Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
565/15.2IDLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
GERENTE
OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIMENTO
Sumário: I Os órgãos de facto ou titulares de facto dos órgãos da sociedade são representantes da sociedade, recebendo mandato tácito de quem de direito. Nessa situação, o dirigente de facto comporta-se como se tivesse o poder de representar a sociedade, de agir em nome dela, essa representação é conhecida e querida pelos órgãos da sociedade.
II O que verdadeiramente importa é o exercício efectivo dos poderes e se, no caso de uma sociedade comercial por quotas, há uma pessoa que exerce as funções próprias do gerente com o acordo, ainda que tácito, dos sócios, o que teremos é a atribuição de poderes representativos e por isso a sociedade não poderá deixar de ser responsável pelos factos ilícitos cometidos por essa pessoa no exercício das suas funções. O que verdadeiramente releva é o exercício, pelo agente, de um poder correspondente ao do órgão e por essa via voluntariamente lesar o bem jurídico protegido.
III Não se tendo provado factos que conduzam à conclusão que o arguido exerceu efectivamente (no plano fáctico - praticando actos próprios de gestão - ou no plano jurídico - por ser sócio gerente) poderes de gerência da sociedade arguida no período temporal em causa, tendo o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa e podendo, por força dele, optar pelo cumprimento ou incumprimento da obrigação tributária, demonstrada não está essa obrigação relativamente ao recorrente e, consequentemente, a prática desse crime que lhe é imputado.
IV Tem-se por preenchida a condição de punibilidade a que se reporta o artº 105º/4/b) do RGIT e considerar-se efetuada a notificação aí prevista quer em nome pessoal, quer em nome da sociedade, desde que tal facto conste dos factos provados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1. No âmbito do processo comum n.º 565/15.2IDLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Instância Local Criminal de Lisboa – J6, foram submetidos a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, os arguidos  A…, pessoa colectiva com o NIPC…, com sede na Rua …, e B…, aos quais foi imputada a prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, nos termos dos artigos 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias – Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (doravante RGIT) e 30.º, n.º 2, do Código Penal (doravante CP), sendo a sociedade arguida responsável nos termos do art. 7.º, n.º 1 do primeiro dos mencionados diplomas legais.

Realizado o julgamento, por sentença proferida e depositada em 17 de maio de 2017, foi decidido:
- Condenar a arguida A…,pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, nos termos dos arts. 7.º, n.º 1, e 105.º, nºs 1, 4 e 7, do RGIT, na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros); e
- Absolver o arguido B…,da prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada nos termos dos arts. 105.º, nºs 1, 4 e 7, do RGIT e 30.º, n.º 2, do CP.
Mais sendo aí decidido, a final, que, após trânsito em julgado daquela sentença, seja extraída certidão da mesma e certidão fonográfica das declarações de B…, bem como de D…, porquanto “Das declarações de ambos indicia-se a prática por C…, (pai do arguido B…,) de um crime de abuso de confiança fiscal atendendo à gestão de facto feita da sociedade aqui arguida. Do confronto das declarações de D…, em audiência de julgamento com as produzidas em inquérito indicia-se a prática de um crime de falsidade de depoimento.”

2.– A sociedade arguida, inconformada com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1.- No âmbito do inquérito instaurado na sequência da participação de factos susceptíveis de consubstanciar a prática do crime de abuso de confiança fiscal, deverá ser apurada a identificação da pessoa ou pessoas que, representando a sociedade recorrente, são responsáveis pelo recebimento e não entrega da prestação tributária à Administração Fiscal;
2.- Findo o inquérito, com dedução de acusação pública, nos termos da qual se fez constar que a sociedade recorrente era representada por determinada pessoa, que actuando em seu nome e interesse, recebeu e não entregou a prestação tributária à Administração Fiscal, não é possível, com fundamento no disposto no art. 358º do CPP, o Tribunal de julgamento, na sentença, alterar a acusação mediante a inclusão de novos factos por via dos quais se consignou que a sociedade recorrente afinal era representada por pessoa diversa da que inicialmente figurava na acusação pública, a quem imputou o recebimento e não entrega da prestação tributária e os objectivos de tal conduta, sendo que esta segunda pessoa nem sequer teve qualquer intervenção no processo;
3.- O Acordão Uniformizador de Jurisprudência, proferido em 20.11.2014, no processo nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, de que foi relator o Exmº. Conselheiro Sr. Dr. Rodrigues da Costa, fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente ou na vontade de praticar o acto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal».
4.- A falta de descrição referida no Acórdão mencionado no na conclusão anterior, compreende, por maioria de razão, a errada identificação na acusação pública ou pronúncia da pessoa que efectivamente actuou em representação da pessoa colectiva arguida na prática do crime e sua substituição por outra pessoa a quem foram imputados os elementos subjectivos do tipo do crime;
5.- A sentença recorrida, ao incluir os factos nºs. 7, 8 e 9 no elenco dos factos considerados provados na sequência da prova produzida em audiência de julgamento, que não constavam da acusação pública, com o objectivo de suprir a falta dos elementos subjectivos do crime de abuso de confiança fiscal imputado à sociedade recorrente e, assim, poder condenar esta, padece de nulidade por violação do disposto no art. 358º do CPP;
6.- A interpretação do art. 358º do CPP, nos termos promovidos pelo Tribunal recorrido e concretizados na douta sentença objecto de recurso, na parte respeitante ao acrescento dos factos provados nºs. 7, 8 e 9, padece de notória inconstitucionalidade por ofensa ao disposto nos arts. 2º e 32º da CRP, violando o princípio do acusatório segundo o qual só se pode ser julgado por um crime a partir de uma acusação formulada pelo orgão competente, diferente do orgão julgador, funcionando a acusação como condição e limite do julgamento, determinando-se assim os poderes de cognição do Tribunal e os limites da decisão final. A aceitar-se a solução concretizada na douta sentença, os Tribunais poderiam sempre «substituir» os agentes do crime, nestes incluídos os representantes de pessoas coletivas, por outras pessoas, consoante a prova produzida em julgamento, mesmo que os substitutos não tivessem tido qualquer intervenção no processo;
7.- Compulsados os factos provados constantes da douta sentença recorrida, constata-se que dos mesmos não resultou provada a data em que ocorreu o termo do prazo legal de pagamento das quantias identificadas no facto provado nº 5. Não consta igualmente qualquer facto que indique a data em que se concluiu o prazo de 90 dias previsto no nº 4º, a), do artigo 105º do RGIT;
8.- A alínea a), do nº 4, do artigo 105º constitui uma verdadeira condição de punibilidade da conduta. Nesta medida era obrigatório o apuramento na matéria de facto provada da data em que ocorreu o termo do prazo para pagamento voluntário de cada uma das quantias liquidadas a título de IVA e da data em que ocorreu o termo do prazo de 90 dias, findo o qual a falta de entrega do imposto passou a poder consubstanciar a prática do crime de abuso de confiança fiscal, sendo ainda de referir que, relativamente a várias quantias identificadas no facto provado nº 5, na data em que foi instaurado procedimento criminal não haviam ainda decorridos aqueles prazos;
9.- A notificação a que se refere o art. 105º, nº 4, b), do RGIT, que é efectuada já no âmbito do inquérito, tem de ser efectuada na pessoa que tem o domínio funcional efectivo dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa. É esta pessoa - e não qualquer outra, mesmo que detenha formalmente a qualidade de membro do orgão de administração ou de funcionário - que tem o poder material e efectivo de decidir se a empresa paga ou não a quantia reclamada pela Administração Tributária;
10.- Tendo a notificação referida na conclusão anterior, relativamente à sociedade recorrente, sido efectuada na pessoa da Sra. E…,, pessoa que não se apurou que tivesse “alguma intervenção na administração da sociedade” recorrente - despacho de arquivamento - tal notificação não obedece à finalidade prevista naquele preceito, sendo por essa razão absolutamente ineficaz;
11.- Não tendo sido satisfeitas as condições de punibilidade referidas nas alíneas a) e b) do nº 4, do art. 105º do RGIT, não poderia a sociedade recorrente ser condenada pela prática do crime de abuso de confiança fiscal;
12.- A pena aplicada á sociedade recorrente é manifestamente excessiva; tendo em consideração as circunstâncias em que ocorreu o atraso de alguns meses na entrega do imposto, a entrega deste mais de um ano antes do julgamento e a inexistência de prejuízo para o Estado (não se apurou na matéria de facto qualquer prejuízo), a pena aplicada deveria ser a de multa pelo valor mínimo, ou seja, 20 dias à taxa de 5,00 euros, pelo que a sentença recorrida, salvo melhor opinião, violou o disposto nos arts. 40º, 70º e 71º do CP.
Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser proferido Acordão que:
a) Revogue a douta sentença recorrida;
b) Absolva a recorrente do crime de abuso de confiança fiscal.
E assim se fará Justiça.” (fim de transcrição).

3.– Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 633 verso.

4.– Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1º- Bem andou o Tribunal “a quo” ao condenar a sociedade arguida pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado, na forma continuada, nos termos dos arts.7.°/1 e 105.°/1, 4 e 7 do RGIT, na pena de 320 dias de multa à taxa diária de €8,00.
2º- A douta sentença recorrida não padece de qualquer vício previsto no art.410.º/2 do C.P.P., nem incorre em erro de julgamento, tendo efetuado uma correta apreciação da prova produzida, na sua globalidade, tendo indagado todos os factos que revestiam interesse para decidir, num dos sentidos admitidos juridicamente como possíveis.
3º- A sentença recorrida não viola o previsto no art.358.º do CPP porquanto os factos dados como provados nos pontos 7, 8 e 9 da matéria de facto resultaram da factualidade constante na acusação concatenada com defesa apresentada pelo arguido B…,(vide art.358.º/2 do CPP), pelo que não consubstanciam o aditamento do elemento subjetivo do tipo legal de crime nem viola o Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência nº1/2015 : in DR, I Série de 27-01-2015.
4º- A sentença recorrida também não viola o previsto no art.105.º/4 al.b) do RGIT e não estando ferida da arguida irregularidade, porquanto a sociedade arguida foi regularmente notificada nas pessoas de F…,(vide fls.125 a 129, 262, 268, 269, 270), E…, (Vogal- fls.279 e 280, 283 a 286) e B…,(presidente do conselho de Administração- conforme resulta de fls.299 a 303), nos termos do previsto no art.113.º do CPP.
5º- A Mmª Juiz “a quo” julgou corretamente e operou uma sensata subsunção jurídica e aplicação do direito, mormente quanto à determinação da medida da pena que se encontra abaixo dos seus limites médios, pelo que não excede a medida da culpa subjacente ao crime, por se manifestar justa, proporcional e adequada à gravidade da conduta do recorrente e à medida da sua culpa, não merecendo, assim, qualquer reparo ou censura.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida.
Porém, Vª. Exas. como sempre, farão a costumada JUSTIÇA!" (fim de transcrição).

5.– Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela arguida A…, adiantando nada mais se lhe oferecer acrescentar à posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. fls. 679).

6.– Foi cumprido, oficiosamente, o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.

7.– Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8.– Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.


II–Fundamentação

1.- Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP).
As questões suscitadas pela recorrente A…, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento de alguma ficar prejudicado pela solução dada àquela que a antecede, são, em síntese, as seguintes:
- impugnação da sentença na parte respeitante à alteração da acusação (conclusões 1ª a 6ª);
- sofre a sentença recorrida de incorreta subsunção dos factos ao direito (conclusões 7ª a 11ª);
- é excessiva a medida da pena de multa aplicada à recorrente, devendo ser agora fixada “pelo valor mínimo, ou seja, 20 dias à taxa de 5,00 euros” (conclusão 12ª).

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto:
   
a)- O Tribunal a quo declarou provados os seguintes factos (transcrição):
1.- A arguida A…, é uma sociedade comercial anónima que tem por objecto o comércio retalhista de tecidos, confecções, móveis, alimentação, electrodomésticos, ménage, calçado, brinquedos, drogas e perfumarias, papelaria e relojoaria.
2.- A sociedade arguida está enquadrada em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado no regime normal de periodicidade mensal.
3.- O arguido B…, era o Presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida à data dos factos.
4.- O arguido B…, era o legal representante da sociedade arguida.
5.- No período de 1 de Junho de 2014 a 30 de Abril de 2015 a sociedade arguida para desenvolvimento da sua actividade normal, representada pelo arguido, prestou serviços, efectuou vendas e liquidou o IVA a terceiros, seus clientes, quantias essas que recebeu nos seguintes valores:
-  Ano -------- Meses ----------- IVA Liquidado e Declarado
2014 ----------- Junho ------------------- €29 422, 75
2014 ----------- Julho--------------------- €35 146, 52
2014 ----------- Agosto -------------------€40 256 62
2014 ----------- Setembro-----------------€24 344, 64
2014 –---------- Outubro -----------------€28 573, 11
2014 ----------- Novembro ---------------€23 815, 97
2014 ----------- Dezembro----------------€34 129, 03
2015 ------------ Janeiro -------------------€28 227, 36
2015 –---------- Fevereiro -----------------€26 307,05.
2015 –---------- Março----------------------€27 652, 41
2015 ----------- Abril------------------------€19 865, 19
Total ------------- €317 740,49.
6.- A sociedade arguida remeteu à Administração Fiscal as declarações periódicas relativas às operações que efectuou, respectivamente nos meses de Junho a Dezembro de 2014 e Janeiro a Abril de 2015 no exercício da sua actividade e a que se reportam os aludidos montantes de IVA que recebeu.
7.- A gestão efectiva da sociedade no período em causa nos autos era feita não pelo arguido, mas por seu pai, C…,.
8.- No exercício dessa gestão efectiva foi C…, quem, tendo recebido os valores atinentes ao IVA no período que consta dos autos, acabou por não os entregar à Administração Tributária, apesar de estar consciente de que tal entrega era obrigatória.
9.- C…, utilizou o dinheiro para prosseguir outros fins da sociedade comercial aqui arguida, actuando de forma livre e consciente, em representação e no interessa da sociedade arguida enquanto seu administrador de facto, ciente de que esta conduta era proibida e punida por lei.
10.- Os arguidos foram notificados pela Administração Fiscal para procederem, no prazo de 30 dias, ao pagamento dos aludidos montantes de IVA cobrados, acrescidos dos respectivos juros e do valor da coima aplicável.
11.- Porém, não entregaram qualquer montante nesse prazo, fazendo a sociedade arguida suas tais quantias suas e utilizando as mesmas para satisfazer outros compromissos relacionados com a actividade normal desta.
12.-  O montante em causa nos autos foi já integralmente pago.
13.- O arguido B…, vive no Algarve com a mulher e os filhos, tendo negócios na área do golfe e da gestão imobiliária." (fim de transcrição).
Factos declarados não provados (transcrição):
1.- O arguido B…, era Presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida desde a sua constituição.
2.- Ao arguido B…, cabem todas as decisões pertinentes quanto à gestão da mesma, nomeadamente as respeitantes ao cumprimento das obrigações declarativas e ao pagamento dos impostos devidos perante a Administração Fiscal, incumbindo-lhe designadamente zelar pela cobrança do IVA referente aos produtos e serviços comercializados por essa sociedade e pela entrega deste imposto cobrado à Administração Fiscal.
3.- Todavia, o arguido B…, no exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração não entregou nem ordenou entregar à Administração Tributária os montantes de IVA acima descritos que recebeu de terceiros nas respectivas datas de vencimento nem após 90 dias sobre o termos do prazo legal para entrega.
4.- O arguido B…, agiu da forma descrita que em nome próprio, quer em nome e no interesse da sociedade arguida, bem sabendo que os valores respeitantes ao IVA e efectivamente entregues pelos clientes não pertenciam à sociedade arguida e que estava legalmente obrigado a entrega-los à Administração Fiscal.
5.- O arguido B…, cabia igualmente que ao não entregar aqueles valores agia contra a vontade do Estado e não obstantes quis e agiu do modo acima descrito provocando um prejuízo patrimonial àquele no valor de €317 740, 49.
6.- O arguido B…, reteve as referidas quantias em Junho de 2014 data em que concebeu as suas vantagens para a gestão da sociedade arguida e desde então, até Abril de 2015, motivado pela facilidade com que o podia fazer e pelo êxito da prática, confiando na inércia da administração fiscal, renovou sucessivamente o seu propósito de integrar na esfera patrimonial da sociedade arguida as quantias em causa.
7.- O arguido B…, agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, em representação da sociedade arguida e na qualidade de seu administrador de facto e de direito, ciente de que a sua conduta era proibida por lei." (fim de transcrição).
b)- Em sede de motivação da decisão de facto, escreveu-se na sentença recorrida:
"A convicção do Tribunal alicerçou-se na ponderação crítica e conjugada da prova produzida em audiência, analisada à luz das regras da experiência comum e critérios de normalidade, nos termos do art. 127º do CPP.
O arguido B…, prestou declarações de forma objectiva e credível. Relatou ao Tribunal o modo como aceitou a administração da sociedade arguida, apenas porque o seu pai C…, por motivos legais, não o podia fazer. Todavia, esclareceu de forma circunstanciada e credível ser o seu pai quem geria a sociedade arguida no dia-a-dia tomando todas as decisões, incluindo as relativas ao pagamento ou não das obrigações tributárias. Admitiu ter conhecimento da situação constante dos autos – não pagamento dos meses de IVA acima indicados – tendo sempre insistido pela regularização da mesma, até por força das consequências penais que daí decorreriam para si. Contudo, sublinhou sempre que todas as decisões de gestão da sociedade arguida cabiam sempre a seu pai, sem prejuízo de pontualmente o arguido ter participado naquela. Neste quadro, o arguido enfatizou o seu papel no contacto junto dos bancos no sentido de serem disponibilizadas verbas à sociedade arguida, uma vez que seu pai não o podia fazer.       
O arguido prestou ainda esclarecimentos sobre a sua situação pessoal. Foram também ouvidos G…, e D…,. O primeiro é funcionário da Administração Tributária e o segundo é técnico oficial de contas da sociedade arguida. G…, esclareceu ao Tribunal as diligências que fez no sentido de apurar os valores do IVA em falta, tendo deposto de forma clara e objectiva. Distinto foi o depoimento de D…,. Foi evidente a dificuldade que sentiu em afastar-se de sentimentos de lealdade quer para com o arguido, quer para com o seu pai, tentando evitar responder de forma concreta a questões relativas à gestão efectiva da sociedade.
O Tribunal teve ainda em conta a prova documental constante dos autos, examinada de forma crítica e em conjugação com a demais prova produzida (declarações do arguido e testemunhas). De fls. 488 a 498 resultou a prova do pagamento dos montantes em discussão nestes autos.
Os factos não provados assentaram na ausência de prova em sentido diverso. Na verdade, não foi feita qualquer prova de que o arguido B…, geria de facto a sociedade arguida e de que teve qualquer papel na decisão da mesma de não proceder à entrega do IVA. Embora da ponderação da prova produzida resulte a existência de uma única resolução criminosa, não se demonstrou que ela se tenha perpetuado contando a sociedade arguida com a inércia da AT nos termos descritos na acusação." (fim de transcrição).

c)- Finalmente, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à escolha e medida da pena, expendeu-se na decisão revidenda:
A)  O ilícito imputado aos arguidos
Aos arguidos é imputada a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, com o assento legal acima explicitado.
Resulta do art. 105º do RGIT que:
1 Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (de valor superior a € 7500 – Lei nº 64-A/2008, de 31/12) - deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 É aplicável o disposto no numero anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a)- Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)- A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efetuada for superior a (euro) 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas coletivas.
6 Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7 Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Da hermenêutica deste preceito legal decorre serem elementos objetivos do tipo: a) a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária; e b) a constatação de que o agente estava legalmente obrigado a entregar (de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei, após a reforma de 2008).
São condições objectivas de punibilidade, indicadas no n.º 4 do art.° 105.°: a) tiver decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega prestação; b) a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
Quanto ao elemento subjectivo traduz-se o mesmo no conhecimento e vontade de praticar tais catos, sabendo que os mesmos constituíam a prática de um crime. Trata-se, assim, de um ilícito doloso, sendo suficiente para o preenchimento do tipo a verificação de dolo eventual. Este basta-se com a representação que o agente faz do resultado ilícito e com a despectiva conformação a esse mesmo resultado.
O artigo 105.º do RGIT, ao contrário do que sucedida com o disposto pelo artigo 24.º do RJIFNA, prescinde, no seu elemento literal e para o preenchimento objetivo do tipo, do elemento apropriação da prestação tributária. Na verdade, ao abrigo do RJIFNA era necessário que se afirmasse não só a apropriação da prestação tributária por parte do agente, mas também, a nível subjetivo, o dolo de apropriação, enquanto no RGIT se exige apenas a não entrega total ou parcial de prestação tributária ou parafiscal. O crime de abuso de confiança fiscal é preenchido com a falta de entrega, total ou parcial, à administração tributária, de prestação deduzida nos termos da lei, a que o sujeito passivo estava obrigado a entregar ao credor tributário. Por outro lado, pode afirmar-se que o dolo, no sentido de dolo de apropriação, deixa de ser elemento essencial do crime, o qual se consuma findos 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
Assim, pratica este crime quem não proceder à entrega, total ou parcialmente, de prestação tributária, superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário, considerando-se também, para esses efeitos, prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei a preveja. O crime consuma-se quando o agente não entrega, total ou parcialmente, a prestação tributária ao Fisco. No que tange ao tipo subjetivo, o mesmo esgota-se no dolo dirigido à violação da relação de confiança estabelecida com a Administração Fiscal, uma vez que a sua punição a título negligente não está especialmente prevista – cf. art. 13º do Código Penal.
Importa agora averiguar se quanto a qualquer dos arguidos se foi feita prova de que os arguidos praticaram o crime de que vêm acusados.
No que diz respeito ao arguido B…, a resposta é negativa, uma vez que não se provou que mesmo tenha gerido de facto a sociedade arguida no período em discussão nos autos e que tenha tomado qualquer decisão (sozinho ou em conjunto com o seu pai) no sentido de não proceder à entrega dos valores relativos ao IVA nos termos acima explicitados. Assim sendo, quanto a este arguido cumpre concluir pela sua absolvição.
Diversa é a situação quanto à sociedade arguida. Com efeito, provou-se que a mesma, através de quem exercia a sua gestão de facto (o pai do arguido acima identificado) recebeu os montantes atinentes ao IVA dos meses Junho a Dezembro de 2014 e Janeiro a Abril de 2015 e não os entregou à AT, como sabia ser seu dever legal. Ao invés, integrou os montantes em causa no giro comercial, utilizando-os para fazer face a outras obrigações e despesas. Assim sendo, à luz do disposto no art. 7º do RGIT tem de concluir-se pela sua responsabilidade. Não se fez prova de que a actuação da sociedade arguida se integra no quadro do art. 30º do Código Penal.
Deste modo, não se tendo apurado factos que excluam a responsabilidade da sociedade arguida, cumpre determinar a pena a aplicar-lhe.
B) Escolha e medida da pena
Na tarefa de determinação da medida da pena cabe ter presente, desde logo, o vertido nos artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal. A primeira das disposições citadas reporta-se aos fins inerentes à aplicação das penas no nosso ordenamento jurídico-penal. O abandono das teses monistas a este respeito, conduz a que o ordenamento jurídico-penal português, aproximando-se das principais teses doutrinais quanto a este aspecto, acolha um conjunto de finalidades, habitualmente reconduzíveis à protecção de bens jurídicos (prevenção geral e especial) e reintegração social do agente. Quanto à culpa, face ao disposto no nº2 do art. 40º do Código Penal, surge como elemento estruturante do direito criminal, condicionando a própria medida da pena, sendo, deste modo, limite inultrapassável desta última. É, pois, tendo em atenção os desideratos legais acima expostos, que cumprirá determinar a medida da pena a aplicar ao arguido. Em tal operação consiste o primeiro passo na fixação da moldura penal aplicável aos factos praticados.
No caso dos autos, considerando que a arguida cuja responsabilidade penal se provou é sociedade comercial está em causa a aplicação de pena de multa. A mesma tem o limite mínimo de 20 e o limite máximo de 720 dias à taxa diária de € 5,00 a € 5.000,00 – cf. artigo 12.º, n.º 3, 15.º e 105.º, n.º 1, do RGIT. O quantitativo da multa é determinado pelo Tribunal em função da situação económica e dos encargos do condenado (vide artigo 15.º do RGIT). A fixação dos dias de multa é feita em função dos critérios gerais de determinação da pena (culpa e prevenção) e considerando, sempre que possível, o prejuízo sofrido pela fazenda nacional (art. 3.º do RGIT). Cumpre, então, atentos os factores a que alude o artigo 71.º do Código Penal, proceder à determinação da medida da pena de multa dentro dos limites supra enunciados. Há que ponderar, o tipo de ilícito, o qual se insere num domínio de locupletamento à custa da Fisco, onde maiores são as necessidades de reprovação e prevenção do crime. Efectivamente, é do conhecimento generalizado que os Estados Sociais de Direito, tendo chamado a si a realização de múltiplas tarefas de satisfação de necessidades colectivas, se viram forçados a exercer uma enorme pressão fiscal com vista à obtenção de receitas (artigo 103.º da C.R.P.). A fuga à tributação tem ganho cada vez maior expressividade, reflectindo-se os respectivos prejuízos em toda a comunidade. Com efeito, atenuam as receitas do Estado e aumenta a carga fiscal, o que conduz a fugas ao fisco ainda mais elaboradas e sofisticadas.
No quadro do art. 71º do Código Penal pondera-se quanto à sociedade arguida: o dolo (directo), a ilicitude (acima do mediano, considerando o montante em causa), bem como a circunstância do mesmo se mostrar já pago à AT. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais. Tudo ponderado aplica-se à mesma uma pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros)."[1](fim de transcrição).

3.– Vejamos se assiste razão à recorrente.

3.1.- Atentemos na primeira suscitada questão.
A este propósito alega a recorrente que:
“Nos termos da douta acusação pública foi imputado à sociedade recorrente e ao Sr. B…, a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p.p. pelos arts. 105º, nºs 1, 4 e 7 do RGIT e art. 30º, nº 2, do CP. Resumidamente e no essencial, referiu-se na douta acusação pública que a sociedade recorrente estava enquadrada no regime geral em sede de IVA, tendo no âmbito da sua actividade, no período entre 1 de Junho de 2014 e 30 de Abril de 2015, prestado serviços, efectuado vendas e liquidado IVA aos seus clientes, que recebeu, no valor de 317.740,49 euros. Findo o prazo de 90 dias após o termo do prazo legal de entrega do Imposto e o prazo posterior de 30 dias concedido pela Administração Tributária, a sociedade recorrente não entregou aquela quantia, que reteve para si.
Referiu-se, também, na douta acusação pública, que a sociedade recorrente tinha como Presidente do Conselho de Administração desde a sua constituição o arguido B…, a quem cabia todas as decisões pertinentes à sua gestão. Que, nesta circunstância, o arguido B…, não entregou, nem ordenou a entrega à Administração Tributária da quantia de 317.740,49 euros. Que arguido agiu em nome próprio e no interesse da recorrente, actuando contra a vontade do Estado e causando-lhe prejuízo patrimonial, motivado pela facilidade com que o podia fazer e pelo êxito de tal prática. Concluiu-se que o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, na qualidade de administrador de facto e de direito, ciente que a sua conduta era proibida por lei.
Realizado o julgamento, foi designado o dia 3 de Maio de 2017 para leitura de sentença. Porém, iniciada a audiência, o Tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho: «Da ponderação da prova produzida em audiência de julgamento resulta uma alteração à factualidade que conste da acusação. Com efeito resultou da prova aqui produzida que a gerência efectiva da sociedade era feita não pelo arguido mas por seu pai C…, e que foi o mesmo no exercício dessa gestão efectiva quem tendo recebido os valores atinentes ao IVA no período que consta nos autos acabou por não os entregar à Administração Tributária apesar de estar consciente de que tal entrega era obrigatória, mais resultou demonstrado que o indicado C…, utilizou o dinheiro para prosseguir outros fins da sociedade comercial aqui arguida actuando de forma livre e consciente em representação e no interesse da sociedade arguida como seu administrador de facto, ciente de que esta conduta era proibida e punida por lei. É esta a alteração que se comunica e que naturalmente apenas tem reflexos para a sociedade arguida, que agora se comunica para todos os efeitos legais. Notifique.»
Dada a palavra ao Mandatário dos arguidos este declarou não prescindir do prazo de vista para defesa, o qual foi objecto de deferimento pelo prazo de cinco dias. Por requerimento da sociedade recorrente datado de 5 de Maio de 2017, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, esta declarou expressamente a sua oposição à alteração da acusação promovida pelo Tribunal recorrido. Porém, sobre as questões suscitadas pela recorrente na sua oposição nenhum despacho foi proferido pelo Tribunal recorrido. Limitou-se este, apenas, na audiência seguinte, a completar o douto despacho atrás reproduzido com o esclarecimento de que a alteração da acusação foi efectuada ao abrigo do disposto no art. 358º, do CPP (nesta data não está ainda disponível no Citius a acta de audiência de julgamento de 17 de Maio de 2017), tendo logo de seguida o Tribunal passado à leitura da douta sentença objecto de recurso.
Do exame da douta sentença a recorrente tomou conhecimento do seguinte:
O Tribunal recorrido considerou provados os factos constantes dos artigos 1º, 2º, 5º e 10º da douta acusação pública;
O Tribunal recorrido considerou provados em parte os factos constantes dos artigos 3º (até à expressão «arguida»), 4º (até à expressão «sociedade arguida»), 6º (com excepção de «representada pelo seu administrador») e 9º (com excepção de «nem posteriormente»).
Todos os restantes factos da douta acusação pública foram considerados «factos não provados».
Tomou, também, conhecimento a sociedade recorrente que o Tribunal recorrido, na sua douta sentença, considerou provados diversos factos que não constavam da douta acusação pública, designadamente, os factos indicados sob os números 7, 8, 9, nos quais se registou o seguinte:
«7.- A gestão efectiva da sociedade no período em causa nos autos era feita não pelo arguido, mas por seu pai, C…,.
8.- No exercício dessa gestão efectiva foi C…, quem, tendo recebido os valores atinentes ao IVA no período que consta dos autos, acabou por não os entregar à Administração Tributária, apesar de estar consciente de tal entrega era obrigatória.
9.- C…, utilizou o dinheiro para prosseguir outros fins da sociedade comercial aqui arguida, actuando de forma livre e consciente, em representação e no interesse da sociedade arguida enquanto seu administrador de facto, ciente de que esta conduta era proibida e punida por lei.»
2. Impugnação da sentença: alteração da factualidade constante da douta acusação pública efectuada nos termos do art. 358º do CPP:
Como se disse atrás, o Tribunal recorrido não proferiu despacho sobre as questões suscitadas pela recorrente na oposição apresentada no dia 5 de Maio de 2017. Face a esta circunstância, na presente motivação, seguir-se-á de perto o que se referiu naquele requerimento.
O elemento objectivo do tipo do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no art. 105º do RGIT, desdobra-se em dois factos: num primeiro momento o agente recebeu de terceiros o valor do imposto, cobrado no âmbito da sua actividade; posteriormente, estando o agente obrigado por lei a entregar esse imposto à Administração Tributária, não procedeu a essa entrega nos prazos indicados no número 4 do art. 105º do RGIT. O elemento subjectivo tem a ver com a culpa do agente. Tratando-se de pessoa colectiva a responsabilidade desta pressupõe sempre que o titular de um seu orgão ou o seu representante actuou por ela com culpa, pois «a culpa da pessoa colectiva resulta da culpa da pessoa física que actuou em seu nome e no seu interesse» (Ac. TRL, de 08.05.2013, citado em pgdlisboa.pt - em anotação ao art. 7º do RGIT). Por isso, torna-se essencial que o representante seja a pessoa que «no momento da consumação do crime tenha o domínio funcional dos factos» (Ac. TRL, de 17.04.2013, citado em pgdlisboa.pt - em anotação ao art. 7º do RGIT), ou seja, que esteja em condições de proceder ou ordenar a entrega do imposto e não o faça.
No caso concreto dos autos, findo o inquérito, o Exmº. Magistrado do Ministério Público deduziu douta acusação nos termos da qual consignou que o arguido B…, foi a pessoa que, actuando na qualidade de representante da recorrente, recebeu o imposto e, sabendo que estava legalmente obrigado a proceder ou ordenar a sua entrega à Administração Tributária, decidiu não actuar desta forma, por conta e no interesse da sociedade recorrente, retendo esta na sua esfera jurídica, contra a vontade do Estado, o valor do imposto.
Posteriormente, realizado o julgamento e de acordo com a prova produzida em audiência, concluiu o Tribunal recorrido que o arguido B…, não foi o autor dos factos que lhe foram imputados na douta acusação pública. Concluiu o Tribunal recorrido que tal prova indiciava que os factos imputados a este arguido tinham sido praticados por seu pai, Sr. C…, que era a pessoa que de facto tinha a «gestão efectiva da sociedade no período em causa nos autos».
Porém, em vez de concluir simplesmente pela improcedência da acusação pública, por não se terem provado os factos nela consignados relativamente à pessoa daquele arguido e da sociedade recorrente, entendeu o Tribunal recorrido, ao abrigo de uma «alteração da acusação» indicar como responsável por tais factos outra pessoa - o Sr. C…, - por forma a poder ser preenchido, na vertente subjectiva, o tipo de crime imputado à sociedade arguida e determinar a sua subsequente condenação. Face a esta decisão, importa apurar se o recurso à alteração da acusação, com a finalidade atrás mencionada, respeitou o disposto nos arts. 358º e 359º do CPP.
A alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia só poderá ocorrer nos termos previstos nos artigos 358º e 359º do CPP. A alteração será substancial se tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicadas (art. 1º, f), do CPP). A alteração será não substancial nos restantes casos e quando a mesma se destina a alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. O Tribunal recorrido esclareceu que a alteração que efectuou foi realizada ao abrigo do disposto no art. 358º do CP, ou seja, uma alteração não substancial da acusação. Com fundamento neste preceito, o Tribunal recorrido introduziu nos factos provados os factos nºs. 7, 8 e 9, que não constavam da douta acusação pública.
O Supremo Tribunal de Justiça no Acordão Uniformizador de Jurisprudência, proferido em 20.11.2014, no processo nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, de que foi relator o Exmº. Conselheiro Sr. Dr. Rodrigues da Costa, fez registar o seguinte: «... a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas estas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito».
Como atrás se referiu, os elementos subjectivos do crime, no que respeita à sociedade recorrente, estão concentrados na actuação da pessoa física que tem o poder de decisão no que respeita à sua actuação. Daí que a douta acusação pública tenha promovido a imputação dos factos necessários ao preenchimento dos elementos subjectivos do crime na pessoa do arguido B…, como resulta inequivocamente dos factos constantes dos artigos 4º, 7º, 8º, 9º, 11º, 12º13º e 14º daquela peça processual. Tendo o processo seguido para julgamento, foi este último arguido inquirido sobre esses factos e foram ouvidas, sobre os mesmos, as testemunhas da acusação.
Todavia, findo o julgamento, o Tribunal recorrido considerou esses mesmos factos não provados - cfr. douta sentença recorrida, factos não provados 1 a 7. Porque se mostrou indiciado, face à prova produzida, que a pessoa «culpada» pela actuação ilícita da sociedade recorrente era o Sr. C…,, o Tribunal recorrido, com o objectivo de suprir o erro ou facto não verdadeiro constante da douta acusação pública, acrescentou a esta os factos provados 7, 8 e 9. O Sr. C…, pessoa visada naqueles factos, não teve qualquer intervenção nos presentes autos, razão porque nunca foi ouvido sobre os factos respeitantes à sua pessoa considerados provados na douta sentença recorrida.
O Acordão Uniformizador de Jurisprudência, proferido em 20.11.2014, no processo nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, de que foi relator o Exmº. Conselheiro Sr. Dr. Rodrigues da Costa, fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente ou na vontade de praticar o acto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal».
De entre os elementos subjectivos do crime imputado à sociedade recorrente, figurava a necessidade de se identificar a pessoa que procedia à sua gestão e que foi responsável por receber o imposto e não o entregar ao Estado. No que respeita a este facto, na douta acusação pública identificou-se pessoa distinta da que, no entender do Tribunal recorrido, tinha efectivamente tal responsabilidade, que era o Sr. C…,.
Diz-se no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça atrás citado que a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime ... não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358º do Código de Processo Penal. Esta falta de descrição compreende, por maioria de razão, a errada indicação na acusação pública ou pronúncia do agente do crime, ou, como sucede nos presentes autos, da pessoa que efectivamente actuou em representação da pessoa colectiva arguida na prática do crime - parece ser neste sentido o Acórdão do TRL, de 17.04.2013, proc. nº 496/11.5IDLSB.L1-3, de que foi relator o Exmº. Desembargador Sr. Dr. Jorge Raposo, disponível em dgsi.pt, em cujo sumário se consignou a seguinte jurisprudência: «... 4- Se é certo que face ao disposto no art. 7º do RGIT, a responsabilidade criminal da pessoa colectiva não exige a responsabilização do seu agente, bastando que seja possível estabelecer o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta, o certo é que nos casos em que não é investigado e acusado o sócio (de facto ou de direito) a condenação da sociedade arguida levaria á adição de factos que não estão na acusação, donde, em tal circunstancialismo importa, atendendo ao disposto no art. 402º, nº 1, do CPP, absolver a sociedade arguida
Consequentemente não se vê como é possível sustentar-se que o art. 358º do CPP admita a «substituição» do agente do crime, ou da pessoa física que actuou em representação da pessoa colectiva, por pessoa diversa da que foi identificada na acusação pública ou na pronúncia, sendo ainda de referir que uma interpretação daquele preceito nos termos promovidos pelo Tribunal recorrido e concretizados na douta sentença objecto de recurso, padece de notória inconstitucionalidade por ofensa ao disposto nos arts. 2º e 32º da CRP, violando-se o princípio do acusatório segundo o qual só se pode ser julgado por um crime a partir de uma acusação formulado pelo orgão competente, diferente do orgão julgador, funcionando a acusação como condição e limite do julgamento, determinando-se assim os poderes de cognição do Tribunal e os limites da decisão final. A aceitar-se a solução concretizada na douta sentença, os Tribunais poderiam sempre «substituir» os agentes do crime, nestes incluídos os representantes de pessoas coletivas, por outras pessoas, consoante a prova produzida em julgamento, mesmo que os substitutos não tivessem tido qualquer intervenção no processo. O que, com devido respeito e salvo melhor opinião, não faz qualquer sentido.
No caso concreto dos autos, também não subsistem quaisquer dúvidas que a alteração da acusação promovida pelo Tribunal recorrido na douta sentença também não pode ser enquadrada no art. 359º do CPP, pois não houve imputação de crime diverso, nem agravamento da pena aplicável.
Em boa verdade, parece estar-se perante uma alteração de factos atípica, por carecer em absoluto de fundamentação legal, razão porque a mesma não pode ser mantida. Conclui-se, assim, invocando a nulidade da douta sentença recorrida, no que respeita aos factos provados 7, 8 e 9, por violação do disposto nos arts. 358º e 359º do CPP, e a inconstitucionalidade da interpretação do art. 358º do CPP, promovida pelo Tribunal recorrido por violação dos arts. 2º e 32º da CRP.” (fim de transcrição).
Porém sem razão.
Como doutamente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso a recorrente/arguida alega que a sentença recorrida ao dar como provados os factos constantes dos pontos 7, 8 e 9 da matéria de facto fez um aditamento do elemento subjetivo do tipo de ilícito que não é permitido ao abrigo do previsto no art. 358.º do CPP e no seguimento do Ac. Uniformizador de Jurisprudência, proferido em 20 de novembro de 2014, no âmbito do proc. nº 17/07.4GBORQ.E2-A.S1.
O Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, publicado no DR, I Série de 27 de janeiro de 2015, dispõe que: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.” (fim de transcrição).
Os factos dados como provados nos pontos 7, 8 e 9 da matéria de facto resultaram da factualidade constante na acusação concatenada com defesa apresentada pelo arguido B…,e não consubstanciam o aditamento do elemento subjetivo do tipo legal de crime.
Verifica-se “alteração substancial dos factos” nos termos do previsto na alínea f), do art. 1.º, do CPP, “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Por outro lado, existe alteração simples ou não substancial, prevista no art. 358.º do CPP sempre que se não verifique uma alteração do objeto do processo.
Com efeito, “É alteração não substancial aquela que, representando embora uma modificação dos factos que constam da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem tão-pouco a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”(inAcórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de março de 2004, proferido no processo 0346304 e publicado na JusNet).
O art. 358.º do CPP, sob a epígrafe “Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia” estabelece o seguinte:

1- Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2- Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3- O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.” (fim de transcrição).
Como se expendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de dezembro de 2016, proferido no processo 41/11 e publicado na JusNet:
“Para alcançar o significado de alteração dos factos da acusação a que alude nomeadamente o artigo 359º do Código de Processo Penal devemos ter presente o princípio estruturante do processo penal nesta matéria que é o da limitação temática do tribunal de julgamento ao objecto factual descrito na acusação, sendo excepção a possibilidade de conhecimento de "novos factos", admissível mediante simples comunicação nos termos do artigo 358º nos casos de menor reflexo na defesa do arguido, mediante comunicação e aceitação de todos os sujeitos processuais nos restantes.
Mas se a lei fala de alteração dos factos e não de factos novos, tal significa que escapam do regime do disposto no artigo 358º e 359º todos aqueles que reflictam uma acção autónoma da que constava da acusação e que podem com ela formar uma situação de concurso de crimes.
A descoberta de um evento fáctico totalmente novo no decurso da audiência de julgamento que não constava da acusação deduzida contra o arguido a quem é imputado, não pode pertencer à categoria de alteração substancial dos factos descritos na acusação, que supõe a manutenção do mesmo evento embora em circunstâncias não constantes da acusação que determinam a imputação de crime diferente ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (cfr. artigos 359º e 1º alínea f) do Código de Processo Penal). Ou seja, a noção de alteração implica sempre que os factos novos descobertos em julgamento tenham uma ligação naturalística com os factos que constavam da acusação, sejam o desenvolvimento decorrente de um melhor conhecimento das circunstâncias em que ocorreram. Só assim se justifica a possibilidade de julgar no mesmo processo os factos em nome do aproveitamento dos actos processuais praticados.
Quanto à pretensa possibilidade de exercer a acção penal em julgamento e de julgar imediatamente pessoa não constituída arguida no processo, manifesta é a impossibilidade legal de tal ocorrer no âmbito da previsão do artigo 359º.” (fim de transcrição).
No nosso sistema processual penal, a acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objeto do processo.
A acusação define o conjunto de factos que se entende constituírem um crime, estabelecendo assim os limites dos poderes cognitivos do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias, nisto se traduz o princípio da vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objeto do processo penal (mesmo quando o objeto não tenha sido conhecido na sua totalidade, dever considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo).
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória exige, para assegurar a plenitude das garantidas de defesa do arguido, uma necessária correlação entre a acusação e a sentença que, em princípio, implicaria a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objeto do processo, uma vez definido este pela acusação.
Ao limitar, em regra, os poderes de cognição do tribunal a outros factos, que não os contidos na acusação, garante-se ao arguido que só deles se terá de defender e que apenas por estes poderá ser julgado.
A finalidade visada é a proteção do arguido, assegurando-lhe o direito de não se não deparar com surpresas relativas à imputação de factos com que não contava e não podia contar. A defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objeto o conjunto de factos imputados na acusação.
Pretendendo conciliar a celeridade processual e o aproveitamento do processo com os imperativos legais do princípio do contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido, o processo penal admite, não obstante, a condenação por factos novos, ou seja, que traduzam alteração dos descritos na acusação ou na pronúncia, nos precisos termos definidos nos artigos 358.º e 359.º do CPP.
Para além dos factos constantes da acusação (os quais constituem o objeto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjetivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc..
Estes factos novos fazem parte do chamado “objeto do processo em sentido amplo”.
Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (isto é, não contendem com a identidade do objeto do processo), mas, por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento.
O crime de abuso de confiança fiscal pressupõe a anterior existência de uma relação jurídica de substituição, ou seja de uma situação em que a posição de devedor na relação tributária, por imposição da lei, seja ocupada a título indireto por um substituto do verdadeiro contribuinte, por força da existência, entre ambos, de uma relação jurídica de direito privado.
Deste modo e em nome do que se considera como sendo uma relação de confiança, o substituto tributário permanece investido numa posição de domínio sobre o valor da prestação do imposto em causa e de uma obrigação jurídica de entrega ao Estado no prazo fixado na lei fiscal.
 Segue-se de perto o entendimento de Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Coimbra Editora, 2009, p. 121-132; Silva, Germano Marques da, Direito Penal Tributário, Univ. Católica, Lisboa, 2009, p. 241-244; Costa Andrade, Manuel da e Aires de Sousa, As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto, Direito Penal, Textos Doutrinários, III, Coimbra Editora, 2009, p.323-330, Lumbrales, Nuno, O Abuso de Confiança Fiscal no Regime Geral das Infracções Tributárias, Revista de Direito e Gestão Fiscal (2003) p.89, Marques, Paulo- Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra Editora, 2011, p-39.Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/01/2007, Rel. Isabel Pais Martins, processo 0642766 www.dgsi.pt.
O preenchimento do tipo legal de crime - abuso de confiança fiscal - pressupõe a conduta de quem tem o domínio e a capacidade efetiva de administração da sociedade comercial e só pode ser responsabilizado criminalmente quem, na ocasião em que não foi entregue a prestação tributária retida ou deduzida, reunia os poderes de facto necessários para optar pelo incumprimento da obrigação tributária.
Daí que a qualidade de “gerente” ou “ Administrador” no sentido formal, mesmo que com um conhecimento da situação de incumprimento, seja insuficiente para a imputação do crime de abuso de confiança fiscal e se torne necessário demonstrar que esse gerente ou administrador de direito tinha o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações fiscais da empresa.
A este propósito vejam-se:
- Os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 03/06/2009, Rel. Maria Elisa Marques, proc. 21/05.7APRD.P1 e de 13/01/2010, Rel. Melo Lima, proc. 1/06.5IDPRT.L1;
- Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/04/2013, Rel. Jorge Raposo, proc. 496/11.5IDLSB.L1-3 e
- Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/02/2013, Rel. Ana Teixeira Silva, proc. 15691/09IDPRT.G1 e de 17/06/2013, Rel. Teresa Baltazar, proc. 267/10.6IDBRG.G2.
No caso concreto o Ministério Público acusou os arguidos A…, e B…, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada nos termos dos arts. 7.°, n.º 1, e 105.°, nºs 1, 4 e 7, ambos do RGIT.
Produzida a prova apurou-se - pela versão apresentada pela defesa (art. 358.º, n.º 2, do CPP) - que o gerente de facto da sociedade arguida era C…, pai do arguido B…,.
Na situação concreta destes autos, foi C…, quem sempre tomou todas as decisões, por conta e no interesse da sociedade, aí se incluindo necessariamente a aquisição de bens e serviços, a retenção e entrega do IVA. Ao mesmo tempo, o arguido B…, não tinha efetivos poderes de administração, nem capacidade para dispor das quantias retidas ou deduzidas a título de IVA.
Os factos vertidos nos pontos 7, 8 e 9 são factos que fazem parte do chamado “objeto do processo em sentido amplo” e são legalmente admissíveis nos termos do previsto no art. 358.º, n.º 2 do CPP.
Como igualmente bem assinala o Ministério Público, a perfilhar a tese defendida pela sociedade arguida abriria o caminho para a impunidade total, nesta área dos crimes tributários.
O erro da recorrente inicia-se com pressuposto, errado, de que apenas os atos praticados pelo seu representante legal, responsabilizam penalmente a pessoa coletiva, não podendo a mesma ser responsabilizada pelos atos dos seus gerentes de facto, quando tais gerentes de facto são identificados em sede de produção de prova durante o julgamento.
E levando em consideração apenas o modo como a atuação é descrita na acusação, que atribui ao arguido B…,, administrador legal, a efetiva gerência de facto da sociedade, o Tribunal a quo teve devidamente em conta –  extraindo daí todas as consequências – que na discussão da causa se apurou que no período em causa, as funções de gerência foram efetivamente exercidas pelo pai daquele, C…,.
Com efeito, na explicitação da sua convicção, o julgador afirma que o arguido B…, admitiu que figurava como administrador da empresa, porque seu pai lho havia pedido, na medida em que estava inibido de ter sociedades em seu nome, mas era o seu pai que tratava de tudo respeitante à loja, sobretudo de dinheiros e contabilidade, era ele quem decidia sobre o que se haveria de pagar ou não.
Tal como afirma Germano Marques da Silva (Responsabilidade Penal das Sociedades e dos seus administradores e representantes, editorial Verbo, 2009, pág. 244): A existência de administradores de facto não “deve servir de pretexto para que a sociedade escape à sua responsabilidade, o que seria fácil mediante a atribuição de poderes de administração a pessoas que não sejam titulares do respectivo órgão ou delegação ou incumbência especial por parte dos titulares dos órgãos da sociedade”.
Os órgãos de facto ou titulares de facto dos órgãos da sociedade são representantes da sociedade, recebendo mandato tácito de quem de direito. Nessa situação, o dirigente de facto comporta-se como se tivesse o poder de representar a sociedade, de agir em nome dela, essa representação é conhecida e querida pelos órgãos da sociedade.”
No Acórdão da Relação de Lisboa de 8 de novembro de 2011 refere-se, a propósito da responsabilidade penal da pessoa coletiva pela actuação de gerente de facto, o seguinte: “(…) o que verdadeiramente importa é o exercício efectivo dos poderes e se, no caso de uma sociedade comercial por quotas, há uma pessoa que exerce as funções próprias do gerente com o acordo, ainda que tácito, dos sócios, o que teremos é a atribuição de poderes representativos e por isso a sociedade não poderá deixar de ser responsável pelos factos ilícitos cometidos por essa pessoa no exercício das suas funções. (…) agir como órgão da sociedade não tem que ser actuar como titular o órgão, com um vínculo formal válido. O que verdadeiramente releva é o exercício, pelo agente, de um poder correspondente ao do órgão e por essa via voluntariamente lesar o bem jurídico protegido.” (fim de transcrição).
O Acórdão da Relação do Porto de 12 de outubro de 2011 (relator Joaquim Gomes), publicado no sítio www.dgsi.pt Analisando a questão, refere a propósito da responsabilidade penal do gerente de facto: “No âmbito dos crimes fiscais ou tributários, o sujeito activo dos ilícitos criminais aí previstos estende-se aos membros ou representantes, legais ou de facto, dos órgãos dirigentes das pessoas colectivas infractoras, que para o efeito tenham agido voluntariamente e cuja conduta tenha conduzido à correspondente tipificação do tipo legal aí contemplado, tanto por terem o domínio directo dos factos, como por terem o domínio funcional dos mesmos. Passando para o tipo subjectivo deste ilícito temos que o mesmo reside na intenção de não entrega pelo devedor substituto ou fiel depositário, das contribuições retidas e devidas à segurança social pelo verdadeiro contribuinte.” (fim de transcrição).
E não se diga que com a solução preconizada na sentença recorrida se violou o princípio do contraditório. Tal teria sucedido se o arguido tivesse sido absolvido e simultaneamente o seu pai condenado. Não foi o caso. Ao que acresce que, o que se deu como provado nestes autos quanto a este só faz caso julgado no presente processo, impondo-se, para a sua condenação, que tal prova seja feita no processo que virá a ser instaurado, após trânsito em julgado, a partir da certidão do presente extraída, como ordenado, e bem, na sentença recorrida.
Destarte, improcede o recurso neste segmento.

3.2.– Atentemos agora se, como alegado pela recorrente, houve violação do previsto no art. 105.º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT.
A questão a apreciar prende-se, exclusivamente, com a definição das exigências do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT e consequências da sua invocada inexistência.
Entende a recorrente, por um lado, que a da alínea a), não figura nos factos provados, onde não se indica a data em que se concluiu o prazo de 90 dias ali previsto, e por outro lado, que a condição de punibilidade prevista alínea b) ao ter sido efetuada a notificação na pessoa de E…, porque não se apurou que tivesse alguma intervenção na administração da sociedade, não se mostra regularmente cumprida.
Vejamos o regime jurídico do crime de abuso de confiança fiscal e se assiste razão à recorrente.
Dispõe o artigo 105.º do RGIT que:
“1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. (…)
4- Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a)- Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b)- A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.” (fim de transcrição).
Ora, ao ter sido dado como provado, enquanto facto 10.º, que “Os arguidos foram notificados pela Administração Fiscal para procederem, no prazo de 30 dias, ao pagamento dos aludidos montantes de IVA cobrados, acrescidos dos respectivos juros e do valor da coima aplicável”, tal materialidade necessariamente pressupõe que anteriormente já haviam decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação. Melhor teria sido que explicitamente figurasse na acusação e na sentença que os arguidos não pagaram à Administração Fiscal os montantes de IVA em causa (os atinentes, como provado, às operações comerciais que a sociedade arguida efetuou nos meses de Junho a Dezembro de 2014 e Janeiro a Abril de 2015 no exercício da sua normal atividade e de que remeteu à Autoridade Tributária as respetivas as declarações periódicas), nem dentro dos prazos legais (indicando-os), nem no prazo de 90 dias a contar do termo de cada um deles. Porém, essa omissão, não pode ter os efeitos pretendidos pela defesa.
Por seu turno, a atual redação do art. 105.º do RGIT foi introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro (OE 2007), que acrescentou uma nova condição – que configura uma condição objetiva de punibilidade, conforme jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2008 - nos termos da qual a falta de entrega das prestações tributárias (ou das contribuições à segurança social) devidas, posto que declaradas, só será punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, “no prazo de 30 dias após notificação para o efeito”.
Nada mais esclarecendo a lei expressamente no tocante à forma como tal notificação deve ser efetuada (nem por quem o deve ser, tendo-se vindo a entender que tanto poderá ser pela administração tributária ou pela segurança social, consoante se trate de prestação tributária ou de contribuição à segurança social, como pelos tribunais, de acordo com a fase em que o processo se encontrar), é no quadro do diploma em que vem prevista que a resposta deve ser encontrada.
Em concreto, no art. 3.º da referida Lei n.º 53-A/2006 encontra estabelecida a legislação subsidiária que, para os crimes e seu processamento, são, de acordo com a al. a) do mesmo, as disposições do CP, do CPP e respetiva legislação complementar.
Tratando-se de uma ato de natureza processual, será pois o regime estabelecido para as notificações no CPP o aplicável.
Como doutamente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso, que aqui seguimos de perto, decorre do art. 105.º, n.º 4, do RGIT que esta norma se limita a impor uma condição de procedibilidade, o que significa que se trata de uma mera interpelação para pagar, dando (mais) uma oportunidade ao contribuinte relapso para o fazer, mediante a contrapartida de lhe ser concedida a impunibilidade criminal da sua conduta.
Esta condição de procedibilidade destinando-se tão-somente a dar ao arguido uma faculdade de extinção da sua responsabilidade criminal, já após a consumação do ilícito (pois esta verifica-se na data em que terminou o prazo para o cumprimento do dever tributário respetivo).
O Dr. Paulo Marques, na sua obra Crime de abuso de confiança fiscal – Problemas do atual direito penal tributário, Coimbra Editora, 2ª edição, Abril de 2012, páginas 145-148, entende que os destinatários da notificação prevista no art.105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT deverão ser os arguidos, enquanto pessoas singulares individualmente responsáveis e, se for caso disso, em representação da pessoa coletiva que também seja arguida.
É que, conquanto a lei preveja a responsabilidade criminal fiscal cumulativa da empresa infratora e dos respetivos corpos sociais (mesmo nos crimes omissivos, como o abuso de confiança fiscal), nos termos dos artigos 6.º e 7.º do RGIT, a vontade da pessoa coletiva não se confunde com a vontade dos titulares dos seus órgãos, não obstante terem sido os seus corpos diretivos que determinaram a vontade desta.
Como se evidencia nos autos, em 22 de setembro de 2015, na pessoa de E…, legal representante da A…, enquanto Vogal do seu Conselho de Administração, a ora recorrente foi constituída arguida, conforme resulta de fls. 279 e 280, e na mesma data E…, foi notificada, em nome próprio e em representação da sociedade arguida (pessoa coletiva), nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4 al. b), do RGIT, conforme se alcança de fls. 283 a 286.
Acresce que, em 5 de outubro de 2015, igualmente B…,(à data dos factos Presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida e seu legal representante, como provado em 3. e 4.) foi notificado, em nome próprio e em representação da sociedade arguida, também nos termos do previsto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, conforme resulta de fls. 299 a 303.
Em face do exposto mostra-se regularmente preenchida a condição objetiva de punibilidade prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, conforme resulta da prova documental junta aos autos, por terem sido respeitadas as formalidades previstas no art. 113.º do CPP e não estando ferida da alegada irregularidade.
Os factos a que aludem o art.105.º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT são meras condições objetivas de punibilidade que nada tem a ver com o preenchimento do tipo de ilícito do crime de abuso de confiança fiscal, pois a tipicidade fica preenchida com adoção de uma atitude omissiva (com a não entrega) e com o conhecimento e vontade de adotar tal comportamento.
Assim, a notificação efetuada em pessoa que ao tempo tinha sido constituída arguida, na qualidade de representante da pessoa coletiva, por via postal simples, no caso de o arguido já ter prestado TIR (visto o disposto na al. c) do n.º 3 do art. 196.º do CPP), ou, não o tendo prestado, por contacto pessoal ou por via postal registada, mostra-se regular e legal.
Em relação a esta última modalidade - por via postal registada - dispõe o art.113.º, n.º 2, do CPP que “as notificações presumem-se feitas no 3.º dia útil posterior ao do envio, devendo a cominação aplicável constar do acto de notificação”.
Dispõe o art.113.º, n.º 6, do CPP que “o rosto do sobrescrito ou do aviso deve indicar, com precisão, a natureza da correspondência, a identificação do tribunal ou do serviço remetente e as normas de procedimento referidas no número seguinte.”
Assim, sendo, e atenta a prova documental dos autos, o regime de notificações aplicável e a matéria de facto dada como provada, e o entendimento jurídico supra perfilhado, importa concluir que bem andou o Tribunal  a quo ao condenar a arguida, pessoa coletiva, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal qualificado (e que se reporta a não entrega de IVA no valor de € 317.740,49).
Em suma: os artigos 105.º, n.º 4 al. b) do RGIT e 113.º do CPP não se mostram violados nos presentes autos, pelo que, também neste particular, o recurso não pode lograr provimento.
 
3.3.– Finalmente, insurge-se a recorrente contra o quantum da pena que lhe foi aplicada, alegando que a pena de multa de 320 à taxa diária de €8,00 é manifestamente excessiva e desproporcional, devendo ser reduzida.
O crime pelo qual a sociedade arguida foi condenada, um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, nos termos dos arts.7.°, n.º 1, e 105.°, n.ºs 1, 4 e 7, do RGIT, é sancionado com pena de multa que tem o limite mínimo de 20 e o limite máximo de 720 dias, à taxa diária de € 5,00 a € 5.000,00 - cf. artigo 12.º, n.º 3, 15.º e 105.º, n.º 1, todos do RGIT.
Em sede de escolha da pena preceitua o art. 70.º do Cód. Penal nos seguintes termos ”Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
No caso concreto o ilícito apenas admite a pena de multa, pelo que não há que fazer a opção prevista no art. 70.º do CP.
O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete-nos para a realização in casu das finalidades da pena.
De acordo com o art.41.º, n.º 1 do Código Penal, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A proteção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação), quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
No caso concreto a sociedade arguida não tem condenações anteriores.
O Tribunal a quo considerou que a sociedade arguida atuou com dolo direto e situou a ilicitude dos factos acima do nível mediano, considerando o montante em causa, correspondente ao valor de € 317.740,49.
O Tribunal a quo teve em consideração o facto de se mostrar pago à AT o imposto liquidado em causa nos presentes autos.
Por outro lado, são também relevantes as necessidades a nível da prevenção geral atenta a frequência com que vêm sendo praticados crimes do jaez daquele praticado pela arguida.
A medida concreta da pena aplicada respeitou os critérios fornecidos no art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal.
Prescreve o art.71.º, n.º 1 que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; logo acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito, a título exemplificativo, uma série de circunstâncias que depõem a favor ou contra o agente, circunstâncias que se refletem na culpa.
Resulta daqui, que a culpa e a prevenção são os dois termos do binómio com o auxilio dos quais se há-de construir o modelo de medida da pena, sendo estes dois vetores temperados com as demais circunstâncias que rodearam o crime e que estão exemplificativamente enunciadas no n.º 2 do referido art. 71.º que nos hão-de dar a medida da pena, sendo certo que em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa.
A par das relevantes necessidades de prevenção especial, temos de considerar que, a pena de 320 dias de multa aplicada na sentença, se encontra mais próxima dos seus limites médios do que dos seus limites máximos, pelo que não excede a medida da culpa subjacente ao crime (relembramos que a arguida não tem antecedentes criminais), não devendo ser fixada em medida inferior, tendo-se por ajustada a pena de 320 dias de multa à taxa diária de € 8,00.
Lembre-se que, como se expendeu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de janeiro de 2014, proferido no processo 24/13 e consultável na JusNet, "A multa, como autêntica pena criminal que é, não pode deixar de realizar plenamente as finalidades da punição, em particular a finalidade de prevenção geral positiva. Por isso, sempre com respeito pelo limite imposto pela medida da culpa, não podem ser aplicadas multas leves, quase insignificantes (e frequentemente pagas em suaves prestações) ou que, verdadeiramente, não representem um sacrifício para o condenado, pois de contrário serão vistas como uma absolvição disfarçada ou uma dispensa de pena.
Uma pena de multa que seja meramente simbólica é, irremediavelmente, afectada na sua eficácia preventiva, não atingindo sequer o nível mínimo da verdadeira advertência penal. Dizendo de outro modo, a pena de multa, para ter eficácia dissuasora, tem de pesar e constituir um verdadeiro sacrifício para quem a sofre." (fim de transcrição).
Assinale-se ainda, a este propósito, que, por um lado, como Maia Gonçalves refere[2], “a amplitude atribuída pela lei ao montante diário da multa prende-se com a exigência da realização do princípio da igualdade de ónus e sacrifícios por forma a esbater a crítica apontada a esta pena que é a de ter distintos pesos, conforme a situação económica do agente”, e, por outro lado, como é entendimento corrente, a taxa diária da multa deve ser fixada de modo a representar um sacrifício real para o condenado, para que mantenha a sua característica de verdadeira pena, pois de outro modo não será possível, através da sua aplicação, realizar as finalidades da punição.
Tudo visto e ponderado, bem andou o tribunal a quo ao condenar a arguida na pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito euros), a qual se mostra justa, proporcional e adequada aos factos dados como provados, à gravidade da conduta da recorrente e à medida da sua culpa, não merecendo, assim, qualquer reparo ou censura.
Destarte, igualmente improcede o recurso nestoutro segmento.


III–Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida A…,confirmando-se integralmente a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por trinta páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP)



Lisboa, 8 de março de 2018



(Calheiros da Gama)
(Antero Luís)




[1]Existe uma manifesta discrepância entre o que aqui se consignou quanto à medida da pena (“350 (trezentos e cinquenta) dias de multa”) e aquilo que viria a ser decidido na sentença a final [“pena de 320 (trezentos e vinte) dias de multa”] (cfr. fls. 605), sendo que será esta última pena que deverá prevalecer, por um lado, por ser a que consta em sede de dispositivo e, por outro lado, por ser a mais favorável.
[2]Vide Maia Gonçalves “Código Penal Anotado”, 8.ª Edição, p. 307.