Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
832/20.3Y4LSB.L1-5
Relator: JORGE ANTUNES
Descritores: SUSPENSÃO DE PRAZOS PROCESSUAIS
ERROS E OMISSÕES DE SECRETARIA
PRAZO PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: i– Estando suspensos, por força da lei, os prazos para a prática de atos processuais, não pode a secretaria judicial efectuar notificação com a comunicação de termo de prazo para pagamento de taxa de justiça e multa, como se tal suspensão não existisse;

ii– Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes;

iii– Assim sucede por emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo.

iv– A regulação dos prazos processuais implica com a realização da garantia constitucional do acesso aos tribunais.

v– A regra estabelecida pelo n.º 6 do artigo 157.º do Código de Processo Civil, aplicável no processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, e, sucessivamente, no processo contra-ordenacional por força do disposto no artigo 41º do RGCO, no sentido de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial, implica que, tendo sido erroneamente comunicado prazo de pagamento mais curto que o resultante dos termos legais, deva repetir-se a notificação, com emissão de novas guias;

vi– O acto do sujeito processual – impugnação da decisão administrativa - não pode ser rejeitado com base na falta de pagamento, na sequência de prazo indicado pela secretaria judicial, em contrariedade com o legalmente estabelecido, sem que ocorra repetição da notificação nos termos do disposto no artigo 642º, nº 1, do Código de Processo Civil, e da emissão de novas guias.

(Sumário elaborado pelo relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I–RELATÓRIO:


1.–No processo de contraordenação nº CO/001235/17 da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (doravante IGAMAOT), que se iniciou com o auto de notícia lavrado em 19 de julho de 2017, a arguida R., S.A., por decisão administrativa datada de 3 de junho de 2020, foi condenada na coima de € 12.000,00 (doze mil euros), pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave (incumprimento dos requisitos legais da Ficha de Dados de Segurança do gasóleo, p. e p. pelos artigos 31º, nº 1 do Regulamento (CE) nº 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de dezembro, e 11º, nº 1, al. j, do Decreto-Lei nº 293/2009, de 13.10.), a título de negligência (nos termos previstos na al. b do nº 4 do artigo 22º e no artigo 23º-B  da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto, alterada e republicada pela Lei nº 114/2015, de 28 de agosto).

2.–Não se conformando, a arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa, tendo o Ministério Público, após remessa dos autos pela IGAMAOT, lavrado o despacho de apresentação datado de 17 de dezembro de 2020 e remetido os autos à distribuição no Juízo Local Criminal de Lisboa.

3.–Distribuído o processo ao Juiz 4 do Juízo Local Criminal de Lisboa, a Mma. Juíza titular proferiu em 5 de janeiro de 2021, o seguinte despacho:
“Sem prejuízo do disposto no art.º 8º, n.º 7, do DL 34/2008, de 26.02, na redacção introduzida pelo DL 7/2012, de 13.02, por ter sido tempestivamente interposto e por quem detém legitimidade para o efeito, admito o recurso, de harmonia com o disposto no art.º 59º, n.ºs 2 e 3, do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL 433/82, de 27.10, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL 244/95, de 14.09.

***
Autue como processo de contra-ordenação.
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Cumpra-se o disposto no art.º 8º, n.º 8, do DL 34/2008, de 26.02, na redacção introduzida pelo DL 7/2012, de 13.02.
***

Notifique nos termos e para os efeitos do art.º 64º, n.º 2, do aludido Regime Geral das Contra-Ordenações (excepto o Ministério Público que já se pronunciou sob a ref. 401423641).”


4.–Em cumprimento de tal despacho, foi a arguida notificada por via postal expedida em 07.01.2021, para efetuar o pagamento da taxa de justiça e, posteriormente, na ausência de pagamento, de novo notificada por via postal, esta expedida em 01.02.2021 para, no prazo de dez dias efetuar o pagamento da taxa de justiça devida acrescida de uma multa de igual montante, constando desta notificação as seguintes advertências O pagamento da taxa de justiça e da multa em falta deverá ser efetuado, nos termos do nº 1 do artigo 21º da Portaria nº 419-A/2009, de 17 de abril, por Guia DUC, dentro do prazo concedido, cuja cópia se anexa”, “O prazo de pagamento, bem como o montante (…) constam da guia anexa” e a seguinte cominação “ A falta de pagamento da taxa de justiça e da multa no prazo assinalado implica o desentranhamento da impugnação”. Anexada a esta segunda notificação seguiu guia, com referência para pagamento, assinalando como início do prazo de pagamento o dia 01.02.2021 e como termo do prazo para pagamento o dia 15.02.2021;

5.–Sem que ao Impugnante fosse efetuada qualquer outra notificação, não tendo sido efetuado qualquer pagamento, a Mma. Juíza titular do processo proferiu, em 6 de maio de 2021, o seguinte despacho:
“A recorrente, R. , S.A., que tem il. mandatário(a)(s) constituído(a)(s), não pagou a taxa de justiça devida quando apresentou a sua impugnação, pelo que, nos termos determinados sob o despacho com a ref. 401618275, foi notificada para proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias, nos termos da ref. 401826953, e, posteriormente, para proceder ao seu pagamento com multa no prazo de 10 dias, nos termos da ref. 402531640.
Entretanto, todos os prazos que estiveram suspensos reiniciaram a sua contagem em 06.04.2021, nos termos do disposto no art.º 7º da Lei 13/2021 de 05.04, tendo na presente data há muito decorrido qualquer desses prazos sem que a recorrente procedesse a qualquer dos pagamentos.
Preceitua o art.º 8º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais que “é devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas, no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito”, acrescentando o n.º 8 que “a taxa de justiça referida no número anterior é autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação ao arguido da data de marcação da audiência de julgamento ou do despacho que a considere desnecessária, devendo ser expressamente indicado ao arguido o prazo e os modos de pagamento da mesma”.
Preceitua também o art.º 642º, n.º 1, do Código de Prcesso Civil (aplicável ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal, por remissão do art.º 41º, n.º 1, do DL 433/82, de 27.10) que “quando o pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício do apoio judiciário não tiverem sido comprovados no momento definido para esse efeito, a secretaria notifica o interessado para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC”, sendo que, de harmonia com o n.º 2 deste preceito legal “quando, no termo do prazo de 10 dias referido no número anterior, não tiver sido comprovado o pagamento da taxa de justiça devida e da multa ou da concessão do benefício do apoio judiciário, o tribunal determina o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentado pela parte em falta”.
Ora, na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.12.2017, em texto integral em www.dgsi.pt, “não estabelecendo o art.º 8º do Regulamento das Custas Processuais a consequência jurídica da omissão pelo impugnante do pagamento da taxa de justiça no prazo a que este normativo se reporta, entendemos ser aplicável o disposto o art.º 642º do Código de Processo Civil, ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal e art.º 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações (neste sentido, v. Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, Almedina, 3ª ed., 2011, notas ao art.º 8º do Regulamento das Custas Processuais, págs. 231 a 232 e, na jurisprudência, Acórdão da Relação de Évora de 04.04.2013”.
Consequentemente, não sendo evidentemente desnecessário in casu o seu pagamento, nos termos do disposto nos art.ºs 8º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais e 642º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 4º do Código de Processo Penal, por remissão do art.º 41º, n.º 1, do DL 433/82, de 27.10, determino o desentranhamento da impugnação judicial - deixando-se no sistema Citius por se tratar de situação equivalente à rejeição -, ficando prejudicada a apreciação da mesma.
Custas pela recorrente pelo incidente.
Notifique.”.  

6.–Inconformada com tal decisão, a arguida veio dela recorrer, pedindo que seja revogada a decisão recorrida e determinado o prosseguimento dos autos.

Extraiu a recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
1.-Como vimos anteriormente, o recurso apresentado pela recorrente vem interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo, no dia 6 de maio de 2021, e no qual foi determinado o desentranhamento da impugnação judicial apresentada pela recorrente, com fundamento na falta de pagamento da taxa de justiça devida, bem como da respetiva multa, e ao abrigo de uma interpretação conjugada no disposto nos artigos 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, e 642.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, este último aplicável ex vi dos artigos 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, e 4.º do Código de Processo Penal.
2.-Ora, não obstante esta interpretação corresponder efetivamente ao entendimento maioritário dos Tribunais da Relação, a verdade é que, em primeiro lugar, a decisão recorrida erra na interpretação da norma jurídica aplicável ao presente caso, porquanto as normas que constam do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais padecem de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que revogam o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, sem que tenha sido concedida ao Governo autorização legislativa para tal.
3.-Por outro lado, mesmo que se entendesse que, ao contrário daquilo que a recorrente defende, as normas que constam do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas processuais não padecem de inconstitucionalidade orgânica – o que não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite – a recorrente entende, ainda, a título subsidiário, que a decisão proferida pelo Tribunal a quo viola o disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, uma vez que a notificação efetuada para os efeitos previstos no artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil não teve em conta a suspensão da prática de atos processuais e dos respetivos prazos, em consequência da situação pandémica causada pela doença Covid-19.
4.-Assim, começando pela questão da inconstitucionalidade orgânica das normas consagradas no artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, tal como vimos ao longo da motivação da recorrente, não resulta do artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, diploma este que aprovou a redação originária do atual Regulamento das Custas Processuais, que esta norma tenha revogado o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que isenta os arguidos do pagamento da taxa de justiça com a impugnação judicial das autoridades administrativas.
5.-Com efeito, aquilo que se retira do artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, corresponde a uma revogação de preceitos que confiram uma isenção do pagamento de custas processuais, que constassem de leis avulsas, e que passassem a ter previsão no Regulamento das Custas Processuais, de forma a uniformizar este regime.
6.-Pelo contrário, no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, estabelece-se que os arguidos em processos contraordenacionais se encontram dispensados de proceder ao pagamento de taxa de justiça, o que não implica uma isenção de custas processuais nestes processos, antes sim o diferimento do pagamento das custas para a eventualidade de o arguido vir a ser condenado, nos termos do n.º 3 do preceito anteriormente mencionado.
7.-De todo o modo, a verdade é que ainda que se interpretasse o artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, no sentido de esta norma revogar o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, tal interpretação padeceria do mesmo tipo de inconstitucionalidade que se verifica com as normas do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.
8.-Na verdade, ao contrário do previsto no artigo 25.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, o Regulamento das Custas Processuais, na sua versão originário, veio consagrar no artigo 8.º, n.º 4 – correspondente às normas que resultam do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, na sua redação atual – que procedeu a uma revogação tácita do disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, porquanto se passou a estipular naquele preceito que as taxas de justiça devidas com as impugnações judiciais das autoridades administrativas deveriam ser liquidadas nos 10 (dez) dias subsequentes ao recebimento da impugnação.
9.-No entanto, considerando que nos encontramos perante matérias da competência relativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alíneas d) e i), da Constituição da República Portuguesa, o Governo apenas teria competência legislativa para revogar preceitos do regime geral do processo contraordenacional, caso tivesse sido concedida autorização legislativa bastante para tal.
10.-Sucede que, in casu, não resulta da Lei que conferiu autorização legislativa ao Governo para aprovar o Regulamento das Custas Processuais – i.e. a Lei n.º 26/2007, de 23de julho – que o Governo, ao aprovar o Regulamento das Custas Processuais, mediante o Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, tivesse sido autorizado a revogar o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
11.-Por este motivo, é forçoso concluir-se que o artigo 8.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, na sua versão originária, padecia de inconstitucionalidade orgânica, inconstitucionalidade essa que se reflete naturalmente nas normas que constam da redação atual do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.
12.-Nestes termos, tal como vimos, perante a inconstitucionalidade orgânica de normas revogatórias de preceitos referentes a matérias da competência relativa da Assembleia da República, sem que tenha sido concedida autorização legislativa bastante, os Tribunais encontram-se obrigados a aplicar as regras que tinham sido revogadas pelas normas inconstitucionais, ao abrigo do disposto nos artigos 204.º e 282.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
13.-Como tal, no presente caso, perante a inconstitucionalidade orgânica das normas que constam do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, o Tribunal a quo deveria ter aplicado o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, ao abrigo das regras constitucionais referidas no ponto anterior, do qual resulta que o pagamento da taxa de justiça devida coma impugnação judicial apresentada pela recorrente seria efetuado somente na eventualidade de esta ser condenada pela prática da contraordenação imputada pela autoridade administrativa.
14.-Por conseguinte, é manifesto que, ao determinar o desentranhamento da impugnação judicial, com fundamento no disposto nos artigos 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, e 642.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo errou na determinação da norma jurídica aplicável, motivo pelo qual se deverá revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos presentes autos.
15.-Por outro lado, tal como referido supra, mesmo que não se entendesse que as normas que constam do artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas processuais, são inconstitucionais – o que, como vimos, não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite – a decisão recorrida é, ainda, violadora do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro.
16.-De facto, perante o agravamento da situação pandémica causada pela doença Covid-19, a Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, veio aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o artigo 6.º-B, o qual veio estabelecer a suspensão da prática de atos processuais, bem como dos seus respetivos prazos, no período compreendido entre os dias 22 de janeiro e 5 de abril de 2021, atendendo à revogação deste artigo, operada pelo disposto no artigo 6.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.
17.-Por sua vez, pelos motivos anteriormente expostos, é igualmente evidente que a mencionada suspensão dos atos e prazos processuais abrange os atos praticados fora do processo, designadamente o pagamento de taxas de justiça, sendo que o Tribunal a quo apenas poderia ter assumido que a recorrente dispunha de condições para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida e da respetiva multa, caso tivesse diligenciado no sentido de apurar se a recorrente poderia efetuar o referido pagamento eletronicamente, o que não sucedeu in casu.
18.-Consequentemente, uma vez que o Tribunal a quo notificou a recorrida para proceder ao pagamento da taxa de justiça, nos termos do artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no período de suspensão da prática dos atos processuais, sendo que o prazo para pagamento que constava da guia disponibilizada para este efeito pelo Tribunal a quo se encontrava integralmente abrangido por tal período de suspensão, é manifesto que a violação do disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, implica a conclusão de que, na verdade, esta segunda notificação efetuada pelo Tribunal a quo foi pura e simplesmente inexistente.
19.-Com efeito, tem vindo a ser reconhecido que, para além das nulidades e irregularidades processuais, se pode verificar o vício da inexistência do ato processual, se a causa da invalidade resultar, não da falta de condições ou pressupostos, mas antes da natureza ou da essência do próprio ato, inexistência esta que é insanável e arguível a todo o tempo.
20.-Ora, no caso sub judice, considerando que esta segunda notificação para pagamento, prevista no artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, corresponde a um corolário do princípio processual segundo o qual as partes podem praticar atos processuais, uma vez esgotado o respetivo prazo, por negligência própria, desde que tal prática intempestiva seja condicionada ao pagamento de uma multa, é evidente que esta notificação para pagamento, efetuada durante o período de suspensão da prática dos atos processuais, e que somente concedeu à recorrente o prazo para pagamento do respetivo valor  durante tal  período de suspensão, é atentatória do princípio que se reflete no artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
21.-Motivo pelo qual se concluiu que, in casu, a violação do disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, na decisão proferida pelo Tribunal a quo, tem como resultado a inexistência do ato que foi praticado por este Tribunal durante o período de suspensão da prática dos atos processuais.
22.-Desta forma, sendo inexistente esta segunda notificação efetuada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, impõe-se que a decisão de determinar o desentranhamento da impugnação judicial seja revogada, determinando-se, ao invés, que a recorrente seja devidamente notificada para pagamento da taxa de justiça devida, nos termos do preceito anteriormente mencionado.
23.-Por último, mesmo que o Tribunal a quem entendesse qualificar a presente violação do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, como um caso de irregularidade processual, e não de inexistência – o que, mais uma vez, não se concede, e apenas por mero dever de patrocínio se admite – é evidente que o efeito jurídico ora propugnado pela recorrente, ainda assim, se deveria manter.
24.-Com efeito, em primeiro lugar, resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o prazo de arguição das irregularidades, previsto no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas pode iniciar a sua contagem a partir do momento em que o interessado, agindo com a devida diligência, tomou conhecimento de tal vicissitude.
25.-No caso em apreço, atendendo à superveniência do regime da suspensão da prática dos atos e dos prazos processuais face à notificação efetuada pelo Tribunal a quo, ao abrigo do artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é notório que a recorrente apenas tomou conhecimento da irregularidade processual ora cometida, quando notificada para um termo posterior do processo que, in casu, correspondeu efetivamente à decisão recorrida.
26.-Em segundo lugar, tem vindo a ser igualmente entendido que, quando as irregularidades processuais sejam cometidas em audiência de julgamento a que o interessado ou o seu advogado não assistam, ou quando estes vícios resultem da própria sentença, os mesmos são arguíveis até ao momento da interposição do recurso, por identidade de raciocínio com o disposto nos artigos 379.º, n.º 2, e 380.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
27.-Ora, no presente caso, sendo certo que a irregularidade ora arguida não se verificou na audiência de julgamento, nem na sentença, a verdade é que, como vimos anteriormente, a recorrente apenas tomou conhecimento da mesma, com a prolação da decisão recorrida.
28.-Nestes termos, se se permite com que as irregularidades cometidas em sede de audiência de julgamento ou na sentença sejam arguíveis até ao momento da interposição do recurso, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 380, n.º 2, do Código de Processo Penal, então, por maioria de razão, o mesmo prazo de arguição deverá ser concedido, nos casos em que os interessados, neste caso a recorrente, apenas se apercebem da irregularidade cometida, no momento da prolação da decisão recorrida.
29.-Assim, é indubitável que, em última via, a violação do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, por parte do Tribunal a quo, na decisão recorrida, se reflete na ocorrência de uma irregularidade processual, arguível na presente sede, e que aqui expressamente se invoca.
30.-Por sua vez, tal irregularidade, afetando o valor da notificação efetuada pelo Tribunal a quo, no dia 1 de fevereiro de 2021, deverá implicar a repetição de tal notificação.
31.-Repetição, esta, que, in casu, se afigura desnecessária, atendendo a que a recorrente já procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida com a impugnação, acrescida da respetiva multa.
32.-Pelos motivos aqui expostos, deverá ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo, determinando-se o prosseguimento do presente processo contraordenacional.

7.–O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

8.–O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência. Extraiu das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1-Resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea e), desta Lei 26/2007, para além dos diplomas que expressamente a Assembleia da República autoriza a alterar, existe uma extensão legislativa que autoriza a revogar todas as isenções de custas previstos em leis avulsas com vista a unificar todas as isenções ficando estas a constar apenas do Regulamento de Custas Processuais.
2-Pelo que, com todo o devido respeito, as normas previstas no artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento de custas processuais e o artigo 25.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro não padecem de qualquer inconstitucionalidade orgânica.
3-Não sendo de todo aplicável ao caso em concreto o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de setembro, porque este foi precisamente alterado pelo artigo 25.º, n.º1, do do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro
4-Não assiste igualmente qualquer razão ao recorrente, não devendo ser revogada a decisão recorrida, também porque a notificação (com a referência nos autos com o n.º 402531640 de 01.02.2021) para efeitos do disposto no artigo 642.º, n.º1, do C.P.C. está conforme com o que resulta do artigo 6.º-B, n.º 5.º, alínea b), da Lei n.º 4-B/2021, 01.02, donde se extrai que a suspensão dos prazos não obsta à tramitação de processos não urgentes pelas secretarias judiciais. 
5-Esta notificação nos termos deste artigo 642.º, n.º1, do Código de Processo Civil foi efetuada efetivamente na vigência da suspensão dos prazos processuais em virtude do estipulado no artigo 6.º-B, n.º1, da Lei n.º 4-B/2021, 01.02, pelo que até dia 05.04.2021, o prazo constante de tal notificação estava suspenso, iniciando-se em 06.04.2021, por força da retoma dos prazos judiciais imposto pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, sendo que tal prazo terminaria em 15.04.2021, mas não tendo até essa data sido efetuado qualquer pagamento, nos termos do disposto no artigo 642.º, n.º2, do C.P.C. tinha pois o Tribunal que decidir pelo desentranhamento do recurso apresentado, como fez e bem.”.

9.–Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer, com o seguinte teor:
“Na verdade, a tese da recorrente assenta, sendo esse o objecto sindicável, na inconstitucionalidade  das normas dos arts 8º, 7 e 8, RCP, e 25º,1, do DL 34/08, 26.02, que habilitaram o Tribunal recorrido a excluir a impugnante da lista de isenções já constante do art 93º,2, do DL 433/82, 27.10- RGCO- , por um lado, e , por outra banda, na ilegalidade da notificação praticada (pela Secretaria, sublinhamos) para os efeitos do art 642º, 1 e 2, CPC (pagamento de taxa de justiça e multas), já que esse acto contraria, frontalmente, legislação (Leis nº 1-A/20, 19.03, e nº 4/21, 1.02, arts 6º-B) que suspendeu a prática de actos processuais e a contagem dos respectivos prazos.
Todavia, como destacado e enfatizado na esclarecedora Resposta, o recorrente olvidou que havia autorização legislativa, concedida pela AR ao Governo, por extensão legislativa (cfr L 26.07, 23.07, ao seu art 2º,1, e), justamente), para redefinir o regime de isenções, aí se respaldando o Tribunal para reputar devida a taxa de justiça (e seus legais acréscimos, isto é, multas), nenhuma magna enfermidade (inconstitucionalidade orgânica), afinal, inquinando o novo regime legal, por imaculada observância da disciplina constitucional (art 165º, d) e i), CRP).
Quanto ao segmento da ilegalidade, também suscitado no Recurso,  verificar-se-à que o próprio diploma invocado pelo impugnante (Lei nº4, 1.02, art 6º,5,b) não veda, antes permite, a movimentação de processos (mesmo não urgentes, como é o caso presente) pela Secretaria, mormente com a realização de notificações, pelo que tal comunicação, oficiosa, surge irrepreensível, sem perder de vista que a L 13-B/21, 5.04, veio determinar a retoma da contagem dos prazos, antes suspensos, findo os quais, ainda assim, o recorrente manteve o não pagamento devido, com as inevitáveis consequências (art 642º,2, CPC).
Donde, em suma, a pertinência da manutenção do doutamente decidido, por que se propugna.”.

10.–Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
***

II–QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o despacho judicial de 6 de maio de 2021 que determinou o desentranhamento da impugnação judicial, declarando prejudicada a apreciação da mesma - as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- inconstitucionalidade orgânica das normas previstas no artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento de Custas Processuais;
- violação do disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, por não ter a notificação efetuada para os efeitos previstos no artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil tido em conta a suspensão da prática de atos processuais e dos respetivos prazos e, consequentemente, invalidade de tal notificação.
***

Para resolução das questões em apreço relevam as circunstâncias/factos processuais que supra referimos no relatório.
***

III–FUNDAMENTAÇÃO.

III.1.–Da alegada inconstitucionalidade orgânica das normas previstas no artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento de Custas Processuais.
Convirá, antes de mais, determo-nos na evolução legislativa referente à obrigação de pagamento de taxa de justiça por impugnação judicial de decisão das autoridades administrativas em sede de processo contraordenacional.
Na sua redacção originária[1], o nº 2 do artigo 93º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contra-Ordenações, doravante RGCO), dispunha:
2.–Está também isenta de imposto de justiça a impugnação judicial de qualquer decisão das autoridades administrativas.”
Com a reforma do regime geral das contra-ordenações em 1995[2], a regra manteve-se inalterada, actualizando-se apenas a nomenclatura da tributação, passando a referir-se taxa de justiça onde antes se lia imposto de justiça.
Em 1996 foi aprovado o novo Código das Custas Judiciais (DL n.º 224-A/96, de 26.11), e por via do respectivo artigo 87º, nº 1, al. c), foi novamente alterado o regime legal relativo aos valores de taxa de justiça a pagar em sede de processos de contraordenação, aumentando-se os valores mínimo e máximo para, respectivamente, 2 UC e 20 UC, sendo entre esses valores que, em conformidade com a letra da lei, deveria ser fixada na decisão do recurso a taxa devida.
Na vigência do Código das Custas Judiciais aprovado pelo DL n.º 224-A/96, de 26.11., não foi colocada em crise a regra prevista no nº 2 do artigo 93º do RGCO. Efetivamente, sempre se entendeu que o disposto no respetivo artigo 86º – onde, sob a epígrafe taxa devida pela interposição de recurso, se estabelecia que pela interposição de qualquer recurso ordinário ou extraordinário era devida taxa de justiça correspondente a 2 UC - valia apenas para os recursos interpostos de decisões judiciais e para apreciação pelos tribunais superiores. A regra do artigo 93º, nº 2, do RGCO, como regra especial para os recursos interpostos de decisões administrativas para apreciação judicial, manteve-se em vigor.[3]
Em 23 de julho de 2007, foi publicada a Lei nº 26/2007, que autorizou o Governo a aprovar um regulamento das custas processuais, introduzindo mecanismos de modernização e simplificação do sistema de custas.

Nos pontos que relevam para a apreciação a que aqui procedemos, tal Lei de autorização dispunha do seguinte modo:
Lei 26/2007
de 23 de Julho
Autoriza o Governo a aprovar um regulamento das custas processuais, introduzindo mecanismos de modernização e simplificação do sistema de custas, a revogar o Código das Custas Judiciais e a alterar os Códigos de Processo Civil, de Processo Penal e de Procedimento e de Processo Tributário.

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea d) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
Artigo 1.º
Objecto
1-Fica o Governo autorizado a aprovar o Regulamento das Custas Processuais, procedendo, para tal, à revogação do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei 224-A/96, de 26 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei 91/97, de 22 de Abril, pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, pelos Decretos-Leis n.os 304/99, de 6 de Agosto, 320-B/2000, de 15 de Dezembro, 323/2001, de 17 de Dezembro, 38/2003, de 8 de Março, e 324/2003, de 27 de Dezembro, e pelas Leis n.os 45/2004, de 19 de Agosto, 60-A/2005, de 30 de Dezembro, e 53-A/2006, de 29 de Dezembro.
2-Para os efeitos previstos no número anterior, fica o Governo autorizado a alterar os seguintes diplomas:
a)-Código de Processo Civil, aprovado (…);
b)-Código de Processo Penal, aprovado (…);
c)-Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado (…);
d)-Todos os diplomas cuja necessidade de modificação decorra da presente lei de autorização.
Artigo 2.º
Sentido e extensão da autorização legislativa
1- O sentido e a extensão da autorização legislativa, no que se refere à aprovação de um novo regime jurídico de custas processuais, são os seguintes:
a)-Reunir em um só diploma todas as normas procedimentais relativas à responsabilidade por custas processuais, integrando as custas cobradas em processos judiciais, administrativos e fiscais e no âmbito dos processos que devam decorrer no Tribunal Constitucional;
b)-Estabelecer um sistema de custas processuais simplificado, assente no pagamento único de uma taxa de justiça e no pagamento de encargos que reflictam os custos efectivos da justiça;
c)-Prever critérios de fixação da taxa de justiça variáveis em função não apenas do valor atribuído ao processo mas também da efectiva complexidade do mesmo;
d)-Prever critérios de fixação da taxa de justiça que tenham em consideração os efeitos da «litigância em massa», estabelecendo valores mais elevados para as sociedades que apresentem um volume anual de entradas em tribunal, no ano anterior, superior a 200 acções, procedimentos ou execuções;
e)-Estabelecer o elenco e regime de isenções de custas processuais, revogando todos os casos de isenções de custas previstos em leis avulsas e unificando o regime de isenções no Regulamento das Custas Processuais;
f)-Reduzir significativamente o benefício da dispensa de pagamento prévio, mantendo-o apenas no âmbito do processo penal, dos processos que devam decorrer no Tribunal Constitucional, nos casos previstos pela lei que aprova o regime de acesso ao direito e aos tribunais e no que respeita ao Estado, em alguns processos que decorram nos tribunais administrativos e fiscais;
(…)”

No uso dessa autorização legislativa, o Governo, através do Decreto -Lei n.º 34/2008, de 26/9, aprovou o Regulamento das Custas Processuais, tendo revogado expressamente o Código das Custas Judiciais e os demais preceitos mencionados no nº 2 do artigo 25º (norma revogatória), sendo que o nº 1 desse preceito determinou:
1-São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei.”

Nos termos do artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais (versão originária), passou a dispor-se quanto a taxa de justiça em processo contra-ordenacional:
1– (…)
2– (…)
3– (…)
4–É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, sendo a taxa autoliquidada nos 10 dias subsequentes ao recebimento da impugnação pelo tribunal, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.
5–Nos restantes casos, a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.”.

O artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais viria a ser alterado pela Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro, passando, no que à taxa de justiça em processo contra-ordenacional diz respeito, a dispor (redacção que vigorava à data em que foi proferida a decisão recorrida e continua a vigorar presentemente):
“1– (…)
2– (…)
3– (…)
4– (…)
5– (…)
6– (…)
7–É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas, no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.
8–A taxa de justiça referida no número anterior é autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação ao arguido da data de marcação da audiência de julgamento ou do despacho que a considere desnecessária, devendo ser expressamente indicado ao arguido o prazo e os modos de pagamento da mesma.
9–Nos restantes casos a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.”.

Sobre o regime legal decorrente do Regulamento das Custas Processuais debruçou-se o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2014.[4]

Nesse aresto pode ler-se o seguinte:
“(…) o Dec.º -Lei n.º 34/2008, de 26/9, aprovando o Regulamento das Custas Processuais, no seu art.º 25.º n.º 2 a), estabeleceu um amplo alcance revogatório de normas por que se dispersava o regime de duração secular, em matéria de custas (…).
O seu art.º 1º n.º 1 estabelece o princípio da universalidade em termos de sujeição a custas, especificando o seu n.º 2 a base de incidência objectiva, todos os processos autónomos ou sejam acções, execuções, incidentes, procedimentos cautelares ou recursos, desde que dêem origem a uma tributação própria.
E nessa linha de afirmação de princípio o art.º 25.º daquele Dec.º -Lei n.º 34/2008, firma, no seu n.º 1, serem revogadas todas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento, portaria, conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, não previstas naquele diploma.
O n.º 1, do art.º 6.º, define a taxa de justiça como o montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o Regulamento, aplicando-se na falta de especial disposição os valores constantes da tabela I-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.
O art.º 8.º do Dec.º-Lei n.º 34/2008, de 26/9, nos seus n.ºs 4 e 5, comporta as estatuições que, mais tarde, na 6:ª alteração (…) em legislação de custas, os n.ºs 7e 8, da Lei n.º 7/2012, de 13/2 , acolhem, incorporando o regime jurídico antes introduzido pela Portaria n.º 419-A/2009, de 17/4, no seu art.º 13.º n.ºs 2 e 3, regulamentando aquele Dec.º Lei n.º 34/2008, e estatuindo que é devida taxa de justiça pela impugnação das decisões das autoridades administrativas a ser autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação do dia marcado para julgamento ou do despacho reputando a audiência desnecessária, indicando-se expressamente ao arguido o prazo e modo de pagamento –n.ºs 1, 2 e 3.
(…)”.
***

Como a recorrente reconhece, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 2/2014 não versou diretamente sobre a questão suscitada nos presentes autos.

Não deixou, no entanto, de se referir ao efeito revogatório tácito que a aprovação do Regulamento das Custas Processuais produziu sobre o preceituado no artigo 93º, nº 2, do RGCO. Efetivamente, pode ler-se no Acórdão do STJ nº 2/2014:
A isenção de taxa de justiça em caso de impugnação judicial de qualquer decisão das autoridades administrativas, consagrada no n.º 2 , do art.º 93 , do Dec.º -Lei n.º 433/82, de 27/9, foi eliminada, face à redacção do art.º 8º, dos antecedentes diplomas, pela tácita revogação a que se assistiu em virtude do normativismo citado, fortemente apoiada pelo princípio da universalidade de pagamento em paralelo com a não gratuitidade da justiça .
A revogação é a morte da lei –art.º 7º, do CC -, que, por esse processo perde a sua eficácia, em vista do seu dinamismo social e da complexidade das relações humanas, às quais procede a adaptações específicas sem limites, e que, sendo tácita, incumbe ao seu aplicador descobrir a inconciliabilidade entre preceitos e declará-la.”

Para além disso, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 2/2014 referiu, em breve apontamento, as divergências doutrinárias que suscitou tal revogação tácita, mencionando:
“Esta questão da não revogação da isenção do pagamento de taxa de justiça do agente de contraordenação que deseja impugnar judicialmente a coima aplicada- não paga previamente.-, nos termos consentidos no art.º 59.º do RGCO, que o juiz decidirá em sede de audiência ou por simples despacho, por força do art.º 64.º n.º 1, merece a concordância dos comentadores já citados, como os Cons.ºs Oliveira Mendes e Santos Cabral, Juiz Beça Pereira e ainda do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque e Sérgio Passos, in Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Comentário do Regime Geral das Contraordenações e Contraordenações, a págs. 293, 235, 343 e 599, respectivamente.”.

Porque a recorrente igualmente ancora a sua argumentação em parte desses apoios, importa determo-nos sobre os subsídios que da Doutrina se podem colher para a resolução da questão.
***

Sérgio Passos[5], em anotação ao artigo 93º do RGCO, escreveu:
(…) 4.–A impugnação judicial está isenta do pagamento prévio de taxa de justiça, a qual deverá ser fixada somente a final em caso de decisão desfavorável, total ou parcial, ao arguido.
5.–Deve considerar-se tacitamente revogada a norma do nº 2 deste artigo pela entrada em vigor, a partir de 20 de Abril de 2009, do Regulamento das Custas Processuais que, no seu art.º 8.º, n.º 4, vem introduzir a obrigatoriedade do pagamento da taxa de justiça pela apresentação do recurso de impugnação judicial de decisões das autoridades administrativas de aplicação de contra-ordenações, sem que se ache paga a coima aplicável.
Portanto, nos termos do art.º 8.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, é devido o montante de taxa de justiça de 1 UC pela impugnação judicial, sendo a taxa autoliquidada nos 10 dias subsequentes ao recebimento da impugnação pelo tribunal.”.
Da conjugação do teor das notas 4 e 5, deve extrair-se a conclusão de que a norma do nº 2 do artigo 93º subsiste em vigor apenas para os casos de apresentação de recurso de impugnação judicial de decisões das autoridades administrativas em que se ache paga/liquidada a coima aplicada.
***

Paulo Pinto de Albuquerque[6], também em anotação ao artigo 93º do RGCO, escreveu:
“No tocante à taxa de justiça para interposição da impugnação das decisões administrativas ou judiciais, há que ter em conta que o artigo 93.º, n.º 2 e 4, do RGCO foi revogado pelo CCJ, que por sua vez foi revogado pelo novíssimo RCP (concordam, OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, 2009:293, e SÉRGIO PASSOS, 2009: 599).
Segundo o artigo 8.º, n.º 4 e 5, do RCP, e o artigo 13.º, n.º 1, da Portaria n.º 419-A/2009, de 17.4, seria devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas quando a coima não tivesse sido previamente liquidada, sendo a taxa autoliquidada nos 10 dias subsequentes ao recebimento da impugnação pelo tribunal, no montante de 1 UC e podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela III (de 1 a 5 UCs), (…) tendo em consideração a gravidade do ilícito (…). Nos restantes casos, isto é, quando a coima já tivesse sido previamente liquidada, a taxa de justiça seria paga a final, sendo fixada pelo juiz, tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III. Não se percebe por que razão o critério de fixação da taxa devida a final é diferente consoante se tenha autoliquidado a taxa de 1 UC logo no início. Umas vezes interessa “a gravidade do ilícito”, outras vezes interessa “a complexidade da causa”.
Mais grave ainda: o artigo 8.º, n.º 4 do RCP padece de inconstitucionalidade orgânica , porque revoga a norma do artigo 93.º n.º 2, do RGCO sem autorização da legislativa bastante, uma vez que a Lei nº 26/2007 omite qualquer disposição sobre esta matéria (também assim, MIGUEL MACHADO, 2011).
***

Por seu turno, Miguel Pedrosa Machado[7], versando sobre o artigo 93º do RGCO escreveu o seguinte:
“(…) o art. 93°, n° 2, do RGCO (de 1982) teria sido substituído pelo art. 8°, n° 4, do RCP (de 2008). Substituição que teria assumido a forma não de uma pura revogação implícita, nem também de uma revogação explícita específica, mas de uma revogação incluída numa fórmula revogatória genérica: esse seria o significado da repercussão sobre este ponto da previsão contida no n° 1 do já citado art. 25° do Decreto-Lei n° 34/2008 conjugada com a ausência de previsão específica em qualquer uma das treze alíneas do nº 2 desse mesmo art. 25º.
O problema que não pode deixar de ser colocado é o de saber se este Decreto-Lei n° 34/2008 tem competência, legitimidade ou habilitação suficientes para modificar o RGCO.
E a resposta é negativa: foi perpetrada em 2008 mais uma lesão da conformidade entre o percurso legiferativo do RGCO e a Constituição.
Sendo de conhecimento comum e generalizado, com base na relação entre a parte final do n° 3 do art. 112° e a segunda parte da alínea d) do n° 1 do art. 165°, ambos da Constituição, o carácter de valor hierárquico reforçado do RGCO, o facto de não haver na Lei n° 26/2007 — a lei de autorização legislativa que baseia o Decreto-Lei n° 34/2008 — qualquer permissão de alteração do RGCO (contrariamente ao que aí mesmo se verifica com outros diplomas legais, como os Códigos de Processo Civil e de Processo Penal) conduz à invalidade por ilegalidade reforçada ou inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n° 34/2008 na parte em que, num seu anexo, se refere ao RGCO.
Sabe-se, efectivamente, como esse carácter (de valor hierárquico) reforçado do RGCO e o modo como ele é precisado no n° 2 do art. 165° da Constituição impõem o respeito não apenas, v.g., pelos limites máximos — e mínimos — das coimas, mas também por todos os restantes aspectos que constituam limitações gerais ao funcionamento prático do Direito das «contra-ordenações». Isto mesmo resulta da associação entre, por um lado, a caracterização do RGCO como lei-quadro deste ramo do Direito e, por outro lado, a referência formal, feita expressamente na cit. alínea d) do n° 1 do art. 165° da Constituição, ao «regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo».”.
***

Feito este périplo pela evolução legislativa na matéria e vistos os contributos dados pela doutrina para a interpretação do regime legal, importa encarar a questão suscitada no recurso.
Ela prende-se com a alegada inconstitucionalidade orgânica das normas previstas no artigo 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento de Custas Processuais.
***

Previamente, perante as conclusões da Recorrente, cumpre tomar posição sobre a questão da revogação do disposto no artigo 93º, nº 2, do RGCO.
Entende a recorrente que tal revogação não decorre do disposto no artigo 25º, nº 1, do Dec. Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro, preceito que estabeleceu: “1- São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei.”.
Efetivamente, e muito embora no nº 2 do artigo 93º do RGCO se utilize a locução isenta de taxa de justiça”, tal preceito jamais consagrou uma verdadeira isenção tributária – o seu conteúdo corresponde à dispensa de pagamento prévio de taxa de justiça, pois só com esse sentido se harmoniza o teor desse nº 2, com os demais comandos normativos resultantes dos números 3 e 4 do preceito legal. Como refere a recorrente “estabelece-se que os arguidos em processos contraordenacionais se encontram dispensados de proceder ao pagamento de taxa de justiça, o que não implica uma isenção de custas processuais nestes processos, antes sim o diferimento do pagamento das custas para a eventualidade de o arguido vir a ser condenado, nos termos do n.º 3 do preceito (…)”.
Não ocorreu, pois, a nosso ver, revogação expressa específica.
Com o apoio de Sérgio Passos[8], entendemos, que se verificou uma revogação tácita da norma do nº 2 do artigo 93º do RGCO com a entrada em vigor do Regulamento das Custas Processuais, ao introduzir-se no seu art.º 8.º (inicialmente no n.º 4) a obrigatoriedade do pagamento da taxa de justiça pela apresentação do recurso de impugnação judicial de decisões das autoridades administrativas nos casos em que não se ache paga a coima.
***

A recorrente entende que o artigo 8.º, n.º 4, da versão inicial do Regulamento das Custas Processuais – atualmente correspondente aos n.ºs 7 e 8 desse artigo – padece de inconstitucionalidade orgânica porque revogou tacitamente o disposto no artigo 93.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, sem que a autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2007, de 23 de julho, habilitasse o Governo a fazer semelhante alteração legislativa.
Argumenta que, em matéria de revogação de diplomas legais, a Lei n.º 26/2007, de 23 de julho, se limitou a conceder autorização legislativa para revogar o Código das Custas Judiciais, bem como todos os casos de isenção de custas judiciais que constassem de leis avulsas e passassem a ter previsão legal no Regulamento das Custas Processuais.
Conclui a recorrente que, por este motivo, não tendo sido concedida autorização legislativa ao Governo para legislar sobre matérias de competência relativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alíneas d) e i), da Constituição da República Portuguesa, nos encontramos perante um caso de incompetência daquele órgão legislativo para aprovar a norma que revogou o artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o que implica a inconstitucionalidade orgânica do artigo 8.º, n.º 4, da versão originária do Regulamento das Custas Processuais, atualmente correspondente aos n.ºs 7 e 8 da redação atual deste preceito.
Não lhe assiste razão, como veremos.
***

Quando o Governo produz legislação em matéria da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sem que exista lei de autorização que o habilite a legislar nesse domínio ou excedendo os limites dessa lei habilitante, poderemos deparar-nos com um caso se inconstitucionalidade orgânica do ato legislativo assim gerado.
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, uma norma emitida sem autorização parlamentar – o que abrange, em abstrato, as situações em que a lei habilitante simplesmente inexiste e os casos em que não abarca os aspetos regulados pela norma – apenas padece do vício de inconstitucionalidade orgânica, quando dispuser de forma inovadora sobre a matéria compreendida no âmbito da reserva relativa da Assembleia da República (cfr., entre muitos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nrs. 211/2007, 310/2009 e 176/2010), não sofrendo, ao invés, de tal vício quando se limite a reproduzir substancialmente o regime preexistente, definido pelo órgão originariamente competente ou munido da necessária autorização (vide, entre muitos, os Acórdãos com os nrs. 176/2010 e 479/2010).
No caso concreto, a aprovação de norma que, ao contrário do regime legal anteriormente vigente (decorrente do artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), estabelece a necessidade de pagamento prévio de taxa de justiça pela apresentação do recurso de impugnação judicial de decisões das autoridades administrativas nos casos em que não se ache paga a coima, coloca-nos perante um regime inovador, que revoga o preexistente.

Por outro lado, não ocorre dúvida sobre a circunstância de nos encontrarmos em domínio da reserva relativa da Assembleia da República, pois que:
i.-a disposição inovadora rege em matéria que não pode deixar de se entender compreendida no domínio dos “direitos, liberdades e garantias” (cfr. a al. b. do nº 1 do artigo 165º da Constituição, tendo em conta que o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva vem previsto no artigo 20º da CRP como um dos direitos fundamentais – a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos (nº 1 desse art. 20º) – e ponderando que o condicionamento do acesso à tutela jurisdicional mediante o estabelecimento da obrigação de pagamento prévio de taxa de justiça pode e deve ser visto como uma restrição nessa matéria);
ii.-a disposição inovadora introduz alteração no regime geral de punição dos atos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo (cfr. a al. d. do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa).
Sendo isso certo, não procede, porém, o argumento de inexistência de norma habilitante.
Em 23 de julho de 2007, foi publicada a Lei nº 26/2007, que autorizou o Governo a aprovar um regulamento das custas processuais - no uso dessa autorização legislativa, o Governo, através do Decreto -Lei n.º 34/2008, de 26/9, aprovou o Regulamento das Custas Processuais.
Por referência ao disposto no n.º 2 do artigo 165.º da Constituição, cabe à lei de autorização definir o objeto, a extensão, o sentido e a duração da autorização ao Governo.
Se a duração da autorização legislativa corresponde à vigência da lei de autorização, os demais elementos reportam-se ao conteúdo da própria lei.

Para a explicitação desses elementos pode consultar-se a jurisprudência exarada pelo Tribunal Constitucional, relevando o que ficou dito no Acórdão, tirado em Plenário, n.º 358/92:
«(…) Quanto ao objeto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por mera remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se escreveu, " a determinação do `objeto definido¸ pode ser feita de forma indireta ou até implícita, quer por referência a atos legislativos pre existentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural decorrência dos princípios e critérios diretivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matérias conexas" (cfr. António Vitorino, " As autorizações legislativas na Constituição Portuguesa", ed. pol., Lisboa, 1985, pág. 231).
Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspetos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados. (…)
Enquanto o objeto e a extensão constituem limites externos da autorização, já o sentido constitui um seu limite interno, porque essencial para a determinação das linhas de força, no plano substantivo, que nortearão o exercício dos poderes delegados.
(…)
Nesta ordem de ideias escreveu António Vitorino (op. cit., pág. 238 e 239): "O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objeto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspetos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objeto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores (...), mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da ação do Governo numa tripla vertente :
- por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspetiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente (é o sentido na ótica do delegante) ;
- por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditâmes do órgão delegante (é o sentido na ótica do delegado) ;
- e, finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspetiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização (é o sentido na ótica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República)."»

Ora, a invocação pela recorrente, no presente recurso, do vício da inconstitucionalidade orgânica baseia-se num alegado excesso do Governo no uso da lei que conferiu autorização legislativa para aprovar o Regulamento das Custas Processuais, na medida em que da Lei n.º 26/2007, de 23de julho, não resulta a concessão de autorização ao Governo para, ao aprovar o Regulamento das Custas Processuais, mediante o Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, revogar o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
Estaríamos, pois, numa situação de excesso quanto ao objeto e extensão da autorização legislativa.
Sucede que a recorrente, a nosso ver, se enreda numa teia de equívocos, ao centrar a sua análise no conteúdo do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/9, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais, em face do disposto no artigo 2º, nº 1, al. e) da Lei nº 26/2007, de 23 de julho (ponto em que a lei de autorização permitia que no Regulamento das Custas a aprovar fosse estabelecido o elenco e regime de isenções de custas processuais, revogando todos os casos de isenções de custas previstos em leis avulsas e unificando o regime de isenções no Regulamento das Custas Processuais).
O artigo 25º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/9, – norma revogatória – menciona expressamente a revogação do Código das Custas Judiciais e dos demais preceitos mencionados no seu nº 2 (entre os quais não se acha o artigo 93º, nº 2, do RGCO). O nº 1 deste artigo determinou: 1 - São revogadas as isenções de custas previstas em qualquer lei, regulamento ou portaria e conferidas a quaisquer entidades públicas ou privadas, que não estejam previstas no presente decreto-lei.”.

Mas esse artigo 25º, como é evidente, não operou a revogação do artigo 93º, nº 2 do RGCO. Como já antes dissemos, a revogação operada foi tácita, decorrendo da oposição de conteúdo do preceito novo (o artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais), em face do preceito precedente (o nº 2 do artigo 93º do RGCO). Debalde se esgrimirá com a menção constante da fundamentação vertida no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2014, da circunstância de a isenção de taxa de justiça em caso de impugnação judicial de qualquer decisão das autoridades administrativas, consagrada no n.º 2 , do art.º 93 , do Dec.º -Lei n.º 433/82, de 27/9” ter sido eliminada. Não se trata de uma isenção de custas, como já se explicitou, sendo que o Acórdão do STJ expressamente refere que a revogação do disposto no artigo 93º, nº 2, do RGCO, não operou por via do artigo 25º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/9, mas antes face à redacção do art.º 8º, (…), pela tácita revogação a que se assistiu em virtude do normativismo citado”.

Se centrarmos a nossa atenção nos pontos corretos dos diplomas legais em causa – sejam da lei de autorização tida por parâmetro, seja do decreto-lei autorizado – verificaremos que não existe qualquer excesso relativamente aos limites do objecto e extensão da autorização legislativa, tal como inexiste contradição entre o sentido da lei de autorização e diploma autorizado.

Efetivamente, dispõe a Lei nº 26/2007, de 23 de julho, para além do mais, o seguinte:
“(…)
Artigo 1.º
Objecto
1-Fica o Governo autorizado a aprovar o Regulamento das Custas Processuais, procedendo, para tal, à revogação do Código das Custas Judiciais (…)
2-Para os efeitos previstos no número anterior, fica o Governo autorizado a alterar os seguintes diplomas:
a)- (…);
b)- (…);
c)- (…);
d)- Todos os diplomas cuja necessidade de modificação decorra da presente lei de autorização.
Artigo 2.º
Sentido e extensão da autorização legislativa
1-O sentido e a extensão da autorização legislativa, no que se refere à aprovação de um novo regime jurídico de custas processuais, são os seguintes:
(…)
f)-Reduzir significativamente o benefício da dispensa de pagamento prévio, mantendo-o apenas no âmbito do processo penal, dos processos que devam decorrer no Tribunal Constitucional, nos casos previstos pela lei que aprova o regime de acesso ao direito e aos tribunais e no que respeita ao Estado, em alguns processos que decorram nos tribunais administrativos e fiscais;
(…)”.
Por seu turno o artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais (versão originária), veio estabelecer, quanto ao pagamento prévio de taxa de justiça em processo contra-ordenacional:
“ (…)
4-É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, sendo a taxa autoliquidada nos 10 dias subsequentes ao recebimento da impugnação pelo tribunal, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.
5-Nos restantes casos, a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.”.
Sem carácter inovador na matéria que nos ocupa, a Assembleia da República veio a determinar a alteração do artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais (por via da Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro[9]), continuando a prever-se o pagamento prévio de taxa de justiça em processo contra-ordenacional, nos seguintes termos:
“(…)
7-É devida taxa de justiça pela impugnação das decisões de autoridades administrativas, no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada, no montante de 1 UC, podendo ser corrigida, a final, pelo juiz, nos termos da tabela iii, que faz parte integrante do presente Regulamento, tendo em consideração a gravidade do ilícito.
8- A taxa de justiça referida no número anterior é autoliquidada nos 10 dias subsequentes à notificação ao arguido da data de marcação da audiência de julgamento ou do despacho que a considere desnecessária, devendo ser expressamente indicado ao arguido o prazo e os modos de pagamento da mesma.
9-Nos restantes casos a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela iii.”.

Do confronto das disposições legais transcritas, resulta, com evidência, que as normas contidas no artigo 8º, do Regulamento das Custas Processuais se limitam a implementar o conteúdo do artigo 2º, nº 1, al. f) da lei habilitante (a citada Lei n.º 26/2007), relativamente ao domínio não excluído do regime das contraordenações (sendo que a lei de autorização expressamente previu que a manutenção do benefício da dispensa de pagamento prévio de taxa de justiça deveria ser mantido apenas no âmbito do processo penal, dos processos que devam decorrer no Tribunal Constitucional, nos casos previstos pela lei que aprova o regime de acesso ao direito e aos tribunais e no que respeita ao Estado, em alguns processos que decorram nos tribunais administrativos e fiscais). Tratando-se da aprovação de regime legal inovador, tal alteração encontra-se abrangida pelo objecto fixado na lei habilitante, da qual resulta a permissão para alteração de Todos os diplomas cuja necessidade de modificação decorra da presente lei de autorização.

Não se acompanha, assim, o entendimento da recorrente na interpretação das normas contidas na Lei de Autorização Legislativa (n.º 26/2007) e na alegada desconformidade com elas do regime legal introduzido pelo Regulamento das Custas Processuais. No nosso entender, não ocorre a alegada ofensa da reserva de competência legislativa parlamentar.

Para se concluir que não ocorreu qualquer desrespeito da lei habilitante e que não ocorreu o alegado excesso do Decreto-Lei que aprovou o Regulamento das Custas Processuais, importa considerar que o legislador governamental estava autorizado a reduzir significativamente o benefício da dispensa de pagamento prévio de taxa de justiça (com exceção dos domínios excluídos) e, para isso, a alterar todos os diplomas cuja necessidade de modificação decorra da presente lei de autorização.

O que o Regulamento das Custas Processuais veio a instituir, em concretização desse objetivo, foi a obrigação de autoliquidação / pagamento prévio de taxa de justiça logo com a impugnação das decisões de autoridades administrativas no âmbito de processos contra-ordenacionais, quando a coima não tenha sido previamente liquidada.

Embora esta seja, de facto, uma solução inovadora – que posteriormente veio a ser mantida pela Lei n.º 7/2012, de 13 de fevereiro -, ela não representa um excesso relativamente aos limites da autorização legislativa.

Conclui-se, assim, não ocorrer a alegada violação da lei habilitante e, bem assim, da reserva de competência da Assembleia da República, não ocorrendo o caso de inconstitucionalidade orgânica que a recorrente alega.

Por isso, ao contrário do que entende a recorrente, não deveria o Tribunal a quo ter aplicado o disposto no artigo 93.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, não se verificando qualquer erro na determinação da norma jurídica aplicável quando determinou o desentranhamento da impugnação judicial, com fundamento no disposto nos artigos 8.º, n.ºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, e 642.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
***

Resolvida a primeira questão suscitada pelo recurso, cumpre então apreciar se ocorreu violação do disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, tal como alega a recorrente, por não ter a notificação efectuada para os efeitos previstos no artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil tido em conta a suspensão da prática de atos processuais e dos respetivos prazos.

A argumentação da recorrente, tal como vertida nas suas conclusões, pode sintetizar-se da seguinte forma:
- A Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, veio aditar à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, o artigo 6.º-B, o qual veio estabelecer a suspensão da prática de atos processuais, bem como dos seus respetivos prazos, no período compreendido entre os dias 22 de janeiro e 5 de abril de 2021;
- A mencionada suspensão dos atos e prazos processuais abrange os atos praticados fora do processo, designadamente o pagamento de taxas de justiça, sendo que o Tribunal a quo apenas poderia ter assumido que a recorrente dispunha de condições para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida e da respetiva multa, caso tivesse diligenciado no sentido de apurar se a recorrente poderia efetuar o referido pagamento eletronicamente, o que não sucedeu in casu;
- Consequentemente, uma vez que o Tribunal a quo notificou a recorrida para proceder ao pagamento da taxa de justiça, nos termos do artigo 642.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no período de suspensão da prática dos atos processuais, sendo que o prazo para pagamento que constava da guia disponibilizada para este efeito pelo Tribunal a quo se encontrava integralmente abrangido por tal período de suspensão, é manifesto que a violação do disposto no artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação conferida pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, implica a conclusão de que, na verdade, esta segunda notificação efetuada pelo Tribunal a quo foi pura e simplesmente inexistente.

Para se apreciar a validade e eficácia da notificação efetuada deverá, antes de mais, ter-se presente que o artigo 2º da Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, aditou à Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, para além do mais, o artigo 6º-B, com o seguinte teor:
“Artigo 6.º-B
Prazos e diligências
1São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2– (…)
3– (…)
4– (…)
5- O disposto no n.º 1 não obsta:
a)- À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;
b)- À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c)- À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
(…)”.

Do assim preceituado resulta que não foi vedado o cumprimento pela secretaria judicial de despachos que ordenassem a notificação de sujeito processual para, em processo não urgente, efectuar o pagamento de taxa de justiça devida com o acréscimo de multa.

Certo é que, ao realizar tal notificação não poderia a secretaria judicial deixar de ter em conta a suspensão dos prazos para a prática de atos processuais decretada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro. Podendo efectuar a notificação para pagamento e, nesse caso, devendo anexar guia de pagamento em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 21º da Portaria nº 419-A/2009, de 17 de abril[10], não poderia a secretaria mencionar que o prazo para a prática do ato estava em curso e terminava na data limite de pagamento da guia emitida.

Podendo ser tramitados os processos não urgentes, há que concluir que a notificação para pagamento da taxa de justiça acrescida de multa poderia ser efectuada.

Porém, jamais o deveria ter sido nos moldes em que ocorreu – estando suspensos os prazos para a prática de atos processuais, não poderia dela constar a indicação do termo final do prazo, como constou, precisamente porque esse prazo de pagamento se encontrava suspenso nos termos decretados pela decretada pela Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro.

Perante a necessidade de observar o procedimento previsto na Portaria nº 419-A/2009, deveria a secretaria judicial emitir guias válidas por período correspondente ao prazo legalmente previsto, esclarecendo qual a data limite de pagamento dessas guias, mas jamais indicando que nessa data limite terminava o prazo que, por força da lei, se encontrava suspenso.

A notificação foi efetuada de forma errada.

Como se explicitou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Novembro de 2017[11]:
Face a um erro manifesto da secretaria não há que assumir construções que tendam a convalidar o acto praticado em clara contrariedade à lei.
Na certeza do erro, o que há a fazer é retirar as devidas consequências, na certeza de que não pode ser prejudicado quem não errou.”

A ter sido feita a comunicação como manda a lei, e assim deveria ter sido, jamais teria sido comunicado o termo do prazo para a prática do ato, antes se comunicando apenas que as guias anexas poderiam ser pagas até à data limite nelas consignada, sem prejuízo da suspensão do prazo legalmente determinada.

O artigo 157º, nº 6, do Código de Processo Civil, aplicável aos autos por remissão sucessiva ex vi do artigo 4º do CPP e do artigo 41º do RGCO, estabelece, sob a epígrafe “Função e deveres das secretarias judiciais” que “Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes”.

Como se refere no Acórdão do STJ que vimos a citar, “Tal regra veio pôr termo, por exemplo, à questão de saber se o excesso de prazo assinalado para a prática de determinado acto, v.g., para contestar, se sobrepunha à própria lei (neste sentido, acórdãos do STJ de 29-11-1974, BMJ n.º 341, pág. 254; de 5-11-1980, BMJ n.º 301, pág. 364) e/ou se a falta de menção do prazo de dilação fixado na lei retirava ao beneficiário a faculdade de dele usar”.

Trata-se de decorrência dos princípios da segurança jurídica e da confiança.
O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem o direito de poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas, alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas, se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.[12]

Aqui chegados, importa reconhecer que perante a suspensão dos prazos para a prática dos atos processuais, não tendo sido efetuado o pagamento das guias emitidas, e logo que determinada por lei a retoma dos prazos judiciais – o que sucedeu em 6 de abril de 2021, por força da Lei nº 13-B/2021, de 05.04. – deveria a secretaria, oficiosamente, ter procedido à emissão de novas guias de pagamento.

A circunstância de ter sido determinado o cumprimento do artigo 8º, nº 8, do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de fevereiro, importava para a secretaria judicial a necessidade de proceder, em 6 de abril de 2021 e oficiosamente, à emissão de novas guias, efectuando nova notificação para pagamento, posto que a data indicada nas guias anteriores como limite do pagamento se mostrava ultrapassada, mas sobretudo posto que só então era possível comunicar ao sujeito processual o termo do prazo para a prática do ato.

Não tendo isso sucedido, impunha-se que o Tribunal a quo, ao invés de proferir a decisão recorrida, tivesse ordenado a prática de tais atos pela secretaria.
Concluindo:
i–Estando suspensos por força da lei os prazos para a prática de atos processuais, não pode a secretaria judicial efectuar notificação com a comunicação de termo de prazo para pagamento de taxa de justiça e multa, como se tal suspensão não existisse;
ii–Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes;
iii– Assim sucede por emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo.
iv–A regulação dos prazos processuais implica com a realização da garantia constitucional do acesso aos tribunais.
v–A regra estabelecida pelo n.º 6 do artigo 157.º do Código de Processo Civil, aplicável no processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, e, sucessivamente, no processo contra-ordenacional por força do disposto no artigo 41º do RGCO, no sentido de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial, implica que, tendo sido erroneamente comunicado prazo de pagamento mais curto que o resultante dos termos legais, deva repetir-se a notificação, com emissão de novas guias;
vi–O acto do sujeito processual – impugnação da decisão administrativa - não pode ser rejeitado com base na falta de pagamento na sequência de prazo indicado pela secretaria judicial em contrariedade com o legalmente estabelecido, sem que ocorra repetição da notificação nos termos do disposto no artigo 642º, nº 1, do Código de Processo Civil, e da emissão de novas guias.
***

No caso concreto, a decisão recorrida não pode, assim, subsistir.
Perante a circunstância de a arguida recorrente ter já procedido ao pagamento da taxa de justiça e multa devidas (após notificação do despacho recorrido, conforme referência Citius 29273825), impõe-se revogar a decisão recorrida, determinando que seja substituída por outra que providencie pelo prosseguimento dos autos, com vista à apreciação da impugnação judicial apresentada e já admitida.
*
*

IV.– DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pela arguida R., S.A. e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, determinando que seja substituída por outra que providencie pelo prosseguimento dos autos, com vista à apreciação da impugnação judicial apresentada e já admitida.
*
Sem custas.
*
D.N.
*


O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).



Lisboa, 11 de janeiro de 2022



Juiz Desembargador Relator: Jorge Antunes  
Juíza Desembargadora Adjunta: Sandra Oliveira Pinto



[1]Na redacção originária, o artigo 93º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de outubro, com a epígrafe “Do imposto de justiça”, tinha a seguinte redacção:
1- O processo de contra-ordenação que corre perante as autoridades administrativas não dará lugar ao pagamento de imposto de justiça.
2- Está também isenta de imposto de justiça a impugnação judicial de qualquer decisão das autoridades administrativas.
3- Darão lugar ao pagamento de imposto de justiça todas as decisões judiciais desfavoráveis ao arguido.
4- O imposto de justiça não será inferior a 100$00 nem superior a 50000$00, devendo o seu montante ser fixado em razão da situação económica do infractor, bem como da complexidade do processo.
5- O seguimento de qualquer recurso para o tribunal da relação dependerá do pagamento de imposto de justiça, que será de 200$00 e deverá ser liquidado até 48 horas após a apresentação do recurso.
[2]Na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, em vigor a partir de 1 de outubro de 1995, o artigo 93º do RGCO passou a ter a seguinte redacção:
1- O processo de contra-ordenação que corra perante as autoridades administrativas não dá lugar ao pagamento de taxa de justiça.
2- Está também isenta de taxa de justiça a impugnação judicial de qualquer decisão das autoridades administrativas.
3- Dão lugar ao pagamento de taxa de justiça todas as decisões judiciais desfavoráveis ao arguido.
4- A taxa de justiça não será inferior a 150$00 nem superior a 75000$00, devendo o seu montante ser fixado em razão da situação económica do infractor, bem como da complexidade do processo.
O nº 4 do preceito viria a sofrer nova alteração, por via do Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de dezembro, apenas com o propósito de actualização em face da nova moeda em curso (euro), passando a dispor:
“4- A taxa de justiça não será inferior a (euro) 0,75 nem superior a (euro) 374,10, devendo o seu montante ser fixado em razão da situação económica do infractor, bem como da complexidade do processo.”.
[3]Era o seguinte o teor dos artigos 86º e 87º do Código das Custas Judiciais na versão originária do DL nº 224-A/96, de 26.11.:
Artigo 86ª (Taxa devida pela interposição de recurso)
Pela interposição de qualquer recurso ordinário ou extraordinário é devida taxa de justiça correspondente a 1 UC.
Artigo 87º (Taxa de justiça nos recursos)
1- A taxa de justiça a fixar na decisão dos recursos é a seguinte:
a)No Supremo Tribunal de Justiça, entre 2 UC e 50 UC;
b)No Tribunal da Relação, entre 1 UC e 30 UC;
c)Nos recursos de decisões proferidas por autoridades administrativas em processos de contra-ordenação, entre 1 UC e 20 UC.
2- Nos recursos em processos da jurisdição de menores e de execução das penas, a taxa de justiça pode ser reduzida até um quarto de UC.
3- Se o recurso for julgado em conferência, a taxa de justiça referida nas alíneas a) e b) do n.º 1 é reduzida a metade.
4- O tribunal de recurso que condene em taxa de justiça fá-lo-á também relativamente ao tribunal recorrido, se for caso disso.
[4]O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2014, datado de 6 de março de 2014, foi publicado no DR, I SÉRIE, nº 73, de 14.04.2014, pp. 2410-2419, encontrando-se igualmente acessível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3ae8e3356bff289a80257cac004e8183?OpenDocument. No mesmo foi fixada a seguinte jurisprudência: “Sendo proferida decisão favorável ao recorrente em recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa não há lugar à restituição da taxa de justiça, paga nos termos do art.º 8º, nºs 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais.”.
[5]In Contra-ordenações: anotações ao regime geral / [org.] Sérgio Passos – 3ª Edição – Coimbra – 2009, p. 599.
[6]In Regime Geral das Contra-Ordenações – à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – Universidade Católica Editora – Lisboa – 2011, p. 343.
[7]In “Outra vez o RGCO (actualização de fontes e chamada de atenção para uma nova inconstitucionalidade formal no seu percurso legiferativo)”, Revista Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação, nº 52.
[8]In ob. cit, loc. cit.
[9]A singela circunstância de o regime legal vigente à data em que foi apresentada a impugnação judicial da decisão administrativa, decorrer de uma intervenção legislativa da Assembleia da República, é tentadora no sentido de nos limitarmos a explorar os eventuais efeitos “salvadores” dessa intervenção, para, sem mais, concluirmos que o eventual vício de inconstitucionalidade orgânica, a ter existido, estava expurgado. Não nos refugiaremos nessa análise, apesar de mais simples, pela relevância da correta análise da evolução legislativa em todos os seus passos.
[10]De acordo com o nº 2 do referido artigo 21º da Portaria 419-A/2009, “A emissão da guia pelo tribunal é feita em duplicado, contendo os seguintes elementos:
a)Número sequencial;
b)Identificação do tribunal, juízo ou secção emitente e respectivos códigos;
c)Natureza, tipo e número do processo;
d)Nome do responsável pelo pagamento;
e)Discriminação dos descritivos e respectivos montantes;
f)Indicação do total a pagar;
g)Data limite de pagamento;
h)Data de emissão e assinatura.
[11]Acórdão do STJ de 30 de Novembro de 2017 – relator Conselheiro Raúl Borges – acessível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/05c4bc7bcc41f1c380258264003680f2
[12]J. J. Gomes Canotilho, em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 3.ª edição, Dezembro de 1998.