outros sócios, titulares de direito de voto e de designação dos membros dos órgãos sociais, há que concluir que a AC, Lda exerceu uma influência a 100% sobre a AZ, a qual pode ser suscetível de consubstanciar um grupo constituído por domínio total. Por outras palavras, entende-se que o facto de a AC, Lda deter apenas 51% do capital, sendo os restantes 49% ações próprias da AZ, não configura óbice à eventual existência de grupo constituído por domínio total.”
Trata-se de argumento que a recorrida, em alegações, volta a esgrimir (cfr. conclusões 43 a 46), pelo que importa apreciar o mesmo.
Estabelece o nº1 do art. 486º do CSC que se considera que duas sociedades estão em relação de domínio quando uma delas, a sociedade dominante, pode exercer, direta ou indiretamente sobre a sociedade dependente «influência dominante».
Uma das modalidades do domínio é o domínio total, inicial ou superveniente, regendo quanto a este último o art. 489º do CSC, onde se estabelece:
«1 - A sociedade que, directamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei, salvo se a assembleia geral da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do número seguinte.
2 - Nos seis meses seguintes à ocorrências dos pressupostos acima referidos, a administração da sociedade dominante deve convocar a assembleia geral desta para deliberar, em alternativa, sobre:
a) Dissolução da sociedade dependente;
b) Alienação de quotas ou acções da sociedade dependente;
c) Manutenção da situação existente.
3 - Tomada a deliberação prevista na alínea c) do número anterior ou enquanto não for tomada alguma deliberação, a sociedade dependente considera-se em relação de grupo com a sociedade dominante e não se dissolve, ainda que tenha apenas um sócio.
4 - A relação de grupo termina:
a) Se a sociedade dominante ou a sociedade dependente deixar de ter a sua sede em Portugal;
b) Se a sociedade dominante for dissolvida;
c) Se mais de 10% do capital da sociedade dependente deixar de pertencer à sociedade dominante ou às sociedades e pessoas referidas no artigo 483.º, n.º 2.
5 - Na hipótese prevista na alínea c) do número anterior, a sociedade dominante deve comunicar esse facto, imediatamente e por escrito, à sociedade dependente.
6 - A administração da sociedade dependente deve pedir o registo da deliberação referida na alínea c) do n.º 2, bem como do termo da relação de grupo.»
A lei erige em critério que a dominante «domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios», ou seja, não exige a titularidade de 100% do capital social, mas sim que não existam outros sócios.
Face ao regime previsto no art. 324º do CSC, as ações próprias não conferem qualquer direito que não o de recebimento de novas ações no caso de aumento de capital por incorporação de reservas (al. a) do nº1 do referido art. 324º).
Esta suspensão dos direitos inerentes às ações compreende-se na medida em que as ações representam a posição do sócio perante a sociedade e, “a partir do momento em que sócio e sociedade se tornam um só, a permanência do conjunto de direitos (e deveres) do sócio perante a sociedade deixa de fazer sentido.”[3] E abrange quer os direitos de conteúdo patrimonial, quer os direitos denominados “políticos”. “O principal objectivo visado pelo mecanismo da suspensão de direitos é a tutela da chamada função organizativa da sociedade. O principal perigo aqui implicado é o do exercício do direito de voto. A suspensão deste direito evita a influência directa do órgão de administração na formação da vontade social, (…)”[4]
Ou seja, com a exceção legalmente estabelecida a aplicar no caso de aumento de capital por incorporação de reservas, estas ações não exercem qualquer direito, deixando os demais como os únicos acionistas em sentido próprio.
Daí que a doutrina considere que, para a aferição de uma situação de domínio, não se contam as participações próprias ou autoparticipações[5].
Assim, e transpondo para o caso concreto, de acordo com os factos apurados está preenchido o primeiro pressuposto para que se considere que a requerida forma um grupo com a devedora da requerente, por dominar total e diretamente a AZ, nos termos do disposto no nº1 do art. 489º do CSC.
A questão central no presente recurso centra-se no segundo pressuposto da formação do grupo.
Sobre tal questão, o tribunal a quo debruçou-se nos seguintes termos:
“Resulta da parte final do art. 489.º, n.º 1, conjugada com o n.º 2 do mesmo preceito que um dos requisitos para a existência de relação de grupo constituído por domínio total superveniente é a ausência de deliberação da sociedade dominante no sentido de dissolução da sociedade dependente ou alienação das ações da sociedade dependente.
No caso concreto, não foram alegados factos relativos a tal matéria nem resultou da prova produzida factos que nos permitam concluir no sentido de que a AC, Lda tomou uma deliberação no sentido da dissolução da AZ, da alienação das suas ações, de manutenção da situação existente ou se nenhuma deliberação chegou a tomar.
Note-se que a compra das ações da AZ ocorreu a 11/3/19, pelo que a AC, Lda teria seis meses para convocar a assembleia geral e deliberar sobre eventual dissolução ou venda das ações, nos termos do artigo 489.º, n.º 2, 1.ª parte, do CSC. O prazo para convocar a assembleia terminaria a 11/9/19.
Não se sabe se houve esta convocação, qual o sentido da deliberação, se existiu, e se à data da declaração de insolvência em 28/11/19 estava em curso processo de dissolução voluntária ou de venda de ações.
Assim, perante o regime do domínio total superveniente, que afasta do regime do grupo constituído por domínio total as situações em que há convocação de assembleia em seis meses subsequentes à constituição da situação de domínio não inicial para deliberar a dissolução ou venda de ações da sociedade dominada, e em face dos factos alegados e apurados, não é possível afirmar a existência deste tipo de relação de grupo por domínio total.
Termos em que importará concluir que a Requerente não logrou demonstrar a sua qualidade de credora da Requerida, por não terem sido alegados e provados factos suficientes para se integrar o conceito de domínio total superveniente e consequentemente fazer aplicar o regime da responsabilidade solidária da AC, Lda com a AZ.”
A recorrente opõe quatro razões de discordância (em bom rigor três, já que a quarta respeita à situação de insolvência/não prova de solvência da requerida que já se situa a jusante da determinação da qualidade de credora da requerida por parte da requerente):
1 – Existem elementos nos autos que permitem concluir que nenhuma das deliberações previstas no nº1 do art. 489º in fine do CSC foi tomada;
2 – As deliberações a que se refere a parte final do nº1 do art. 489º são desnecessárias nos casos em que o domínio total superveniente se constitui após deliberação da sociedade dominante nesse sentido e, sendo a requerida uma sociedade por quotas aplica-se o disposto no art. 246º nº1, al. d) do CSC.
3 – Enquanto não for tomada nenhuma das deliberações previstas no nº2 do art. 489º do CSC, a relação de grupo está formada, nos termos do nº3 do preceito, pelo que as deliberações em causa são factos extintivos da situação de domínio e não factos constitutivos da mesma, pelo que, no caso, funcionariam também como factos extintivos do direito de crédito da requerente sobre a requerida, cabendo assim, à requerida, o respetivo ónus da prova, nos termos do disposto no art. 342º do CC que, mantendo-se não ter sido feita determinaria decisão favorável à requerente e não à requerida.
4 – Existem outros factos índice e prova de pelo menos outra dívida, nos autos, além de estar provado o não depósito das contas, na tendo a requerida provado a sua solvência, como lhe competia.
A requerida contra-argumentou que nada foi alegado quanto a tal matéria e que não resultaram da prova produzida factos que permitam concluir pela tomada das deliberações previstas no nº2 do art. 489º do CSC.
Mais alegou que não merece acolhimento a tese da desnecessidade de deliberações, por tal requisito resultar diretamente da lei.
Entende também que as deliberações a que alude a parte final do nº1 do art. 489º do CSC não são factos extintivos do direito de crédito da recorrente, pelo que a esta se impunha a prova da relação de domínio e a prova da não verificação da situação prevista parte final do art.° 489° n.° 1 do CSC e nas alíneas do n.° 2 do mesmo preceito.
Apreciando os argumentos das partes e a fundamentação do julgado diremos que a questão radica numa outra, doutrinalmente discutida e que apenas vimos apreciada, sumariamente, pela jurisprudência no Ac. TRE de 12/10/2017[6], citado pela recorrente[7].
Os argumentos esgrimidos relacionam-se com a determinação do momento da constituição do grupo e consequente aplicabilidade do seu regime jurídico, incluindo a aplicabilidade dos arts. 501º a 504º, por via do disposto no art. 491º do CSC.
Tal como sintetiza Coutinho de Abreu[8] conjugando a parte final do nº1 do art. 489º do CSC com o nº2 do mesmo diploma dir-se-ia que não basta a participação totalitária para a constituição da reação de grupo, sendo ainda necessário que os sócios da dominante não deliberem, em certo tempo, a dissolução da dominada ou a alienação de participações nesta. No entanto, prossegue o autor, “o nº3 do art. 489º parece contradizer essa interpretação…”.
Sobre o assunto pronunciou-se especificamente Menezes Cordeiro[9] frisando que “É muito importante determinar o momento em que ocorre o domínio inicial, uma vez que é a partir dele que se afere o início e o termo da responsabilidade facultada pelo artigo 501.°.
Ora neste ponto, faltam (ou podem faltar) os requisitos de certeza e de publicidade que rodeiam os contratos de subordinação.
Na hipótese de domínio total inicial, podemos fixar esse momento no do registo definitivo de constituição da sociedade dominada: é o que se extrai do artigo 5.°.
Sendo o domínio total (apenas) superveniente, há dúvidas. Com efeito, a relação de grupo é instável, até que seja tomada alguma das deliberações previstas no artigo 489.°/2: ou a dissolução da sociedade dependente; ou a alienação de quotas ou ações dessa mesma sociedade; ou a manutenção da situação existente.
Apenas na hipótese de ser tomada esta última deliberação, se deve proceder ao (seu) registo (489.°/6). Mas dado o disposto no artigo 489.°/3, na parte em que refere (…) ou enquanto não for tomada alguma deliberação, a sociedade dependente considera-se em relação de grupo (…), devemos entender que, mau grado a falta de publicidade, o artigo 501.° tem aplicação. A sociedade dominante, caso esteja perante um domínio indesejado, terá de andar muito depressa: dispõe dos 30 dias do artigo 501.°/2 para desfazer o domínio total e evitar as suas consequências.”
Neste mesmo sentido se pronunciaram vários outros autores, citados por Coutinho de Abreu: Castro Silva[10], Oliveira Ascensão[11], Ricardo Costa[12] e Pereira de Almeida[13].
Em sentido contrário Coutinho de Abreu, já citado, defende ser mais razoável entender que a relação de grupo constituída por domínio total pressupõe “não apenas a participação totalitária, mas também comportamento ulterior do órgão deliberativo interno da sociedade dominante e conclui pela necessidade de interpretação revogatória do nº3 do art. 489º, defendendo estar em “antinomia lógica e axiológica com a norma do nº1 do mesmo artigo e com o princípio geral que se extrai de outras normas legais”.
Os argumentos são essencialmente dois – a norma da alínea c) do nº2 quedaria sem qualquer utilidade se o grupo nascesse por mero efeito da participação totalitária e as normas das alíneas a) e b) são de extinção, da qual já cuida o nº4, sendo que a sociedade, mesmo sendo rápida a deliberar, ficaria sempre responsável pelas obrigações da dominada até ao registo da deliberação tomada (de dissolução ou alienação de ações); a constituição de um grupo importa sempre uma modificação estrutural também na sociedade dominante – nomeadamente a responsabilidade do 501º - sendo que a lei atribui aos sócios a última palavra sobre modificações estruturais, como na constituição de contrato de subordinação (496º), fusões e cisões (100º, nºs 2 e 6, 102º, 103º, 116º nº3, al. d), 117º-F, 117º-I, 3 e 120º, todos do CSC).
Na mesma linha, Ana Perestrelo de Oliveira[14] [15], começando por identificar como interesse tutelado por esta norma o interesse da sociedade dominante face aos perigos que para ela a integração no grupo implica – embora reconheça que a tutela é em geral dirigida aos interesses da sociedade dominada – e identificando que a formação do domínio total pode, quanto à dominante, dar-se por decisão da administração e pode ainda dar-se, quanto à mesma, de forma passiva (quando por exemplo a futura dominada amortiza ações ou as adquire) reconhece que, aparentemente o que resulta da lei é que logo que a participação totalitária fosse constituída passaria a haver relação de grupo por domínio total.
Tal significaria que a destruição posterior nunca eliminaria certos efeitos, designadamente a responsabilidade prevista no art. 501º do CSC.
A autora nota que, a ser assim, teríamos que concluir que a deliberação exigida pelo nº 1 do art. 489º, que visa proteger a sociedade dominante, sendo remetida para um momento em que já não podia realizar os seus fins, revela uma contradição interna e lógica no 489º: “A valoração do legislador é claramente identificada – a institucionalização de mecanismo de proteção da sociedade controladora e dos seus sócios – mas as regras tendentes a concretizá-la em termos práticos anulam afinal essa possibilidade.” Propõe, para a superação do problema, duas hipóteses: i) ou a deliberação ocorre ex post e os efeitos próprios do domínio total só então podem produzir-se; ii) ou a deliberação deve ter lugar ex ante e os efeitos produzem-se logo que, em execução dessa deliberação, o domínio total é obtido.
A autora defende a segunda solução[16], mas adiantando que, em qualquer dos casos, os efeitos próprios da relação de domínio total só nascem após deliberação da sociedade mãe. Entende que a futura sociedade totalmente dominante tem sempre que deliberar antes de adquirir o controlo, pois, quando o adquire, produzem-se os efeitos da relação de grupo, e entre eles a assunção do passivo nos termos do art. 501º. Quanto à exigência de deliberação ex post, prevista no art. 489º, defende que só tem sentido e lugar quando a prévia deliberação se mostre impossível, de direito ou de facto. Também aí, conclui, “importará assegurar a proteção da sociedade mãe nos termos pretendidos pelo art. 489º e negar a produção de efeitos enquanto não houver deliberação.”
É este o enquadramento legal e doutrinária da questão colocada nos autos, que influi na solução a dar ao caso dos autos.
O primeiro ponto que nos chama a atenção é a diferença de grau existente entre as deliberações previstas no nº2 e a sua conjugação com o nº1.
Recordando, os nºs 1 e 2 prescrevem, respetivamente:
- A sociedade que, diretamente ou indiretamente, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei, salvo se a assembleia geral da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do número seguinte.
- Nos seis meses seguintes à ocorrências dos pressupostos acima referidos, a administração da sociedade dominante deve convocar a assembleia geral desta para deliberar, em alternativa, sobre:
- Dissolução da sociedade dependente;
- Alienação de quotas ou ações da sociedade dependente;
- Manutenção da situação existente.
Ou seja, no nº3 prevê, em alternativa, uma deliberação positiva em relação à situação de grupo e duas deliberações que poem termo à situação de grupo por domínio total superveniente.
Tendo em conta que são as deliberações de extinção que surgem previstas na parte final do nº1, é sobre estas que devemos focar a nossa atenção, sem prejuízo da ponderação sobre o papel da deliberação confirmativa.
Se, como proposto pelos dois autores que advogam a interpretação ab-rogante do nº3 do art. 489º, atendermos apenas ao nº1 do preceito, teremos formação da situação de grupo logo que decorridos 6 meses sobre a aquisição do domínio total sem que tais deliberações sejam tomadas, ou, se ocorrer antes, logo que tomada a deliberação prevista no nº1.
Assim mesmo conclui Coutinho de Abreu[17] “Em suma, a sociedade que domine totalmente uma outra sociedade não forma um grupo com esta última se o órgão deliberativo interno da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas als. a) e. b) do nº 2 do art. 489º; o grupo é formado a partir do momento da aquisição da participação totalitária se aquele órgão deliberar manter a situação de domínio total, ou se não for chamado a deliberar sobre assunto no prazo de seis meses seguintes à aquisição da participação totalitário.” (sublinhado nosso).
A conclusão expressa por Ana Perestrelo de Oliveira[18] é exatamente no mesmo sentido: “há qualquer incerteza quanto ao momento a partir do qual se produzem os efeitos da relação de grupo: ou há prévia deliberação e, nesses e caso, os efeitos são desencadeados pela própria aquisição do domínio; ou isso não aconteceu, e os efeitos dependem da deliberação ou, quando esta não ocorra, do decurso do referido prazo de seis meses.” (sublinhado nosso).
Qualquer das deliberações referidas no nº2 do art. 489º do CSC são deliberações sujeita a registo obrigatório – cfr. arts. 3º nº1, al. u) e 15º nº1 do Código do Registo Comercial.
Como tal, se tomadas e não registadas, são invocáveis entre as partes (art. 13º nº1 do CRegCom) mas não produzem efeitos quanto a terceiros (cfr. art. 14º nº1 do CRegCom).
Aqui chegados, e ainda antes sequer de tomarmos posição sobre a querela doutrinária enunciada, estamos em condições de conhecer da primeira ordem de argumentos alinhados pela recorrente.
Se o momento da formação do grupo for, como defende Menezes Cordeiro[19], o da aquisição da participação totalitária os factos apurados são os suficientes para concluir pela responsabilidade abstrata da requerida perante a requerente nos termos do disposto no art. 501º do CSC. Mesmo tivesse vindo a ser deliberada a dissolução da AZ ou a venda das ações desta tal não operaria retroativamente.
Se se entender que a relação de grupo se inicia com o concurso da deliberação da assembleia da sociedade mãe, neste caso a requerida, basta-nos a data da aquisição e o decurso do prazo de seis meses sem registo de qualquer das deliberações previstas no nº2, als. a) e b) do art. 489º do CSC, porquanto, mesmo que tais deliberações houvessem sido tomadas, não podem ser invocadas contra terceiros (neste caso a requerente e o tribunal).
Existem elementos nos autos que nos permitem concluir pelo decurso do prazo de seis meses sem registo de qualquer das deliberações extintivas? A resposta é, claramente, afirmativa, já que a data da aquisição de 51% das ações (sendo as demais 49% ações próprias), ou seja, 11/3/2019, resulta dos dois primeiros factos provados e a certidão do registo comercial da requerida está junta aos autos, datada de 07/01/2020, ou seja, de 9 meses depois, sem qualquer registo de qualquer destas deliberações (doc. 2 junto com o requerimento inicial).
A apelada argumenta que tal não foi alegado nem resultou da prova produzida pelo que não poderia ter sido tido em conta pelo tribunal. Não é porém, assim. Neste processo vigora o princípio do inquisitório tal como previsto no art. 11º do CIRE, ou seja, o tribunal pode valer-se de factos que não tenham sido alegados pelas partes. Ora o decurso do prazo sem registo de qualquer deliberação extintiva resulta de um documento autêntico junto aos autos pelo que o tribunal podia e devia ter-se valido dele.
Procede, assim, o primeiro argumento invocado pela recorrente, embora por razões jurídicas não totalmente coincidentes com todas as alegadas.
De facto, nem todos os argumentos da apelante são atendíveis: o facto de a AZ não ter sido dissolvida no prazo de seis meses – que efetivamente resulta da certidão desta junta aos autos (doc. 3 junto com o requerimento inicial) – não releva para esta temática, pois o que o nº1 do art. 489º do CSC exige não é a dissolução da sociedade filha, mas sim a deliberação, pela sociedade mãe, de dissolver a sociedade filha. Basta aliás, verificar que a AZ foi entretanto declarada insolvente e, logo, dissolvida, nos termos do artigo 141º nº1, al. e) do CSC, e que tal em nada interfere com a questão que estamos a desenvolver.
Também a não alienação de ações da AZ pela requerida até ao momento da declaração da insolvência, que chegou ao conhecimento do tribunal através de informação do administrador da insolvência da AZ (cfr. requerimento ref. 35735633, de 08/06/2020, junta na sequência do despacho ref. 144488941 de 27/04/2020), irreleva nos mesmos termos – é a deliberação que é exigida e não o ato subsequente, não sendo este o local e processo indicados para lidar com as consequências de uma venda de ações por sociedade por quotas que não houvesse sido deliberada pela respetiva assembleia de sócios (art. 246º, nº2, al. d) do CSC).
A segunda ordem de argumentos adiantado pela apelante, à qual é ainda indiferente a determinação do momento inicial da formação do grupo por domínio total superveniente, invoca a tese proposta por Ana Perestrelo de Oliveira, que, recorde-se, defende a necessidade de deliberação prévia à aquisição do domínio total superveniente mesmo no caso de a adquirente ser uma sociedade anónima, sendo certo que, sendo a adquirente uma sociedade por quotas a aquisição terá, por regra, nos termos da lei que ser precedida por deliberação.
Sendo a requerida – a sociedade dominante – uma sociedade por quotas, precisamente, rege o art. 246º nº2, al. d) do CSC, no qual se estabelece que «Se o contrato social não dispuser diversamente, compete também aos sócios deliberar sobre: (…) d) A subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades a sua alienação ou oneração.»
O argumento apresenta duas dimensões, sendo o primeiro de interpretação normativa e o segundo de ordem factual.
Como explica Ana Perestrelo de Oliveira[20] na passagem citada pela apelante, se, por imposição da lei (não iremos aqui discutir a questão da exigibilidade de deliberação em sociedades anónimas, por não ser útil ao caso que nos ocupa) a assembleia geral da sociedade dominante já se pronunciou sobre a aquisição de domínio total, não poderia compreender-se que a mesma assembleia fosse chamada a pronunciar-se sobre a manutenção ou não da situação existente. O que a apelante não refere é que esta posição só faz sentido para quem defenda, como a Ilustre Autora, que a relação de grupo só nasce com a deliberação (e não com a aquisição do domínio total) e que a deliberação deve preceder a aquisição do domínio total. Só assim deixa de fazer sentido que a assembleia da sociedade dominante seja chamada a pronunciar-se sobre um assunto sobre o qual já se pronunciou – já deliberou adquirir o domínio total, logo, a relação de grupo constituiu-se assim que a aquisição se efetivou. Não pode, com todo o respeito, defender-se, como faz a apelante, que a relação de grupo nasce com a aquisição (3º grupo de argumentos, que analisaremos de seguida) e, simultaneamente, defender que quando exista deliberação prévia, já não se aplicam a parte final do nº1 e o nº2 do art. 489º do CSC.
A segunda dimensão respeita à aplicação desta tese ao caso concreto.
Sendo certo que a requerida, imputada sociedade dominante, é uma sociedade por quotas, não foi alegado nem resulta de qualquer documento junto aos mesmos que: i) o pacto social da requerida não afaste o regime do art. 246º nº2, al. d) do CSC; ii) a referida deliberação tenha efetivamente sido tomada.
Note-se que esta específica deliberação não seria sujeita a registo, porquanto, mesmo na tese de Ana Perestrelo de Oliveira, o que faz nascer a relação de grupo quando tenha sido tomada deliberação prévia é a aquisição do domínio total. Assim sendo, esta deliberação prévia cai fora do âmbito de aplicação da alínea u) do nº1 do art. 3º do Código do Registo Comercial.
E na verdade a apelante não chega a alegar que a deliberação foi tomada, apenas que a lei assim o obrigava, pelo que, na verdade, não se vislumbra, neste grupo de argumentos qualquer viabilidade no caso dos autos, tal como as partes o conformaram.
O terceiro e, diremos nós, mais substancial grupo de argumentos, reside na alegação por parte da apelante de que se a relação de grupo nasce com a aquisição da participação que consubstancia o domínio total, então as deliberações previstas nas alíneas a) e b) do nº2 do art. 489º do CSC são factos extintivos da relação de grupo e, logo da responsabilidade da requerida, consubstanciando exceções que à requerida cabia alegar e provar, não podendo a questão ser decidida contra si, atento o disposto no art. 342º nº2 do Código Civil.
A apelada, de forma sintética, alegou não se tratarem de factos extintivos.
Já acima enunciámos as duas teses que existem sobre a determinação do momento do início da relação de grupo e haverá agora que tomar posição sobre a mesma.
Reconhecemos que a deliberação de manutenção da situação existente parece carecer de sentido, exceção feita aos casos em que o domínio total provém de ação positiva da sociedade dominada (v.g. a amortização de ações), e que, mesmo nesse caso, parece não resolver os perigos que gera para a sociedade dominante. Também é claro que a deliberação extintiva não tem efeitos retroativos, deixando a sociedade dominante exposta à responsabilidade nos termos do art. 501º do CSC.
Ou seja, está de facto identificado um problema que cabe ao intérprete resolver, nos termos prescritos no art. 9º do Código Civil.
Recordando, o intérprete não deve cingir-se à letra da lei devendo reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. O intérprete não pode, porém, considerar o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso e, ao interpretar, presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A leitura da lei proposta por Menezes Cordeiro, Engrácia Antunes e outros encontra na letra da lei o respetivo sentido.
A interpretação ab-rogante proposta por Ana Perestrelo de Oliveira e Coutinho de Abreu põe de lado o nº3 do art. 489º do CSC por não encontrar nele senão uma contradição lógica, por prejudicar exatamente os interesses que o estabelecimento da norma visava proteger, ou seja, os interesses da sociedade dominante.
Não coincidimos com estes últimos autores na identificação do interesse protegido pela norma. Toda a regulamentação dos grupos de sociedades visa no essencial quatro finalidades[21]: i) legitimar o grupo enquanto nova forma empresarial resultante da articulação de várias sociedades, sob uma direção económica comum; ii) Permitir a prossecução e proteger a primazia do interesse do sobre os interesses sociais das sociedades integrantes do grupo; iii) Proteger os interesses de terceiros; iv) Mais amplamente, gerir os diversos conflitos de interesses no grupo.
A determinação do momento em que a relação de grupo existe é também o momento a partir do qual se aplicam os arts. 501º e 502º do CSC e essa é a razão apontada por aqueles autores para a contradição achada.
A questão altera-se se olharmos as regras pelo prisma da proteção de terceiros, reconhecendo que as regras visam proteger a sociedade dominante mas também os terceiros, nomeadamente os credores da sociedade dominada.
Visando o art. 501º do CSC – aliás, os arts. 501º a 504º do CSC – “a proteção das sociedades envolvidas e dos credores sociais”[22], uma regra como a regra do nº3 do art. 489º também se dirige a esta tutela, o que explica a sua aplicabilidade.
A interpretação defendida por Menezes Cordeiro, Engrácia Antunes e outros tem a vantagem de, além de respeitar a letra da lei, acautelar os interesses dos credores da dominante. A norma do 501º protege diretamente os credores da sociedade dominada e “é justificada pelo facto de a sociedade dominante ter o poder de dirigir a gestão da dominada (cfr. os arts. 493º, 1, 503º) e, consequentemente, prejudicar esta e (indiretamente) seus credores. A responsabilidade prescrita na norma ( conjugada com a prevista no art. 504º, 2) visa também (preventivamente) promover a gestão diligente das sociedades do grupo.”[23] Ora não deixando as instruções rasto externo e podendo, de facto, a sociedade dominante emiti-las e fazê-las cumprir desde que é a sócia com domínio total, faz sentido fazer corresponder a este poder de facto a responsabilidade de direito correspetiva.
Concordamos assim com os autores que defendem a aplicabilidade do nº3 do art. 489º no sentido de que a relação de grupo existe desde a aquisição do domínio total superveniente.
Aqui chegados podemos concluir que, efetivamente, nascendo a relação de grupo com a aquisição, a deliberação de dissolução ou de venda das participações, prevista nas alíneas a) e b) do nº2 do CSC para que remete a parte final do nº1 do mesmo preceito, são, para a relação de grupo, factos com eficácia extintiva da mesma e, logo, da aplicabilidade do art. 501º do CSC.
Enquanto que os factos que integram a causa de pedir da apelante e requerente devem integrar os constitutivos da relação de grupo – ou seja, e seguindo a letra da lei e a posição que expusemos os factos que provados determinam a aquisição de domínio total superveniente pela requerida sobre a devedora da requerente – a existência de uma deliberação extintiva da relação de grupo (nomeadamente tomada antes de esgotado o período de 30 dias previsto no art. 501º nº2 do CSC e o prazo de seis meses previsto no nº2 e parte final do nº1 do art. 489º do CSC) funcionam como causa extintiva da relação de grupo e impedimento ao funcionamento da responsabilidade prevista no art. 501º do CSC (afastando a legitimidade substantiva da requerente).
Trata-se, partindo da aplicabilidade do art. 489º nº3 do CSC, posição que já assumimos, claramente de defesa por exceção perentória.
Nos termos do disposto no art. 576º nº3 do CPC, as exceções perentórias consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor. “A defesa por exceção perentória consiste na alegação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do efeito jurídico visado pelo autor, e tem como consequência a absolvição, total ou parcial, do pedido (art. 571º, n2º 2, in fine, e art. 576º nº 3). Neste tipo de defesa, a atitude do réu não se traduz em refutar os factos articulados pelo autor, mas em alegar factos novos que, em face da norma ou normas jurídicas aplicáveis ao caso, se revelam impeditivos da válida e eficaz constituição do direito invocado pelo autor, ou que, admitindo tal constituição, implicam a modificação ou a extinção desse direito. Em qualquer dos casos, o réu alega uma circunstância fáctica nova que visa a inutilização, em maior ou menor grau, do pedido formulado pelo autor.”[24]
Ou seja, cabia ao requerente alegar os factos constitutivos da relação de grupo que consentem o seu pedido e à requerida excecionar os factos extintivos da referida relação de grupo, impedindo assim a sua responsabilidade pelos créditos sobre terceiro, por si totalmente dominado.
Não tendo a requerida alegado qualquer facto extintivo da relação de grupo, a questão de facto, neste ponto, não pode ser decidida a seu favor, procedendo pois os argumentos da apelante que alegou e provou os factos constitutivos da sua qualidade de credora da sociedade dominada pela requerida.
Concluindo:
- de acordo com os factos apurados está preenchido o primeiro pressuposto para que se considere que a requerida forma um grupo com a devedora da requerente, por dominar total e diretamente a AZ, nos termos do disposto no nº1 do art. 489º do CSC, uma vez que é a sua única acionista, não se contando, para este efeito, as ações próprias da sociedade dominada;
- a relação de grupo forma-se com a aquisição do domínio total superveniente, pelo que a tomada das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do nº2 e parte final do nº1 do art. 489º do CSC se qualifica como matéria de exceção, cujo ónus de alegação e prova cabe à requerida e não à requerente;
- ainda que assim se não entenda, a relação de grupo forma-se, pelo menos, com o decurso do prazo de 6 meses sobre a aquisição do domínio total. Qualquer uma das deliberações previstas no art. 489º nº2 do CSC está sujeita a registo obrigatório, e, sem a demonstração do registo respetivo, está demonstrado o início da relação de grupo. Para o efeito, o tribunal pode e deve valorar o que resulta da certidão de registo comercial da sociedade dominante junta aos autos, mesmo que o facto (negativo ou positivo, não ter sido deliberado ou ter sido deliberado) correspondente não tenha sido alegado.
- demonstrada a aquisição do domínio total da AZ pela requerida e demonstrado o decurso do prazo de seis meses sobre a mesma sem registo de qualquer das deliberações extintivas, estão reunidos os pressupostos de aplicabilidade do art. 501º do CSC, estando, pois, demonstrada a legitimidade substantiva da requerente para pedir em juízo a declaração de insolvência da requerida.
Em conclusão, procedem as conclusões de recurso, impondo-se a revogação da decisão recorrida.
Tal não implica, porém, a imediata declaração de insolvência da requerida por este tribunal, já que a apreciação do tribunal recorrido se limitou, de facto e de direito, à apreciação do primeiro tema da prova que enunciou. O que temos por decidido ora é apenas a qualidade de credora da requerente sobre a requerida e a respetiva legitimidade substantiva para requerer a insolvência.
Nos autos foram alegados factos que, aliás, foram levados aos temas de prova pelo tribunal no despacho previsto no art. 35º nº5 do CIRE. Foi ouvida prova, além de constarem dos autos documentos – ou ausência deles – que devem ser valorados e integrar matéria de facto em falta[25], e, com base nesta, deve prosseguir a análise jurídica do pedido formulado, que não se basta com a qualidade de credor da requerente.
Especificamente, o tribunal não analisou – e não elencou na matéria de facto provada – o incumprimento por parte da requerida, que respeitaria ao segundo tema da prova, bem como não se pronunciou, nem dando como provado ou não provado, quaisquer factos que permitissem concluir pela existência de outras dívidas da requerida ou sobre a prestação de contas por parte da mesma (sub-tema já dirigido à alínea h) do nº1 do art. 20º do CIRE).
Não estamos assim, no âmbito de aplicação do disposto no art. 662º do CPC, não sendo, igualmente, possível aplicar a regra da substituição, prevista no nº2 do art. 665º do CPC, por falta dos elementos de facto que necessariamente teriam que basear a decisão deste tribunal.
 Há, assim, que ordenar o prosseguimento dos autos, na 1ª instância com a prolação de decisão que, integrando a decisão proferida quanto a esta específica questão, objeto do presente recurso, complete a apreciação do tribunal, de facto e de direito, de acordo com a prova produzida.
*
A apelada, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e o recurso não envolveu diligências geradoras de despesas – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[26].
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar procedente a apelação, e consequentemente:
a) revogar a sentença recorrida;
b) determinar a baixa dos autos e ordenar a prolação de sentença que, valorando a decisão do presente recurso, complete a apreciação do tribunal, de facto e de direito, de acordo com a prova produzida.
Custas de parte na presente instância recursiva pela recorrida.
Notifique.

Lisboa, 9 de fevereiro de 2021
Fátima Reis Silva
Vera Antunes
Amélia Sofia Rebelo
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[1] Cfr. Lebre de Freitas in Pressupostos Objectivos da Declaração de Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, “Novo Direito da Insolvência”, pgs. 13 e ss.
[2] Cfr. Lebre de Freitas, loc. cit.
[3] Cfr. João Gomes da Silva em “Acções próprias e interesses dos accionistas”, em ROA 60 (Ano de 2000), III, pg. 1267, consultado em https://portal.oa.pt/upl/%7B7fde6c98-5415-4084-b748-3f9b6842755b%7D.pdf.
[4] Idem, pgs. 1267 e 1268.
[5] Neste sentido, além de Liliana da Silva Sá, citada na sentença recorrida, J. M. Coutinho de Abreu, em anotação ao art. 489º do CSC, em Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. VII, pg. 127, Almedina 2014, onde, após referir que o primeiro pressuposto para a formação de um grupo por domínio total superveniente é a dominante possuir, direta ou indiretamente todas as participações sociais na dominada, esclarecer, em nota de pé de página que “Não se contam para o efeito as participações próprias ou autoparticipações da dominada”, citando no mesmo sentido Engrácia Antunes em “Autoparticipações e cômputo das participações societárias” in Estudos em Homenagem ao Professor Raúl Ventura, volume II, FDUL, Coimbra Editora, 2003, pgs. 288 e ss.
[6] Relator Moisés Silva, disponível em www.dgsi.pt e em cujo texto se escreveu, no âmbito de um caso laboral: “O art.º 489.º n.º 1 do CSC prescreve que a sociedade que, diretamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º n.º 2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei, salvo se a assembleia geral da primeira tomar alguma das deliberações previstas nas alíneas a) e b) do número seguinte (n.º 1).
Não se mostra nos autos, nem é alegado, que nos seis meses seguintes à ocorrência dos pressupostos acabados de referir, a administração da sociedade dominante, a primeira ré, convocou a assembleia geral desta para deliberar, em alternativa, sobre: dissolução da sociedade dependente, a aqui apelante; ou a alienação de quotas ou ações da sociedade dependente, a aqui apelante (n.º 2, alíneas a) e b)).
Donde resulta que a 5.ª ré, a aqui apelante, e a 1.ª ré, a empregadora dos autores, estão numa relação de grupo, por domínio total da última sobre a primeira, pelo que a situação concreta enquadra-se na previsão do art.º 334.º do CT.”
[7] Não logramos localizar o Ac. STJ citado pela recorrida nas suas contra-alegações, sendo o relator, data e número de processo indicados relativos a um caso diverso.
[8] Local previamente citado na nota 6, pg. 129
[9] Em A responsabilidade da sociedade com domínio total (501º/1, do CS) e o seu âmbito, em RDS III (2011), 1, pgs. 83-115, consultado em http://www.revistadedireitodassociedades.pt/files/RDS%202011-1%20(083-0115)%20-%20Doutrina%20-%20Menezes%20Cordeiro-%20A%20responsabilidade%20da%20sociedade%20com%20dominio%20total.pdf.
[10] Em “Das relações inter-societárias (Sociedades Coligadas), Revista do Notariado, 1986, pg. 519.
[11] Em Direito Comercial, Vol. IV, Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa, 2000, pg. 586.
[12] Em As sociedades unipessoais, IDET, Problemas de Direito das Sociedades, Almedina, 2002, pgs. 49 e 50.
[13] Em Sociedades comerciais, valores mobiliários, instrumento financeiros e mercados, Vol. I, As sociedades comerciais, 7ª edição, Coimbra Editora, 2013, pg. 649.
[14] Em Manual de Grupos de Sociedades, Almedina, 2016, pgs. 88 a 94.
[15] Pese embora, posteriormente e em anotação ao artigo 489º no Código das Sociedades Comerciais Anotado (Códigos Comentados da Clássica), 3ª edição, Almedina, 2020, pg. 1593, a mesma autora refira, de forma sintética e dissonante que “A relação de grupo por domínio total superveniente inicia-se coma aquisição, por uma sociedade, da participação social que determina a titularidade de 100% do capital social de outra.”
[16] Trata-se de um desenvolvimento do que já havia defendido na sua dissertação de doutoramento “Grupos de Sociedades e Deveres de Lealdade”, Almedina, 2012, pgs. 419 e 420, no sentido em que ali já defendia a necessidade de deliberação prévia, mas sem avançar positivamente para a interpretação ab-rogante do nº3 do art. 489º do CSC, como resulta do seguinte trecho: “Apesar de o art. 501.º não referir expressamente, a responsabilidade da sociedade-mãe surge imediatamente, quanto às dívidas preexistentes, com a aquisição da participação social que determina a titularidade de 100% do capital social. Tanto basta para demonstrar a insuficiência da intervenção dos sócios ex post. Esta é incapaz de desfazer (pelo menos) as consequências patrimoniais da formação do grupo, sobretudo tendo em conta o art. 489.º expressamente estabelece, no nº3, que «(…) enquanto não for tomada alguma deliberação, a sociedade dependente considera-se em relação grupo com a sociedade dominante e não se dissolve, ainda que tenha apenas sócio». Assim se vê que operam as consequências inerentes ao grupo, não, tendo uma eventual deliberação de extinção do domínio total efeito retroativo.”
[17] Local citado, pg. 131.
[18] Manual…, pg. 94.
[19] Local citado na nota 10.
[20] Código das Sociedades Comerciais Anotado (Códigos Comentados da Clássica), 3ª edição, Almedina, 2020, pg. 1592 e 1593.
[21] Seguimos de perto Ana Perestrelo de Oliveira, em Manual…, pg. 9.
[22] Ana Perestrelo de Oliveira, Manual…, pg. 95 e, mais desenvolvidamente, pgs. 205 e ss.
[23] J. M. Coutinho de Abreu, em anotação ao art. 501º do CSC, em Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. VII, pg. 266, Almedina 2014.
[24] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pg. 651.
[25] Nenhuma das partes impugnou a matéria de facto, acusando a falta de matéria factual relativa aos demais temas de prova e não foi igualmente suscitada nulidade por omissão de pronúncia quanto à matéria de facto, pelo que este tribunal de recurso não pode pronunciar-se quanto a esta, podendo apenas verificar a respetiva relevância para a decisão a proferir.
[26] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.