Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1378/20.5YRLSB-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
AMPLIAÇÃO
PRESTAÇÃO DE CONSENTIMENTO PARA EXTENSÃO DA ENTREGA
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDO
Sumário: – A execução de um mandado de detenção europeu (MDE) e, portanto, também do consentimento para extensão da entrega, conforme previsto no n.º 2, alínea g), do artigo 7.º, e bem assim no n. º4, alíneas a) e d), e artigo 8.º, n.ºs 4 e 5, só poderá ser recusado pelos motivos de recusa obrigatória previstos no artigo 11.º ("será recusada") ou de recusa facultativa previstos no artigo 12.º ("pode ser recusada") da Lei n° 65/2003, na redação dada pela Lei n° 35/2015.

– O consentimento para a execução de um novo MDE, quando solicitado por uma autoridade judiciária de um Estado Membro a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado devesse ela própria dar lugar à entrega do requerido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.

– Tendo sido devidamente assegurado o contraditório exigível no caso e, não existindo qualquer motivo de recusa para a prestação do consentimento previsto no artigo 7.º, n. º2, al. g) e 4, da Lei n.º 65/2003 de 23.8, será de prestar o consentimento pretendido.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.–O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação apresentou requerimento em que “promove a execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido em 08.09.2021 pelo Juiz do Tribunal da Comarca de Memmingen, República Federal da Alemanha”, invocando, para o efeito, os artigos 7.º, n.º2, alínea g), n.º 4, alíneas a) e d), e 8.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, na redacção conferida pela Lei n.º 35/2015, de 4 de Maio, respeitante a MS, melhor identificado nos autos, actualmente recluso na Alemanha.

Para tanto, alegou em síntese:
- Por acórdão deste Tribunal da Relação, proferido neste processo 1378/20.5YRLSB, datado de 15 de Setembro de 2020, foi deferida a entrega do requerido às autoridades judiciárias alemãs, em execução de MDE anteriormente contra ele emitido, para efeitos de procedimento criminal, tendo a entrega sido concretizada em 12 de Outubro de 2020.
- Foi agora recebido nos autos um novo MDE, emitido em 8 de Setembro de 2021, pelo Juiz do Tribunal da Comarca de Memmingen, República Federal da Alemanha, com a referência de Processo – 221 Js22349/16, respeitante ao mesmo requerido, para cumprimento de pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, por tráfico de estupefacientes – factos cometidos entre Outubro e Dezembro de 2016.
-O requerido não renunciou ao benefício da regra da especialidade.
- O pedido de “ampliação” formulado pelas autoridades judiciárias alemãs funda-se em factos anteriores à entrega do requerido e diferentes daqueles que motivaram a emissão do anterior MDE, visando o afastamento do princípio da especialidade a que ele não renunciou aquando da sua audição, a fim de que possa cumprir a prisão imposta no processo pendente na Alemanha e identificado no novo MDE.

2.–Foi proferido despacho que determinou a notificação do requerido e da sua defensora para, querendo, ser deduzida oposição.

3.–Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II–Fundamentação

1.– Factos provados com relevo para a decisão:
1.–O mandado de detenção europeu (MDE) originário foi emitido pelo Juiz de Direito do Tribunal de Memmingen, República Federal Alemã, em 14.02.2020, para efeitos de procedimento criminal - Processo n.º 4 Ls 221 Js 3388/19 -, pela prática dos factos descritos no campo 44 do formulário A da inserção Shengen e no campo e) do formulário do MDE, constitutivos de crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, p. e p. pelas Secções 29ª (1), 29 (I), 10ª, 1(1), 3(1) da Lei de Estupefacientes, juntamente com a secção 53 do Código Penal Alemão, a que são aplicáveis penas de prisão no máximo de 15 anos.
2.–Esse MDE dizia respeito a 3 (três) infracções criminais, ocorridas em Memmingen, Alemanha, entre Julho de 2017 a 19 de Dezembro de 2017, sendo imputadas ao requerido na qualidade de AUTOR, consistindo, em suma:
- Desde Julho de 2017, o requerido comercializou marijuana nos quartos de um hostel com exilados em WeberStrasse 37, em Memmingen, de modo a procurar uma fonte avultada e de alguma duração de rendimento para benefício próprio.
Sem a licença necessária para a posse de estupefacientes, o requerido efectuou as seguintes vendas de droga:
- Num dado momento desconhecido no tempo, entre Julho de 2017 e 29 de Dezembro de 2017, recebeu pelo menos 200 gramas de marijuana de uma pessoa não identificada para a revenda com certo lucro.
- Posteriormente o requerido dividiu a marijuana no hostel de exilados referido anteriormente, pesando-a e embalando-a em sacos com fecho para a revenda com benefício próprio de modo a revendê-la a um número de compradores desconhecidos.
- SU, acusado em separado, e outros dois indivíduos ainda não identificados, ajudaram-no a dividir a marijuana.
A certa altura, em meados de Outubro de 2017, K. , acusado em separado, vendeu e entregou pelo menos 200 gramas de marijuana a um preço desconhecido, e embalou-a num saco plástico DIN A4 para o requerido. Depois, o requerido dividiu a marijuana no seu quarto no hostel anteriormente referido com o auxílio de KA, acusado em separado. Posteriormente, o requerido vendeu e entregou a marijuana a compradores não identificados.
- Cerca das 22h35 de 3/11/2017, o próprio Requerido, KO, acusado em separado, e outras pessoas, ficaram no quarto do Requerido do hostel já referido. KO tinha em sua posse cerca de 0,52 gramas de marijuana. No momento em que as testemunhas, os agentes da polícia S. e M., entraram no quarto, KO estava a enrolar um charro com marijuana para fumar. O requerido, apercebendo-se disto, aceitou pelo menos tacitamente que KO consumiu marijuana no seu quarto do hostel. A marijuana tinha um ingrediente activo de, pelo menos, 8 por cento de tetrahidrocanabinol.
3.–Por acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 15 de Setembro de 2020, foi deferida a entrega do requerido às autoridades judiciárias alemãs, em execução do referido MDE, para efeitos de procedimento criminal, tendo a entrega sido concretizada em 12 de Outubro de 2020.
4.–O MDE que está agora em causa, emitido em 8 de Setembro de 2021, pelo Juiz do Tribunal da Comarca de Memmingen, República Federal da Alemanha, com a referência de Processo – 221 Js22349/16, respeita ao mesmo requerido, para cumprimento de pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, por tráfico de estupefacientes – factos cometidos entre Outubro e Dezembro de 2016, assim sintetizados:
- Pelo menos desde Outubro de 2016 o requerido tem realizado negócios com estupefacientes, nomeadamente com marijuana. Para este fim, manteve regularmente marijuana no seu apartamento, em Memmingen, e vendeu-a a partir daí a vários clientes. Além disso, organizou regularmente encontros de fumadores no seu apartamento, onde deu um charro com uma mistura de marijuana e tabaco a jovens para consumo imediato.
- No início de Novembro de 2016, estava na posse de uma placa de marijuana com um peso mínimo de 50 gramas no seu apartamento, que se destinava principalmente à revenda rentável e, além disso, ao seu próprio consumo. Desta placa de marijuana, vendeu e entregou no seu apartamento, no início de Novembro de 2016 e nos 4 fins-de-semana seguintes, com lucro, num caso 1 grama de marijuana ao preço de 10 euros e, nos outros 4 casos, 2 gramas cada um ao preço de 20 ouros a SC, nascido aos 27.05.1999. No final de Outubro ou início de Novembro de 2016, vendeu e entregou uma vez 10 gramas de marijuana da mesma quantidade em Memmingen ao preço de 120 euros, e pouco depois mais 2 gramas de marijuana ao preço de 20 euros a NE. No período entre o final de Outubro e o início de Dezembro de 2016, vendeu e entregou no seu apartamento, não de forma excludente, da mesma quantidade original, em pelo menos 5 casos, 1-2 gramas de marijuana, cada um ao preço por grama de 10 euros a VA, nascido aos 19.04.2001. No mesmo período, vendeu e entregou 2 gramas de marijuana cada um ao preço de 20 euros, a VI no seu apartamento em duas ocasiões. Além disso, deu a VI um charro com uma mistura de marijuana e tabaco para consumo imediato, gratuitamente, em pelo menos 10 ocasiões durante este período. No período de Novembro a Dezembro de 2016, também vendeu e entregou pelo menos 0,3 gramas de marijuana por um preço de pelo menos 5 euros a HU, nascido aos 06.01.2000, em pelo menos 4 casos, e deu a HC gratuitamente, um charro com uma mistura de marijuana e tabaco para consumo imediato em pelo menos 10 casos. Em cada caso, o condenado/ora requerido estava ciente de que SC, VA e HU, que também são processados, ainda eram menores. A marijuana tinha um teor de substância activa de pelo menos 5%.
5.–Tendo sido inicialmente imposta pena suspensa na execução, tal suspensão veio a ser revogada pelo Tribunal Regional de Kempten, Câmara de Execução Penal.
6.–O requerido não renunciou ao benefício da regra da especialidade quando foi ouvido neste Tribunal da Relação, nem posteriormente.
           
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2.– Apreciando

O princípio da especialidade consagrado no artigo 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, traduz-se em limitar os factos pelos quais a pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu será sujeita a procedimento criminal, condenada ou privada de liberdade, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega.
Como refere Ana Zairi (Le Principe de la Spécialité de l'Extradition au Regard des Droits de l'Homme, p. 30, apud José Manuel Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, pág. 40 n. 71), referindo-se à extradição, o fundamento jurídico do princípio assenta no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, expressa no carácter convencional da extradição e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir o extraditando pelas infracções mencionadas no pedido. Todavia, uma concepção mais moderna, fundada na ideia de protecção dos interesses do indivíduo, considera a especialidade como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. Partindo desta visão humanista, a autora citada estabelece uma conexão entre o princípio da especialidade da extradição e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o princípio da especialidade do art. 6.º, n.º 3, al. a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que essa norma exige que o acusado seja informado da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, o que significa que só pode haver extradição por factos de que o extraditando tenha conhecimento (ver, a este propósito, acórdão do S.T.J., de 22/01/2014, proc. 144/13.9YRLSB.S1, em www.dgsi.pt).
Como se diz no acórdão do S.T.J., de 22/01/2014, o princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente, sofrendo, porém excepções, como ocorre quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação, para que a pessoa, entregue em cumprimento do MDE, responda por outros processos.
No âmbito da extradição, assim como um Estado pode requerer a entrega de um cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se depois de operada a entrega, se vier a verificar a existência de outros processos, pode ser solicitada, ao Estado requerido, a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir.
Por sua vez, no âmbito do MDE, o artigo 7.º, n.º2, al. g), da Lei n.º 65/2003, na redacção da Lei n.º 35/2015, de 4 de Maio, expressamente dispõe que a salvaguarda do princípio da especialidade cede perante a existência de consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega – consentimento a que a pessoa entregue seja sujeita a procedimento criminal, condenada ou privada da liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do MDE.
Estabelece o n.º 4 do artigo 7.º que o consentimento a que se refere o n.º2, alínea g), é prestado pelo Tribunal da Relação que proferiu a decisão de entrega e que tal consentimento “deve ser prestado sempre que esteja em causa infracção que permita a entrega, por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europeu [alínea c) do n.º4] e “deve ser recusado pelos motivos previstos no artigo 11.º, podendo ainda ser recusado apenas com os fundamentos previstos nos artigos 12.º e 12.ºA” [alínea d) do n.º4].
Estamos assim relegados para o domínio da aferição da existência de causas de recusa do cumprimento do mandado (ampliativo) emitido.
A execução de um MDE e, portanto, também do consentimento para extensão da entrega conforme previsto no n.º 2, alínea g), do artigo 7.º, e bem assim no n. º4, alíneas a) e d), e artigo 8.º, n.ºs 4 e 5, só poderá ser recusado pelos motivos de recusa obrigatória previstos no artigo 11.º ("será recusada") ou de recusa facultativa previstos no artigo 12.º ("pode ser recusada") da Lei n° 65/2003, na redação dada pela Lei n° 35/2015.
O consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um Estado Membro a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infracção para a qual é solicitado devesse ela própria dar lugar à entrega do requerido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.
É o caso dos autos.
Não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a regularidade formal e substancial do MDE.
Os factos descritos constituem para a autoridade judiciária de emissão crimes de entrega ilícita de estupefacientes por pessoa com mais de 21 anos, a uma pessoa com menos de 18 anos de idade, e de posse ilícita de estupefacientes – ilícitos que a autoridade judiciária de emissão inclui na lista de infracções constante da parte I do campo e) do formulário do MDE, pelo que, atento o disposto no artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, dispensa a verificação da dupla incriminação dos factos que justificam a emissão do MDE – sendo de assinalar, não obstante, que tais factos no nosso ordenamento jurídico constituem igualmente crimes.
Não se constata a existência de qualquer causa de recusa obrigatória.
Quanto a causas de recusa facultativa – que têm sido encaradas como tendo, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal (cfr. Henriques Pires da Graça -A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu - pág. 20 e seguintes) -, também não logramos identificar a presença de qualquer uma.
Em conclusão, tendo sido devidamente assegurado o contraditório exigível no caso e não existindo qualquer motivo de recusa para a prestação do consentimento previsto no artigo 7.º, n. º2, al. g) e 4, da Lei n.º 65/2003 de 23.8, entende-se ser de prestar, por via desta decisão, o consentimento pretendido.

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III–Dispositivo

Pelo exposto, após conferência, os juízes deste Tribunal da Relação, acordam em prestar o consentimento a que o requerido MS, melhor identificado nos autos, possa cumprir pena de prisão pelos factos e condenação constantes do MDE ampliativo.

Sem custas.
Proceda-se às necessárias notificações e comunicações ao Ministério Público, à autoridade judiciária de emissão, ao requerido (com tradução em alemão) e à ilustre defensora.



Lisboa, 11 de Janeiro de 2022


(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)



(Jorge Gonçalves)                            
(Fernando Ventura)                              
(Maria José Machado)