Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
736/18.0T8SNT-C.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
ÓNUS PROBATÓRIO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/01/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE O RECURSO
Sumário: I– No âmbito do processo executivo, a livrança, como título de crédito, tendo em consideração os princípios ínsitos da abstracção e da incorporação, dispensa o exequente de expor e densificar a relação jurídica causal, fundamental ou subjacente à sua emissão;

II– Incumbe ao executado, no âmbito das relações imediatas, o ónus de alegação e prova dos factos reais, concretos e objectivos capazes de colocar em crise a validade, existência, manutenção, subsistência ou eficácia daquela relação fundamental que subjaz à livrança;

III– a livrança em branco tem normalmente como desiderato o ser posteriormente preenchida pelo seu adquirente, a quem normalmente se atribui poderes para tal preenchimento, no que constitui o denominado acordo ou pacto de preenchimento, o qual tanto pode ser expresso como tácito;

IV– o ónus alegacional e probatório do preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário/executado, atenta a circunstância de estarmos perante um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos prescritos nos artigos 342º, nº. 2 e 378º, ambos do Cód. Civil e 571º, nº. 2 e 731º, ambos do Cód. de Processo Civil ;

V– para o cumprimento do aludido ónus alegacional, a densificação factual exigida não se basta com a conclusiva e generalista alegação de que o preenchimento da livrança foi abusivo, antes se exigindo uma concreta e definidora concretização factual de tal alegação conclusiva, como factos essenciais integradores da excepção peremptória invocada – cf., o nº. 1, do artº. 5º, do Cód. de Processo Civil.


Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:


              
I–RELATÓRIO



1–A. P. e M. P., Executados, deduziram oposição à execução, mediante embargos, aduzindo, em súmula, o seguinte:
O requerimento executivo é inepto, pois do mesmo e da documentação junta, não é perceptível como, em que termos e com que fundamentos vem a Exequente proceder à execução da quantia de 3.567.306,64 € ;
Parece resultar que a execução terá por fundamento o incumprimento dos contratos de mútuo e respectivas alterações, celebrado entre Exequente e Executados, relativamente a dois créditos concedidos – FEC 07235/09, no montante máximo global de 1.800.000,00 €, encontrando-se em dívida a quantia de 1.686.166,67 € ; e FEC 5437/09, no montante de 249.398,95 €, encontrando-se em dívida a quantia de 49.520,00 € ;
Sendo, assim, o capital global em dívida de 1.735.686,67 € ;
Relativamente à livrança junta como doc. nº. 1, presume-se que tenha como fundamento o contrato de financiamento FEC 07235/09 ;
Sendo que relativamente à livrança junta como doc. nº. 2, no montante de 1.359.077,70 €, nada resulta da mesma ou do requerimento executivo que a fundamente ;
Ademais, no que concerne à livrança nº. 500905479080307957 (B….), para além de não respeitar o nº. 5, do artº. 75º, da LULL, no que concerne à legitimidade do Novo Banco, “o valor e termos apostos na mesma foram inscritos ao arrepio das regras da transparência e prestação de informação que o preenchimento deste tipo de documentos exige” ;
Desconhecendo os exactos termos em que o valor aposto na livrança foi apurado, pelo que tal preenchimento é abusivo, e não pode servir o propósito de título executivo ;
No que respeita à livrança nº. 500905479141739843 (…. Banco) doc. nº. 2 -, ocorreu preenchimento abusivo de tal título de crédito ;
Efectivamente, desconhecem a que contrato de financiamento, ou outra responsabilidade junto da Exequente, estaria a livrança dada como garantia ;
Nomeadamente, os valores, juros ou outras obrigações a mesma servirá ou terá servido ;
Pelo que, sem tais elementos, que não foram indicados ou juntos, sempre se terá de concluir pela sua utilização abusiva de tal documento que os Executados deixaram assinado, eventualmente para outra relação jurídica que não as referenciadas nos presentes autos  ;
Donde, existindo preenchimento abusivo, tal documento é inválido como título executivo ;
Por outro lado, no que concerne ao Contrato de Financiamento FEC 5437/09 – 26/07/2009, o documento apresentado como título executivo não se enquadra no elenco do artigo 703º, do Cód. de Processo Civil, assim não preenchendo os requisitos de exequibilidade necessários à execução ;
Donde, por manifesta falta de título executivo, devem ser os Executados absolvidos da instância ;
Por impugnação, no que concerne ao contrato FEC 7235/09, o valor efectivamente financiado foi de 1.686.166,67 €, e não o de 1.800.000,00 € ;
Impugnando, assim, o montante da prestação peticionada que consta da Livrança nº. 500905479080307957 ;
Relativamente ao contrato FEC 5437/09, à data da interposição da presente acção o valor em dívida seria de 49.520,00 €, não sendo tal dívida certa, exigível e líquida ;
O mesmo sucedendo relativamente à livrança nº. 500905479141739843, pois não se consegue desvendar qual a obrigação e fundamento que a mesma tem por base ;
Pretendem que a execução seja suspensa, com o recebimento dos presentes embargos, sem a prestação de caução ;
Ou, caso assim não se entenda, mediante a prestação de caução sobre os imóveis que indica.

Concluem, no sentido de:
- serem julgadas procedentes as excepções deduzidas e, consequentemente, extinta a execução e absolvidos os Executados da instância e pedido ;
- caso assim não se entenda, seja julgada a execução improcedente, por não provada ;
- seja julgado procedente o pedido de suspensão da execução, sem prestação de caução, ou, caso assim não se entenda, seja julgado procedente o incidente de prestação de caução e determinado o efeito suspensivo da presente execução.

2–Admitidos liminarmente os embargos e notificada a Exequente/Embargada BANCO, S.A., nos termos e para os efeitos do prescrito no nº. 2 do artº. 732º, do Cód. de Processo Civil, veio apresentar contestação – cf., fls. 55 a 60 -, aduzindo, em resumo, o seguinte:
Relativamente à livrança com o valor facial de 2.065.082,54 €, foi entregue ao então Banco Espírito Santo, S.A., ora Banco, S.A., para garantia e segurança do cumprimento das obrigações para si emergentes do contrato de financiamento n.º FEC 7235/09, outorgado aos 20.11.2009, pelo montante máximo global de € 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros) ;
destinado à “liquidação de Responsabilidades nomeadamente do Financiamento Amort. M/L Prazo n.º 770/34220 e Financiamento para Aquisição Acções ……….” – cfr. Doc. n.º 3 junto com o requerimento executivo ;
pelo prazo de 24 meses e contra o pagamento de uma taxa de juro correspondente à EURIBOR a 6 meses acrescida de um spread de 3,0 pontos percentuais e uma taxa de juro anual de encargos efectiva global inicial (TAE) de 4,067%, cfr. condições particulares ;
o qual, por iniciativa dos executados, foi consecutivamente alterado, quanto ao período de utilização, no sentido da sua prorrogação, aos 20.05.2010, 20.11.2011, 05.11.2013 e finalmente, aos 18.11.2014, agora, até 20/11/2015 ;
 sendo que, para garantia das responsabilidades dai emergentes, os executados constituíram ainda a favor do exequente hipoteca voluntária sobre o prédio urbano composto por moradia de rés-do-chão e 1.º andar, para habitação, com logradouro e piscina sito em Limites de Fontanelas, S. João das Lampas, Sintra descrito com o nº ……………., bem como penhor sobre 72.000 acções da Imobiliária …………… S.A., também nomeadas à penhora (cfr. docs. n.ºs 3, 4 e 5 juntos com o requerimento executivo) ;
Por sua vez, a livrança do valor facial de € 1.359.077,70 (um milhão, trezentos e cinquenta e nove mil, setenta e sete euros e setenta cêntimos), subscrita pelos executados ora Embargantes A.P. e M. P., aos 30.12.2014 foi entregue ao então Banco …., S.A., ora Banco, S.A., para garantia e segurança do cumprimento das obrigações para si emergentes do contrato de financiamento n.º 001614000047080, outorgado aos 30.12.2014, pelo montante máximo global de € 1.155.000,00 (um milhão cento e cinquenta e cinco mil euros) destinado à “Liquidação de responsabilidades, referente à Garantia Bancária contrato n.º 0030988700” – cfr. Doc. n.º 1 que ora se junta e dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais ;
Pelo prazo de 12 meses e contra o pagamento de uma taxa de juro correspondente à média mensal da EURIBOR a 6 meses, acrescida de um spread de 3,5000 pontos percentuais e uma taxa de juro anual de encargos efectiva global inicial (TAE) de 3,56900 ;
Por sua vez, o contrato de financiamento n.º FEC 5437/09, celebrado em 26/07/2009, entre os executados Embargantes e o então Banco …………, S.A., no montante máximo global de € 249.398,95 (duzentos e quarenta e nove mil, trezentos e noventa e oito euros e noventa e cinco cêntimos), posteriormente alterado em 14/07/2010, 25/07/2011, 19/07/2012, 10/07/2013 e em 26/07/2014 ;
Trata-se, como os executados bem sabem, de um financiamento iniciado no ano de 2004, sob a forma de crédito em conta corrente, transformado em financiamento amortizável, no ano de 2005, pelo valor de capital de €249.398,95, cujos prazo de amortização foram sendo, ao longo do tempo, prorrogados e/ou parcialmente amortizados, remanescendo, em divida, à data da propositura da acção executiva, o peticionado capital de € 49.520,00 ;
a última prestação paga pelos Executados foi a vencida em 26/07/2014, não tendo efectuado o pagamento de qualquer uma das subsequentes, apesar de, por diversas vezes, interpelados para o fazerem, pelos serviços do Exequente, o que tornou vencida a dívida na sua totalidade, nos termos do art. 781.º do Código Civil ;
inexiste qualquer ineptidão do requerimento executivo ;
com efeito, os dois primeiros títulos dados à execução (livranças), são títulos de crédito, pelo que em sede de requerimento executivo apenas seria exigível ao Exequente que indicasse a relação cartular ou abstracta que é materializada no título, ou seja e essencialmente, que apresentasse o próprio título ;
nesse sentido, o Exequente não se encontrava, assim, onerado com o ónus da alegação da existência e contornos de qualquer relação subjacente (as suas vicissitudes são totalmente irrelevantes ante a literalidade e abstracção dos títulos executivos) ;
Incumbia aos Embargantes articular factos, extintivos ou modificativos da obrigação exequenda, ilidindo, assim, a indicada presunção criada pelo próprio título executivo, o que não fazem ;
Constituindo as livranças dadas à execução verdadeiros títulos executivos, constituindo eles próprios a causa de pedir ;
Relativamente à livrança com o valor facial de 2.065.082,54 €, por meio de cartas datadas de 15.02.2017, o Exequente comunicou aos subscritores da mesma o vencimento antecipado do contrato de financiamento em apreço, tendo informado que à data o montante em divida ascendia a € 1.946.859,30, cfr. cópia de cartas que ora se juntam com os n.ºs 3 e 4, que para os devidos efeitos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos ;
Na ausência do pagamento do valor em divida, por cartas datadas de 08.05.2017, o Exequente:
– i)- exigiu o pagamento da totalidade do valor do contrato, aí se incluindo os valores em atraso e o montante de capital em dívida até final do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas e;
ii)-informou do preenchimento da Livrança ao abrigo do clausulado contratado, pelo montante de €2.065.082,54, respeitante às seguintes parcelas:
Capital……………………………………………€ 1.686.166,67
Juros devidos desde 21.05.2014 ....………………….€ 368.641,83
Selagem da livrança ……………………............... € 10.274,04
(cfr. Docs. n.ºs 5 e 6 que ora se juntam e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.) :
Porque a divida não foi paga, tratando-se de “livrança em branco” (quanto ao seu valor e data de vencimento), o Banco, S.A. efectuou o seu preenchimento nos precisos termos acordados e pelo seu saldo credor, emergente do indicado contrato de financiamento ;
Com efeito, resulta do pacto preenchimento – cfr. contrato junto como Doc. 3 com o requerimento executivo, Condições Gerais, 18. 2 – “O BES fica autorizado pelo Cliente e pelo(s) avalista(s) caso existam, a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato.” ;
Não alegando os Embargantes factos de cuja prova possa resultar a conclusão de que a livrança foi abusivamente preenchida ;
Relativamente à livrança do valor facial de € 1.359.077,70, foi entregue ao então Banco ….., S.A., ora Banco, S.A., para garantia e segurança do cumprimento das obrigações para si emergentes do contrato de financiamento n.º 001614000047080, outorgado aos 30.12.2014, pelo montante máximo global de € 1.155.000,00 (um milhão cento e cinquenta e cinco mil euros) destinado à “Liquidação de responsabilidades, referente à Garantia Bancária contrato n.º 0030988700” ;
O exequente não juntou cópia deste contrato ao requerimento, porém como já supra exposto não tinha que o fazer, porquanto disso não depende a validade do titulo executivo ;
bem sabiam os Embargantes a que divida respeita a livrança exequenda, ao contrário do que alegam ;
pois, desde logo, por meio de cartas datadas de 15.02.2017, o Exequente comunicou aos subscritores da livrança o vencimento antecipado do contrato de financiamento em apreço, tendo informado que à data o montante em divida ascendia a € 1.297.939, 27, cfr. cópia de cartas que ora se juntam com os n.ºs 7 e 8, que para os devidos efeitos legais aqui se dão por integralmente reproduzidos ;

na ausência do pagamento do valor em divida, por cartas datadas de 08.05.2017, o Exequente:
i)-exigiu o pagamento da totalidade do valor do contrato, aí se incluindo os valores em atraso e o montante de capital em dívida até final do prazo do contrato, acrescido das despesas extrajudiciais incorridas e;
ii)-informou do preenchimento da Livrança ao abrigo do clausulado contratado, pelo montante de € 1.359.377,70, respeitante às seguintes parcelas:
Capital………………………………………€ 1.155.000,00
Juros devidos desde 21.05.2014 …………...………….€ 197.316,12
Selagem da livrança …………………..........……...... € 6.761,58
(cfr. Docs. n.ºs 9 e 10 que ora se juntam e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.) ;
Porque a divida não foi paga, tratando-se de “livrança em branco” (quanto ao seu valor e data de vencimento), o Banco, S.A. efectuou o seu preenchimento nos precisos termos acordados e pelo seu saldo credor, emergente do indicado contrato de financiamento ;
Com efeito, resulta do pacto preenchimento – cfr. contrato junto como Doc. 3 com o requerimento executivo, Condições Gerais, 18. 2 – “O Banco fica autorizado pelo Cliente e pelo(s) avalista(s) caso existam, a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato.” ;
os Embargantes não alegam factos de cuja prova possa resultar a conclusão de que a livrança foi abusivamente preenchida, o que nem poderiam fazer, porquanto bem sabem que tal não sucedeu ;
no que concerne ao Contrato de Financiamentos FEC 5437/09, o documento particular junto ao requerimento executivo, que o sustenta, apesar de eliminado das espécies de títulos executivos, do artigo 703º do CPC, porque anterior àquela alteração, mantém a anteriormente reconhecida característica de exequibilidade, em atenção ao princípio da segurança e protecção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático - cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 847/2014, datado de 3 de Dezembro de 2014 ;
deve ser indeferida a requerida suspensão da execução, ainda que com prestação de caução.
Conclui, no sentido da improcedência dos embargos, e, consequentemente, que seja ordenado o prosseguimento dos autos executivos.

3–Conforme despachos de fls. 85 e 86:
indeferiu-se o pedido de suspensão da execução ;
rejeitou-se liminarmente o pedido de suspensão da execução, mediante prestação de caução ;
determinou-se a notificação das partes para, querendo, exercerem por escrito a faculdade prevista no artº. 591º, nº. 1, alín., b), do Cód. de Processo Civil, sendo que nenhuma delas veio apresentar pronúncia.

4–Após, datado de 24/07/2020, foi proferido SANEADOR-SENTENÇA, que terminou com o seguinte dispositivo:
6. Decisão
Pelo exposto, julgo totalmente improcedentes, por não provados, os presentes embargos e, em consequência, determino o prosseguimento da execução.
Custas pelos executados/embargantes (artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do CPC).
Registe e notifique.
Comunique ao Sr. Agente de Execução”.

5Inconformados com o decidido, os Executados/Embargantes interpuseram recurso de apelação, por referência à decisão prolatada.

Apresentaram, em conformidade, os Recorrentes as seguintes CONCLUSÕES:

1– Ao decidir os Embargos sem permitir a discussão da matéria controvertida, nomeadamente a falta de fundamento para o preenchimento das Livranças, mas, em particular, da Livrança n.º 500905479141739843, o Tribunal “a quo” incorreu na violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, e artigo 615.º, n.º 1 alíneas, b) e d), ambos do C.P.C., na medida em que os fundamentos de facto exigiam decisão que permitisse aos Executados o direito de defesa e demonstração de que pelo menos uma das livranças dadas à cobrança não é justificada convencionalmente pelo Exequente”.
Concluem, no sentido da procedência do recurso, devendo, em consequência, a sentença recorrida ser revogada, com as consequências legais.
6–A Recorrida / Exequente / Embargada apresentou contra-alegações, nas quais defendeu a decisão apelada, considerando ter a mesma interpretado convenientemente os factos e aplicado de forma adequada o direito, sem ter violado quaisquer normas jurídicas, nomeadamente as invocadas pelos Recorrentes.
7–O recurso foi admitido por despacho de fls. 104, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
8–Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.

***

II–ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)- As normas jurídicas violadas ;
b)- O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)- Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação dos Recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pelos Recorrentes  Embargantes, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se, fundamentalmente, no seguinte:

1.Da NULIDADE de SENTENÇA, por violação do disposto nos artºs. 3º, nº. 3 e 615º, nº. 1, alíneas b) e d), do Cód. de Processo Civil ;
A alegação de que pelo menos uma das livranças dadas á cobrança (nº. 500905479141739843) não é justificada convencionalmente pela Exequente ;
2.Seguidamente, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, no qual eventualmente se aferirá acerca do ónus de alegação e prova da violação do pacto de preenchimento.
***

IIIFUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No saneador sentença apelado foi CONSIDERADA PROVADA a seguinte matéria de facto:
1.Por requerimento executivo apresentado em juízo, nos autos principais, em 09/01/2018, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, BANCO, S.A., intentou contra A. P. e M. P. acção executiva para pagamento da quantia global de €3.567.306,64, acrescida de juros vincendos.
2.A exequente apresentou como títulos executivos a livrança n.º 500905479080307957, no valor de €2.065.082,54, emitida pelo «Banco …………….., S.A.», a livrança n.º 500905479141739843, no valor de €1.359.077,70, emitida pelo «Banco, S.A.», escritura pública de «hipoteca e procuração», outorgada em 21/11/2019, e um documento designado «Financiamento n.º FEC 5437/09», datado de 26/07/2009, cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.
3.A primeira das referidas livranças, com o n.º 500905479080307957, foi subscrita pelos executados e entregue, em branco, ao Banco, para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do «contrato de financiamento n.º FEC 7235/09», celebrado em 20/11/2009, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Nos termos da cláusula 18 das condições gerais do referido «contrato de financiamento»:
«§1.- O B…. poderá accionar ou descontar a livrança que lhe é entregue pelo Cliente no caso de incumprimento das obrigações assumidas no Contrato.
§2.- O B…. fica autorizado pelo Cliente (…) a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato».
5.A exequente entregou aos executados, no âmbito do «contrato de financiamento n.º FEC 7235/09», a título de empréstimo bancário, a quantia de €1.686.166,67.
6.A segunda das referidas livranças, com o n.º 500905479141739843, foi subscrita pelos executados e entregue, em branco, ao Banco, para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do «contrato de financiamento n.º 001614000047080», celebrado em 30/12/2014, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7.Nos termos da cláusula 18 constante das condições gerais deste último «contrato de financiamento»:
«§1.- O B…. poderá accionar ou descontar a livrança que lhe é entregue pelo Cliente no caso de incumprimento das obrigações assumidas no contrato.
§2.- O B…. fica autorizado pelo Cliente (…) a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do contrato».
8.Em 26/07/2009, Banco …….., SA, e A. P. e M. P. celebraram um acordo escrito, com a designação «Financiamento n.º FEC 5437/09», pelo qual a primeira declarou conceder a estes dois últimos um empréstimo, no montante de €249.398,95, para «fundo de maneio», a reembolsar até 26/07/2010, sujeito às «condições particulares» neles insertas e às «condições gerais» anexas, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
9.A exequente, no âmbito deste último acordo, entregou aos executados a quantia de €249.398,95.
10.Por acordo das partes, celebrado em 14/07/2010, 25/07/2011, 19/07/2012, 10/07/2013 e 26/07/2014, o prazo de reembolso da referida quantia foi sucessivamente prorrogado para os dias 26/07/2011, 26/07/2012, 26/07/2013, 26/07/2014 e 26/07/2015, respectivamente.
11.Por cartas de 15/02/2017, a exequente comunicou aos executados «o vencimento antecipado do contrato de financiamento c/ o n.º 5437/09», com fundamento na alínea a) do ponto 1. da cláusula 10 das condições particulares do mesmo contrato.
***

BFUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

I)Da NULIDADE de SENTENÇA – artº. 615º, nº. 1, alíneas b) e d), do Cód. de Processo Civil

Invocam os Apelantes que a decisão recorrida, proferida em sede de despacho saneador, mão lhes permitiu exercer “plenamente o seu direito de defesa”, nomeadamente “efectuarem melhor prova, designadamente através da prova testemunhal”, violando assim o disposto no artº. 3º, nº. 3 e 615º, nº. 1, alíneas b) e d), ambos do Cód. de Processo Civil, na medida em que os fundamentos de facto exigiam decisão que lhes permitisse “o direito de defesa e demonstração de que pelo menos uma das livranças dadas à cobrança não é justificada convencionalmente pelo Exequente”.

Na resposta apresentada, referencia a Apelada que por despacho proferido nos autos, alertando que o estado do processo permitia, sem necessidade de ulteriores provas, conhecer acerca do mérito dos embargos, foi concedida às partes a possibilidade de exercerem, por escrito, a faculdade inscrita no artº. 591º, nº. 1, ali. b), do Cód. de Processo Civil, que os Apelantes não exerceram.
Pelo que, consequentemente, foi proferido despacho saneador, com cumprimento de todas as formalidades.

Conhecendo:

No regime jurídico das nulidades dos actos decisórios releva “a divergência entre o que é objectivamente praticado ou declarado pelo juiz, e o que a lei determina ou o que resultou demonstrado da produção de prova”. Estamos no campo do error in procedendo, que se traduz “na violação de uma disposição reguladora da forma (em sentido amplo) do ato processual: o ato executado é formalmente diferente do legalmente previsto. Aqui não se discute se a questão foi bem julgada, refletindo a decisão este julgamento acertado – por exemplo, é irrelevante que a sentença (à qual falte a fundamentação) reconheça a cada parte o que lhe pertence (suum cuique tribuere)” [2] [3].
Assim, nas situações ou manifestações mais graves, o error in procedendo fere o acto de nulidade, estando-se perante vícios do acto processual formais, pois os “vícios substanciais, como por ex., os cometidos na apreciação da matéria de fundo, ou na tramitação do processo, são objecto de recurso, não se inserindo na previsão normativa das nulidades” [4].
A diferenciação ocorre, assim, por referência ao error in judicando, que “é um vício de julgamento do thema decidendum (seja este de direito, processual ou material ou de facto). O juiz falha na escolha da norma pertinente ou na sua interpretação, não aplicando apropriadamente o direito – dito de outro modo, não subsume correctamente os factos fundamento da decisão à realidade normativa vigente (questão de direito) -; ou falha na afirmação ou na negação dos factos ocorridos (positivos ou negativos), tal como a realidade histórica resultou demonstrada da prova produzida, havendo uma divergência entre esta demonstração e o conteúdo da decisão de facto (questão de facto). Não está aqui em causa a regularidade formal do ato decisório, isto é, se este satisfaz ou não as disposições da lei processual que regulam a forma dos atos. A questão não foi bem julgada, embora a decisão – isto é, o ato processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada.
A decisão (ato decisório) que exteriorize um error in judicando não é, com este fundamento, inválida. O meio adequado à sua impugnação é o recurso, sendo o objecto deste o julgamento em que assenta a pronúncia. Confirmando-se o julgamento, a decisão é mantida; no caso oposto, é, por consequência, cassada, ou revogada e substituída – dependendo do sistema de recursos vigente” [5].

As nulidades de sentença – cf., artigos 615º e 666º -, integrando, juntamente com as nulidades de processo – artigos 186º a 202º -, “o género das nulidades judiciais ou adjectivas”, distinguem-se, entre si, “porquanto, às primeiras, subjazem desvios ao formalismo processual prescrito na lei, quer por se praticar um ato proibido, quer por se omitir uma ato prescrito na lei, quer por se realizar um acto imposto ou permitido por lei mas sem o formalismo requerido, enquanto que as segundas se traduzem na violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal) prolator de alguma decisão”.

Prescreve a citada alínea b), do nº. 1, do artº. 615º ser nula a sentença quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

O vício de fundamentação em equação – alínea b), do citado nº. 1 do artº. 615º do Cód. de Processo Civil -, a apreciar no campo do error in procedendo, concretiza-se na omissão da especificação dos fundamentos de direito ou na omissão de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão.

Todavia, “só a absoluta falta de fundamentação da sentença gera a nulidade. O vício de fundamentação deficiente constitui uma irregularidade da sentença, mas não gera a sua nulidade” [6] [7] [8].

Donde decorre que “a falta de motivação da decisão de facto (art. 607º, nº. 4), considerada isoladamente, não gera a nulidade da sentença por falta de fundamentação, desde que esta contenha a discriminação dos factos que o juiz considera provados e a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas correspondentes (art. 607º, nº. 3). Este vício pode ser eliminado, sanando-se a sentença irregular, em caso de recurso (art. 662º, nºs. 2, al. d), e 3, al. d)), por haver nisso utilidade processual, pois permite uma impugnação pelo vencido e uma reapreciação da decisão pelo tribunal ad quem mais esclarecidas.

A absoluta falta de motivação da decisão de facto pode contribuir, no limite, para tornar a decisão final (art. 607º, nº. 3) ininteligível, gerando, por esta via, a nulidade da sentença (nº. 1, al. c). Sendo a sentença anulada com este fundamento, valerá a regra da substituição da Relação ao tribunal recorrido (art. 665º, nº. 1)[9].

A necessidade/dever de fundamentação de qualquer decisão judicial encontra-se plasmada no artº. 154º do Cód. de Processo Civil, o qual prescreve que:
1– as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2– A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.

Possui inclusive tal dever legal consagração constitucional, conforme decorre do previsto no artº. 205º, nº. 1, da Constituição da República Portuguesa, ao prescrever que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

O dever de fundamentação tem por objectivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma a que os destinatários possam entender as razões da decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e reagir contra a mesma.

Nas palavras do douto aresto desta Relação, datado de 07/11/2013 [10], “é, assim, manifesta a existência de um dever de fundamentação das decisões judiciais, dever esse com consagração constitucional e que se justifica pela necessidade das partes de conhecer a sua base fáctico- jurídica, com vista a apurar do seu acerto ou desacerto e a decidir da sua eventual impugnação.
Com efeito, há que ter em conta os destinatários da sentença que aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade. Para que umas e outra entendam as decisões judiciais e as não sintam como um acto autoritário, importa que as sentenças e decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre a força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça”
O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito [citando Pessoa Vaz, Direito Processual Civil – Do antigo ao novo Código, Coimbra, 1998, p.211.].

E, acrescenta, “conforme decorre do n.º2 do art.º 154.º do CPC a fundamentação das decisões não pode ser meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de adesão às razões invocadas por uma das partes, o preceito legal exige antes, uma “fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pela parte, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma” [citando José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol.1.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, p.302-303].

Tal, não se verifica, claramente, no caso em apreço. Não se trata de uma fundamentação parca ou deficiente. Trata-se de ausência de fundamentação.
Consequentemente, por não se encontrarem especificados os fundamentos de facto e de direito que determinaram a convicção do julgador e o levaram a decidir como decidiu, há que concluir pela falta de fundamentação e por consequência, pela nulidade da decisão recorrida nos termos do art.º668.º n.º b) (actual art.º 615.º n.º 1 b)) do CPC”.

Ora, na reversão do exposto ao caso concreto constata-se que a factualidade considerada como provada teve por base prova documental (junta aos presentes e aos autos executivos principais) e acordo das partes, encontrando-se a mesma devidamente enunciada e justificada.

Assim, a questão de saber se deveria ou não ser enunciada outra qualquer factualidade, decorrente da produção de outros meios probatórios, é questão que não releva na presente sede de nulidade de sentença.

Efectivamente, a decisão proferida e o enquadramento jurídico subjacente encontram alicerce bastante naquele lastro factual, e com este se concatenou, no âmbito de um discurso lógico e claramente perceptível.

Donde se conclui pelo não reconhecimento de qualquer nulidade da sentença, por falta de fundamentação relativamente á factualidade considerada provada, sendo, ainda, certo inexistir qualquer fundamento para considerar maculada a sentença com o vício da nulidade, por ausência de especificação dos fundamentos de direito.

Donde, sem necessidade de ulterior argumentação, julga-se totalmente improcedente a alegada invocação de nulidade da sentença, por ausência de fundamentação, de facto e de direito (especificação dos fundamentos de facto e de direito).

Os Recorrentes apelam, ainda, à causa de nulidade inscrita na alínea d), do mesmo normativo, que ocorre quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Por sua vez, o nº. 2, do artº. 608º, do mesmo diploma, prevendo acerca das questões a resolver e sua ordem, referencia que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Como vício de limite, a nulidade de sentença enunciada na transcrita alínea d) divide-se em dois segmentos, sendo o segundo atinente ao excesso de pronúncia. 

Neste, em correspondência com o citado 2º segmento, do nº. 2 do artº. 608º, “encontra-se vedado ao juiz conhecer de causas de pedir não invocadas ou de excepções que não sejam do seu conhecimento oficioso” [11].

No excesso de pronúncia, e a nulidade daí resultante de excesso de pronúncia de facto, nas palavras de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [12], “não é de conhecimento oficioso, só podendo o tribunal que proferiu a decisão anular (parcialmente) a sentença com esse fundamento, sobre requerimento da parte (art. 196º).
Embora este vício seja impressivo, por representar uma ostensiva violação do matricial princípio dispositivo, é por esta mesma razão que não se justifica o seu conhecimento oficioso. Se o vencido renuncia a invocar a inadmissibilidade da pronúncia sobre o facto essencial – o que está na sua disponibilidade (art. 264º) -, sujeita-se á sua consideração pelo tribunal ad quem na base factual do julgamento de direito”.

Ainda como vício de limite, a nulidade de sentença enunciada no demais segmento da transcrita alínea d) reporta-se à omissão de pronúncia

Neste, em correspondência com o citado nº. 2 do artº. 608º, “deve o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e exceções invocadas e de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”.

Assim, “integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes).
Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes” [13]

Na omissão de pronúncia, nas palavras de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [14], está em equação a vinculação do tribunal em “emitir pronúncia sobre todos os factos essenciais alegados carecidos de prova (arts. 607º, nº. 3, e 608º, nº. 2), sob pena de ocorrer uma omissão de pronúncia no julgamento da questão de facto. A omissão de pronúncia sobre um facto essencial gera a nulidade da sentença. Esta nulidade, presente na fundamentação da decisão final da causa, mas que se reporta à decisão de facto, deve ser arguida pela parte interessada, salvo quando impossibilite a reapreciação da causa pelo tribunal superior, sendo aqui de conhecimento oficioso (art. 662º, nº. 2, al. c))”.

In casu, se bem depreendemos o entendimento dos Apelantes, estaria em equação uma situação de excesso de pronúncia, ao ter o Tribunal proferido decisão sem que, previamente, tenha observado o princípio do contraditório, inscrito no nº. 3, do artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, e sem que lhes tivesse sido permitida a produção de prova, nomeadamente testemunhal, antes da decisão prolatada.

Estatui o artº. 3º, do Cód. de Processo Civil, prevendo acerca da necessidade do pedido e da contradição, que:
1- O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2- Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3- O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4- Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final”.

Ajuizando acerca do princípio do contraditório, refere Lebre de Freitas [15] vigorar no presente uma noção lata de contraditoriedade, “entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.

Pelo que, o desiderato ou escopo principal de tal princípio “deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.

E, concretizando a operacionalidade de tal princípio no plano das questões de direito, acrescenta ser exigível que, “antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”.

Acrescenta que a “proibição da chamada decisão-surpresa tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (art. 3-3)”.

Especificando e concretizando, entende ser necessário tal convite, exemplificativamente, na situação em que o Tribunal, ainda que concordando com a qualificação jurídica que as partes atribuíram a um contrato, se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respectivo regime (…) que as partes durante o processo não tiveram em conta (sublinhado nosso). E, a falta de tal convite, quando deva ter lugar, determina ou gera nulidade, nos quadros do artigo 195º, do Cód. de Processo Civil.

Deste forma, não basta, para o assegurar do cumprimento desta vertente do contraditório, que “às partes, em igualdade, seja dada a possibilidade de, antes da decisão, alegarem de direito (…)”, sendo ainda exigível que “mesmo depois desta alegação, possam fazê-lo ainda quanto a questões de direito novas, isto é, ainda não discutidas no processo” [16] [17].

Subjaz, deste modo, ao princípio do contraditório a ideia “de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas á revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham”.

Com efeito, “a liberdade de aplicação das regras do direito (art. 5º, nº 3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas exceções sem outras condicionantes potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa”, pretendendo-se, assim, com a regra enunciada no nº. 3, “impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão (sublinhado nosso).

Por outro lado, a legal solução “propicia ao juiz melhores condições para uma ponderação serena dos argumentos”, pelo que a audição das partes apenas “pode ser dispensada em casos de «manifesta desnecessidade» (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva), de indeferimento de nulidades (art. 201º) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências” [18]

A dispensa da observância do princípio do contraditório tem, deste modo, natureza excepcional, apenas se justificando “quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final”.

Donde, estando-se perante uma diferenciada qualificação jurídica dos factos, legítima de acordo com o nº. 3, do artº. 5º, do Cód. de Processo Civil, não está dispensada “a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma delas adotou no processo, interferindo na tutela dos respectivos interesses” [19].

Jurisprudencialmente, em termos exemplificativos, afiramos o juízo expedido no douto Acórdão do STJ de 19/12/2018 [20], do qual consta que “o que se quis impedir, com o aludido preceito, foi, precisamente, que a coberto do princípio «jus novit curia», emergente do art.5º, nº3, e do princípio da oficiosidade no conhecimento da generalidade das excepções dilatórias e das excepções peremptórias, constantes dos arts.578º e 579º, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas, por não terem sido objecto de discussão no processo”.

Acrescenta, citando Abrantes Geraldes [21], que “a liberdade de aplicação das regras de direito adequadas ao caso e a oficiosidade no conhecimento de excepções, conduziam, com alguma frequência, a decisões que, embora tecnicamente correctas, surgiam contra a corrente do processo, à revelia das posições jurídicas que cada uma das partes tomara nos articulados ou nas alegações de recurso. Eram as chamadas «decisões-surpresa» legitimadas pelo regime jurídico-processual anterior, que nenhumas limitações colocava ao poder imediato de integração da matéria de facto nas normas aplicáveis” (sublinhado nosso).

Por sua vez, o douto aresto do mesmo Alto Tribunal de 12/07/2018 [22] defende decorrer do princípio do contraditório a “a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”.

Todavia, acrescenta, ressalvando e balizando a amplitude da aplicabilidade de tal princípio, que “a decisão-surpresa que a lei pretende afastar, afoitamente, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar e não com os fundamentos não expectáveis de decisões que já eram previsíveis, não se confundindo a decisão-surpresa com a suposição que as partes possam ter concebido quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter realizado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento”.

Por fim, analisando o princípio contraditório em termos constitucionais, pode referenciar-se, por todos, o douto aresto do Tribunal Constitucional nº. 330/2001 [23], no qual se menciona que “o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um correcto funcionamento das regras do contraditório [cf. o acórdão n.º 86/88 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e seguintes)].
Tal como se sublinhou no acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão n.º 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos"”.
Acrescenta, então, que “a ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º, páginas 153 e seguintes) sublinhou-se que o princípio da igualdade das partes e o princípio do contraditório "possuem dignidade constitucional, por derivarem, em última instância, do princípio do Estado de Direito".
As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam decididas "mediante um processo equitativo" (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), o que – tal como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) – exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois, criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acaso será justa.
O processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica: ele reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars), sendo o juiz uma instância passiva. Nele – insiste-se –, o juiz não pode tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja ouvida. E mais: essa audição tem, em regra, que preceder o decretamento da providência. Só excepcionalmente, quando haja razões de eficácia e de celeridade que imponham o seu diferimento e que este não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa, ela pode ser diferida para momento ulterior, pois só então se justifica que a audição da parte não seja prévia”.

Cotejados os expostos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, articulemo-los com o caso sub júdice.
Conforme despacho datado de 07/04/2020, consignou-se que o estado do processo permitiria, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito em controvérsia.
Acrescentou-se que a marcação de data para a continuação da audiência prévia apenas “teria como efeito útil permitir às partes o exercício da faculdade prevista no artigo 591º, nº. 1, alínea b), do CPC”, e que, cessada no futuro a declaração do estado de emergência, que se mantinha, o Tribunal tivesse agenda disponível para a convocação, no prazo legal, de tal diligência processual.
Pelo que, determinou-se a notificação das partes para, querendo, no prazo indicado, exercerem por escrito a faculdade prevista no artº. 591º, nº. 1, alínea b), do Cód. de Processo Civil.
Todavia, concretizada tal notificação, nenhuma das partes, e concretamente os Embargantes, veio apresentar pronúncia.
Por outro lado, a decisão proferida acerca do mérito da causa teve por base não só o teor dos embargos deduzidos, como ainda a contestação destes, sendo que as questões apreciadas foram objecto de devida pronúncia naqueles articulados, não se podendo, logicamente, falar acerca de questões inovatórias, ainda não expostas ou referenciadas no processo.
Ou seja, e de forma clara, o Tribunal a quo, previamente ao conhecimento do mérito da causa suscitou perante as partes a faculdade de pronúncia acerca da questão de facto e de direito em equação, sendo que as questões decidendas já constavam no manual inscrito quer em sede de petição inicial de embargos, quer em sede da contestação apresentada, pelo que não pode deixar de reconhecer ter ocorrido concessão de ampla e efectiva possibilidade de discussão, valoração e ajuizamento.

Efectivamente, conforme sumariado no douto aresto desta Relação de 18/12/2012 [24], “o direito a ser ouvido (right to be heard) constitui um elemento essencial do direito a um julgamento leal e mediante processo equitativo que a todos está constitucionalmente garantido, não podendo ser decretada, sob pena de nulidade da decisão, a condenação de alguém como litigante de má fé sem prévia notificação do mesmo para que se pronuncie, querendo, quanto a tal matéria”.

Todavia, acaso assim não se entendesse, e se concluísse pela inobservância do legal comando, questiona-se: qual o vício concretamente em equação ?
A prática de nulidade secundária, por omissão de acto ou formalidade legalmente prescritos, inscrita no artº. 195º, do Cód. de Processo Civil ?
Ou, conforme parece defenderem os Apelantes, a causa de nulidade da sentença decorrente de excesso de pronúncia (apreciação de questão que, naquele contexto, o Tribunal não poderia tomar conhecimento) ?

Temos entendido [25] que, não cumprindo o Tribunal o princípio do contraditório, conducente à prolação de decisão surpresa, tal determina a prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido omitida a prática de um acto ou formalidade legalmente prescrita – exercício e observância do princípio do contraditório, na vertente de prolação de decisão-surpresa [26].

Em idêntica trilha, defendeu o douto Acórdão do STJ de 11/09/2012 [27] que “ao não ter sido dada ao recorrente, prévia oportunidade de se pronunciar sobre a intenção dos julgadores de o sancionarem como litigante de má fé em multa e indemnização (sobre esta foi ouvido depois da condenação no incidente de quantificação – nº2 do art. 457ºdo Código de Processo Civil), cometeu-se uma nulidade – art. 201º, nº1, daquele Código – já que estando em causa a omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa, sendo ilegal a proibição da indefesa, sempre tal omissão tem influência na decisão deste concreto aspecto da causa.
A condenação da parte como litigante de má fé, sem a sua prévia audição, violaria os princípios constitucionais de acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados na Lei Fundamental “.
Entende-se, assim, que a ocorrência daquele vício como que se reflecte na sentença proferida, ou seja, tem efeitos reflexos sobre esta, mas não constitui, por si só, causa da sua nulidade, nomeadamente por excesso de pronúncia, pois a mácula da omissão da prática do acto pré-existe à sua prolação.
Donde se conclui que a eventual verificação da nulidade decorrente da omissão do exercício e observância do princípio do contraditório, determinaria, no segmento decisório em equação, a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal omissão e que da mesma dependessem em absoluto, ou seja, e in casu, a integralidade da decisão proferida relativamente ao mérito da causa.
Por todo o exposto, conclui-se no sentido de não reconhecimento da existência da prática de qualquer nulidade capaz de macular o saneador sentença proferido, nomeadamente a nulidade decorrente de excesso de pronúncia, igualmente improcedendo, neste segmento, a pretensão recursória reclamada.


II)Do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA

A sentença apelada, na parte ora questionada raciocinou, em súmula, mediante a seguinte argumentação:
- a questão decidenda traduz-se em aferir se ocorreu violação do pacto de preenchimento das livranças dadas à execução ;
- na livrança em branco, o título deverá ser preenchido de harmonia com as estipulações negociais, sob pena do obrigado cambiário poder opor, ao portador/beneficiário do título, com quem celebrou o pacto, a excepção de preenchimento abusivo (artigos 10º e 17º, ad contrario sensu da L.U.L.L.) ;
- conforme o disposto no artº. 10º, ex vi do artº. 77º, do mesmo diploma, ocorre violação do pacto de preenchimento quando uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados ;
- o ónus de alegação e prova do pacto de preenchimento, bem como da sua violação, recaía sobre os Executados/Embargantes, pois tal serve de causa impeditiva do direito de crédito da Exequente, assumindo a natureza de excepção peremptória – cf., os artigos 342º, nº. 2 e 378º, ambos do Cód. Civil e artº. 571º, nº. 2, 2ª parte, do Cód. de Processo Civil ;
- todavia, os Embargantes/Executados inobservaram o respectivo ónus legal, pois nada alegaram em concreto que permita concluir pelo invocado abuso de preenchimento ;
- limitando-se a impugnar genericamente o valor da dívida cambiária inscrita nas livranças dadas à execução ;
- impunha-se-lhes que demonstrassem, mediante a alegação de factos concretos, que a Exequente/Embargada abusou da confiança nela depositada, accionando as livranças sem que se tivesse verificado uma situação de incumprimento ou nelas inscrevendo um valor superior àquele a que tinha direito ;
- não excepcionaram o cumprimento, total ou parcial, das obrigações subjacentes às obrigações cambiárias executadas, o que constituía um ónus seu (artº. 342º, nº. 2, do Cód. Civil) ;
- não valendo como causa justificativa para tal omissão o alegado desconhecimento do contrato a que respeita uma das livranças, pois é exigível a quem entrega ao credor uma livrança em branco que saiba qual o negócio deste modo garantido, os termos concretos do contrato que justificou a prestação de uma tal garantia cambiária e quais os pagamentos efectuados por conta da respectiva dívida ;
- concluindo-se, assim, pela improcedência da excepção de violação do pacto de preenchimento deduzida pelos Executados/Embargantes.

Nas alegações recursórias apresentadas, os Apelantes aduzem não concordar com tal ónus alegacional e probatório, mas falam na situação do avalista (de que não se cuida in casu), mencionando deixar-se “todo o campo aberto ao beneficiário do aval para o seu preenchimento, numa total concessão de poderes discricionários para o preenchimento do documento”.
Questionam, expressamente, de forma pouco compreensível, atenta a sua qualidade de subscritores dos títulos, que não de avalistas, “como pode o ónus da prova do pacto de preenchimento e da sua violação, recair sobre os avalistas se estes não têm elementos que lhes permitam contradizer os critérios de preenchimento do título ?”.
E, acrescentam que “pode até o preenchimento dos títulos não ser abusivo”, mas que o Tribunal terá de permitir-lhes a produção de prova, nomeadamente testemunhal, capaz de demonstrar “que o valor aposto nas livranças viola o pacto de preenchimento, por eventual inscrição de valor superior àquele a que o beneficiário tem direito”.

Na resposta apresenta a Recorrida cita a decisão recorrida, considerando-a imerecedora de qualquer reparo, atento o seu acerto e pertinência, pelo que deve ser devidamente confirmada.

Vejamos.

Estatui o artº. 10º, da Lei Uniforme de Letras e Livranças, ajuizando acerca da violação do acordo na emissão da letra, que “se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Tal normativo, como outros previstos para as letras, “são aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito”, conforme prescrito no artº. 77º, do mesmo diploma, enunciando o artº. 75º acerca dos requisitos da livrança.

Definindo-se o título de crédito como o “documento necessário para exercitar o direito literal e autónomo nele mencionado” ou incorporado, é certo que o “direito cartular pressupõe uma relação jurídica anterior – a relação subjacente ou fundamental -, de forma que sem esta relação não se explica a criação do título”.
E, o direito cartular “tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica” prévia, pelo que “o título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se com uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes”.
Assim, e para além da ideia da incorporação, tradutora da conexão existente entre o documento e o direito, os títulos de crédito possuem, ainda, as características da literalidade e autonomia.
A primeira, traduz que o “direito incorporado no título é um direito literal, no sentido de que a letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo, limites e modalidades do direito”, enquanto que, no que concerne à autonomia, afirma-se que “o direito é autónomo, dado que o possuidor do título, o que o recebeu segundo a sua lei de circulação, adquire o direito nele referido de um modo originário, isto é, independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis vícios dessa titularidade”.
Tais características, e a disciplina jurídica que lhes subjaz, “aparece toda ele enformada pela preocupação de defesa dos interesses de terceiros de boa fé”, no sentido de que “todo aquele que tiver adquirido, pelo modo legal de transmissão, um título de crédito, deve poder confiar no seu conteúdo literal e estar defendido contra a alegação de quaisquer irregularidades que tiverem porventura ocorrido numa fase precedente da circulação do mesmo título” [28].

Do ónus probatório relativo ao preenchimento das livranças

Relativamente ao pacto de preenchimento, e de acordo com o prescrito no transcrito artº. 10º da L.U.L.L, que é igualmente aplicável às livranças, “é possível e é frequente que ao tempo do saque e do aceite não esteja ainda definitivamente determinado o valor do crédito subjacente, seja ainda ilíquido. Neste caso a letra é passada com o valor em branco”.
Quando tal suceda, “a letra pode ser preenchida posteriormente e deve sê-lo antes de apresentada a pagamento”, sendo que tal preenchimento “deve ser feito de acordo com o convencionado”.
Deste modo, “sempre que é emitida uma letra em branco tem que ter havido prévia ou simultaneamente à emissão um acordo quanto ao critério do preenchimento. Este acordo é uma convenção extracartular e designa-se por pacto de preenchimento”.
Este pacto, por outro lado, configura-se como “uma convenção obrigacional e informal. Tem como conteúdo a obrigação de preencher a letra de acordo com o critério estipulado e só é oponível entre as partes”.
A violação de tal pacto ou acordo de preenchimento “designa-se por preenchimento abusivo” e não é oponível ao portador, devendo, todavia, “entender-se que o portador referido no artº 10º LULL a que o preenchimento abusivo se não pode opor é um portador que não seja interveniente no pacto de preenchimento. A doutrina do artº 10º é a mesma do artº 17º LULL: as convenções extracartulares só podem ser opostas entre os respectivos intervenientes” [29] [30]
Todavia, sendo uma letra (ou livrança) emitida em branco, “a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se encontre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1º e 2º”.
Pelo que, no que concerne à obrigação cambiária, ou seja, a obrigação de pagar a quantia inscrita no título, “ela só se constituiria através do preenchimento”, pois o que “existe antes do preenchimento para o emitente do título não é a obrigação cambiária, é apenas o estar ele sujeito ao exercício do direito (potestativo) do portador de preencher a letra, sendo o preenchimento que marca o nascimento da obrigação cambiária[31].

Ora, in casu os Embargantes não questionam ter subscrito as livranças dadas em execução, nem se questiona que tenham entregue tais documentos em branco, bem como, conforme cláusulas 18 das referidas condições gerais dos contratos de financiamento, tenha sido conferido pelo Cliente autorização á entidade financiadora para “preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do Contrato”, podendo, assim, a mesma entidade “accionar ou descontar a livrança que lhe é entregue pelo Cliente no caso de incumprimento das obrigações assumidas no Contrato”.
Todavia, surge controvertida a questão de saber, preenchida a livrança e apresenta a mesma como título executivo, a quem incumbe o ónus de alegação e prova da violação do pacto de preenchimento.
Assim enquanto que a decisão apelada entende que tal ónus de alegação e prova incumbe aos Executados/Embargantes, entendem estes que o mesmo onera a posição da Exequente/Embargada.
Vejamos.
Consignou-se em Acórdão desta Relação e Secção de 28/01/2021 [32], apreciando semelhante questão, que “a livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu beneficiário, sendo a entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado “acordo ou pacto de preenchimento”, o qual tanto pode ser expresso como tácito (como sucede se resultar implícito das cláusulas do negócio subjacente à emissão do título).
A exceção de preenchimento abusivo da livrança emerge do art. 10.º da LULL, aplicável às livranças ex vi art. 77.º do mesmo diploma, podendo constituir fundamento de oposição à execução baseada em título de crédito, designadamente livrança (…)”.
Acrescenta-se, citando Marco Carvalho Gonçalves [33], que “à luz dos princípios da abstração e da incorporação, a livrança, enquanto título de crédito, dispensa o exequente de invocar a relação jurídica subjacente à sua emissão. Caberá, por isso, ao executado, no âmbito da relação imediata, o ónus de alegar e de provar factos concretos e objetivos que sejam suscetíveis de colocar em crise a validade, eficácia ou existência da relação fundamental subjacente à livrança.
Adita-se, em consonância, o entendimento jurisprudencial constante dos seguintes arestos:
“o acórdão da Relação de Lisboa de 04-06-2009, no processo n.º 64872/05.1YYLSB-B:L1-8, disponível em www.dgsi.pt: “(…) 3.  A livrança em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior sendo a sua aquisição/entrega acompanhada de atribuição de poderes para o seu preenchimento, o denominado «acordo ou pacto de preenchimento». 4. Esse acordo tanto pode ser expresso como tácito, v.g., por se encontrar implícito nas cláusulas do negócio subjacente à emissão do título. 5. O ónus da prova desse preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC, por se tratar de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito” (sublinhado nosso);
o acórdão do STJ de 20-05-2015, na Revista n.º 448/11.5TBPRG-A.S1 - 7.ª Secção, cujo sumário, disponível em www.stj.pt, citamos, pelo seu interesse: “I - A figura da livrança em branco, prevista nos arts. 75.º, 77.º e 10.º da LULL, produz todos os efeitos próprios da livrança caso seja integralmente preenchida. II - A obrigação cambiária torna-se perfeita desde que as assinaturas apostas no título de crédito exprimam a intenção de os signatários se obrigarem cambiariamente e o mesmo venha a ser preenchido antes de ser apresentado a pagamento. III - Porque o preenchimento abusivo reveste a natureza de facto impeditivo ou extintivo do direito do portador do título de crédito, o ónus alegatório e probatório da pertinente factualidade impende sobre os oponentes, em sintonia com a previsão do art. 342.º do CC, consubstanciando uma excepção pessoal fundada nas relações imediatas do seu subscritor com o portador imediato. (…)(sublinhado nosso).
De referir ainda que, como se explica no acórdão do STJ de 17-01-2017, na Revista n.º 775/12.4TBMGR-A.C1.S1 - 1.ª Secção (sumário disponível em www.dgsi.pt): “(…) VI - Existem duas modalidades de preenchimento abusivo de uma livrança em branco: (i) o injustificado, isto é, aquele que é realizado ilegitimamente pelo portador, como no caso de falta de incumprimento da relação fundamental garantida ou de extinção satisfatória da relação; e (ii) o que traduz uma incorrecta configuração das menções introduzidas no título, como é exemplo a inscrição de um valor superior ao devido”.
E, tendo por subjacente situação idêntica à ora em equação, aduz que “nos presentes autos, a Executada, não negando ter subscrito a livrança em apreço, limitou-se a dizer que o preenchimento da livrança foi abusivo, mas não concretizou minimamente, do ponto de vista fáctico, essa afirmação conclusiva, nada se podendo retirar de substantivamente relevante do seu requerimento inicial. De sublinhar que nem sequer alegou não ter celebrado nenhum negócio jurídico com o Banco Santander Totta, S.A. ou, ao invés, tê-lo feito e de que negócio se tratava (pois dele constaria o pacto de preenchimento supostamente incumprido); ou qual a vontade das partes a respeito da finalidade da livrança.
É possível que a Executada nada tenha alegado por estar convencida de que lhe bastaria invocar uma tal questão para logo ficar a Exequente “compelida” a alegar os factos relativos à relação subjacente. Mas, conforme já foi referido e aqui se reitera, na esteira da doutrina e jurisprudência pacíficas a este respeito, trata-se de matéria de exceção, cujos factos essenciais, à Executada/Embargante incumbia ter alegado (art. 5.º, n.º 1, do CPC, e art. 342.º, n.º 2, do CC)”.

Ainda em termos jurisprudenciais, em idêntico sentido, referenciem-se os seguintes doutos arestos do STJ (todos in www.dgsi.pt ):
- de 20/05/2004 [34], no qual se referenciou que “havendo contrato ou acordo de preenchimento de um título de crédito (letra em branco), este preenchimento não pode exceder os limites acordados. Constituindo o preenchimento abusivo da letra uma excepção que pode ser oposta ao credor/tomador, sobre o devedor/aceitante recairá o ónus da prova dos factos integradores dessa excepção (sublinhado nosso) ;
- de 28/09/2017 [35], aí se consignando que “a letra ou livrança incompleta ou em branco pode ser validamente completada em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua criação, mediante acordo expresso ou tácito, designado por pacto de preenchimento, mormente no quadro da relação fundamental que determinou tal criação.
Uma vez completado o preenchimento do título e colocado este em circulação, não é lícito aos signatários cartulares, no domínio das relações mediatas, opor ao portador exceções emergentes da violação ou abuso do pacto de preenchimento, salvo com fundamento em aquisição do mesmo com má-fé ou falta grave por parte do portador, como dispõe o acima transcrito artigo 10.º da LULL. Pode ainda assim o signatário demandado impugnar a assinatura que lhe é atribuída no título, invocar a invalidade formal do ato cambiário assumido, bem como as exceções de prescrição ou de pagamento da obrigação cartular.
Já no domínio das relações imediatas, é lícito ao signatário cambiário invocar as exceções perentórias inerentes à relação causal, nomeadamente a violação do pacto de preenchimento, recaindo sobre ele o respetivo ónus de prova, nos termos conjugados dos artigos 342.º, n.º 2, e 378.º do CC e artigos 10.º e 17.º da LULL a contrario sensu.
Nessa medida, em sede de execução cartular, incumbe ao executado cambiário alegar e provar, como fundamentos de oposição por embargos, tais meios de defesa, nos termos do artigo 731.º com referência ainda ao art.º 571.º do CPC” (sublinhado nosso) ;
- de 10/12/2019 [36], donde consta que “o pacto ou contrato de preenchimento não está sujeito a forma especial, podendo ser expresso ou tácito, definindo-se, então, os seus contornos a partir da natureza da relação fundamental e dos usos do comércio.
Como ensinava José Gabriel Pinto Coelho (Lições de Direito Comercial, 2º Vol., Fascículo II, pág. 40), as cláusulas ou termos de preenchimento nem sempre são directamente estabelecidos numa estipulação, muitas vezes resultando implicitamente do próprio contrato que dá origem ao título, isto é, da relação jurídica fundamental - quando se fala de acordo quanto ao preenchimento tanto se consideram os acordos expressos como os tácitos, definindo-se o seu conteúdo pelos próprios termos da relação fundamental subjacente”.
Acrescenta-se, então, que a existência de um acordo de preenchimento, e sua inobservância assume a natureza de exceção perentória, uma vez que traduz a alegação de facto impeditivo do direito do exequente.
Invocada essa exceção, em processo de embargos, o respectivo ónus da prova impende sobre o embargante (sublinhado nosso).
E conclui, referenciando em nota de rodapé, corresponder tal entendimento à doutrina do Assento do STJ de 14/4/96, in BMJ 457,59 que decidiu que, «em processo de embargos de executado, é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador a seu mando, que recaía o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância.»”.

Aqui chegados, na aplicação do entendimento doutrinário e jurisprudencial exposto, urge consignar os seguintes princípios orientadores:
- no âmbito do processo executivo, a livrança, como título de crédito, tendo em consideração os princípios ínsitos da abstracção e da incorporação, dispensa o exequente de expor e densificar a relação jurídica causal, fundamental ou subjacente à sua emissão ;
- donde, incumbe ao executado, no âmbito das relações imediatas, o ónus de alegação e prova dos factos reais, concretos e objectivos capazes de colocar em crise a validade, existência, manutenção, subsistência ou eficácia daquela relação fundamental que subjaz à livrança ;
- a livrança em branco tem normalmente como desiderato o ser posteriormente preenchida pelo seu adquirente, a quem normalmente se atribui poderes para tal preenchimento, no que constitui o denominado acordo ou pacto de preenchimento, o qual tanto pode ser expresso como tácito ;
- o ónus alegacional e probatório do preenchimento abusivo impende sobre o obrigado cambiário/executado, atenta a circunstância de estarmos perante um facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito, nos termos prescritos nos artigos 342º, nº. 2 e 378º, ambos do Cód. Civil e 571º, nº. 2 e 731º, ambos do Cód. de Processo Civil ;
- para o cumprimento do aludido ónus alegacional, a densificação factual exigida não se basta com a conclusiva e generalista alegação de que o preenchimento da livrança foi abusivo, antes se exigindo uma concreta e definidora concretização factual de tal alegação conclusiva, como factos essenciais integradores da excepção peremptória invocada – cf., o nº. 1, do artº. 5º, do Cód. de Processo Civil.

Transpondo tais conclusões para o caso sub júdice, consigna-se que:
- conforme se refere no saneador sentença recorrido, para “fundamentar o abuso de preenchimento da livrança n.º 500905479080307957, no valor de €2.065.082,54, emitida pelo «Banco….., S.A.», os executados limitam-se a alegar, nos artigos 24.º a 27.º da petição inicial, o seguinte:
«A livrança preenchida para além de não respeitar o n.º 5 do artigo 75.º da L.U.L.L. – no que à legitimidade do Banco diz respeito – o valor e os termos apostos na mesma foram inscritos ao arrepio das regras da transparência e prestação de informação que o preenchimento deste tipo de documentos exige.
«De facto, desconhecem os Executados os exactos termos em que o valor indicado na livrança foi apurado, nomeadamente a sua natureza, prazos, taxas de juros, etc.
«O que implica que o preenchimento da livrança foi abusivo e, desse modo, a mesma não pode validamente servir o seu propósito, enquanto título executivo» ;
- por outro lado, para justificar “o abuso de preenchimento da livrança n.º 500905479141739843, no valor de €1.359.077,70, emitida pelo «Banco, S.A.», alegam os executados, nos artigos 32.º a 35.º da petição inicial, que «desconhecem (…) a que contrato de financiamento ou outra responsabilidade junto do Exequente estaria a livrança (…) dada como garantia», desconhecendo, assim, «que obrigações, valores, juros (por exemplo que indexante foi aplicado) ou outras obrigações a mesma servirá ou terá servido».
«Ora, sem tais elementos, a sua indicação ou junção – concluem os executados – inevitavelmente ter-se-á que concluir pela utilização abusiva de um documento que (…) deixaram assinado com o Exequente eventualmente para outra relação jurídica que não as referidas nos presentes autos.
«Ou seja, verifica-se o preenchimento abusivo da referida livrança», defendem” ;
- todavia, recaía sobre os Executados/Embargantes, ora Recorrentes, o ónus de alegação e prova do(s) pacto(s) de preenchimento celebrado(s) com a credora portadora dos títulos, ora Exequente/Embargada/Recorrida, bem como a violação daquele(s), como causa impeditiva do direito de crédito desta, em virtude de estarmos perante excepção peremptória ;
- o que deveriam ter concretizado através da alegação de factos concretos, específicos e tradutores daquele(s) pacto(s) e sua violação, e não, como fizeram, através de uma alegação e impugnação genérica do valor da dívida cambiária inscrita nas livranças dadas à execução, limitando-se a generalizações carentes de conteúdo factício ;
- o que determina efectivo incumprimento do enunciado ónus legal, quer de alegação, quer, logicamente, de impossibilidade consequente de concreta prova, assim inviabilizando uma putativa conclusão tradutora do invocado abuso de preenchimento ;
- ademais, como se refere certeiramente na decisão em sindicância, não podem os Embargantes invocar como causa justificativa para a sua omissão o alegado desconhecimento do contrato ou obrigação a que respeita uma das livranças dadas à execução, pois, entende-se ser exigível a quem entrega ao credor tal título em branco que saiba qual o negócio jurídico (financiamento) garantido, os concretos termos que determinaram a prestação e tal garantia cambiária e quais os pagamentos já liquidados por conta da dívida contraída ;
- donde, assim sendo, não merece censura a decisão em crise, tendo a mesma observado as exigências legalmente prescritas e supra enunciadas, com acerto e adequada aplicabilidade do direito aos factos apurados ;
- o que determina juízo de necessária improcedência da apelação, na confirmação da improcedência da oposição por embargos.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo os Apelantes Embargantes no presente recurso, são responsáveis pelo pagamento das custas da presente apelação.
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IV. DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a)- Julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Executados/Embargantes A. P. e M. P., em que surge como Apelada/Embargada/Exequente  BANCO, SA. ;

b)- Em consequência, confirma-se o saneador sentença apelado ;

c)- Custas da presente apelação a cargo dos Embargantes/Apelantes – cf., artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil.

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Lisboa, 01 de Julho de 2021



Arlindo Crua – Relator
António Moreira – 1º Adjunto
Carlos Gabriel Castelo Branco – 2º Adjunto

(assinado electronicamente)


[1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2]Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 599.
[3]Traduzem estas nulidades da sentença a “violação da lei processual por parte do juiz (ou do tribunal) prolator de alguma decisão”, pertencendo ao género das nulidades judiciais ou adjectivas – cf., Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 368.
[4]Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 102.
[5]Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit, pág. 600 e 601.
[6]Idem, pág. 603, citando doutrina de Alberto dos Reis, bem como o sustentado no douto aresto da RP de 28/10/2013, Processo nº. 3429/09.5TBGDM-A, no sentido de que “só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do nº. 1 do citado art. 615º do Novo Código Processo Civil. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
[7]Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 370, especifica traduzir-se o presente vício na “falta de externação dos fundamentos de facto e de direito que os nºs. 3 e 4 do artº 607º impõem ao julgador. Só integra este vício, nos termos da doutrina e da jurisprudência correntes, a falta absoluta de fundamentação, que não uma fundamentação simplesmente escassa, deficiente, medíocre ou mesmo errada ; [esta última pode afectar a consistência doutrinal da sentença, sujeitando-a a ser revogada ou alterada pelo tribunal superior, não gerando, contudo nulidade]”, citando Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, pág. 140.
[8]Neste sentido, cf, entre outros, o douto aresto do STJ de 06/07/2017, Relator: Nunes Ribeiro, Processo nº. 121/11.4TVLSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf .
[9]Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit, pág. 603.
[10]Relatora: Maria de Deus Correia, Processo nº. 7598/12.9TBCSC-A.L1-6, in  http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf , citado pelo Apelante.
[11]Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 372.
[12]Ob. cit., pág. 606.
[13]Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 368 a 370.
[14]Ob. cit., pág. 606 e 607.
[15]Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, Gestlegal, 2017, pág. 126 e 127.
[16]Idem, pág. 135 a 137.
[17]Referem, ainda, o mesmo Autor e obra – fls. 138, nota 27 -, que os tribunais franceses vêm recusando a aplicação do princípio do contraditório “nos casos em que o tribunal se limita a retificar a qualificação feita pelas partes”. Acrescenta, porém, que tal só é de aceitar na medida em que “não acarrete a aplicação duma norma jurídica diversa ou, acarretando-a, os efeitos desta norma não sejam substancialmente diversos dos da norma precedentemente considerada, caso em que é indiscutível que nos encontramos perante uma nova questão de direito” sublinhado nosso).
[18]Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 19 e 20.
[19]Idem, pág. 20.
[20]Relator: Roque Nogueira, Processo nº. 543/05.0TBNZR.C1.S1, in www.dgsi.pt .
[21]Temas da Reforma do Processo Civil, 1º vol., 2ª ed., pág.77.
[22]Relator: Hélder Roque, Processo nº. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, in www.dgsi.pt .
[23]Relator: Conselheiro Messias Bento, Processo nº. 102/2001, Jurisprudência do Tribunal Constitucional, in www.dgsi.pt .
[24]Relator: Eurico Reis, Processo nº. 2400/08.9YXLSB.L1-1, in www.dgsi.pt .
[25]Cf., o aresto desta Secção e Relação, proferido pelo mesmo Colectivo, datado de 11/02/2021 – Processo nº. 179/18.5T8MFR.L1.
[26]A nulidade processual cometida está a coberto de decisão judicial “que se lhe seguiu, que a sancionou e confirmou, pelo que o meio processual próprio para a arguir não é a reclamação, podendo o vício em causa ser objecto de recurso e ser declarado por esta Relação” – assim, o douto aresto da RP de 24/09/2015 - Relatora: Judite Pires, Processo nº. 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt -, o qual cita jurisprudência e doutrina neste sentido.
[27]Relator: Fonseca Ramos, Processo nº. 2326/11.09TBLLE.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[28]Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, pág. 1, 2 e 7 a 12.
[29]Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, AAFDL, 1990, pág. 105 e 106.
[30]De forma liminar, Ferrer Correia - , ob. cit., pág. 139 -, refere expressamente que “a excepção de preenchimento abusivo só não pode ser oposta àquele portador a cujas mãos a letra chega completamente preenchida, salvo, é claro, a hipótese de má fé. Havendo má fé, a excepção, obviamente, é sempre oponível”.
[31]Ferrer Correia, ob. cit., pág. 134 e 135.
[32]Processo nº. 6334/19.3T8FNC-A.L1, Relatora: Laurinda Gemas, no qual interveio como 2º Ajunto o ora Relator.
[33]Lições de Processo Civil Executivo, 2.ª edição, Almedina, págs. 92 e ss..
[34]Relator: Ferreira de Almeida, Processo nº. 04B1522.
[35]Relator: Tomé Gomes, Processo nº. 779/14.2TBEVR-B.E1.S1, citado na decisão apelada.
[36]Relatora: Maria do Rosário Morgado, Processo nº. 814/17.2T8MAI-A.P1.S2, citado na decisão apelada.