Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11069/08-9
Relator: FÁTIMA MATA-MOUROS
Descritores: ARMA PROIBIDA
ARMA BRANCA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Não é arma proibida uma “faca de borboleta” cuja lâmina tem 9 cm de comprimento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 558/07.3GBSSB do Tribunal Judicial de Sesimbra, por sentença proferido em 20 de Junho de 2008, foi o arguido B…, condenado:
a) pela prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do D.L. nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de cento e dez dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de quinhentos e cinquenta euros;
b) pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02, na pena de duzentos dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de mil euros;
c) em cúmulo jurídico de ambas as penas, na pena única de duzentos e quarenta dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de mil e duzentos euros;
d) com declaração de perdimento a favor do Estado a faca de borboleta utilizada pelo arguido no cometimento do crime e ordem da sua destruição, por não ter qualquer utilidade a sua conservação – cf. artigo 109º, nºs. 1 e 3 do Código Penal;

2. Inconformado com aquela decisão, o arguido interpôs recurso da mesma, pugnando pela absolvição do crime de detenção de arma ilegal, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
I. O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo ligeiro de passageiros sem habilitação legal, p.p. no artigo 3.°, n.°s 1 e 2 do Decreto - Lei 2/98 de 03 de Janeiro numa pena de cento e dez dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) e de um crime de detenção de arma proibida, p.p. no artigo 86.°, n° 1 al. d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, numa pena de multa de 200 dias à razão diária de € 5,00, perfazendo o montante de € 1.000,00 (mil euros).
II. O arguido não concorda com a condenação pelo crime de detenção de arma ilegal.
III. O artigo 403.°, n° 1 do CPP permite a limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas.
IV. Considerando o n° 2 al. c) do mesmo preceito que é autónoma, para o que ao caso interessa, cada um dos crimes, em caso de concurso.
V. Serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise crítica e conjugada dos vários elementos probatórios, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador.
VI. Não pode, contudo, o arguido concordar com a decisão que foi proferida no que se refere ao crime de detenção de arma ilegal;
VII. O arguido admitiu desde o início do julgamento que tinha em sua posse o objecto apreendido que tinha acabado de adquirir numa feira junto ao local onde foi abordado pelos agentes da GNR;
VIII. O qual pretendia apenas para guardar em casa, pela sua beleza e exclusividade.
IX. Contudo, não pode concordar que detinha arma ilegal.
X. O artigo 86.°, n° 1 al. d) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro pune quem detiver, entre outras, faca de borboleta.
XI. Faca de borboleta, nos termos do artigo 2.°, n° 1 al. aq) do mesmo diploma, é arma branca.
XII. E arma branca, nos termos da al. 1) do mesmo preceito, tem de ter lâmina com comprimento igual ou superior a 10 cm.
XIII. Provou-se, em audiência de julgamento, que a arma que o arguido detinha, possuía lâmina com comprimento de 9cm.
XIV. A ser assim, o objecto que o arguido tinha em sua posse não é arma ilegal, nem sequer se enquadra na definição de faca de borboleta.
XV. O tribunal "a quo" assim não o entendeu.
XVI. Concluiu a douta sentença que faca de borboleta dispensa a indagação do comprimento da lâmina, "contrariamente à categoria mais genérica de arma branca».
XVII. Tal posição não pode merecer o nosso acolhimento.
XVIII. Por desvirtuar claramente a letra da lei 5/2006 de 23 de Fevereiro.
XIX. E por se mostrar contrária às actuais indicações do Departamento de
Arma e Explosivos da Polícia de Segurança Pública, entidade orientadora
da matéria em causa.
XX. Pelo que os elementos probatórios não podem conduzir a outro resultado que não a absolvição do arguido, posto que este não praticou qualquer crime de detenção de arma ilegal.

3. Respondeu o MP, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, extraindo, por sua vez, as seguintes conclusões:
1 - Prevê-se, de facto, no art. 86.º, além do mais, a punição para a posse de “arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers [que integram a classe A – cf. n.º2, alin. d) e e) do art. 3.º e que vêm definidas nas alin. ar), aq), ap), ao), an) e aj) do art. 2.º n.º1 do mesmo diploma legal] e deoutras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”.
2 - A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, dá-nos a definição do conceito de “arma branca” na alin. l) do seu art. 2.º, nos seguintes termos:
“Arma branca” todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões.
3 - Se a perigosidade noutro tipo de facas se encontra na lâmina, no caso da faca borboleta a perigosidade está nas suas características específicas de disfarce e facilidade de manuseamento.
4 - Na verdade se o legislador quisesse que a detenção da faca borboleta só fosse punida quando a lâmina tivesse mais de 10 cm de lâmina teria posto tudo no mesmo “saco”.
5 – Cremos que seria absolutamente desnecessário autonomizar a figura da faca borboleta da arma branca, pois se qualquer faca borboleta tem de ter as características da arma branca para quê definição autónoma.

4. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação discordando da resposta apresentada pelo MP em primeira instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento, acompanhando a interpretação feita pelo recorrente das als. l) e aq) do n,º 2 do art. 2.º e 86.º/1d) da da Lei 5/2006.

5. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

2. A questão suscitada ao recurso consiste em saber se a detenção de uma «navalha borboleta» de 9 cm de lâmina integra, ou não, o tipo criminal p. p. na alínea d) do n.º 1 do art. 86.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

3.Os elementos relevantes para a decisão são os seguintes:

3.1. Teor da sentença recorrida:

I. RELATÓRIO

1. O Digno Magistrado do Ministério Público, deduziu acusação, sob a a forma de processo comum, com intervenção do tribunal singular, do arguido B... imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo ligeiro de passageiros sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.os 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03 de Janeiro, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02.
A acusação foi recebida nos termos do despacho proferido a fls. 62 e 63.------
O arguido apresentou contestação, oferecendo o merecimento dos autos, e rol de testemunhas.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal como da respectiva acta consta.
2. A instância mantém-se válida e regular e não existem nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra apreciar.

II.FUNDAMENTAÇÃO
3.Factos provados.
No dia 09 de Junho de 2007, pelas 1 hora e 15 minutos, num parque de estacionamento sito na Rua D. João II, na Quinta do Conde, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matricula 00-00-00, sua propriedade, sem ser titular de carta de condução que habilitasse a fazê-lo.
Na ocasião, o arguido transportava, dentro do bolso das calças, uma navalha “borboleta”, com 9 centímetros de lâmina.
Agiu de forma livre e conscientemente, bem sabendo que por falta daquele título não podia conduzir veículos motociclos na via pública e que não podia transportar consigo aquela navalha, como fez e quis, e sabendo serem as suas condutas proibidas e punida por lei.
O arguido exerce a profissão de caixeiro numa sapataria e recebe 500 euros por mês; vive com uma companheira, que trabalha num restaurante, e recebe 500 euros por mês; a companheira do arguido tem duas filhas, com 16 e 13 anos, e têm um filho comum, com 10 meses.
Suportam a renda mensal da habitação, no valor de 435 euros.
Confessou a detenção do objecto descrito.
Completou o 8º ano de escolaridade.
Não tem antecedentes criminais.

4. Factos não provados.
A lâmina da navalha “borboleta” com que o arguido foi encontrado tinha 10 centímetros de lâmina.

5. Fundamentação da decisão da matéria de facto
Serviram de base para formar a convicção do Tribunal a análise crítica e conjugada dos vários elementos probatórios abaixo discriminados, apreciados segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127.º, do Código de Processo Penal.
O arguido reconheceu que trazia consigo, dentro de um bolso, o objecto descrito, cuja lâmina medida em audiência, contrariamente ao descrito no auto que faz fls. 44, tem 9 centímetros de comprimento, e reconheceu que sabia ser proibido deter tal objecto. Já negou que tivesse conduzido o veículo em questão, oferecendo uma versão inverosímil, consubstanciada, em suma, em o veículo ser seu mas ter emprestado a um amigo de nome “Dirceu”, que não podia vir a audiência por trabalhar em Espanha; encontrar-se, na altura da fiscalização, no lugar do condutor a tentar pôr o veículo a trabalhar, porque o “Dirceu” não conseguia, não tendo sequer o conduzido.
Ora, tal fantasiosa versão foi, de forma segura, desmentida pelas testemunhas P... e S..., soldados da GNR que apresentaram a seguinte versão dos factos, em que se acreditou por bem mais lógica e natural: já numa primeira vez, viram o mesmo veículo (um opel corsa encarnado) a pôr-se em fuga à sua aproxixmação, pelo que, no dia dos factos, encontrando-se em exercício de funções mas sem farda, ao verem aquele veículo a sair do parque de estacionamento, aproximaram-se e, já próximos, com boa iluminação pois que aquele parque dá para um estabelecimento de diversão nocturna que tem iluminação forte na parte de fora, viram o arguido a conduzir o veículo, altura em que o fiscalizaram, constataram a inexistência de carta (por si assumida em audiência e confirmada a fls. 27 e 28), o detiveram e lhe passaram revista na sequência do que encontraram e apreenderam o dito objecto.
Note-se que a revista é legal, pois que ela foi efectuada por orgão de polícia criminal na sequência de uma detenção em flagrante delito por crime (de condução ilegal) a que corresponde pena de prisão, não carecendo sequer de ser “imediatamente validada” por juiz de instrução, tal como decorre do disposto no artigo 174º, nº4 al. c) e nº5 do Código de Processo Penal (na redaçcão então vigente); mas, a apreensão que se lhe seguiu, e que recaíu sobre a “boboleta” que o arguido tinha consigo, não o é, pois que carecia ter sido validada no prazo máximo de setenta e duas horas, tal como se estabelece no artigo 178º, nº5 do Código de Processo Penal, e foi-o em prazo largamente superior, tal como evidenciam o auto de apreensão junto a fls. 13, datado de 09 de Junho, e a validação exarada a fls. 14, datada de 24 de Setembro, de 2007. Acontece que toda esta questão é inócua, pois que embora não se possa valorar, por se tratar de meio de prova ilegal, a apreensão daquela “borboleta” ao arguido, o próprio arguido admitiu, confessou, em audiência que trazia consigo esse objecto e dentro do bolso das calças e que, mais, sabia ser a sua conduta proibida por lei.
Ou seja: elimina-se a apreensão mas fica-se com a confissão.
Interessou ainda o certificado de registo criminal junto a fls. 47.

6. Enquadramento jurídico-penal.
Vem o arguido acusado da prática de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo art.º 3.º, n.os 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02.
Vejamos separadamente cada um destes crimes.

Crime de condução de veículo sem habilitação legal.
Pratica, de acordo com tal preceito, o crime de condução de veículo sem habilitação legal, “quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado”.
São assim elementos objectivos do tipo:
1. A existência de um sujeito;
2. A acção desse sujeito conduzir um veículo a motor/ligeiro de passageiros;
3. Numa via pública ou equiparada;
4. Sem que seja titular de documento que o habilite à respectiva condução.
Por sua vez, é elemento subjectivo do crime a actuação psicológica dolosa, ou seja, a consciência de que se conduz em via pública sem documento habilitante à condução e a vontade de o fazer, sendo que a direcção da vontade determinará a qualificação do dolo em directo, necessário ou eventual, como se dispõe no artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal.
A concretização daqueles elementos objectivos passa pela consideração de que o veículo ligeiro de passageiros é um veículo a motor – art.º 105.º, do Código da Estrada; que só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito – art.º 121.º, n.º 1, do Código da Estrada; e que o documento que habilita à condução de veículos automóveis é a carta de condução – art.º 122.º n.º 1, do Código da Estrada.
Ora, do confronto dos factos provados com os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto no art.º 3.º, n.os 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03 de Janeiro, não restam dúvidas que o arguido praticou tal crime, e com dolo directo, pois que não sendo titular de carta de condução que o habilitasse a conduzir veículos ligeiros de passageiro, no dia 09 de Junho de 2007, pelas 1 hora e 15 minutos, num parque de estacionamento sito na Rua D. João II, na Quinta do Conde, conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matricula 00-00-00, sua propriedade, sem ser titular de carta de condução que habilitasse a fazê-lo.

Crime de detenção ilegal de arma.
Dispõe o artigo 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, que:
“1- Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar (...) usar ou trouxer consigo:
d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, face da abertura automática, estilete, faca de borboleta (...) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias”.

A posição do ilustre defensor do arguido foi esta:
O arguido detinha “arma branca”.
“Arma branca”, de acordo com o disposto no artigo 1º al. l) do mesmo diploma tem de ter lâmina igual ou superior a 10 centímetros.
A arma transportada pelo arguido tinha menos de 10 centímetros de lâmina.
Logo, o arguido não cometeu o crime.

Quid juris?
Não há dúvida, o que foi assumido pelo próprio, que o arguido detinha, transportava ou trazia consigo aquela arma e que sabia tal conduta proibida por lei.
A questão está nisto: que arma?
A arma que o arguido trazia era uma “faca de borboleta”, a qual dispensa indagar, contrariamente à categoria mais genérica de “arma branca” se a lâmina tem comprimento igual ou superior a 10 centimetros.
Basta que seja uma “borboleta” para automaticamente a sua detenção ser objectivamente crime.
Até a lâmina pode ter 5 centímetros.
A perigosidade deste objecto dispensa a indagação do seu comprimento.
Daí que naquele artigo 86º, nº1 al. d) se faça referência quer à faca de borboleta quer à arma branca.
Se, especificamente o objecto é uma “faca de borboleta”, tanto basta; já não se vai indagar se preenche a categoria mais ampla de “arma branca”.
Isto posto, voltamos a repetir.
O arguido sabia que detinha tal objecto e que tal conduta, que quis tomar era proibida por lei.
Agiu com dolo directo, pois – artigo 14º, nº1 do Código Penal.
Tanto é suficiente para ter cometido o crime pelo qual vem acusado.

7.Escolha e determinação da medida das penas
Os crimes praticados pelo arguido são puníveis com pena principal de prisão de um mês a dois anos ou pena de multa de dez a duzentos e quarenta dias e pena de prisão de um mês até três anos ou com pena de multa de dez a trezentos e sessenta dias – art.os 41.º, n.º1, 47.º, n.º1, ambos do Código Penal, 3.º, n.ºs. 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03 de Janeiro e 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Prevendo os crimes em questão a cominação alternativa des penas principais privativas e não privativas da liberdade, o tribunal deve optar pela aplicação das segundas sempre que estas satisfizerem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – art.º 70.º, do Código Penal.
As finalidades da punição são a protecção dos bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) – art.º 40.º, n.º1, do Código Penal.
As exigências de prevenção geral são muito elevadas pois que a segurança rodoviária e a segurança em geral, bens jurídicos perigados pelo arguido pelas suas acções, encontram-se particularmente em crise em Portugal como bem resulta da elevada sinistralidade rodoviária verificada a que não é alheia o facto de muitos cidadãos conduzirem sem habilitação legal e o sentimento generalizado de insegurança sentido pela sociedade civil.
As exigências de prevenção especial são de patamar mediano, pois que o arguido não tem antecedentes criminais; porém, em relação à condução do veículo sem habilitação é dono do veículo que conduziu;
Pelo que, ponderadas tais exigências, considera o tribunal que a aplicação de penas não privativas da liberdade ao arguido satisfazem as legítimas expectativas da comunidade na acção punitiva dos Tribunais e na validade da norma (prevenção geral) e favorece a reintegração social do arguido (prevenção especial).
As medidas concretas das penas devem tomar em conta, afora as exigências da prevenção atrás descritas, a culpa, limite inultrapassável da pena e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido – art.º 71.º, do Código Penal.
Assim:
A culpa do arguido é elevada, pois que não ofereceu justificações razoáveis para as suas condutas;
A ilicitude eleva-se quanto à condução sem habilitação legal pela circunstância de o arguido ser dono do veículo que conduziu;
O dolo é directo e, por isso, intenso;
Está inserido profissional e familiarmente;
Confessou os factos atinentes à detenção da arma, o que favoreceu a sua prova (ante a ilegalidade da apreensão do objecto), mas mentiu quanto aos factos relativos à condução do veículo, persistindo mesmo nessa versão quando a prova já evidenciava ser evidente, o que efectivamente revela uma personalidade mal formada, que cumpre corrigir;
Não tem antecedentes criminais.

Assim, tudo ponderado, tem-se por adequado cominar ao arguido as penas de 110 (cento e dez) e 200 dias de multa, pelos crimes de condução de veículo sem habilitação legal e detenção ilegal de arma, respectivamente.
O montante diário da pena da multa deve ser fixado em função da situação económica e financeira da arguida e seus encargos pessoais – art.º 47.º, n.º 2, ex vi do art.º 44.º, n.º 1, in fine, ambos do Código Penal, não esquecendo, porém, como se notou no Ac. Rel. Porto de 13.07.1995 que “ o montante diário da pena de multa não deve ser doseado por forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade (in C.J., 1995, tomo IV).

Fazendo tal ponderação, por apelo à situação financeira do arguido, tem-se por acertado fixar em €: 5 (cinco euros), o montante diário das penas de multa, aplicando-se o regime concretamente mais favorável, de acordo com o disposto no artigo 2º, nº4 do Código Penal.

Uma vez que tais penas se encontram em concurso, entre um mínimo de 200 e um máximo de 310 dias de multa, atendendo a que os factos foram cometidos nas mesmas cricunstâncias de tempo e lugar, fixo a pena única em 240 dias multa, mantendo-se a razão diária de 5 euros.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se inteiramente procedente a acusação e, em consequência:
a) condeno o arguido pela prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do D.L. nº 2/98, de 03 de Janeiro, na pena de cento e dez dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de quinhentos e cinquenta euros;
b) condeno o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86º, nº1 al. d) da Lei nº 5/2006, de 23.02, na pena de duzentos dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de mil euros;
c) em cumulo jurídico entre ambas as penas, condeno o arguido na pena única de duzentos e quarenta dias de multa à razão diária de cinco euros, perfazendo o montante global de mil e duzentos euros;
d) declaro perdido a favor do Estado a faca de borboleta utilizada pelo arguido no cometimento do crime e ordeno a sua destruição, por não ter qualquer utilidade a sua conservação – cf. artigo 109º, nºs. 1 e 3 do Código Penal;
e) condeno o arguido no pagamento das custas do processo, com taxa de justiça fixada em 2 UC (art.os 344º, 513.º e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 85.º, n.º 1, alínea c), do Código das Custas Judiciais), a que acresce, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 423/91, de 30/10, o valor correspondente a 1% sobre a taxa de justiça fixada, que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais, procuradoria legal e honorários devidos ao Ilustre Defensor oficioso nomeado, de acordo com a tabela em vigor, a adiantar pelo C.G.T. (cfr. art.os 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, 74.º, n.º 1, in fine, e 89.º, n.º 1, alínea b), do Código das Custas Judiciais).
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Notifique, sendo ainda o arguido para os efeitos de reclamar, no prazo de três meses, os objectos apreendidos a fls. 8, sob pena de suportar os custos do seu depósito no prazo máximo de um ano, momento em que serão declarados perdidos a favor do Estado – cf. artigo 186º, nºs. 1 a 4 do Código de Processo Penal.
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Deposite.
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-------Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal



3.2 Recordada a sentença, cumpre apreciar e decidir:

Antes do mais cumprirá assinalar que as alterações entretanto verificadas na Lei 5/2006, de 8 de Novembro (operadas pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro e Lei 17/2009, de 6 de Maio) não tiveram incidência nos segmentos normativos do Regime das Armas e Munições em discussão neste recurso.

Pretende o recorrente que a arma que detinha não pode ser considerada uma arma ilegal, uma vez que a faca borboleta é uma arma branca e este tipo de arma, tal como previsto na al. l) do n.º 1 do art. 2.º da Lei 5/2006, exige uma lâmina cujo comprimento tenha, no mínimo, 10 cm. Tendo a faca que lhe foi apreendida apenas 9 cm, não podia o recorrente ser condenado pela detenção de arma ilegal.
Vejamos se lhe assiste razão.
O art. 86.º n.º 1 d) da Lei 5/2006 tipifica o crime de detenção de, entre outras armas, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de borboleta e ainda outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse. O tipo incriminador definido naquela disposição legal abarca, assim, tanto a «arma branca», definida no art. 2.º/1/l) da Lei que define o regime jurídico das armas e munições, como a «faca de borboleta», por sua vez definida na al. aq) do referido art. 2.º/1.
Na definição de «arma branca» contida na alínea l) exige-se uma extensão de lâmina superior a 10 cm.
A caracterização legal da faca borboleta assenta noutros elementos, definidos na alínea aq), designadamente uma «lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão». Todavia, esta última definição alude, logo de início, à expressão «arma branca» para definir a faca de borboleta. Com efeito, segundo a definição legal (al. aq) do n.º 1 do art. 2.º da Lei 5/2006), «faca de borboleta» é «a arma branca composta por uma lâmina articulada num cabo ou empunhadura dividido longitudinalmente em duas partes também articuladas entre si, de tal forma que a abertura da lâmina pode ser obtida instantaneamente por um movimento rápido de uma só mão». Verifica-se assim que, à luz da definição legalmente assumida, elemento caracterizador da arma designada de «faca de borboleta» é, desde logo, a assunção das características de «arma branca», naturalmente, de acordo também com a definição dada pela lei deste tipo de arma.
De resto a mesma técnica legislativa foi adoptada também a propósito da definição de outras armas, no referido art. 2.º/1, como por exemplo na definição de «bastão eléctrico» (al. ah) enquanto «arma eléctrica que…», encontrando-se «arma eléctrica» definida na alínea n), como bem observou o digno Procurador-Geral-Adjunto no parecer emitido nesta Relação.
Não se deixa de reconhecer razão ao MP quando, na resposta apresentada em primeira instância, adiantou que «se a perigosidade noutro tipo de facas se encontra na lâmina, no caso da faca borboleta a perigosidade está nas suas características específicas de disfarce e facilidade de manuseamento», bem como pertinência na interrogação que formula sobre a razão da autonomização da tipificação da «faca de borboleta» se esta tem de apresentar as características da «arma branca». Acontece que se a resposta a esta última pergunta ainda deverá ser procurada pelo intérprete/julgador (exercício que ensaiaremos de seguida), já o recurso a valorações de perigosidade para qualificar uma conduta como criminosa nunca poderá ultrapassar a descrição do tipo assumida na lei. Defender o contrário, seria ignorar um princípio fundamental em matéria penal: o princípio da legalidade com dignidade constitucional (art. 29.º da CRP e 1.º do CP). Incontroverso é que, e mais uma vez nos socorremos do parecer emitido pelo MP já nesta 2ª instância, «o sentido e alcance da lei, colocam o intérprete no dever de presumir o pensamento que o legislador soube exprimir, em termos adequados, devendo a interpretação ter em conta a unidade do sistema jurídico (Código Civil, art. 9.º, n.ºs 1 e 3). Ora, são precisamente os argumentos da unidade do sistema jurídico e da adequada expressão legislativa, confirmados, aliás, pelo argumento decorrente da interpretação sistemática, que impõem a conclusão de que acima demos nota».
Resta assim o argumento a inutilidade da autonomização da tipificação da «faca borboleta» se esta se reconduzir sempre à caracterização legal de uma «arma branca». A análise cuidada da lei não permite, porém, identificar completamente as duas caracterizações em referência de modo a excluir qualquer efeito útil da tipificação da «faca borboleta». É que esta última, além da extensão da lâmina própria da arma branca (10 cm), deve ainda apresentar a respectiva articulação num cabo dividido em duas partes, também elas articuladas, de forma a permitir uma abertura instantânea e com uma só mão. Ou seja haverá «armas brancas» que não integram «facas borboletas» ainda que todas as «facas borboletas» devam apresentar as características de comprimento de lâmina das «armas brancas» para integrarem a respectiva definição legal e, em consequência, assumirem dignidade penal.
Não se detecta, assim, qualquer incongruência normativa, já que o mínimo exigido para o alcance de dignidade penal é sempre um comprimento de lâmina de 10 cm. Trata-se, sim, de ignorar na previsão legal incriminatória, o índice de perigosidade consistente na verificação na arma de um mecanismo de abertura imediata (nos casos em que as lâminas não atingem os 10 cm de comprimento). Mas essa é opção que só ao legislador cabia e caberá tomar.
Não se ignora que, aparentemente, as «facas borboletas» oferecerão maior índice de perigosidade do que outras «armas brancas» que não permitem a abertura instantânea. Todavia, a omissão legislativa de incriminar a faca borboleta de lâmina inferior a 10 cm de comprimento não se desvanece através de interpretações «generosas» ou «securitárias» (dependendo da avaliação subjectiva incidente sobre a problemática do combate às armas ilegais) por parte de um ou outro tribunal, vinculados que estão todos eles ao princípio da legalidade, com reforçada vinculação em matéria de definição de crimes. Será, pelo contrário, o escrupuloso cumprimento da lei que permitirá ao legislador reapreciar a legislação que produziu em ordem a melhorá-la tão cedo quanto possível.
Certo é que o legislador não ignorou a controvérsia jurisprudencial existente na vigência do regime das armas anterior à Lei 5/2006, atinente à integração, ou não, da «faca borboleta» no conceito de arma com disfarce. As clarificações introduzidas no sentido da incriminação do referido tipo de arma foram feitas, no entanto, por referência ao conceito de «arma branca», restringindo, assim, a sua incriminação às armas que exibam lâminas de 10 cm, com ou sem sistema de abertura instantâneo, opção legislativa que cabe ao aplicador respeitar.
De acordo com o regime legal delineado pelo legislador, não exibindo a arma em questão uma lâmina de 10 cm, não pode integrar a noção legislativa de «arma branca» e não sendo «arma branca», não integra tão pouco a previsão da al. aq) do art. 2.º/1 da Lei 5/2006 ou qualquer outro tipo legalmente previsto. Em consequência, impõe-se concluir que a detenção da arma apreendida nos autos não integra prática legalmente prevista como crime. O recurso à analogia para qualificar um facto como crime é expressamente proibido pela nossa lei (art. 1.º/3 do CP) o que constitui óbvia decorrência do princípio da legalidade na tipificação penal com dignidade constitucional.
Resta, assim, decidir em conformidade.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção deste Tribunal da Relação em:
Conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença proferida em primeira instância, ainda que apenas na parte em que condenou o arguido, aqui recorrente, como autor de um crime de detenção de arma proibida e cumulou esta pena com a aplicada pela prática de outro crime, bem como na parte em que declarou perdida a favor do Estado a faca borboleta apreendida, mantendo-se, no mais, o ali decidido.
Sem tributação.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pela relatora – art. 94º, nº 2 do C.P.Penal)
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Lisboa, 12 de Novembro de 2009


Maria de Fátima Mata-Mouros
João Abrunhosa